sábado, 8 de junho de 2019

Carolina Ramos (Canzarrão)


Aconteceu em Seriema. A cidade existe? Se de fato existir, substitua-a por outra qualquer, não localizável em mapa. A personagem deste conto pertence ao imaginário, ao mundo puro e extremamente amplo das crianças, sem fronteiras, sem pátria definida.

Não era à toa que o chamavam Canzarrão, ou Cachorrão, como preferia a meninada.

Muita coisa em seu aspecto físico contribuía para isso: — o corpo atarracado, as pernas arqueadas muito particularmente, as bochechas flácidas, puxadas para baixo pela força da gravidade e pelo peso das banhas que lhe "abuldoguezavara" as faces, sugerindo comparações. A articulação cruzada, dos maxilares, acentuava mais a semelhança, aproximando-os das mandíbulas possantes de um cão feroz.

Daí a ser chamado Canzarrão, nada mais que um passo. 

Tudo não passava, no entanto, de mera aparência. No íntimo, batia, no peito do velho, um coração passivo, tão meigo quanto ao de um totó de estimação, pronto a fazer festa ao menor sinal de afetividade. Não fazia mal a ninguém! Não passava de um tipo popular, absolutamente inofensivo, como tantos outros, e que gostava de contar histórias. Por isso mesmo, vivia sempre rodeado de crianças. 

Vez ou outra, apareciam os mais preconceituosos que, sem melhor o conhecer, deixavam-se ficar à distância, temerosos da exótica figura. Assim mesmo, por pouco tempo. Ressabiados, chegavam-se, pouco a pouco, e o número de ouvintes crescia,

Toninho foi dos mais arredios. Quando o tio, beberrão  inveterado, o trouxe para Seriema, o menino descobriu, por acaso, o ponto de encontro de Canzarrão e da garotada, aos sábados, no jardim fronteiro à Matriz.

Manteve-se à distância, desconfiado, como gato arisco.

O velho "bulldog" esticando o pescoço viu-o de longe, sem exteriorizar qualquer estímulo que o induzisse à aproximação. O tempo é que deveria agir, despertando a confiança.

Cada semana, o menino chegava mais perto, até que, afinal, enturmou-se.

Os olhos do velho, encontrando os do menino, pareceram sorrir, sem que as bochechas flácidas sofressem qualquer alteração. Inflando os pulmões, rosnou, então, latindo rouco: guau... guau…

Assustado, o menino recuou, sentido-se repelido. Logo, entendeu que o latido nada tinha de hostil, sendo a maneira mais cordial e simpática do Cachorrão dizer a um recém-chegado: — Bem-vindo!

Jamais trocaram palavra, mas, um elo tácito de amizade estabeleceu-se entre as almas do garoto e do velho contador de histórias.

Toninho voltou para casa, na certeza de ter encontrado um verdadeiro amigo. O coração vazio, ocupado apenas num canto, pelo tio sisudo, único membro da família que lhe restava, vinha agora transbordante de afeto. Passou a ser dos mais assíduos aos encontros dos sábados, que acabaram por se repetir nas quartas.

Traiçoeiro, o tempo passa depressa. E, para os velhos, embora os ponteiros pareçam arrastar-se, correm mais rápido do que para os jovens.

O enterro de Canzarrão foi feito pela Prefeitura. O caixão, coberto de flores, acompanhado, em silêncio, por um sem números de crianças desoladas.

Toninho foi dos últimos a abandonar o Campo Santo. Deixou entre as flores um bilhete escrito em letra gorda e irregular:

"Amigo — tenho saudade das suas histórias... quero ser igualzinho a você, quando crescer."

Tentou latir, baixinho, em despedida. A garganta apertada, só lhe permitiu um soluço magoado. Protesto de cachorrinho choramingas agora tristonho… agora sem dono.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XV


NUANCE

O céu lembra uma taça fina de cristal
sobre o mundo emborcada,
e a tarde,
lá na beira do horizonte
(talvez a imagem seja um tanto louca)
parece a marca rubra de uma boca
sobre o cristal manchada…

NÚPCIAS PAGÃS
  
Braços dados, nós dois, vamos sozinhos...
O teu olhar de encantamento espraias
pelas curvas e sombras dos caminhos
debruados de jasmins e samambaias

Há queixumes de amor na alma dos ninhos
e as nuvens lembram danças de cambraias...
- na minha mão ansiosa de carinhos
tonta de amor, a tua mão, desmaias...

