sábado, 5 de outubro de 2019

Carolina Ramos (O Leitor…)


Quando alguma ideia pula da mente para o papel, ou, melhor dizendo... Quando algumas frases aparecem na tela do computador, clicadas por dedos não tão ágeis; às vezes quando as ideias fluem, os primeiros leitores serão sempre os olhos do autor, críticos ávidos, prontos para descobrir o que pode ser dito de melhor maneira, o que pode ser cortado como supérfluo, ou tão somente o que pode ser amenizado com um pouco mais de bom senso. E como são exigentes esses dois leitores, que analisam com rigor aquilo que a mente deixou passar sem cuidados maiores, sem análise ou filtro, mantendo ainda a pureza de um retrato sem retoques, nada do que foi dito, sem alcançar ainda forma definitiva!

Só depois desse encontro definitivo com o autor o texto viabilizado terá passagem liberada para chegar a outros olhos, talvez até mais benevolentes do que os primeiros! As páginas, os livros e os versos levam dentro de si a alma de quem os escreveu. Toda obra, em geral, tem o efeito de catarse, nem sempre buscada, mas incontida sempre. Isto porque a sinceridade de quem escreve é sempre difícil de ser controlada, e, ainda mais, de ser disfarçada.

O leitor tem em mãos uma obra qualquer. Poderá folheá-la com certo interesse. Como poderá relegá-la, após esse folheio. Poderá ainda deixar-se prender, quase que inconscientemente, por aquele fio invisível que conduz a narrativa até o ponto final - marco inconfundível de vitória do autor!

A sintonia que une a mente de quem escreve à mente interessada de quem lê é o objetivo principal daquele que nasce fadado a fragmentar-se, a cada dia, em letras e sinais gráficos que espelham o que pensa, expõem o que deseja, na entrega de sua alma inteira a seres que sequer conhece, mas cuja existência o ajudam a manter viva aquela chama criativa que lhe garante a sobrevivência do impulso indispensável à ação de escrever.

E é justamente aí que a importância do leitor mais cresce. Quem escreve quer ser lido. E, portanto, quem lê é complemento indispensável ao estímulo e à perpetuidade da difícil arte da escrita. O leitor é testemunho público de que aquele escritor por ele prestigiado faz jus ao título que carrega, podendo até depois de morto ser considerado imortal, uma vez que suas páginas palpitam ainda em mãos de quem as encontrou numa estante, em formato de livro.

E esse alguém, ao ler aquele livro com carinho, salva o autor da triste penumbra do esquecimento, cruel e contumaz apagadora de nomes e memórias, a cada dia que passa.

Fonte:
Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IV


A brisa da madrugada
no silêncio rega a vida,
a relva toda orvalhada
brilha rejuvenescida.

Amor, sentimento raro,
hoje, tão pouco vivido,
para viver pede amparo
sem perder o seu sentido.

As cortinas do universo
pelo tempo são rasgadas,
nelas o bom e o perverso
têm visões diferenciadas.

As estrelas cintilantes
nos chamam mais atenção,
não só por serem brilhantes
mas pela grande atração.

Comodismo não fomenta
as bases do crescimento,
só com dinamismo enfrenta
quem se focar no fomento.

Devo sempre agradecer
a Deus pelo que hoje sou,
mas também reconhecer,
nobre lar que me adotou.

Do avestruz ao beija-flor
respeitemos cada qual,
não matemos por furor
só por ser irracional.

Entre as linhas do presente
sinto o tempo se esvair,
seu sinal mais evidente
é nossa força exaurir.

Jornadas, noites adentro,
lapidam nosso amanhã,
tendo à fé o sublime centro
e o trabalho por divã.

Livro, o que tens pra contar?
Lições provindas do autor?
Quando este não mais falar
fales por ele ao leitor...

Mesmo sem ser importante
faço parte desta estrada,
cada vez mais integrante
de uma longa caminhada.

Na rua, pobre menino,
clamando, pedia esmola,
mal sabia, o seu destino,
era estar em uma escola.

Nas florestas vemos tantos
passarinhos a encantar,
seus suaves, lindos cantos,
nos fazem também cantar.

O dinheiro compra tudo,
menos a temida morte,
não se atreva alguém, contudo,
investir naquela sorte.

O homem chora por amores
também chora de saudade,
chora quando sente dores
ou só de felicidade.

Olho para o firmamento
em noite toda estrelada,
me enche de contentamento
vendo estrelas e mais nada.

O incêndio quando começa
com tendências a crescer,
tão pouco resta que impeça
de a tragédia acontecer.

O zero quando ficar
à esquerda do numeral,
seu valor pode mudar
só se for um decimal.

Quando tudo está perfeito
nos resta ratificar,
se tiver algum defeito
melhor é retificar.

"Quem não vive pra servir
não serve para viver".
Isso nos faz refletir
sobre o nosso proceder.

Quem temer o sofrimento
pode sofrer duplamente,
a dor chega num momento
vai sumindo lentamente.

São perplexos os motivos
que deturpam tantas mentes,
deixam rostos aflitivos
com sintomas de doentes.

Se desejas alcançar
grande sol na vida tua,
lembra que deves passar
pelas estrelas e a lua.

Talvez com pouco dinheiro
compro o que me satisfaz,
mas não compro por inteiro
minha tão sonhada paz.

Tantas lutas acontecem
sem nenhuma munição.
Aranhas que teias tecem
só vencem pela traição.

Todo o percurso seguido
nesta longa caminhada,
nunca nos tenha servido
de tropeço pela estrada.

Use a sensibilidade
pra tornar a vida plena,
melhorando a sociedade
vai mudar o ecossistema.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Monteiro Lobato (O Plágio)


— Você sai, Nenesto, com um tempo destes?

— Não há outro.

— Dia de São Bartolomeu, inda mais?...

— Importa-me lá o santo.

— Está bem. Depois não se arrependa...

Isto dizia dona Eucaris ao “queixo-duro” do seu marido Ernesto d’Olivais, ao vê-lo tomar o chapéu do cabide para sair.

Fora, remoinhava o vento, anunciando tempestade próxima.

Por castigo, nem bem caminhara o teimoso duzentos passos e desaba o aguaceiro. Tão repentino que mal teve tempo de barafustar por um sebo adentro, no instante preciso em que o belchior cerrava a última folha da porta. Mesmo assim resfriou-se e foi com três espirros que retribuiu à saudação do homem.

— Atchim!...

— Viva!

— Atchim!…

— Viva!

— Atchim… Brr! Pra burro! Espirro pra burro. C’est le diable.

(Século trinta! Se por acaso um exemplar deste livro chegar ao conhecimento dos teus fariscadores de antigualhas, não se assombrem eles com a expressão curralina do meu Ernesto. Nem quebrem a cabeça a interpretá-la com ajuda da filologia comparada, da veterinária e mais ciências conexas. Cá fica a chave do enigma. A expressão “pra burro” viveu correntio pelas imediações da Grande Guerra, com significação de abundante, excessivo ou estupendo. Nascida nalguma cocheira, alargou-se às ruas e passou destas aos
salões. Penetrou até na retórica amorosa. Romeus houve que, pintando a formosura das respectivas Julietas, substituíram o arcaico linda como os amores por este soberbo jato de impressionismo cavalar: É linda pra burro! Não obstante, as Julietas casavam com eles e eram felizes. Lá se entendiam.)

O belchior era francês, e Ernesto taramelava na língua adotiva do senhor Jacques d’Avray o necessário para embrulhar língua com um belchior francês. Sabia diferençar femme sage de sage femme, distinguia chair de viande e alambicava a primor os uu gauleses. Além disso tinha ciência de vários idiotismos, usando amiúde o qu’est-ce que c’est que ça?; sabia de cor a história do Didon dit-on, além de uma dúzia de prosopopeias de alto calibre, forrageadas nos Miseráveis de Victor Hugo — o que já é bagagem glóssica de peso para um carrapato orçamentário com seis anos de sucção.

Tais conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar a paciência do livreiro, a quem Ernesto, em todo dia 2 de cada mês, tomava alugado um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.

Naquela tarde, porém, Ernesto não queria livros, sim um teto, razão pela qual falhou o usual encetamento da seca. (Esse ritual começava assim: Qu’est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?)

Fora, em rogougos sibilantes, o vento pulverizava a chuva.

Tinha de esperar.

Ernesto esperou. Esperou a remexer as estantes, a folhear revistas, a ler a meia-voz os títulos dourados. De longe em longe tomava dum volume e perguntava ao francês acurvado na escrituração de um livro de capa preta:

— Combien, monsieur?...

E a resposta do homem repicava invariavelmente:

— C’est très salé, c’est très salé, c’est très salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a atenção. Empolgou-lha, logo depois, uma brochura esborcinada: A maravilha, de Ernesto Souza.

— Olé! Um xará! Combien, monsieur?

O livreiro, sem maior atenção, rosnou qualquer coisa, enquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando maquinalmente o très salé... Leu-lhe o período inicial e o final, vezo antigo adquirido no colégio, onde colecionava num caderninho a primeira e a última frase de quanto livro lhe transitava pela carteira. A maravilha era um desses romances esquecidos, que trazem o nome do autor à frente duma comitiva de identificações, à laia de passaporte à posteridade, muito em moda no tempo do onça:

alfredo maria jacuacanga
(Natural do Recife)
3º- anista da Escola de Medicina da Bahia
ou
doutor cornélio rodrigues fontoura
Ex-lente disto, ex-diretor daquilo, ex-membro do Pedagogium, ex-deputado
provincial, ex-cavaleiro da Cruz Preta etc. etc.

Romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vingativos e virtudes premiadíssimas de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus — livros que a traça rendilhou nos poucos exemplares escapos à função, sobre todas bendita, de capear bombas de foguetes.

O período final rezava assim: “E um rubro fio de sangue correu do níveo seio da donzela apunhalada como uma víbora de coral num mármore pagão”.

Ernesto, né de Oliveira mas d’Olivais por contingências estéticas, enrubesceu de apolíneo prazer. E assoou-se, demonstração muito sua de entusiasmo chegado a ponto de arrepio.

— Sim, senhor! Está aqui uma frase soberba! “Como víbora de coral...”.

Magnífico! E este “mármore pagão”...

Foi ter com o monsieur e leu-lha “com alma”; mas o tipo, absorvido numa edição, miou apenas o oui, oui, sem sequer erguer a cabeça.

Ernesto não comprou o livro (não era 2 do mês), mas escondeu-o num desvão para que até o dia aquisitivo ninguém lhe pusesse a vista em cima.

Entrementes a chuva amainara.

Ernesto entreabriu a porta para a rua murmurejante e resolveu abalar.

— Monsieur, au revoir!

— Oui, oui — miou pela última vez o belchior.

Na rua endireitou para casa, ruminado que, sim, senhor, era ter fogo sagrado! Uma frase daquelas fazia um nome. O xará tinha talento. Bem dizia Victor Hugo nos Miseráveis que o gênio... é o gênio.

E foi pelo caminho a redizê-la com cariciosa unção, a remirá-la de todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a em surdina inúmeras vezes; pela forma, revendo o jeito com que a fixaram no papel os caracteres tipográficos; pelas correções associadas, evocando vagos helenismos clássicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cérebro a palmatoadas — Frineia, o cão de Alcebíades, as Termópilas, o barril de Diógenes.

Por fim, à noite, já a preciosa frase se lhe incrustara nos miolos, no lugar onde costumavam encruar as ideias fixas. Chegou a repeti-la à dona Eucaris. Mas dona Eucaris, uma criatura sovada, toda virtudes conjugais e preocupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:

— E você trouxe, Ernesto, o pavio de lampião que encomendei?

Ernesto d’Olivais arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia cólera, coisa rara em seu imo de amanuense gomoso e manso.

— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora, não me aborreça com histórias de pavio!

E voltando-se para o canto (que a cena se passava na cama) embezerrou.

O sono dessa noite não foi bom conselheiro, e no dia seguinte Ernesto andou pela repartição mais meditativo que do costume, com olhos parados — olhos de cobra morta que olham sem ver.

É que uma ideia...

Não era bem uma ideia ainda, mas células vagas, destroços vogantes de ideias mortas, lampejos de ideias futuras, coisas tão afins que ao cabo de três dias se englobavam numa ideia-mãe de imperiosa vitalidade.

— Escrever um conto, uma simples “variedade”, em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de alto estilo... Duas ou três personagens — não gostava de muita gente. — Um conde, uma condessa pálida, a cidade de Três Estrelinhas, o ano de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa de X pelo pintor Gontran —, gostava muito deste nome. A cena, já se sabe, passava-se na França, que nunca achara jeito em personagens nacionais, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha crescendo até engastar-se naquele final... oh, sim!... naquele final, porque, em suma, o conto só viveria para justificar a exibição daquela joia de “celinio lavor”. E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivais.

Esse remate furtado ao xará d’A maravilha insinuou-se aos poucos na consciência de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artística indiscutível.

A maravilha, ora! Um miserável caco de livro cuja existência ninguém conhecia...

Plágio? Como plágio? Por que plágio? É tão comum duas criaturas terem a mesma ideia... Coincidência apenas... E, além disso, quem daria pela coisa?

Ernesto era literato.

“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.

Ernesto não fugira à regra. Em moço, enquanto vivia às sopas do pai à espera de que lhe caísse do céu amanuensado, fundara A Violeta, órgão literário e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apolo e Minerva. Redigiu depois certa folha “crítica, científica e literária” com dois tt, O Combatente, que morreu aos sete meses, combatendo a gramática até no derradeiro transe. Compôs nesse intervalo, e publicou, um livro de sonetos, cuja impressão deu com o pai na miséria.

Incompreendido pelo público, que não percebia o advento de um novo gênio, Ernesto amargou como peroba da miúda, deixou crescer grenha e barba, esgrouviou-se, virou-se e disse cobras cascavéis do país, do público, da crítica, de José Veríssimo e da “cambada” da Academia de Letras. Citava amiúde Schopenhauer e Kropotkin, mostrando tendências para saltar dum pessimismo inofensivo ao perigoso niilismo russo. Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de guatambu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé:

— Vá ganhar a vida, seu anarquista de borra!

Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e afinal cavou o empreguinho. No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a seção “Conselhos Úteis” d’O Batalhador. Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A maravilha e patinhou como Hamlet no pego da indecisão, até que... Ernesto, em tiras de papel de Governo, lançou em belo cursivo um lindo começo bem arredondado:

“Era por uma dessas noites de abril, em que o céu recamado de estrelas lembra um manto negro com mil buraquinhos...”

Na roda de orçamentívoros que domingueiramente bebericavam o chá com torradas de dona Eucaris, todos afinados pela cravelha do Ernesto — vítimas imbeles da incompreensão —, o conto estampado n’O Lírio causou agradável surpresa. O João Damasceno foi o primeiro a dar-lhe um abraço num vai e vem de café.

— Olha, li o teu “Never more” n’O Lírio. Esplêndido! O final, então, divino! Tens miolo, meu caro! Pagas o chope?

Nesse dia Ernesto contou à esposa toda a vida do João, terminando cismático:

— É um caráter, Eucaris, um nobilíssimo caráter...

O capitão Prelidiano, chefe da sua seção, foi comedido e pausado como convinha à eminência do seu tamanco:

— Li o seu trabalho, senhor Ernesto, e gostei; termina com brilhantismo; continue, continue...

E o Claro Vieira? Fora brutal, esse.

— Que ótimo fecho arranjaste para o teu conto! O resto está pulha, mas o final é un morceau de roi!

O que nessa noite dona Eucaris ouviu relativo ao caráter baixo, infame e vil do Claro...

Ernesto entrou-se de receios. Pareceu-lhe que o Claro estava no segredo do “encontro de ideias”. Como medida de precaução deu busca aos sebos em cata de quanto exemplar d’A maravilha empoava por lá. Encontrou meia dúzia, adquiriu-os e queimou-os, com grande assombro de dona Eucaris, que duvidou da integridade dos miolos maritais ao vê-lo transfeito em Torquemada de inocentes brochuras carunchosas.

Mas nem assim sossegou.

— Quem me assegura não existirem outras, espalhadas aí pelas bibliotecas públicas? Se ao menos houvesse eu variado a forma, conservado apenas a ideia...

Fora audacioso, não havia dúvida. Fora tolo, pois não.

— Sou uma besta, bem mo dizia o pai...

Ernesto arrependeu-se do plagiato — sim, porque, afinal de contas, vamos e venhamos, era um plágio aquilo! Sua consciência proclamava-o de cabeça erguida, reagindo contra as chicanas peitadas em provar o contrário. E Ernesto arrependia-se, sobretudo por causa do “Dizem...” d’O Cromo. Constava ser Claro o enredeiro daquelas maldades — e Claro era impiedoso na mofina. Sabia revestir as palavras dum jossá urente de urtiga.

Fizera mal, sim, porque, afinal de contas, um plágio... é sempre um plágio.

Quando no domingo seguinte recebeu O Cromo, tremeu ao correr os olhos pelo “Dizem...”. Mas não vinha nada e respirou. No “Recebemos e Agradecemos” havia boa referência ao conto, muito elogiosa para o remate.

Também A Dalila desse dia trouxe algo: “O conto do senhor F. é um desses etc. etc. O final é uma dessas frases que chispam beleza helênica etc.”.

— O final, sempre o final! Estão todos apostados em fazerem-me perder a paciência. Ora pistolas!

Ernesto deblaterou contra os jornalistas, contra os amigos, contra os dez exemplares d’O Lírio em seu poder — dez arautos do seu crime. E queimou-os. Na repartição, a um novo elogio do Damasceno Ernesto rompeu desabridamente.

— Ora vá ser besta na casa da sogra!

Damasceno abriu a boca.

Nas palavras mais inocentes o pobre autor via alusões irônicas, diretas, claras, brutais. Num simples “bom dia” enxergava risinhos de mofa. O próprio capitão Prelidiano, honestíssima cavalgadura incapaz de ironias, afigurava-se-lhe o chefe da tropa.

Conspiravam contra ele, não havia dúvida.

Ernesto pôs-se em guarda. Fugiu dos amigos. Deu cabo do mate domingueiro. Não podia sequer ouvir falar em literatura, o assunto dileto de tantos anos. Emagreceu.

Dona Eucaris, meditabunda, matutava:

— Serão lombrigas?

E deu-lhe quenopódio às ocultas.

— Afinal...

Afinal? É o diabo ser a vida tão pouco romântica como é! Os casos mais interessantes descambam a meio para o mais reles prosaísmo. Este do Ernesto d’Olivais, por exemplo. Merecia fim trágico, duelo ou quebramento de cara. Quando nada, uma remoçãozinha a pedido. Mas seria mentir. Nem toda gente encontra, como Ernesto, remates de estrondo à mão.

É o caso deste caso.

Ernesto adoeceu, mas sarou. O quenopódio revelou-se um porrete para o seu mal. Depois, com o decorrer do tempo, esqueceu o plágio. Os amigos esqueceram o “Never more”. O Lírio morreu como morrem Lírios, Dalilas e Cromos: calote na tipografia. Ernesto engordou. Já é major. Tem seis filhos. Continua a fazer literatura — clandestinamente, embora. E, se encontrar a talho de foice um novo final de estrondo, plagiará de novo. Moralidade há nas fábulas. Na vida, muito pouca — ou nenhuma...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) IV


A lua minguante
Se energiza distante
Deitada no céu.
_____________________

Pra ela
Que era acostumada a plantar sonhos,
Cultivar meus carinhos
Foi algo bem fácil.
_____________________

Te visito todos os dias
Mesmo tendo que percorrer um longo caminho.
Que pena que pensas que sou um sonho,
E não percebes
Que sou eu que te acordo sorrindo.
_____________________

Enquanto a chuva caía
Muito me doía
Ao ver teus rastros
Se apagando na areia.
_____________________

Ao som da sineta
Desviei meu pensamento
Da dura linha do tempo.
Eu todo templo
Varrido de emoções,
No silêncio,
Sem relutar
Deixei vibrar o peito.
_____________________

No fundo dos meus olhos
Escondi aquele amor
Que com o tempo descorou.
Resgatando a identidade
Reforço o sorriso com a maquiagem
Encontrando-se comigo
Novamente eu estou.
_____________________

O amor dela era tão quente
Que até minh'alma se despia.
_____________________

A tua chegada é tão sublime
Que pouco me importa
As razões da partida
Com a mesma saudade de ontem
Te espero ansioso, minha querida!
_____________________

No banco vazio
Meus olhos enxergam saudades.
_____________________

Quando te entreguei meu coração
Era pra que tu morasses dentro
E não pra que levasses no adeus
Me deixando um vazio imenso.
_____________________

Pra te guardar
Como uma memória perfumada
Eu fechava os olhos
Mas abria o coração.
_____________________

Pra nos separar
Criaram um abismo entre nós
Só não sabiam eles
Que sendo almas gêmeas
Nosso amor era algo maior.
_____________________

E ela amava flores.
Por isso,
Todos os dias,
Eu me plantava em seu jardim.
_____________________

Pra tudo há um tempo.
Logo,
A vida é um eterno esperar.
Por ti,
Meus olhos ardem vigilantes
Chamas de velas vacilantes
Mas que não se apagam
Ao vento passar.
_____________________

Meu amor por ti
Era algo escancarado
Querendo ser achado
Deixei cair marcas no chão
Mas tu as desprezastes
Pois simplesmente achastes
Que eram apenas
Pequenas migalhas de pão.
_____________________

Embrulhadinha pra presente
Minha poesia diariamente
Ofereço ao teu coração
São gotinhas de homeopatia
Para alegrar teu dia
Ou despertar alguma emoção.
_____________________
Homenagem aos 196 anos de Jaguariaíva/PR

Minha Terra tem cachoeiras
Abundância de água há
Mas meus olhos se banham em lágrimas
De saudades que tenho de lá.
O cerrado se veste de flores
E os pássaros dão cor ao céu, ao voar.
Meu amor por ti é tão grande
Que só ao amor de mãe
Pode-se comparar.
Teus filhos repetem de longe:
Salve, salve, terra querida!
Jaguariaíva, Paraná.

Fonte:
Facebook da AVIPAF

Lima Barreto (A Gratidão do Assírio)


- Meu caro Senhor Assírio, eu lhe tinha a perguntar se de fato está satisfeito com a vida.

Nós nos havíamos introduzido no elegante porão do Municipal e falávamos ao restaurante chique com água na boca. Este não tardou em responder:

- Sei, doutor. Rui Barbosa não tem igual.

- Mas por que você não vota nele?

- Não voto porque não o conheço intimamente, de perto, como já disse ao senhor. Antigamente...

- Você não pensava assim - não é?

- É verdade; mas, de uns tempos a esta parte, dei em pensar.

- Faz mal. O partido...

- Não falo mal do partido. Estou sempre com ele, mas não posso por meu próprio gosto dar sobre mim tanta força a um homem, de que eu não conheço o gênio muito bem.

- Mas, se é assim, você terá pouco que escolher a não ser, nós colegas e nós amigos de você.

- Entre esses eu não escolho, porque não vejo nenhum que tenha as luzes suficientes; mas tenho outros conhecidos, entre os quais posso procurar a pessoa para me governar, guiar e aconselhar.

- Quem é?

- É o doutor.

- Eu?

- Sim, é o senhor.

- Mas, eu mesmo? Ora...

- É a única pessoa de hoje que vejo nas condições e que conheço. O senhor é do partido, e votando no senhor, não vou contra ele.

- De forma que você...

- Voto no senhor, para presidente da república.

- É voto perdido...

- Não tem nada; mas voto de acordo com o que penso. Parece que sigo o que está no manifesto assinado pelo senhor e outros. "Guiados pela nossa consciência e obedecendo o dever de todo republicano de consultá-la"...

- Chega Felício.

- Não é isso?

- É mas você deve concordar que um eleitor arregimentado tem de obedecer ao chefe.

- Sei, mas isto é quando se trata de um deputado ou senador, mas para presidente, que tem todos os trunfos na mão, a coisa é outra. É o que penso. Demais...

- Você está com teorias estranhas, subversivas...

- Estou, meu caro senhor; estou, imagine que não há dia em que não me veja abarbado com um banquete.

- É assim?

- Pois não, meu digno senhor. Um poeta publica um livro e logo encomendam-me um banquete com todos os "ff" e "rr"; os jornais publicam a lista dos convidados, ao dia seguinte, e o meu nome se espalha por este país todo. Se acontece alguém escrever uma crônica feliz, zás, banquete, retrato e nome nos jornais. Se, por acaso...

- Notamos, - interrompi eu, que nas suas festanças não há mulheres.

- Já observei isto aos diletantes de banquetes e, até, lhes ofereci organizar um quadro de convidadas.

- Que eles disseram?

- Penso que eles não querem rivalidades femininas. Já as têm em bom número masculinas.

- E as flores?

- Com isso não me preocupo, porque, às vezes, elas me servem para meia dúzia de banquetes. Os rapazes não reparam nisso.

- E as iguarias?

- Oh! Isso? Também não vale nada. Basta uns nomes arrevesados, para que os nossos Lúculos comam gato por lebre. Mas a minha maior gratidão é...

- Por quem?

- Pela Secretaria do Exterior. Um cidadão é promovido de segundo secretário a primeiro, banquete; um outro passa de amanuense a segundo secretário, banquete... Herança do Rio Branco!... Outro dia, como o Serapião passasse de servente a contínuo, logo lhe ofereceram um banquete.

- Os serventes?

- Não; todos os empregados. Que gente boa, meu caro senhor.

Deixamos o Senhor Assírio cheio de uma terna beatitude agradecida por tão bela gente que se banqueteia.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Luiz Poeta (Urutu)


A Maria-Fumaça partiu sonolentamente, arrastando-se, soltando fungados abafados até sumir na primeira curva quilômetro adentro, margeada pelo verde da Mata Atlântica.

De uma das janelas de madeira, a mãozinha pálida de Angélica era um lenço miúdo e frágil acenando a esmo. Depois, o silêncio, o ermo se instalando gradativo... no coração.

Um pio de juriti, mugido longe de vaca desgarrada, tiro de bala de caça no meio da mata, latido de cão lebreiro e o talo de bambu pingando água mineral nas pedras da lagoinha.

A bota esmagou folhas secas no primeiro passo, até que o caboclo sumiu no mato denso. 

O sol perfurava os cipós entrelaçados e alumiava de manso, acordando os insetos rasteiros de uma inércia de sombras geladas.

Ele andava sem pressa. No ombro, a espingarda, o embornal nas costas suadas, o facão e o punhal atados à coxa. Pensava em Angélica... cantando cantiga de roça, o riso fácil e brejeiro por trás daquele silêncio tão bonito... esfregando roupa no riacho, cintura apertada no vestido de chita, cabelo vazando loirinho do lenço encarnado...

Eram estalos de folhas sob suas botas.

Preás, lagartos e serpentes rasteiras mexiam no capim–navalha, mas o pé pisava fundo e rasteiro no sabugo de manga jogado a esmo pelos macacos.

Angélica na cabeça.

O rosto avermelhado nas bochechas e o narizinho de porcelana, as argolas vermelhas nas orelhas combinando com o lenço, descalça, o vento soprando livre e gelado, descobrindo as pernas delas… branquinhas...

Sonambulando o dia, ele seguia no sem-destino dos fatos, a mão arrancando as folhas de goiabeira, os olhos sobre o tiziu pretinho saltando no arame farpado.

Então, o apito longe, mexendo com o abandono.

Nunca mais Angélica tirando o esmalte, lixando a unha, ouvindo estação da cidade no radinho…

- Frita esse bagrinho, Anja ! Fresquinho ! Peguei na curva do rio, embaixo da sombra do pé-de-jaca.

Ela ia largando o bordado - sempre rindo Angélica - às vezes meio maluca correndo atrás de mim, mas boa na cozinha e sensual no amor.

Também... quem mandou provar da caninha da fazenda? Eta cachacinha sem-vergonha, sô!

Ela não gostava mesmo era do bafo do álcool, dissera várias vezes a ele, fazendo dengo. Mas ele queria amor, afagos, carinhos, quis deitar com ela sujo de rua, suado, seboso...

– Ocê nunca me bateu... era Angélica... a mão alisando a face vermelha de espanto e medo.

E Anja fugiu. Dormiu no mato; ele, no tapete de palha... vomitado.

Dia seguinte, ela voltou, picada por muriçoca, riscada de murubu, inchada de bofetada. O homem se desculpou, pediu, implorou, chorou... ela não disse nada, apenas arrumou as roupinhas delicadas em uma mala rota… profundissimamente silenciosa, os olhos mirando o nada.

Meio-dia. Inexorável, o trem gemendo no trilho - menos que no peito dele, respirando arrependimento e mudos monossílabos sem perspectiva de palavras... Angélica embora.

Aí... a urutu !

Aquele chocalho ele conhecia. Urutu das grandes, prima da cascavel, mexendo nas folhas secas da jabuticabeira.

O caboclo estacou mirando o réptil. Belo espécime… seduzindo, hipnotizando, deslizando na terra preta, sonolentamente... a língua dividida no meio, a cabeça levantada a meio metro e recuando... como um elástico prestes a arrebentar-se… apavorante...

Outro apito. Talvez outro trem. Por uns segundos, ele esqueceu-se da víbora, demarcando o território num último aviso.

Num átimo, pensava em Angélica mexendo no violão, tocando guarânia… esfregando o lençol, cozinhando galinha-d'angola com batata inglesa, sempre cantando, assobiando cantiga de roda...

Angélica nunca mais, amor nunca mais… vida... nunca mais.

E a urutu ameaçava, esperando apenas um movimento para o golpe fatal, o voo repentino inevitável, as presas de três centímetros aparecendo palidamente molhadas pelo veneno pingando gotas mortais na boca amarela, escamosa... os olhos hipnoticamente diabólicos percorrendo a anatomia da presa, aguardando um pequeno movimento...

Também, Que importava agora uma picada? Sem Angélica, nada mais interessava. Seria morte certa, gradativa, de tédio, solidão, tristeza... abandono.

Todavia, a vida respirava em volta. O vento no capim, os zumbidos dos insetos nas flores perfumando o ar, a água escorrendo do olho-d'água.

A mão foi descendo cínica, milimetricamente rumo à faca na coxa, a cobra movendo-se magnética, expectante, perigosamente muda… o chocalho parara.

Os dátilos atingiram o cabo da arma, esta foi sendo levantada quase que imperceptivelmente, como um ponteiro de horas, a urutu preparando-se para o impulso fatídico, sinuosamente bela...

A faca foi finalmente segura, agora era ser mais rápido que o relâmpago - era como matar uma mosca com um tapa, num milésimo de segundo.

E Angélica? Onde Angélica? ...olhando a ravina? Vendo a pequenina choupana no vale, deserta, calada, triste... sozinha?

Um estalo de mato perto.

A serpente mexeu-se perigosamente.

Num canto do olho, o animal, no outro, o ruído; as pupilas movimentando-se tímidas e preocupadas com o inusitado rumor.

Mas não tardou a repentina imagem saindo de dentro da lágrima; era ela, vivinha, o mesmo vestido rodado, a mala apertada contra o peito, presa por aqueles bracinhos de porcelana, os cabelos dourando a tarde, soltos no vento frio da capoeira...

Anja! Angélica!

E a cobra?

Foi uma fração.

A lâmina riscou o ar simultânea ao bote. Cabeça prum lado, corpo pro outro, o punhal cravado no tronco da jabuticabeira, urutu dividida no rio de sangue riscando o caminho, o veneno escorrendo gosmento das mandíbulas abertas.

O jagunço sentou-se num toco de galho de jatobá, a respiração afundando no peito, os olhos apunhalando - como pétala - a pálida mulher estática mas firme - mulher do mato não desmaia à toa.

Ela olhava a serpente entre admirada e apavorada, serenando aos poucos, a pele amorenando com suavidade sob a sombra das árvores.

- Por que voltou?

Ela mudou de conversa.

- Quase que ela lhe pica.

- Era picar e matar.

- Ocê num viu?

- Como ia ver? ...só via teu corpo, tua mão sumindo na curva... acenando adeus.

- Mas eu voltei.

Ele não acreditava no que ouvia.

- Voltou?

- Voltei.

- Pra ficar?

- Pra ficar,

Ele estava perplexo.

- Mas eu te bati, eu… bebi e..

- Não vai bater mais.

Pausa.

...e nem beber mais.

O jagunço levantou-se aos prantos, os olhos embotados de uma ternura indizível.

- Eu te juro, nunca mais vou beber, nunca mais vou brigar contigo, nunca mais vou te bater... nunca mais.

- Ocê jura?

- Por essa luz que me alumia. Quero ser picado por cem urutus se um dia te puser a mão outra vez.

- Então, vão bora.

- E a urutu?

- Traz o couro, vai dar um bom cinto.

Ele limpou a lâmina do punhal na folha de bananeira, após cortar o couro do réptil.

Abraçou a mulher e seguiu com ela rumando pela trilhazinha que dava até a cabana.

- Por que voltou ?

- A ponte quebrou.

Não falaram mais nada. Não carecia.

A noite desceu serenamente escurecendo a casa. Na janela do quarto de casal, apenas luzinha de lampião... bem fraca.

[Texto Premiado pela Academia Niteroiense de Letras]

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Lição (4)


Clarice Lispector
Chechelnyk/Ucrânia, 1920 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

LIÇÃO DE FILHO


Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conhecia ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão, mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a “camisola do dia” para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano? Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de  violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: – Estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: -Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção.

Entendi, aceitei, e disse-lhe: – Não vou tomar nenhum calmante. E vivi o que era para ser vivido.
________________________________________

Newton Vieira
Curvelo/MG


É do passado a lição,
mas com valor no presente:
- Só pode ter corpo são
quem tem saúde na mente.
________________________

Josafá Sobreira
Rio de Janeiro/RJ


Se há barragens no percurso,
aprende a lição do rio
que, em paz, retoma o seu curso
após saudável desvio!
______________________
Artur da Távola
Rio de Janeiro/RJ, 1936 – 2008

GATOS


Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso. Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.
Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?
Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele é dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.
"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho.
O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação.
Nada pede a quem não o quer.
Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se.
Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.

Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente,é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.
Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado, e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.
O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que ele não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.
O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.
Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas, esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.
O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!
Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo. O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, o qual ama e preserva como a um templo.
Lição de saúde sexual e sensualidade.
Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias.
Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal.
Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular.
Lição de salto.
Lição de silêncio.
Lição de descanso.
Lição de introversão.
Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra.
Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte.
Lição de bom gosto e senso de oportunidade.
Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem.
________________________________
Sebas Sundfeld
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP


Escolha o lugar que ocupa,
pensando nesta lição:
- quem cavalga na garupa,
não tem as rédeas na mão!
_______________________

Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG


Aprenda bem a lição,  
desde bem cedo, menino,
pois na vida a Educação
é base do seu destino.
____________________
Nei Garcez
Curitiba/PR


Numa sala pequenina,
se prestarmos atenção,
a própria criança ensina
como ensinar a lição.
__________________________

Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

PALCO DA VIDA


Você pode ter defeitos,
viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não se esqueça de que sua vida é a maior riqueza do mundo.
E  somente você pode evitar que ela vá a falência.
Há muitas pessoas que precisam, admiram e torcem por você.
Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestade, caminhos sem acidentes, trabalhos sem fadigas, relacionamentos sem desilusões.
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros.
Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas refletir sobre a tristeza.
Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos.
Não é apenas ter júbilo nos aplausos, mas encontrar alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um não.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós.
É ter maturidade para falar eu errei.
É ter ousadia para dizer me perdoe.
É ter sensibilidade para expressar eu preciso de você.
É ter capacidade de dizer eu te amo.
É ter humildade da receptividade.
Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades para você ser feliz . . .
E, quando você errar o caminho, recomece.
Pois assim você descobrirá que ser feliz não é ter uma vida perfeita.
Mas usar as lágrimas para irrigar a tolerância.
Usar as perdas para refinar a paciência.
Usar as falhas para lapidar o prazer.
Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.
Jamais desista de si mesmo.
Jamais desista das pessoas que você ama.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um obstáculo imperdível, ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.

Pedras no caminho?
Guarde todas,
um dia vai construir um castelo . . .

Fonte:
Textos e versos integrantes do Folhetim Literário Desiderata n. 10

Francisca Júlia (O Senhor Cura)


O senhor cura era o homem mais caritativo e generoso que havia na aldeia.

Velho já, os cabelos brancos como a neve, quando o viam atravessar as ruas, a cabeça trêmula, o passo incerto, a velha batina de pano grosseiro cheia de rasgões e remendos, os aldeões acompanhavam-no com olhar respeitoso e cumprimentavam-no, sorrindo.

As crianças corriam a tomar-lhe a bênção. Ele afagava-as, alisando-lhes os cabelos; perguntava pela saúde dos pais e dava-lhes moedas em cobre. Todos o amavam.

Quando uma rapariga se ia casar, partia o cura a visitá-la, a dar-lhe bons conselhos, como si fosse pai. Se a moça era pobre, o cura ia de casa em casa angariando esmolas e presenteava-a com o enxoval e objetos úteis.

À cabeceira do doente, era, ao mesmo tempo, médico e enfermeiro: — preparava as tisanas e aplicava-as. No leito do agonizante era confessor e amigo: — aconselhava ao arrependimento, ensinando o caminho do céu, e chorava aos primeiros anseios da agonia.

Nas horas vagas, depois de haver rezado e feito as suas obras de caridade, ensinava às crianças a doutrina cristã e dava-lhes gulodices.

À noite, quer nas chuvas do estio ou no frio do inverno, ia visitar a miséria da aldeia. A este dava o azeite para a lamparina, àquele um pedaço de pão, e a todos, em geral, bênçãos, conselhos e carinhos.

E no entanto, quanta vez a velha criada que o servia não o ia encontrar sentado à beira da estrada, morto de fadiga e quase moribundo de fome! Ralhava-lhe então com palavras afetuosas e amargas:

— Isto já não tem jeito! Viver por aí a socorrer a pobreza, a pedir esmolas para dar aos outros e não se lembrar de que é pobre também, que está com a batina em trapos, o calçado roto e que em casa não há nem um naco de pão para a nossa boca! É de mais! Vamos, saia daí, apoie-se em meu braço e vamos para casa! Até parece que Deus vira seu santíssimo rosto!

E lá iam os dois, estrada fora, de braços dados, como dois mendigos.

Era assim o pobre cura — bom até à dedicação, caridoso até ao sacrifício.

Houve um dia em que uma febre contagiosa e mortal atacou os habitantes do lugar.

Os ricos fugiram; alguns abandonaram suas casas; muitos, porém, preferindo morrer da febre a sofrer miséria em terra estranha, ou, talvez, na esperança de ser protegidos pela providência, deixaram-se ficar na aldeia, a trabalhar.

Quem passava pela rua ouvia no interior das casas gemidos de dor e gritos de desespero.

O cura, então, saiu, foi de casa em casa em socorro dos doentes, consolando os aflitos, confessando os agonizantes, sempre solícito, sempre carinhoso, sem se importar com o cansaço que lhe invadia o corpo e nem com a fome que lhe devorava as entranhas.

Houve um instante em que, não podendo mais sofrer o cansaço e a fome, se deixou cair no chão, e, tirando do bolso um pedaço de pão duro, dispôs-se a comer.

Um mendigo, que passava, pediu-lhe a bênção e disse-lhe:

— Senhor cura, estou quase morto de fome e mal posso sustentar-me nas pernas. Socorrei-me.

— Toma, pobre homem, este pedaço de pão. É o único que me resta, mas a minha fome está satisfeita. — Toma.

O mendigo comeu e partiu.

Minutos depois o velho cura tinha morrido.

Fonte:
Iba Mendes

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Isabel Furini (Expelir)



Fonte:
Facebook da poetisa.

André Kondo (A Montanha)


Subo a montanha. Não procurei saber o seu nome, como costumava fazer. Nas montanhas que escalei, sempre havia algum sentido no esforço. Não era apenas pela vista ou mero exercício, que minhas pernas não obedeceriam a coisas tão vãs. No Japão, todas as montanhas são sagradas. No alto, encontrei portais xintoístas que separavam o profano do sagrado. No alto, o sagrado. Era isso o que eu buscava?

Hoje, a última subida. Sinto-a bem, mesmo sabendo que ainda não encontrei o que procurei durante toda a vida. Mas o que fazer, se as pernas me desobedecem? A montanha que subo agora não tem nome. Não para mim. Estou velho, é o que pensam. E, para os velhos, nomes são coisas raras. Ainda mais para quem passa a sofrer da memória, como dizem os médicos. Eu discordo do diagnóstico: sofrer. De fato, essa doença da qual não me recordo o nome, na verdade, não é sofrimento. Afinal de contas, esquecer é um consolo. Na vida, todo o sofrimento vem do ato de lembrar. Lembra-se de um trauma, de palavras duras vindas de pessoas amadas ou para elas proferidas, de fracassos, de dores. E a maior dor causada pelo ato de lembrar se chama saudade. Portanto, por não me lembrar, não sinto saudades de nada. Não há dor.

Porém, apenas uma coisa insiste em permanecer dentro de mim: esse desejo de subir montanhas. Talvez tenha sido apenas isso que me restou. A memória agora é um deserto, e a única coisa a se avistar é o alto de uma montanha no horizonte de areia.

Nunca havia compreendido totalmente o sentido de meus passos. Creio que a vida seja como subir montanhas. Alguns o fazem apenas pela vista lá do alto, outros o fazem pelo gosto da conquista e ainda há outros, como eu, que tentam alcançar algo além do que a vida pode proporcionar, como se o cume de uma montanha pudesse revelar o que a planície do cotidiano, vista de tão perto, esconde. O que parece grande — e importante — do chão, no alto toma-se apenas pequenina parte de algo muito maior. A vista do topo revela o todo.

Os homens se esgotam, sempre escalando montanhas, sempre procurando o alto das coisas. Sempre...

Muitos disseram que eu não conseguiria. Eu dizia que ainda escalaria a última montanha. Ainda descobriria o sentido da vida. Muitos riram. Não riram na minha cara, mas um velho sabe quando riem dele. Agora, sou eu quem ri. Sorrio.

Subo a montanha. Subo na horizontal.

Deitado na cama, corpo preso a estes tubos e fios... Todavia, meus olhos, espelhos da alma, refletem a liberdade. Vejo a montanha. Ela é linda, ela não tem nome. Subo a montanha.

Só quando, finalmente, fecho os olhos, eu chego ao topo, pela última vez. E compreendo que o destino de um homem não se prende aos seus passos. O destino de um homem é escalar a própria alma: é ser a própria montanha.

[Vencedor do Prêmio da Academia de Letras da Região Oceânica de Niterói/RJ; destaque do 3. Prêmio Literário Legislativo de Caçapava do Sul – Casa do Poeta (RS).]

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Raílda Masson (Poemas Seletos)


AOS IMORTAIS

Não poderia confessar aos homens,
então segredo aos Imortais,
o motivo dos olhos perderem o viço.
Difícil falar de sentimentos aos comuns,
deixemos que eles vivam felizes em dúvida.
Para os Imortais das Letras é fácil explicar,
o negrume do pensamento quanto ao amado,
pois eles definharam pelo mesmo tormento.
Eis que na hora inquisitória do julgamento,
confesso aos algozes da alma,
que o "eu" poeta escreve aleatoriamente,
inspirado em histórias de desamor que ouve,
Eles acreditam na minha inocência
e seguem absortos em pensamento,
enquanto eu continuo rabiscando
o nome dele no subliminar de um escrito.
Aplausos ao "fingidor" e aos que creem
na soberania da mentira branca,
para serem os poetas isentos de pilhérias.

QUERO UM CANTO

Quero um canto.
Quem sabe em uma ilha com gaivotas,
num abrigo onde a razão fique,
impreterivelmente do lado de fora.
Quero o sossego do ventre ou do ninho,
com o burburinho do mar na encosta.
Pode ser num farol abandonado,
tendo apenas tocos de velas e livros;
nalgum ponto sem ordem de despejo
e sem a visita de navios à deriva.
Quero um canto.
Onde o pensamento não me atormente,
trazendo-me o passado como companhia.
Quisera seja na Ilha de Santa Helena,
ou até mesmo em Pasárgada!
E se porventura lá um Bandeira me espera,
que seja o ator Antônio ou o poeta Manoel.
Quero um recanto.

MEIGA E DOCE

Tu pedes para eu ser meiga e doce,
como se fosse possível longe de ti.
Aos olhos dos outros,
sou uma mulher independente,
em teus braços submissa e aprendiz.
Meiga e doce apenas sendo amada,
num dado momento emprestado.
No apogeu, digo que és meu dono
e enquanto me chamas tua escrava,
fico à disposição de suas carícias,
roubadas do fuso horário.
Longe de ti escondo as doçuras,
numa arca lacrada de fetiches,
empoeirada pelo desuso.
Constato no ínterim da ambiguidade:
Fui feminina, feminista e fêmea,
num caleidoscópio aos teus apelos,
Mediante a luz da realidade,
longe de teus afagos roubados:
Meiga e Doce que nada!

Fonte:
Poemas entregues pela poetisa

Camilo Castelo Branco (A Queda Dum Anjo)


Santa audácia! Bizarra índole de antigo cavaleiro, que abriga no peito a generosidade com que os heróis dos Lobeiras, Cervantes, Barros e Morais se lançavam às aventurosas lides, no intento de corrigir vícios e endireitar as tortuosidades da humana maldade!

Não desanimou Calisto Elói, tão desabridamente rebatido por D. Catarina Sarmento.

Averiguou quem fosse o galã daquela cega dama, e facilmente lho nomearam. Era um gentil moço, useiro e vezeiro de semelhantes baldas, enfatuado dela, e respondendo por si com sabre ou florete, quando gente intrometida em vidas alheias lhe falava à mão.

O informador do rogado explanou difusamente as qualidades do sujeito, relatando as vítimas, e os acutilados na defesa delas.

Ocorreu à memória de Calisto aquela apostólica e heroica intrepidez de Fr. Bartolomeu dos Mártires, quando foi a defrontar-se com um criminoso e valente comendador, que prometia engolir o arcebispo de Braga, e o colégio dos cardeais com o próprio papa, se necessário fosse!

Grande coisa é ter lido os bons clássicos, se desejamos saber a língua portuguesa, e criar alentos para atacar velhacos!

Aí vai o esforçado Calisto Elói de Silos em demanda de D. Bruno de Mascarenhas. Um escudeiro anuncia ao fidalgo um ratazana.

— Quem é um ratazana? — pergunta D. Bruno.

— É um sujeitório (indivíduo muito ordinário)— diz o criado — vestido ratonamente, e não diz o nome, porque V. Ex.a o não conhece.

— Que quer ele?

— Falar com V. Ex.a.

— Vai perguntar-lhe quem é, donde vem, e que quer.

Interrogou o criado com mau semblante o morgado.

Calisto escreveu numa página rasgada da carteira, e perguntou ao criado se sabia ler. Disse que não o interrogado.

— Pois entrega esse papel a S. Ex.a.

D. Bruno leu, meditou algum espaço, e perguntou:

— Sabes se em casa do desembargador Sarmento há algum criado chamado Custódio?

— Não, senhor, não havia até ontem; só se entrou hoje.

— Esse homem que aí está dá ares de criado? — Não, senhor: é assim um jarreta (quem se traja mal) vestido à antiga, com uma gravata que parece um colete.

— Manda o entrar para aqui.

D. Bruno releu a linha escrita a lápis, e disse entre si:

— Que Custódio é este!?

Nisto, assomou Calisto Elói.

Bruno de Mascarenhas adiantou-se a recebê-lo, e disse-lhe maravilhado:

— Eu já tive a honra de cumprimentar a V. Ex.a no escritório da Nação. V. Ex.a é o Sr. Calisto Elói de Barbuda.

— Sou, e agora me recordo que já tive o prazer de o encontrar...

— Mas V. