sábado, 10 de dezembro de 2022

Adega de Versos 97: Luiz Poeta (Luiz Gilberto de Barros)

 

Milton S. Souza (Voando alto)


A frase quase grito da minha netinha de três anos fez com que eu tirasse os olhos do livro que estava lendo e me concentrasse naquela semente de furacão que passava correndo: “– Vô, tô  aprendendo a voar...”. E lá se foi ela, dobrando o canto da casa e sumindo entre as flores do jardim, sempre sacudindo as mãos, imitando as asas de um passarinho. E eu fiquei parado, quase petrificado com a beleza daquele quadro, já esperando a volta da menina, que, pelo barulho, senti que estava dando a volta na casa.

Todos nós, quando crianças, “aprendemos a voar” com as nossas brincadeiras, impulsionados pela força da nossa imaginação. E voamos para todos os lados, explorando os espaços que nos cercam e, principalmente, dando rasantes sobre os lugares que mais gostamos. Pouco importa se não conseguimos erguer os pés a mais de um centímetro do chão. O que importa é que estamos aprendendo a voar por conta própria, sem ninguém para dar palpite. As únicas broncas que tomamos é quando os nossos voos terminam em alguma aterrissagem forçada e com alguns arranhões nos joelhos ou em outros lugares. Mas nem estes “acidentes” nos assustam: no outro dia lá estamos nós, voando novamente e aprendendo a voar em lugares desconhecidos.

Que pena que a infância não dura mais tempo. Logo que nós começamos a achar que já somos gente, os medos e as indecisões vão, aos poucos, cortando as nossas asas e nos proibindo de voar. E nos acomodamos e nos transformamos em projetos de adultos, que não voam, que pensam duas vezes antes de tentar fazer qualquer tipo de “aventura perigosa” e que aprendem a se “comportar como gente grande”. Os nossos voos ousados terminam virando lembranças da infância, quase sempre tingidas pelas cores da saudade e do nunca mais...

É por isso que eu presto tanta atenção quando a minha neta, ou qualquer outra criança, passa correndo por mim, tentando, rapidamente, aprender a voar. E é por isso, também, que, sempre que posso, viro controlador de voo para estes pequenos, que decolam guiados pelo instinto, sem plano de voo, sem limites de altitude ou rota para seguir. Eles mesmos traçam os seus rumos. Num minuto estão “voando” entre as flores do jardim e já no segundo seguinte “voam” atrás das sombras das nuvens que o sol e o vento brincam de fazer correr na imensidão do céu.

“Vô, tô aprendendo a voar...”. - Voa, minha netinha. Voa cada vez mais alto. Voa como quem conhece os atalhos do infinito e não se assusta com a força do vento que sopra em direção contrária. Voa por todos os caminhos desta tua infância colorida, inventando rumos e limites para estes teus graciosos voos. E quando a vida vier com aquele papo de que já estás grandinha e que, por isso, precisas cortar as asas e deixar de voar, resiste ao menos mais um pouquinho. E pede para o destino te deixar voar mais um pouco, pois não existe felicidade maior do que estar constantemente aprendendo a voar. Voa, minha netinha, que eu estou aqui pertinho, maravilhado com a perfeição do teu voo e pedindo para todos os anjos da guarda que acredito voarem ao teu lado pela vida inteira…

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) IX


AOS CÃES LANTERNAS

Cadela linda sem nenhum pecado
Logrou a mim ao conceber sem pejo.
Pois, na hora extrema me faltou cuidado
E foi em vão querer frustrar o ensejo.

Ante o cenário me manti calado
Quase perplexo pelo seu desejo.
Minha alegria e a comoção do agrado
Foi ter as vidas que sorrindo vejo.

Sempre ao seu lado vi nascer os sete
Acomodados em macio carpete
Sob o carinho da guardiã materna.

Sei que os caminhos o destino muda
E no futuro eu terei a ajuda
E a proteção da singular lanterna.
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CONFIDÊNCIAS

Não te esqueças, desesperado espero,
Vencer a vida sem morrer primeiro.
Por seres tu a musa que venero
Jamais farei o teu formal letreiro.

Na minha alcova, sabes bem, não quero
Nenhum intruso como meu parceiro!
Pois o lugar é teu, amor, e vero
Desejo antigo do mortal troveiro.

Um pé de murta já plantei. Florindo
Irá sombrear o nosso lar infindo
E perfumar nosso modesto abrigo,

E as nossas almas da estelar altura
Serão autoras do laurel ternura
Sobre o concreto do eternal jazigo.
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O PEREGRINO

Quando nasceu o menestrel maior
No altar de palha recendeu a essência.
Ditosos reis fiéis ao seu redor,
Viram a estrela reluzir clemência.

A natureza a repetir de cor
O musical da divinal regência
E se escutava da capela mor
A anunciação da singular vivência.

Debruça o mundo sobre o berço pobre
Em honrarias ao menino nobre
Que transluzia o seu viver por nós.

E num roteiro de esperança e luz...
Fez alegria e não chorou na cruz,
Nem desprezou a multidão atroz.
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O PODER SUPREMO

Em frente à minha casa tem pinheiro
Apedrejado, mas ninguém reclama!
Tem flor da noite no caminho inteiro
Que ao trovador adora e o peito inflama.

No campo o quero-quero, herói guerreiro,
Defende o ninho na copiosa grama.
Somente o amor do nosso amado Obreiro
Tem o poder de amenizar o drama.

O mundo chora o depravado efeito;
Mas a natura já perdeu o jeito
De castigar a multidão ousada.

Por isto exijo meu espaço justo
Para afrontar o predador vetusto,
Usando o verso - a flamejante espada.
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PRESERVAR! PRESERVAR!

Jacarandá - meu caro irmão nativo,
Tenho-o no meu sítio onde plantei café.
E como filho quero tê-lo vivo
Com devoção, denodo e muita fé.

Toda elegância do seu porte altivo,
Dá sombra amena sobre o meu chalé.
O seu retrato numa tela arquivo
Com a legenda de imortal, até.

Que esta paixão pela floresta cresça
E todo humano da erosão se esqueça
Porque este mal já faz doer a vista.

Que a massa verde seja sempre viva
Sem aceitar qualquer venal deriva,
Para que a vida no futuro exista.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

Humberto de Campos (A pedra dos namorados)


Fugindo ao clima intolerável da cidade, os dois amigos inseparáveis resolveram passar, este anuo, o verão em Paquetá. As dificuldades, como era natural, foram enormes. Ao fim de algum tempo encontraram, porém, duas casas na mesma praia, as quais se comunicavam pelo quintal, e foram alugadas, não só entre as demonstrações de alegria de D. Adalgiza, esposa do Dr. Archimedes, como entre as de D. Eleonora, mulher do tenente Pedreira.

- Magnífico! - aplaudiu a primeira, batendo as mãozinhas finas, brancas, de dedos afilados.

- Esplêndido! - confirmou a segunda, com as mesmas demonstrações de contentamento.

Mudados para a ilha encantadora, saíram os dois casais, uma tarde, a passeio, juntando conchas pela praia, até que foram ter ao local em que se levanta, entre a terra e o mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.

- Olha, ali! Que é aquilo? - exclamou D. Eleonora, radiante com aquela vida de liberdade, apontando, com a sombrinha fechada, no rumo da pedra.

- Ah! É a "pedra dos namorados"! - explicou o Dr. Archimedes. - Essa pedra tem uma história curiosa.

E contou:

- É corrente aqui, na ilha, que este rochedo anuncia os casamentos. Os namorados que passam por aqui, atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma concha, ou coisa semelhante. Se ficar lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se não, se a pedra rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal de que a pessoa não se casará.

- Que graça! - rouxinoleou, rindo, Dona Adalgiza.

E, voltando-se para os companheiros:

- Vamos experimentar?

- Mas... nós já estamos casados! - obtemperou a amiga.

- Não faz mal. Vamos!

Apanhados quatro seixos, aproximaram-se do penedo, e atiraram, cada um por sua vez. O primeiro ficou. O segundo, igualmente. O terceiro, da mesma forma. O quarto, também.

- Todos ficaram! - exclamou, com a sua jovialidade infantil, a linda D. Eleonora.

E acentuou, espichando-se, nas pontas dos pés:

- Olhem: a minha pedrinha ficou junto da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza bem juntinho da do Pedreira!

O tenente olhou, sério, o bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente. Sorriram, os dois.

E continuaram, os quatro, o seu passeio, apanhando, felizes, na areia úmida, as pequeninas conchas da praia…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 23: Fazenda Velha

 

Baú de Trovas LIX


A vida está numa planta
pintada em cores felizes:
em cima a fronde que canta,
embaixo a dor das raízes.
Anderson Braga
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Sempre que se apresentava,
dizia ser engenheiro;
— é que o pobre trabalhava
num engenho, o dia inteiro...
Antônio de Pádua Pereira
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Quando acaso sinto, crede,
vontade de trabalhar,
deito-me logo na rede,
até a vontade passar...
Augusto Linhares
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Eu venho de longes bandas
e trago em chagas os pés,
mas digas tu com quem andas
que eu te direi quem tu és...
Bernardo Guimarães Filho
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Na penumbra, o berço é um templo...
Ajoelho e em ternura enorme,
entre rendas eu contemplo
meu pequeno deus que dorme!
Carolina Ramos
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Eu sou como a garça triste
que mora à beira do rio.
As orvalhadas da noite
me fazem tremer de frio.
Castro Alves
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Como a idade chega e passa,
e da noite vem a aurora,
a vida passa e repassa
a juventude de outrora.
Cecília Patti Silveira
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Com Deus vão permanecer
as primaveras da vida,
nas quais eu vi florescer
nossa amizade perdida!
Claudia Bergamini
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Meu sonho, em contrapartida,
quando a vida me arruina,
vai, tal qual "mulher da vida"
tentar a vida na esquina...
Divenei Boseli
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A solidão é uma planta
que nos contos aparece.
Só no coração que canta,
solidão jamais floresce,
Elizeu Lacerda
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Vós prometestes, senhora,
voltar um dia; porém,
esperei e, até agora,
inda não veio ninguém...
Emiliano Perneta
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Um epitáfio engraçado
li na tumba de um rapaz:
- Aqui, jazz, contrariado,
quem sempre adorou o "jazz".
Emílio de Mattos Sounis
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Meu sogro é um sacrificado
e, pouco a pouco definha:
não tem sogra, mas, coitado,
de lambuja, atura a minha.
Elton de Carvalho
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Do amor, na infinita gama,
prefiro o suave matiz.
O rubro calor da flama
queima e deixa cicatriz.
Elvira Fontes
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Compreender-me não me queres,
nem me queres perdoar.
Mas só beijo outras mulheres
para melhor te beijar...
Enrique de Resende
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Castigo bem acertado:
se Deus pusesse um letreiro
em todo homem casado
que se passa por solteiro...
Eny do Couto
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Afinal, quem é que canta,
é o galo ou a galinha?...
Se é o galo, cala a boca,
que a razão sempre foi minha!
Eugênio Pereira Cláudio
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Muitas vezes, embebido
em cismas, tenho sonhado
que a vida é um sonho comprido
que a gente sonha acordado!
Ferreira Gullar
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Quando a primeira galinha
o primeiro ovo botou,
certamente a coitadinha
tremendo susto levou!
Fontoura Costa
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É Natal! O amor é pleno!
Deus assume os meus fracassos
e se torna tão pequeno,
que até cabe nos meus braços!
Francisco Assis Menezes
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Nunca digas com firmeza
que a mágoa apenas crucia:
A saudade é uma tristeza
que nos dá tanta alegria!
Gilka Machado
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A saudade rasga o véu
do tempo e traz do passado
minha mãe, que lá do céu
sempre tem me abençoado.
Horácio Ferreira Portella
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Procurei no seu olhar,
encontrei nele uma ponte,
para seus lábios beijar:
o amor vai jorrar da fonte.
Hulda Ramos
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Riem todas, belas flores
quando o Santo Jardineiro
enche de nobres olores
o nosso grande canteiro.
Jerson Brito
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Quanto mais teu corpo enlaço,
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento.
Jesy Barbosa
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Leu "Campanha do Agasalho",
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
   em vez de deixar, pegou.
Jessé Nascimento
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Erros… brigas… mala feita...
Devolvo as chaves e… adeus!
Dobro a esquina e, já refeita,
volto aos braços que são meus!
Joana D'Arc da Veiga
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Salafrário sem parelha,
esse enfunado do Braz,
quando trota, mexe a orelha
para frente e para trás...
João Rodrigues
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Santo Antônio se benzia,
pensando, sem dizer nada:
– Três filhos já tem Maria!
E ainda não é casada!...
José Coelho de Babo
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E por falar em destino,
seus caminhos desconheço.
Como entender o divino
se nem o humano conheço.
Jota de Jesus
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De bicicleta ou a pé,
quero ganhar teu abraço,
que me ajuda a ter mais fé
nos planos de amor que traço.
Julimar Vieira
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Não basta ter esperança,
nem ciência, nem juízo:
só a inocência da criança
nos conduz ao paraíso.
Juraci Siqueira
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Sonho um mundo de alegria,
cheio de amor e confiança,
onde ninguém perderia
sua inocência de criança!…
Lucília Trindade Decarli
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Num impulso momentâneo,
meio a natureza em flor,
desponta um beijo espontâneo
para selar nosso amor.
Márcia Jaber
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Meu querido piano amigo,
com acordes de veludo…
Quando estou junto contigo
logo me esqueço de tudo!
Marita França
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Quem se despede da vida
sem vontade de partir,
deixa escrito nessa ida,
tarefas para o porvir.
Patrícia Rocco
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Ainda tenho esperança
de ter os carinhos teus,
pois o tempo de bonança
vem sempre após um adeus!
Plácido Amaral
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Nos pedais do coração
e você sempre no pódio,
pedaladas de emoção
vencem a barreira do ódio!…
Regina Rinaldi
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Sem responder pelos atos,
à luz da conveniência,
ainda há muitos Pilatos
crucificando a inocência!
Roberto Resende Vilela
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Não me chames de senhor,
que não sou tão velho assim
e junto a ti, meu amor,
não sou senhor, nem de mim!
Rodrigues Crespo
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cada um por si descobre:
- conheço pobre que é rico;
conheço rico que é pobre!
Rodolfo Coelho Cavalcante
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Enquanto a chuva lá fora
derrama águas no chão
lembranças de amor de outrora
inundam meu coração.
Sara Furquim
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A velhice, quando almeja
um grande amor, é talvez
anoitecer que deseja
fazer-se aurora outra vez.
Sebas Sundfeld
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Se ela sai acompanhada,
falam dela que faz dó!
Se sai sozinha, coitada,
falam por ela andar só!...
Sudra Vana
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Ser pobre não é defeito,
porém a sociedade
demonstra ter muito jeito
para alterar a verdade...
Tassélio de Souza Pereira
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Entre esperas e demoras,
que a solidão descompassa,
já nem sei quantas auroras
vi chegar pela vidraça!…
Vasques Filho
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A mulher apaixonada
é como criança arteira,
que, quanto mais vigiada,
mais gosta da brincadeira...
Venina Jotha
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Passava o mestre, e um brotinho:
— Vês aquele professor?
Dentro da sala é um diabinho,
mas fora dela é um amor!...
Vera Azevedo de Castro
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Blasfema, xinga, pragueja
e fala mal das vizinhas.
Mas à noitinha, na igreja,
canta santas ladainhas...
Vicente de Paula Viotti
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Falam de ti, sempre certos
de que é justo o mau conceito;
mas ficam boquiabertos
vendo o teu corpo bem feito!...
Zedanove Tavares

Irmãos Grimm (Os três anões do bosque)


Era uma vez um homem que perdera a mulher, e uma mulher que perdera o marido, ficando viúvos os dois. O homem tinha uma filha e a mulher outra. As moças se conheciam, passeavam juntas e às vezes a filha do viúvo ficava em casa de sua amiguinha.

Um dia, a mãe desta última falou à outra moça:

   - Dize a teu pai que eu gostaria de casar com ele. Tu passarias, todas as manhãs, a lavar-te com leite e beberias vinho; minha filha, porém, se lavaria com água, só água beberia.

    Chegando em casa, a jovem repetiu ao pai o que lhe dissera a mulher. Ele, então, observou:

   - Que hei de fazer? Casar é bom, mas não deixa de ser um problema.

  Por fim, não sabendo o que fazer, tirou uma de suas botas e disse:

   - Leva esta bota, que tem um buraco na sola, até o sótão e pendura-a no prego grande. Enche-a depois com água. Se a bota conservar a água, casarei de novo; se a água passar pelo buraco, não me casarei.

    A jovem fez o que lhe foi mandado. A água contraiu o couro e a bota ficou cheia até a borda. Correndo, a moça dirigiu-se ao pai para lhe contar o que acontecera. Ela subiu ao sótão e, vendo que a filha dissera a verdade, encaminhou-se à casa da viúva para pedir-lhe em casamento. E celebraram-se as núpcias.

  Na manhã seguinte, quando as duas moças se levantaram, a filha do marido encontrou leite para se lavar e vinho para beber, enquanto a outra não tinha senão água para se lavar e para beber. No outro dia, encontraram água para se lavar e água para beber, tanto a filha da mulher como a do esposo. E na terceira manhã, a enteada da mulher encontrou água para se lavar a para beber, e sua filha, leite para se lavar e vinho para beber. Daí por diante, continuou sendo assim.

A mulher odiava a enteada e não sabia mais o que inventar para tratá-la cada vez pior. Tinha-lhe, também inveja, por ser tão linda e graciosa quanto sua filha era feia e desajeitada.

    Certa vez, no inverno, estando as montanhas e os vales cobertos de neve, a mulher fez um vestido de papel e, chamando a enteada, disse-lhe:

   - Toma, põe este vestido, vai à floresta e enche este cesto de morangos, que estou com vontade de comer alguns.

   - Meu Deus! - exclamou a moça. - Não há morangos no inverno, a terra está gelada e a neve cobriu tudo. E por que devo por este vestido? Lá fora faz um frio horrível! O vento passará  pelo papel e os espinhos arrancarão do meu corpo.

    - Queres desobedecer-me?- gritou a madrasta. - Anda, sai em seguida e não voltes sem me trazer o cesto cheio de morangos!

    Deu-lhe um pedaço de pão, bem duro, e acrescentou:

   - É para passares o dia.

   Estava convencida de que a moça iria morrer de frio e fome e que jamais tornaria a vê-la.

   Obediente, a jovem pôs o vestido de papel e saiu com o cestinho. Fora, tudo estava coberto de neve e não se via ao menos um raminho verde. Chegando ao mato, ela avistou uma casinha, de onde três anõezinhos olhavam pela janela. Deu-lhes "bom dia" e bateu, discretamente, à porta. Eles convidaram-na a entrar e a moça sentou-se num banquinho, junto ao fogo, para aquecer-se e comer sua merenda. Os homenzinho lhe pediram:

   - Dá-nos um pedacinho?

   - Com muito prazer,- respondeu ela, e, partindo seu pedaço de pão, lhes ofereceu a metade. Perguntaram, então, os anões:

  - Que fazes aqui no bosque, no inverno, e com esse vestido tão fininho?

   - Ah!- suspirou ela. - Devo encher este cesto de morangos e não posso voltar para casa antes de colhê-los.

   Depois de comer seu pedaço de pão, os anões lhe deram uma vassoura, dizendo:

   - Varre para nós a neve da porta dos fundos.

  Enquanto a jovem estava do lado de fora, eles se reuniram em conferência:

   - Que lhe daremos por tão obediente e boa que até repartiu seu pão conosco?

Disse o primeiro:

   - Farei com que ela se torne, cada dia, mais bela!

  E o segundo:

   - Farei com que lhe caia uma moeda de ouro da boca a cada palavra que disser!

  E o terceiro:

  - Farei vir um rei que casará com ela.

   Enquanto isto, a menina fez o que os homenzinhos lhe haviam pedido e varreu toda a neve detrás da porta. E o que pensam vocês que ela encontrou? Uma porção de moranguinhos, bem maduros, assomando vermelhos, no meio da neve. Contente, encheu o cestinho e, depois de agradecer aos pequenos hospedeiros e ter dado a mão a cada um, dirigiu-se para casa a fim de entregar à madrasta à sua encomenda.

   Quando entrou em casa e disse " boa noite", cai-lhe da boca uma moeda de ouro. Pôs-se, então, a contar o que lhe sucedera e, a cada palavra, caíam moedas de sua boca, de modo que, em pouco tempo, o chão ficou rebrilhando de ouro.

    - Vejam só! - exclamou a irmã.- Esparramar dinheiro desse modo!

   Por dentro, no entanto, sentia inveja. Por isso, quis ir ao bosque colher morangos. Sua mãe se opôs, dizendo-lhe:

   - Não, filhinha; faz muito frio e poderás morrer gelada.

   Mas a filha insistia sem lhe dar sossego e ela acabou cedendo. Preparou-lhe um magnífico casaco de peles e depois lhe deu uma provisão de pão com manteiga e bolos.

  A jovem foi ao bosque e dirigiu-se, diretamente, à casinha. Os três anõezinhos estavam, novamente, à janela, mas a moça não os cumprimentou e, sem dar-lhes atenção, entrou, sentou-se junto ao fogo e começou a comer pão e bolo.

   - Dá-nos um pouco. - pediram os homenzinhos.

    Ela, entretanto, respondeu-lhes:

    - Nem tenho que chegue para mim. Como posso repartir com outros?

    Quando terminou de comer, eles disseram:

   - Aí tens uma vassoura, varre para nós a neve da porta dos fundos.

   - Ora! Varram vocês! - respondeu ela.- Não sou criada de ninguém!

    Vendo que eles não lhe iam dar presente algum, saiu da casa. Os homenzinhos, então, se reuniram, de novo, em conferência:

   - Que lhe daremos? Ela é grosseira, tem coração maldoso e cheio de cobiça e é incapaz de repartir com outros.

    Disse o primeiro:

   - Farei com que cada dia se torne mais feia!

    E o segundo:

   - Farei, a cada palavra que ela diga, saltar-lhe um sapo da boca.

   E o terceiro:

   - Farei com que tenha uma morte horrível!

   A jovem, lá fora, pôs-se a procurar morangos, mas, não encontrando nenhum, voltou, aborrecida, para casa. Quando abriu a boca para contar  à mãe o que lhe acontecera, eis que, a cada palavra sua, um sapo lhe saltava da boca! E todas as pessoas se afastaram dela, enojadas.

    Aquilo fez com que a mulher  se enchesse ainda mais de ódio e, daí por diante, só pensava num meio de maltratar o mais possível a filha do seu marido, que ia ficando mais bonita dia a dia.

Por fim, pegou uma caldeira e a pôs no fogo para ferver a linha crua, a fim de amaciá-la. Uma vez cozida, colocou-a toda nos ombros de sua enteada, deu-lhe uma machadinha e mandou que ela fosse ao rio congelado, para que lá abrisse um buraco e lavasse a linha. Obediente, a jovem dirigiu-se ao rio e começou a abrir um buraco no gelo. Enquanto fazia isso, passou por ali uma esplêndida carruagem em que viajava o rei. Este mandou parar o carro e indagou?

    - Quem és e o que estás fazendo aí, minha filha?

    - Sou uma pobre moça e estou lavando linha.

  O rei, compadecido, vendo-a tão bela, disse-lhe:

   - Queres vir comigo?

   - Oh, sim! - apressou-se ela em responder, contente por se livrar da madrasta e a irmã.

    Saiu na carruagem e partiu com o rei. E, quando chegaram ao palácio, celebraram o casamento com grande pompa, tal como os anões haviam destinado para a sua amiguinha.

Depois de um ano, ela deu a luz um filho. E a madrasta, a quem havia chegado a notícia de sua grande felicidade, encaminhou-se ao palácio, acompanhada de sua filha, sob o pretexto de fazer uma visita.

Como o rei se ausentara e ninguém estivesse presente, a malvada mulher agarrou a rainha pela cabeça, enquanto sua filha a pegava pelos pés e, tirando-a da cama, a lançaram pela janela a um rio que passava embaixo. Logo depois, aquela horrenda criatura se meteu na cama e a velha cobriu-a até a cabeça. Ao regressar, o rei quis falar com a esposa, mas velha o deteve, dizendo:

    - Silêncio, Silêncio! Agora não! Ela está suando muito e deve deixá-la em paz.

    O rei, sem pensar em nada de mal, retirou-se. Na manhã seguinte voltou e começou a falar com sua falsa esposa. Mas, à medida que ela respondia, sapos iam saltando de sua boca, quando antes o que caía eram moedas de ouro. O rei perguntou o que significava aquilo, mas a madrasta disse-lhe que era devido ao suor excessivo e que passaria sem demora.

    Aquela noite, porém, o ajudante da cozinha viu quando uma pata entrava nadando pelo cano da sarjeta e falava:

– Rei, em que estás ocupado? Estás dormindo ou estás acordado?

    E, como não recebesse resposta, prosseguiu:

   - E o que faz a minha gente?

    O ajudante da cozinha, então, retrucou:

   - Dorme profundamente.

   A pata continuou perguntando:

   - E onde está meu filhinho?

   Respondeu o rapaz:

    - Dormindo no seu bercinho.

   A pata, tomando, então, a forma da rainha, subiu ao quarto da criança, deu-lhe de mamar e arranjou-lhe sua caminha; depois, retomando a aparência de pato, saiu nadando pela sarjeta. Nas duas noites seguintes voltou a apresentar-se e na terceira disse ao ajudante:

    - Vai ao rei e dize-lhe que traga sua espada e que, no portal, dê três voltas com ela em cima da minha cabeça.

   Assim fez o criado; o rei, saindo com sua espada, a brandiu três vezes sobre a pata e, depois de faze-lo pela terceira vez, sua esposa apareceu diante dele, viva e cheia de saúde como antes.

    O rei sentiu uma alegria imensa, mas escondeu a rainha num quarto, onde ela ficou até domingo seguinte. Nesse dia iam celebrar o batizado de seu filho. Depois da cerimônia, ele perguntou:

    - Que merece uma pessoa que tira outra da cama e a joga na água?

    - Nada menos, - respondeu a velha - que a metam num tonel crivado de pregos e o façam rolar do alto da montanha até cair no rio.

    Ao que disse o rei:

     - Pronunciaste a tua própria sentença!

     E ordenou que trouxessem um tonel daqueles, e metessem a velha e sua filha dentro. Depois de o fecharam, fizeram-no rolar montanha abaixo, até cair no rio.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Varal de Trovas n. 573

 

Talita Batista (A solidão misteriosa de Alice)


Alice foi minha vizinha por muitos anos, desde os meus dez anos de idade. Na infância e adolescência, ela morou na mesma casa com seus pais, um irmão e uma irmã. Sempre foi discreta e caseira. Não tenho conhecimento de que saía de casa, sequer para trabalhar. Aos poucos, a vida foi-lhe tirando os familiares da convivência doméstica. Seus irmãos se casaram e mudaram, Seus pais faleceram, E Alice continuou residindo ali, só, absolutamente só...

Eu continuei morando na mesma residência, vizinha à de Alice. Sempre preocupada com a sorte das pessoas que moram sozinhas, agora o alvo de meus cuidados era a silenciosa e discreta Alice, por quem desenvolvi espontaneamente uma espécie de responsabilidade moral.

Para mim, a vida também mudara muito, pois eu lecionava em várias escolas e tinha dois filhos para criar. Ainda assim, com essa vida atribulada, nunca pude me furtar a essa responsabilidade.

Afinal, havia apenas um simples muro que separava nossas casas.

Pela manhã, antes de eu sair para o trabalho, falava-lhe, do lado de cá do muro, elevando um pouco o tom de voz:

- Bom dia, Alice!

(Na verdade, queria saber se ela me respondia algo, se estava bem, se precisava de alguma coisa ou, pelo menos, se continuava viva.)

O único sinal que se poderia observar naquela casa era o movimento, ao anoitecer, quando Alice acendia uma lâmpada da cozinha. Eu vigiava atentamente isso, ao observar a claridade, pela parte superior da janela de vidro translúcido de sua cozinha. Só então eu saía para trabalhar despreocupadamente no curso noturno onde lecionava.

Durante alguns anos, quando era mais jovem, Alice costumava vir à noite até o muro da frente de sua casa para ver o movimento da rua. E não é que, certa vez, por ali passou um homem de bicicleta, e parou para lhe fazer a corte? Aí, veio a novidade: Alice arrumou um namorado...

O casal era muito discreto; nunca alguém viu sequer um gesto mais ousado deles. Alice e o ciclista conversavam muito. Ele, posicionado do lado de fora da calçada e ela, do lado de dentro, na frente da casa. Era bonitinho ver que ele vinha todos os dias para conversar com ela e ela se enfeitava toda para aquele encontro!...

Alice não era uma mulher feia, de pele muito alva e olhos extremamente azuis e brilhantes, faziam-na um tipo diferente.

Certa vez, estando eu de férias escolares, fiz uma viagem um tanto longa em companhia de meus filhos. Quando voltei, percebi que Alice tinha-se enclausurado de vez e nem vnha mais à frente de sua casa. Criando coragem, perguntei-lhe pelo muro:

- Alice, por que você não conversa mais à noite, com aquele senhor?

Então, ela me informou que ele tinha falecido, vítima de um atropelamento, tipo de acidente muito comum em nossa cidade, onde há muitos ciclistas.

A partir daí, minha preocupação se redobrou com a enclausuramento de Alice. Ela era uma pessoa determinada e absolutamente livre para só dispensar sua atenção a quem e quando ela quisesse ou até simplesmente se recusar a fazê-lo. Não atendia a quase ninguém que a chamasse ao portão,

Muitas vezes recusava-se a responder até a um empregado de seus familiares, que lhe ia levar algumas compras para a sua subsistência. Quando eu comprava pão para minha casa, comprava também para ela, e ela fazia sempre uma exceção para receber meu filho, que era uma criança/adolescente. Conhecia a sua voz e vinha prazerosamente buscar o seu pãozinho quente. Nos fins de semana, quando eu fazia uma comidinha melhor, sempre arrumava um prato especial e mandava meu filho levar para ela,

E assim se passaram muitos e muitos anos, com Alice fazendo parte da minha vida, O destino foi levando de minha casa muitas pessoas queridas e Alice, de alguma maneira, sempre me fazia companhia. Diariamente, eu continuava observando a luz que Alice acendia na cozinha por cima da bandeira da janela envidraçada.

Mas... Um dia Alice não acendeu a luz da cozinha! Naquela noite não tive condições emocionais de ir lecionar na faculdade! Chamei insistentemente Alice pelo nome. Pedi a meu filho que a chamasse com sua voz bem conhecida e tão prontamente atendida por Alice. Silêncio e preocupação invadiram os nossos corações, à medida que a noite tomava conta de nos. Chamei os vizinhos. Batemos muito à porta de Alice. Só o silêncio respondia aos nossos gritos e aumentava a nossa ansiedade.

Os vizinhos queriam arrombar a porta. Mas não havia ali um parente dela para nos autorizar a fazê-lo e ficamos sem saber que decisão tomar. Deus, então, fez vir à minha mente um número de telefone (ainda que eu nunca guarde de cor o número de telefone de ninguém). Era um número que Alice, vez por outra me dava, pedindo-me o favor de ligar para sua irmã. Como por milagre, me lembrei deste número e do nome dessa irmã dela, que então foi chamada e nos autorizou a arrombar a porta...

Por cima da porta caída entramos, e caminhamos, corações aos pulos, até o quarto de Alice, onde a encontramos morta, deitada na cama, completamente nua!

Até em seu último momento, pela postura em que a vimos, me parecia querer demonstrar, com coragem, sua forma autêntica de ser absolutamente livre para se comportar ou se vestir, imagem forte de que nunca me esqueci. Por Alice até hoje rezo e, por coincidência, ao escrever esta história, encontrei na internet uma "Oração para Santa Alice", da qual eu nunca tinha ouvido falar. Ei-la:

"Faça, Senhor Deus, e nosso Pai, que aspiremos incansavelmente ao descanso que preparastes em Vosso Reino, Dai-nos força e inteligência nesta vida, para suportarmos as agruras que nos rodeiam, para promovermos o Bem e a Justiça e servirmos a nossos irmãos. Santa Alice, rogai por nós! Que assim seja! Amém!"

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 7


MILAGRE


Tão esplêndida foi nossa curta ventura!
Tão rica de emoções - e que emoções grandiosas!
A envolver nossa vida em lençóis de ternura
tecidos de poesia e pétalas de rosas!

A um tempo doce e amarga, essa estranha tortura,
ao vencer a aridez das metas pedregosas,
demarcava o final de uma longa procura,
prenúncio do esplendor das horas mais gloriosas!

E eis que a morte, a exibir seu tétrico sorriso,
invejosa, talvez, desta felicidade,
quis roubar-te de mim, traiçoeira e sem aviso!

Louca de dor, parti a minha vida ao meio!
Por ti, dei parte a Deus, guardando só metade!
- Mas, o milagre, amor… o milagre não veio!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

MILAGRE (2)

Já nem sei se vivia... estava quase morta...
Apenas o dever ao corpo me prendia...
Era triste palmeira a sucumbir, já torta,
ao látego da vida, à intensa ventania!...

E chegaste a sorrir, como alguém que recorta
um retrato, sem cor, de outro alguém que não ria...
E ao retoque sutil da mão que reconforta,
um resquício de vida, incrédulo, surgia.

Morta-viva, trancada em minha tumba escura,
pouco a pouco, senti que o sol ressuscitara
à luz do teu carinho, ao calor da ternura.

Pacientes, pedra a pedra, erguemos o castelo
que o vendaval da vida, um dia, derrubara!
- Um milagre de amor… e que milagre belo!...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Paladino do amor
Tributo a Martins Fontes

Gota a gota, sorveste as volúpias da Vida,
na embriaguez total de quem sonhos procura.
E em base de Ideal, foste a ânsia incontida,
que arrasta e que arrebata aos vórtices da altura!

Paladino do Amor! Foste, em missão cumprida,
a Bondade que alenta! A Esperança que cura!
Tié-Fogo santista, a Glória é refletida
no perfil que deixaste esboçado em ternura.

Em teus rumos de luz, venceste, Martins Fontes,
com fúria de vulcão, as mais torpes campanhas!
E no céu da Poesia, além dos horizontes,

és astro a fulgurar, com brilho eterno e nobre!
Bem acima da inveja e suas artimanhas,
és Sol que não se apaga! A terra não te encobre!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O BEIJO DO HOMEM BOM

Eu era pequenina...eu era bem pequena...
três anos, nada mais... e o ver chegar, sorrindo,
aquele homem tão bom, de face alegre e amena,
aos seus braços corria! E com afeto infindo,

colava o rosto ao seu, na entrega pura e plena.
E aquele homem tão bom, o meu rosto cobrindo
de beijos, encantava a minha alma serena…
Era o sol de verão, que o céu fazia lindo!

E a Vilazinha triste, feia e tão modesta,
ganhava nova cor e animação de festa,
aureolada de luz e graças imprevistas!

O homem bom que, em criança, amigo me beijava,
era um grande Poeta, eu soube, e se chamava
Martins Fontes, "Tié-fogo" - orgulho dos santistas!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

PRECE DE PAZ

Senhor, que a angústia imensa bem conheces,
dos que enterram, chorando, os próprios sonhos
e ao fazer do silêncio a voz das preces,
seguem rumos sem luz… frios, tristonhos...

Senhor, que reconheces a amargura
daqueles que ainda clamam por Justiça;
daqueles que, sem pão e sem ternura,
nem sabem porque a Luz se faz omissa...

Senhor, que tens um coração de Pai,
maior, talvez, que o de um Juiz austero,
esquece as trevas Em que o mundo vai,
pela cegueira de Teus filhos! Vero,

é o desencanto que Te envolve! Sábios,
os impulsos que amarram as palavras
de castigo que morrem nos Teus lábios,
na sentença que hesitas... e não lavras!

Tombado sob o peso da incoerência,
o homem sucumbe ao próprio mal que faz!
E a erguer os olhos, grita por clemência,
sacode o mundo! E o mundo pede Paz!

A Paz para poder sonhar e, ainda,
provar uma fatia de Esperança!
A Paz de acreditar que a vida é linda,
e, mesmo tarde, tentar ser criança!

Senhor! Atende ao desespero extremo!
Devolve a Paz à Terra Prometida!
E há de ter prova o Teu Amor Supremo
de haver criado, uma outra vez, a Vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Adega de Versos 96: Auta de Souza

* Devesa = alameda ou arvoredo que circunda um terreno.

Sammis Reachers (Renato e seu cachorro Bugui)


Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali era diferenciado, lotado de singularidades.

Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava atrás de nós. Ou melhor, de Renato.

Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono?Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer, não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto, chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso notávamos.

Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas agruras da vida, não latia em momento algum. Também não era afável; a relação deles não envolvia carinho baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre um animal e seu dono.

Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse, sofresse o que fosse. Que tipo de relação estoica era aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos cardos e abrolhos da vida, que jamais davam demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro – como se atraíam naquele nível sobrenatural?

Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.

Para que você tenha uma perfeita ideia, quando brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e possivelmente de mais alguém naquele ponto...

Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara – pois ele não era desses, ele não era do comum dos cachorros – senti um baque que não podia entender. O estranhamento de alguma forma nos vinculara.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Jerson Brito (Magia das Trovas) – 1


A melhor alternativa
para alcançar a vitória
é tornar a tentativa
atitude obrigatória!
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Aquela vila afastada,
nas brenhas do interior,
parece pobre... Que nada!
É manancial de amor…
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A riqueza genuína
da tapera ou da mansão
vem do amor que predomina,
não se mede com cifrão.
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Da minha infância tranquila
recordo, os olhos marejo.   
Mil vezes aquela vila
do que concreto e azulejo!
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Digo com sinceridade:
É melhor pro coração,
o amargor duma verdade,
do que o mel d’uma ilusão
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Ela é charmosa e pequena,
concisa, porém, completa.
Eis a trova, expressão plena
da mensagem do poeta.
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Esperança assim defino:
rio que corre veloz,
banhando nosso destino
sem chegar à sua foz.
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Existe um tênue limite
entre paixão e loucura;
para as duas, acredite
não é fácil ter a cura.
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Faltou bronze ao escultor
que, sem outra solução,
resolveu, na praça, expor
a estátua do herói anão!…
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- Fui bronze! Missão cumprida!
Disse o sujeito aos parentes,
sem mencionar que a corrida
só tinha três concorrentes.
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Já tentei tirar de mim
a semente dessa flor,
que espalhou no meu jardim
o perfume do amor.
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Libertado das ruínas
de um amor sem solidez,
ao abrir outras cortinas,
meu coração se refez.
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Na crise, eu me fortaleço,
não perco os sonhos de vista;
toda queda é o recomeço
para quem crê na conquista!
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Na luta, quando entendido
o recado de um tropeço,
qualquer espinho vencido
escreve um fim... e um começo!
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Não maldiga o desafio
se a jornada é longa e dura;
a glória é fruto macio,
carregado de doçura.
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No baú da experiência,
guarde dor e alegria.
As lições dessa vivência
são úteis no dia-a-dia.
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Nossa paixão dissemina,
nos sonhos, a insanidade
quando surge, clandestina,
disfarçada de saudade.
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No teu sussurro extravasas
um sopro avassalador
que mantém vivas as brasas
da fogueira deste amor.
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O fracasso e a vitória
fazem parte do existir.
É normal na trajetória,
de vez em quando cair.
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Olhando estas mãos feridas,
lamento, orgulhoso, as falhas
e não as chances perdidas
no decorrer das batalhas!
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O vivente caminheiro,
se palmilha senda escura,
na esperança tem luzeiro
que no coração fulgura.
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Qual cometa incandescente,
a paixão passa e se vai,
deixa no peito da gente
uma dor que nunca sai.
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Quem se empenha na leitura
nada perde e tem certeza
de que, para a mente escura
livro aberto é luz acesa.
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Se de rancor está cheio
nosso coração doente,
estão vazias, eu creio,
a nossa alma, a nossa mente.
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Sentindo o golpe certeiro
da paixão que me extasia
louvo teu sorriso, arqueiro
de notável pontaria.
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Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão;
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
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Se põe fogo em nossa cama,
amor, esse teu perfume
é a mesma essência que inflama
o facho do meu ciúme!
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Será crescente a desgraça
da fome e grande o lamento
enquanto existir quem faça
da ganância um alimento.
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Sobre opiniões e crenças,
a sensatez nos diria
que o respeito às diferenças
tece teias de harmonia.
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Somos almas garimpeiras
nessa vida de perigos
onde, em lavras rotineiras,
valem ouro os bons amigos.
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Tentei enxugar meu pranto
na fronha do travesseiro.
Péssima ideia, porquanto
chorei mais, senti teu cheiro…
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Um amor especial
trouxe a flecha do cupido,
a saudade, esse punhal,
fez meu coração partido.
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Um cenário me devasta:   
a garrafa de champanhe,
duas taças, vela gasta
e ninguém que me acompanhe.

Fontes:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli
Recanto das letras do trovador.

Aparecido Raimundo de Souza (Os aplausos da desgraça)


UM MOSQUITINHO TEIMOSO, mal saído dos desabrochos das fraldas, se vira para sua mãe e manda a pergunta:

— Mamãe, me deixa ir ao cemitério com tio Pernilongo?

— Com uma condição filho.

— Qual mãe?

— Que volte cedo.

— Assim será.

Montado nessa “prometência”* o sujeitinho parte todo alegre. Ama ver os coveiros abrindo um monte de sepulturas e depois descendo os caixões às covas. Percebe que seu tio perturba incessantemente as pessoas que assistem àquelas cerimônias estranhas fazendo voos de reconhecimento, ora pousando no nariz de uma, ora na orelha de outro. As criaturas se abanam nervosas, usando as mãos, jornais e lenços.

No final da semana seguinte importuna, de novo, a mãe que trabalha catando restos de comidas num amontoado de lixo próximo no qual se escondem:

— Mamãe!

— Fala meu filho.

— Me libera para eu ir ao cinema?

— Com quem?

— Com a tia Pulguinha.

— Que filme irão ver?

— “A Mosca” com um tal de David Cronenberg e Greena Davis.

— Uau! Estou gostando da sua curiosidade à flor da pele. Percebo que meu filhote está afiado com a sua geração. Parabéns. Pode ir. Mas já sabe. Acabou o espetáculo, caminho de casa.

— Está bem, mamãe. Acabando a seção, voltarei correndo.

Mais uma vez, o mosquitinho sai a passear, desta feita, com a pulguinha grudada em seus costados, de carona. Como dissera à mãe, voltou tão logo o filme “epilogou”. Durante a exibição, ficou deveras boquiaberto ao ver como a pulguinha pulava de uma cadeira à outra, enraivecendo a galera que assistia a película. Em questão de minutos, todo mundo se coçava, como se alguém tivesse jogado pó de  mico nas poltronas. Outro final de semana não demorou a aportar. E o mosquitinho, animado e alegre, foi ter com a genitora o papo de sempre. Havia virado rotina:

— Mamãe.

— Fale, meu lindo.

— Tia Muriçoca me convidou para ir à praia. Como eu não conheço o mar...

— Se me prometer que ficará longe das ondas.

Com esse “sim”, o mosquitinho, feliz da vida, nem cabia em si de contentamento:

— Com certeza, mãe.  Voarei bem longe das tais ondas...

— Lembre, filhote, que você não sabe nadar.

— Tô ligado, mãe. Tô ligado!

— Só na areia?

— Só na areia.

— Não caia na besteira de querer surfar como a desmiolada da sua tia. Muriçoca não tem um pingo de juízo naquela cabeça de vento.

— Eu sei, mamãe...

— Estamos combinados. Pode ir. Guardarei seu almoço.

— Ta legal, mãe.

— Farei pra você aquele prato que mais gosta. Não esqueça.

O pequeno inseto parte contente para a nova aventura. Quase não acredita no encantamento a se ver diante do mar. Se queda extasiado e promete a si mesmo que aquela ocorrência divinal não ficará só na lembrança da primeira vez. Voltaria em outras ocasiões para continuar o seu deleite frenteado à imensidão de tanta água que se perdia lá longe de encontro ao céu. Não deixou de reparar, evidentemente, na tia Muriçoca, que tirava literalmente a paz e o sossego dos banhistas. Toda vez que se movia, pousava em seus  lanches e refeições “piqueniqueados” por toda a superfície da areia escaldante. No domingo seguinte, o mosquitinho, como de costume, não deixa por menos. Buzina sonoro, no ouvido da primeiríssima:

— Mamãe. eu posso ir ao shopping?

— Depende, meu pequerrucho. Quem irá com você?

— Meus amigos aqui dos pneus.

— Tenho medo!

— Do quê, mamãe?

— É muito perigoso. Shopping nos finais de semana... meu Deus, só de pensar na aglomeração das pessoas...

— Mamãe, vou me comportar...

— Quem garante?

— Dou a minha palavra.

— Tudo bem, meu filho, pode ir. Por tudo quanto é sagrado. Não se meta em encrencas. Seus amiguinhos aqui dos pneus não são flores que possam ser cheiradas.

— Mamãe. Fala sério.  Sei me cuidar...

— Espero que sim, meu príncipe. Espero que sim...

Como sempre o díptero gurí leva à termo seu intento. No shopping, ou mais precisamente na praça de alimentação, aprende com os coleguinhas como pousar nas guloseimas e quitutes, a relaxar as asas nos copos de refrigerantes e bebidas, além de soltar a baba peculiar dos varejeiros de sua estirpe. Tem consciência que essa mucosidade, entre outros estragos, contamina os alimentos que o povaréu ingere. Impreterivelmente outro final de semana se faz às portas. O mosquitinho larga seus desenhos preferidos na televisão preto e branco, toma o lanche e corre a encher o saco da mãe que passa as roupas de papai mosquito:

— Mamãe posso ir ao restaurante?

A jovem arregala uns olhos que por pouco  não lhe cabem nas órbitas:

— O que você vai fazer no restaurante?

— As “manas mutucas” vão me ensinar a picar as pessoas.

— Bom, muito bom. Aliás, excelente. Quero que você, meu filho, aprenda com precisão esse ofício.

— Eu sei, mamãe. As “manas” me falaram...

A mãe lhe faz um carinho demorado no rosto:

— Disso depende a nossa sobrevivência.

— O que é sobrevivência?

— Continuarmos vivos.

— Legal, aliás, trilegal. Vou aprender e prometo picar o maior número de pessoas. Vivaaaaaa...

— Só não pique, “sem querer querendo”, a sua velha mãe.

— Credo!  Por que eu faria tal besteira?

De fato, o mosquitinho se aprofunda em como picar as pessoas e a passar doenças para os seres humanos. Regressa saltitante  para o lar e a mãe, ao ver a alegria, se contagia com o filhote amado.  O domingo seguinte entra pelos  furos das caixas de papelão do quarto de mosquitinho e inunda a sua felicidade de adolescente. Lê, emocionado,  a mensagem dos amiguinhos no whatsApp. Isso mesmo, no whatsApp. Salta correndo:

— Mamãe, mamãe, acabei de ser convidado para logo mais a noite ir ao teatro.

— Não, filho. Tudo menos teatro. Teatro é perigoso.

— Ah, mãe, deixa eu ir. É só hoje.

— Não, não, não e não. É superperigoso. Você nem imagina.  Seu pai quase foi pro beleléu.

— Mamãe, é só hoje.

— Meu Deus, quem vai com você?

— Todas as filhotas das suas amigas larvas e, claro, as minhas coleguinhas da escola que residem aqui no nosso depósito de entulhos.

— OK, meu filho. Vá. Mas cuidado com as palmas. Fique longe delas. São mais perigosas que as ondas do mar e  as loucuras da sua tia. Enfim...

O mosquitinho nesse momento está na primeira fileira, junto com os demais.  Adorou a peça, os atores, as roupas, as falas. No final do primeiro ato, entretanto, as luzes se apagam.

O público em grande manifesto vocal, apesar da escuridão, se coloca em pé e ovaciona. E não só isso:  berra, se esgoela, e brada. O mosquitinho sorri matreiro e acha tudo aquilo muito interessante, embora não aprove os modos esquisitos das pessoas em alvoroço descomedido. De repente a luz se faz e, dois minutos depois, tudo mergulha, num breu, desta feita mais prolongado. A plateia inteira volta a explodir em vivas, urras e aclamações. A balbúrdia inesperada e a todo vapor, segue alarmada. Entretanto, num descuido do mosquitinho, a fatalidade e o inesperado mostram as suas faces ocultas. O que a sua mãe mais temia. No espocar dos gestos efusivos, o infeliz mosquitinho termina esmagado, entremeiado aos apupos e às palmas das mãos grossas de um cidadão que grita, estridentemente: “bravo, bravo, bravoooooo!...”.
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Nota:
* Prometência – Variante de promitência. O mesmo que promessas feitas.


Fonte:
Texto e nota enviados pelo autor.

Jaqueline Machado (O Sentido do Natal)


O termo Natal tem origem na palavra do latim “natalis” que, por sua vez, é derivada do verbo nascer (nāscor). Sim. Poucos pensam ou sabem, mas o Natal representa o nascimento de Jesus e, também, o nosso próprio renascimento. Renascimento de todos que desejam dissipar magoas, vícios e tristezas para vivenciar uma nova jornada, cheia de luz e de esperança.

O Natal teve origem em festas pagãs da antiguidade, onde muitos romanos celebravam a chegada do solstício de inverno e cultuavam o Deus Sol, que no sincretismo das culturas religiosas atuais, simboliza Jesus Cristo para os seguidores do cristianismo e o Orixá Oxalá, na fé umbandista.

A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarada feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529. O natal, também é sinônimo de muitos simbolismos. O principal deles é o presépio que foi montado pela primeira vez por São Francisco de Assis, no século XIII, na Itália, com a intenção de recriar a cena do nascimento de Jesus para explicar ao povo como e onde teria nascido. Já o simbolismo do pinheiro enfeitado, foi idealizado por Martinho Lutero, o principal personagem da Reforma Protestante, que montou a primeira árvore iluminada de luzes em sua casa.

A figura do natal é inspirada no bispo são Nicolau que costumava deixar moedas próximas às chaminés das famílias mais pobres. São Nicolau se tornou popular e deu lugar ao aspecto que hoje conhecemos do Papai Noel, que em vez de moedas, deixa presentes às crianças que se comportam bem ao longo do ano. E a Santa Ceia teria surgido na Europa, onde as pessoas costumavam deixar a porta das suas casas abertas para receber viajantes.

Ela simboliza a união e a confraternização das famílias. Assim, na véspera de Natal, os familiares se reúnem à mesa para a tradicional ceia. Amo o Natal e seus simbolismos. Essa data também me faz lembrar a mensagem trazida pelo livro de Charles Dickens, o famosíssimo “Um Conto de Natal”, que conta a história do senhor Ebenezer Scrooge, um homem de negócios, egoísta, avarento que não se relacionava bem com ninguém, e não gostava das festividades natalinas.

Até que certa noite, ele recebe a visita do fantasma de seu falecido sócio, Jacob Marley, que avisa ao antigo amigo que outras três assombrações aparecerão para ele: o Espírito dos Natais Passados, o Espírito do Natal Presente e o Espírito dos Natais Futuros. Segundo Marley, o ex-sócio, esses três fantasmas são a única esperança para Scrooge escapar do terrível destino que está reservado para ele.

Os espíritos chegam sucessivamente e levam o velho ranzinza a uma viagem pelo tempo e pelo espaço, com a intenção de fazer com que Scrooge mude sua opinião sobre o Natal depois de ver exemplos de amor e a família de um de seus funcionários comemorando a data com muita simplicidade e união entre si. Depois disso, ele passa a valorizar o que realmente vale a pena na vida. A partir desses eventos, o velho torna-se bom e passa a praticar ações solidárias entre todos que dele se aproximam. Pois o sentido do natal é justamente esse, renovar-se, espalhar amor e alegria.

Salve essa doce magia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 44

 

George Abrão (Amigos anônimos)


Numa rua próxima à que eu moro, aqui em Maringá, existe uma casa de família japonesa da qual fazia parte uma senhora bastante idosa, muito simpática, que ficava sempre no jardim da residência. Como eu sempre faço o mesmo trajeto para ir ao mercado ou a feira, a cada vez que voltava com alguma compra e passava frente à sua casa, eu a cumprimentava e ela, muito alegre, me perguntava:

- Foi fazer compras para esposa?

À minha resposta afirmativa, ela dizia:

- Que bonito “ere”, esposa gosta muito, não?

E emendava:

- É “aremão”?

E eu:

- Não, minha senhora, sou descendente de árabes!

- Árabe? - Ela dizia - Não parece! Achei que era “aremão”!

E isso acontecia sempre que ela me via, sendo o diálogo também mais ou menos igual. Passado algum tempo eu já estranhava quando não a via, pois a simpatia da senhora nipônica era contagiante. Só que nunca perguntei o seu nome, nem ela perguntou o meu, tornamo-nos amigos anônimos.

De repente, parei de vê-la e achei que estivesse viajando. Só que, depois de muitos dias, comentei com a minha esposa sobre a ausência da minha amiga e ela resolveu conversar com uma nossa vizinha, também japonesa, e perguntar sobre a velha senhora.

Aí tivemos a triste notícia que ela havia falecido já há algum tempo, exatamente na época que parei de vê-la.

Agora, a cada vez que passo diante da residência da família, lembro-me com saudade da minha amiga, e peço a Deus que lhe tenha dado o bom lugar que ela merecia.

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Ebook enviado pelo autor.

Lóla Prata (Luzes)


A discussão atingia o auge. Palavras fortes de ira enchiam o ambiente da casa. Ela se refugiara no quarto. Não queria confusão e nem se meter na briga do pai com a mãe. Realmente, não a interessava deslindar os liames entre amor e ódio. Preocupava-se mais em ser responsável na definição de seu próprio futuro. Era noiva do Betão, rapaz bem cotado entre a moçada da cidadezinha e, quando escutava os impropérios do casal a se injuriar mutuamente, se assustava com a proximidade de seu casório... estaria escolhendo certo?

A briga estava indo longe demais. Até alguns vizinhos vinham de quando em quando à janela, atraídos por barulhos de quebra de pratos e gritos. Lúcia ouviu estalar de tapas e um baque surdo no chão. Saiu do quarto e viu a mãe segurando o rosto afogueado, ridiculamente estatelada no chão. Não a acudiu. Saiu correndo. Correu até a catedral, onde se acomodou na frente, perto do sacrário. Lá, rezou, ressentida com todo o ocorrido e com a dúvida sobre seu destino. Betão já dera mostras de impaciência e de falta de diálogo e atenção, já no noivado...; que dirá no casamento? Seria como seu pai, irritado? Lúcia conhecia seu próprio temperamento e sabia que se acovardaria perante um homem irascível. Implorou que Deus lhe indicasse o marido adequado às suas necessidades afetivas. Contrita, ouviu o organista ao primeiro acorde da marcha nupcial, ensaiando a canção. Seu jovem coração vibrou e seu olhar voltou-se. Ao invés do pianista, viu alguém entrando, contra a luz. A figura escura era a de um homem baixo, magro, miúdo, mas impressionou-a o brilho do sol em volta dele. Arrepiou-se toda. Sentou, quieta. O estranho aproximou-se, fez a genuflexão e acomodou-se perto do altar. A música encantadora inspirou-a e ela entendeu que aquele era o escolhido por Deus, para ela.

Na saída, se encontraram, sorriram... e se elegeram.

Faz mais de 20 anos que partilham a vida, como marido e mulher, no respeito a Deus e à missão de testemunhar o amor conjugal que deu certo.

Fonte:
Maria de Lourdes Prata Garcia (Lóla Prata). Provai e vede como o Senhor é bom! Bragança Paulista: ABR, 2009. Ebook enviado pela autora.

Caldeirão Poético LVII


 
Miguel Russowsky
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

“O DIA ESTAVA LINDO DE MORRER!”


Morri. Mas não morri, foi ameaça.
Eu me fingi de morto, por esporte.
embora eu já não seja assim tão forte
é cedo para expor minha carcaça.

Pois bem, morri. Talvez alguém se importe
do cadáver e alguma coisa faça.
A vida sem surpresas não tem graça.
Que tal ser imortal após a morte?

Digamos que morri. Vejam a conta:
Caixão e velas, mais a missa pronta
e do enterro, convites aos montões.

Depois de consternar este cenário,
eu ressuscito e aponto o calendário:
– É primeiro de abril, seus bobalhões!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR

“RODA VIVA”


Na roda viva que é a vida,
em menos de um século
todos seremos substituídos:
─ eu, tu, ele, nós vós e eles...
Uma nova gente
com outras caras,
disfarces, ideologias...
novas tecnologias,
assombros
e o passado nebuloso
retrógrado:
─ olhem como era isso,
vejam como era aquilo...
─ Surpresa!
Viagens intergalácticas?
Miscelânea de gente,
caos ou maravilha?
─ As duas coisas,
parecidas com as de agora,
ao revermos os tempos de outrora...
E como sempre serão
enquanto na terra
pulsar essa coisa estúpida
e apaixonante:
─ chamada VIDA!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Jorge Fregadolli
Maringá/PR

“PANDEMIA DO MEDO”


Como é triste ser refém
do tal vírus invisível!
É a dor que o mundo tem
de pandemia terrível.

Ela chegou de mansinho,
e não disse porque veio.
E mata devagarinho,
trouxe medo de permeio.

O mundo pede clemência,
à pandemia infernal;
a vida está em falência,
povo exilado social...

Comércio fechou as portas,
os hotéis, shoppings também.
Prejuízo alguém comporta...
novos tempos nos convém?

Um dilúvio veio à terra,
para ensinar vida nova.
Mas sem Deus a vida emperra,
com Deus tudo se renova.

Aviso à humanidade,
e o respeito a vigorar.
O amor nos una a irmandade,
que é preciso a Deus rezar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Solange Colombara
São Paulo/SP

“MEMÓRIAS DA SAUDADE”


Nas pálpebras pesadas
o vento pousou...
Em folhagens abafadas
sentiu o peso, sussurrou
herege, o pranto secou.
Lápides esquecidas
no amarelado passado
sentem o abafo, ressequidas.
Ouço um apelo cansado...
Um elo pagão, embaçado.
É só um velho balanço
levado pela brisa fria.
Em um breve relanço
aquela que outrora sofria
veste no espelho sua alforria.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS

“GOSTO”


Gosto de gente profunda,
mas que nem por isso deixa de ser simples.
Gosto de gente apaixonada,
que se emociona fácil
e sabe nos tocar a alma.
Gosto de gente original.
Esse negócio de viver de um jeito “padrãozinho”,
é viver de mentira.
Gosto de gente inteligente,
envolvente,
Engraçada
sem deixar de ser séria.
Gosto de gente natural
cujo astral
é feito de loucura e poesia...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Vivaldo Terres
Itajaí/SC

“MEDO DE MORRER”


O ser humano agora
Está colhendo o que plantou
Semeou somente o ódio
E esqueceu o amor

Seu orgulho
E prepotência
Se fez ele absoluto
Se esqueceu de ser humilde
Por achar-se muito culto

E agora com esta pandemia
Não sabe mais o que fazer
Tira a máscara
E bota a máscara
Pois tem medo de morrer
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Clarisse da Costa
Biguaçu/SC

“A LUZ DA LUA”


Eu ainda olho para a lua
Com a mesma admiração
Querendo aquele brilho.
A sua luz tem o poder
De quebrar a escuridão
Que muitas vezes me deixou cega
Sem eu olhar para mim.
Eu via o equinócio da primavera
Com muitas incertezas,
O meu caminhar era inseguro.
Talvez eu não tivesse a certeza
De quem eu era,
Para onde eu devia caminhar.
Essa fase de incertezas
E caminhos imprecisos
Fazem parte da vida de cada um.
Não nascemos fortes,
Vamos crescendo e nos encontrando
Na estrada da vida.
Aí descobrimos que às vezes
Somos frágeis como papel,
Mas com o tempo
Deixamos que a vida nos ensine
A lidar com as nossas fragilidades.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Clarisse Cristal
Balneário Camboriú/SC

“ARTE-VIVA NO PALCO DA VIDA”  

(Para a atriz Sabrina Vianna)
 
‘’Intenso!!! Qualquer dia desses
Eu vou fazer outra página mais suave’’
Fabiane Braga Lima


Eu não existo por inteiro
Pois ao final da tarde
Quando agonizar o arrebol
Vou por os meus fadigados
Pés descalços
Nas areias mornas da praia
Não como uma veranista acidental
E sim como uma náufraga desterrada
Perdida e desesperada
A quem fez injúrias aos reis e rainhas
No velho mundo

Eu não quero existir por inteiro
Ao final na tarde
Vou ficar diante do Atlântico
E imaginar que estou no teatro mágico
Com os olhos semicerrados
Pelas luzes da ribalta   
Ouvindo o colossal zunido dos aplausos
Que vem da plateia   
Talvez Henrik Ibsen,
Talvez o pato selvagem
Quem sabe

Já desisti de existir por inteiro  
Ao final da tarde
Vou fazer o que nunca fiz
Pelo menos na vida adulta
Vou caminhar lentamente
 Pela orla do oceano outonal   
Como uma anti-artista qualquer
Que se mistura a plebe
Ao final da tarde
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Samuel C. Da Costa
Itajaí/SC

“ENTRE AS BRANCAS NUVENS”


Entre as brancas nuvens
Eu dou os meus passos seguros
Rumo a ti
Minha negra ninfa dos bosques

O meu lânguido caminhar
No entre as diáfanas nuvens branca
Nestes dias em desassossegos
Onde devemos ousar ser tudo
E devemos ser
Nós mesmos

O que tu estás pensando agora?
Sidérea negra fada...
Nunca viste o estéreo amor antes?
Pois eu mesmo nunca vi!
E nunca senti...

O meu caminhar trôpego
Pelo hiper-texto
Pela realidade fluída
O meu livre flanar
Entre gente estranha
E apoplética

Diga-me sacrossanta afra musa!
Diga-me de uma vez...
Negra ninfa...
Tu lembras de mim?
Quando tu fechas os teus olhos?
Tu lembras de mim?
Todas às vezes...
Quando o derradeiro sono te alcança!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Adélia Maria Woellner
Curitiba/PR

“FUSÃO”


Cores flutuam sem destino...
Formas criadas pela inspiração,
oferecem refúgio.
União de formas e cores,
origem de imagens
que surpreendem
e encantam...
Nasce novo espaço,
repleto de magia.
Sentimentos e emoções
atraem a alma da poesia.
Intersecção do visual com o emotivo.
O quadro se completa...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

“PAISAGENS DO MEU SERTÃO”


Uma velha rezadeira
um “véi” fazendo cigarro,
um pote velho de barro
e aquela boa parteira;
um chá com erva cidreira
pra qualquer inflamação,
o relâmpago e o trovão
e a tarde toda chovendo;
isso é mesmo que está vendo
paisagens do meu sertão.

Fontes:
Poemas enviados pelos poetas.