Andamos sobre painas... entre alfombras...
E à luz frouxa da tarde em desalento
misturam-se no chão as nossas sombras

- Aqui... Há rosas soltas, desfolhadas...
Nada receies, meu amor - é o vento
em marcha nupcial pelas ramadas !

O BALÃO

Azul e cor-de-rosa, amarelo e encarnado
- um palhaço de gás, feito em papel cetim...
Ei-lo pronto e já aceso, o bojo arredondado
não tarda há de ser erguer pela amplidão sem sim...

A criançada da rua ajoelha-se ao seu lado
e ele arqueja ao calor da chama carmesim...
Há vivas!... Alegria!.. . E pelo céu, listrado
de louros foguetões, ei-lo ascendendo enfim...

Vai subindo contente, sem parar, sem rumo,
até que num momento, entre as luzes bordadas
no céu, - cai desmaiado, em vômitos de fumo...

Então... Põe-se a descer sereno... De repente
as crianças de outra rua atiram-lhe pedradas...
E o balão cai do céu como cai toda gente!...

O DESTINO DE UMA FLOR 

Era um lindo botão
aquele, o do meu jardim...

Para enfeitar a jarra da tua vaidade
tu o cortaste da roseira
sem necessidade,
- a roseira de uma alma que floresce em mim...

E na jarra da tua vaidade
o botão foi se abrindo, e aos poucos se fez flor
ao sol de uma ilusão... e na felicidade
de enfeitar teu amor. , .

Foi assim,
que algum tempo viveu esplêndida e viçosa
a rosa,
até que foi cansando o teu olhar...

E ontem, quando a apanhaste para pôr uma outra,
- outro lindo botão no seu lugar,
depois que tanto tempo a deixaste esquecida:
- ao toque da tua mão
por encanto desfez-se em pétalas no chão
a flor da minha vida !

E só tu, não soubeste ver naquela flor
o fim de um grande amor!

O MEU TORMENTO

O meu tormento é  adivinhar  pisadas
de um outro que passou antes de mim,
e que já andou talvez pelas estradas
por onde sigo atormentado assim...

É o de pensar que só te achei agora
e surpreender-me, às vezes, a supor
que o grande amor que me inspiraste, mora
na mesma casa de um antigo amor...

É imaginar também que os teus desejos
a outra alma estranha já fizeram louca,
e que a doce champanha dos teus beijos
fez transbordar de beijos outra boca!

É pensar... (doloroso é o pensamento
quando o encho assim com meus tormentos vãos)
- que carícias ficaram, como o vento,
a roçar, invisíveis, tuas mãos…

O VERBO AMAR 

Te amei: - era de longe que eu te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente
sente, que a alma da gente faz escrava...

Te amava: - como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar... E te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava!

Te amo: - e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo... e eu, vou te amando...

Te amar é mais que um verbo, é a minha lei:
- e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!

OS VERSOS QUE TE DOU 

Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
- eu farei versos...e serei feliz...

E hei de faze-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei depois
relembrar o passado de nós dois...
- esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escuta-los - sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia mais tarde, revive-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
- hás de rever, chorando, o nosso amor,
- hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres - teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá, novamente, então tu fores,
pode colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Dona Eulália)



Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente.

No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália dormia o último sono.

Já tinha passado a hora do saimento.

Faltava apenas o padre.

O padre não aparecia.

O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro:

– Então?.. . esse padre?..

– Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo?

– É favor, Cazuza.

E o parente saiu muito apressado.

Dez minutos depois, o Eusébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho:

– E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim sem alguma contrariedade…

* * *

Justifiquemos esse grito do coração.

O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno.

O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel, de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso!

Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo.

Não tinha filhos, – e era melhor assim, porque com certeza, D. Eulália não lhes perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!

* * *

Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias a vizinhança não se ocupou de outra coisa.

O marido que apanha da cara metade está perdido; o que apanha e chora, está irremessivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou…

Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.

Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.

* * *

De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo, porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada.

Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa.

O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.

* * *

Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher.

– Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!

– Quê!… pois a Maria…?

– Acabo de pô-la no olho da rua!

– Por quê?

– Não é da sua conta! Mexa-se!…

– Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!…

– Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! vista-se! E nada de agências, hem? olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da porta da rua!

* * *

Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante.

O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações, procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir.

O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto.

A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego.

Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada.

Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e humilde, que à primeira vista inspirava certa confiança.

Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão com que se ajustaram.

– Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.

– Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher…

O Eusébio interrompeu-se – ia deitando tudo a perder, – e emendou:

… minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, há de supor que me remanchei.

– Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao Morro do Pinto.

– Pois vamos ao Morro do Pinto… respondeu resignado o resignado Eusébio.

* * *

Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata.

D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:

– Onde esteve o senhor metido até estas horas? oh! que coisa ruim… que homem insuportável… Só a minha paciência!…

– A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim… parece que desta vez ficamos bem servidos.

– Pois sim, resmungou D. Eulália, – vão ver que é alguma vagabunda!

E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância:

– Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!

A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.

– Como se chama? perguntou D. Eulália.

– Eulália.

– Eulália?!

– Eulália, sim, senhora!

– Eulália?! Rua! Rua!

E voltando-se para o marido:

– Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!…

– Mas, senhora.

– Cale-se! Não seja burro!

* * *

Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália não poderia contrariá-lo.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Fora da Moda.

XVI Congresso Brasileiro de Poetas Trovadores (4 a 7 de Julho: Programação)


Anchieta - Espírito Santo

De 04 a 07 de julho de 2019

Evento totalmente gratuito aberto para a participação de qualquer pessoa: professores, estudantes e povo em geral. 

Palestras, Desfile dos poetas, lançamento e relançamento de livros de escritores de Anchieta, Vitória, Rio e São Paulo. Serenata dos trovadores. Missa em Trovas.

Local: Auditório Da Câmara Municipal De Anchieta

PROGRAMAÇÃO

DIA 04 DE JULHO DE 2019, QUINTA FEIRA. 

INÍCIO AS 18 HORAS

Local Auditório Da Câmara Municipal. 

Abertura Solene, com o presidente da ACLAPTCTC, Clério José Borges. 

Homenagem aos vencedores dos concursos de poesias e trovas.

Concurso do melhor bolinho de arroz de Anchieta: Culinária e música. 

Trovas.

Poesia. 

Homenagem Aos Artistas De Anchieta. 

DIA 05 DE JULHO DE 2019. SEXTA FEIRA

10 Horas 
Passeio. 

Início do concurso relâmpago de trovas com o tema “O luar de minha cidade”

15 Horas 
Auditório Da Câmara Municipal. 

Início das Palestras. 

Sarau Poético. 

Escolha do melhor poeta de Anchieta. 
Venha se candidatar lendo duas poesias de sua autoria. 

Oficina de Trova. 

O que é prosa é poesia? 
Quem foi Florbela Espanca? 
Quem foi Cora Coralina? 
Quem foi Cecília Meirelles? 
O que é haicai e acrostico?

19 Horas 

Serenata Pelas Ruas Da Cidade. 
Saída da Câmara Municipal até a Praça São Pedro. 

Venha cantar músicas antigas de serenata. Traga seu violão...

DIA 06 DE JULHO SÁBADO 

10 Horas 

Troveata. 
Desfile pelas ruas de Anchieta com distribuição de livros, poesias e trovas.

De 15 As 21h30m 
Auditório da Câmara. 

Palestras e Lançamento de Livros de autores de Vitória, Anchieta, Guarapari, Rio De Janeiro e São Paulo. 

Palestras: 
O que são moedas virtuais; 
Os milagres de Anchieta; 
Marco zero de Anchieta local da primeira aldeia indígena; 
Como montar um livro para publicação. 
“Anchieta em verso e prosa”, por Roberto Vasco. 
“Doces Lembranças” em Anchieta, por Maria Cândida Vasco Gonçalves. 

Sarau Poético. 
Venha E Declame Sua Poesia. 

Entrega Solene De Comendas 
Homens: Grande Oficial Consul Da Paz 2019. 
Senhoras: Embaixadora Consulesa Da Paz 2019.

Dia 07 De Julho 

10h30m 

Missa Em Trovas, com Frei Firmino.

11h30m 

Auditório Da Câmara Municipal 

Premiação aos vencedores do concurso relâmpago de trovas. 

Encerramento solene do Congresso.

Fonte:
Clério Borges

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Almachio Diniz Gonçalves (O Velho Médico)

O mostruário exibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.
Estefânio e Judite — esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador da mulher vencida em mais anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e linhas, luzes e perfumes — gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo…

Marco Antônio — o médico afamado — cofiando as enevoadas barbas em que se escondiam as ilusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante domínio, de suas atenções...
***
 —Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o restituído ao fulgor da mocidade...

— É exato, doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por sobre chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: “Tirem os médicos e as enfermidades desaparecerão”... Mas, eu digo: fugi deles e estou curado. Deem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.

— E quem te curou, meu caro?

— A natureza...

— O novo deus pagão...

— Assim diz o doutor., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que sofria?

— Lembro-me, sim.

— Foram tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.

— O Sr. era verdadeiramente um doente.

— E o dr. escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.

— Realmente.

— Pois confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o último médico que me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.

— Afinal... quem te curou?

— Dir-lhe-ei tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...

— A história vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...

— Creio que o senhor adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.

— Desculpe-me.

— Pois não! Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura proveio de minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em último grau de desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata. Homeopatas e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus padecimentos. Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de enfermidade efetivamente assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez primeira, objetivar uma paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio próprio da idade, a posse fácil, e passageira contra a minha vontade, de uma mulher amada. O mundo inteiro concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos pesadelos de minha carne inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas e quarenta horas, ou oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético jogo de instintos, durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando as fichas do meu gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto, fatal. Esgotou-se e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que procura as alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me combalia as fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para derribar as minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...

— De um crime delicioso...

— Talvez, doutor.

— E então?

— Encegueirado pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras fantásticas... E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me punha a tremer com tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de minha alcova e soar fora de tempo a campainha do relógio sobre a mesa... Senti-me muitas vezes balançado como a esferazinha de madeira que anima o trilo dos apitos...

— É curioso, deveras, o seu caso.

— Foi, doutor.

— Sim! Foi! E hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.

— Mas viu-me um outro médico e diagnosticou-me: um paranoico.

— Paranoico?

— Exatamente, doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos do sentimentalismo clinico desse primeiro médico, os meus pais esgotaram uma fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as cores. Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos meus males Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por alta dose, mas não tóxica, de estricnina. Veio um segundo médico—já a esta hora e há muito tempo — vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse, carrancudamente, diante de uma das minhas crises de saudade carnal: “são delírios epileptiformes”... E o tratamento passou a ser feito com altas doses de bromureto. A minha enervação deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto que nem pranteei a morte de minha mãe, desgostosa com a minha trágica existência... Novo médico; vim a ser um simples neurastênico, com atonias nervosas. Reconstituintes, passeios, boas alimentações, prazeres, etc.: nada, porém, matava as saudades do meu instinto animal. Comecei de padecer do estômago, ora por excesso de alimentação, ou por escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias, tornei-me um narcoticômano. Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui um cardíaco, um arteriosclerótico... Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um Esculápio chamado às pressas, levando em conta a minha magreza, o sangue esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos meus sofrimentos, num rápido prognóstico, anunciou a minha morte breve, por força de adiantadíssima tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam, nunca tiveram o escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me coisas que só dali por diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os seus remédios ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento nervoso, e um vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado nas suas forças comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos de pessoas novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de ser eu rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea, que, de sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu malfeitor, com um galho da famosa arrudeira...

— E nem rezado, Sr. Estefânio?

— Para o doutor ver! Nem rezado!

— É única a sua história.

— Creio que sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento renal... E foi quando o senhor foi chamado.

— Assim acaeceu*. (*aconteceu)

— E inda pensa o doutor que eu tivesse afecção nos rins?

— Se me não falha a memória, efetivamente.

— Pois escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferência.

— Que disseram eles?

— Discordaram preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor discordaram reputando sãos os meus rins.

— Sãos, ou curados?

— Curados, não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnóstico de uma hepatite aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.

— Mas, afinal, acertaram?

— Supõem que sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.

— É espantoso, meu caro senhor.

— Não é, não, doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que eu amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim, Judite?

— Parece-me!
***
Assim exclamou, apenas, a sedutora mulher, com os olhos espelhando o enfeitiçamento de um lindo manteau exposto no mostruário de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava solenemente a espaçosa fronte…

Fonte:
Revisão atualizada de Iba Mendes.

Almachio Diniz (1880 – 1937)


Almachio Diniz Gonçalves nasceu em Salvador, a 7 de maio de 1880, filho do farmacêutico e naturalista Adolfo Diniz Gonçalves e de Maria Rosa Guimarães Diniz Gonçalves. Formado em Direito, três anos depois, mediante concurso torna-se lente da Faculdade Livre de Direito da Bahia, especializando-se no campo da filosofia jurídica.

Em 1915, ele decide se transferir para o Rio de Janeiro. Também ali faz-se catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, lecionando Direito Civil. Foi um dos fundadores da Faculdade Teixeira de Freitas, em Niterói.

Em 1935, Almachio Diniz foi advogado da Aliança Nacional Libertadora (ANL) de Luís Carlos Prestes, tendo impetrado um mandado de segurança buscando reverter a decisão do governo de Getúlio Vargas que havia fechado as sedes da ANL, mas que foi negado pelo Supremo Tribunal Federal.

Quando candidatara-se à vaga na Academia Brasileira de Letras deixada pela morte de Euclides da Cunha, Almachio encontrou por oponente outro autor baiano, Afrânio Peixoto, então jovem médico e que, tendo escrito crítica favorável a Mário de Alencar, foi lançado por este candidato mesmo sem o seu conhecimento e estando em viagem à Europa. Num gesto em que procurava abortar o opositor, Almachio apresentou à direção da Casa um pedido de impugnação, onde argumentava que a candidatura do rival havia sido apresentada extemporaneamente. A impugnação foi rejeitada, e Peixoto, eleito.

Em seus argumentos, Almachio ataca a candidatura de Afrânio Peixoto: “Quero a sua valiosíssima atenção de caráter pujante e inquebrantável, diante de todas as heroicidades – não é lisonja porque não a sei tecer – para o escândalo que cometeria a Academia se sufragasse em maio próximo um nome que não foi candidato dentro dos termos do Regimento da Academia. A sua intervenção livrará a belíssima Instituição de uma derrocada moral lastimável. Creio na sua ação em benefício do renome da Academia.” Outras três vezes procurou o ingresso na instituição maior das letras brasileiras, em todas elas fracassando no intento.

Foi Presidente de Honra da Academia Baiana de Letras, entidade formada em 1911, proferindo o seu discurso de instalação, ali ocupando como membro-fundador a Cadeira de número 11. A instituição, contudo, não prosperou, desaparecendo. 

Finalmente, em 1917, sob auspícios do então governador Antônio Moniz, com a fundação da Academia de Letras da Bahia, é seu membro-fundador, ocupando a Cadeira 37.

Em 1934 faz-se membro-fundador da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 3 (onde foi sucedido por Evaristo de Moraes); foi também correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Instituto dos Advogados Brasileiros.

Faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de maio de 1937.

Deixou mais de cem obras publicadas, sobre literatura, direito, história e outros temas, como por exemplo:

Ensaios Filosóficos Sobre o Mecanismo do Direito. Salvador, 1906.
Pavões. (romance) Salvador, 1908.
Zoilos e Estetas. (crítica literária). Porto, 1908.
Questões Atuais de Filosofia e Direito. Rio de Janeiro, 1909.
O Diamante Verde. (romance) Lisboa, 1910.
Um Artista da Moda. Lisboa, 1910.
Troféus em cinzas. (peça teatral). Salvador, 1911.
Curso de Enciclopédia Jurídica. Salvador, 1913.
Bodas Negras. (romance). Rio de Janeiro, 1913.
Direito da Família. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Coisas. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Sucessões. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Obrigações. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito Público Constitucional. Rio de Janeiro, 1917.
Teoria Geral do Processo ou Teoria das Ações. Salvador, 1917.

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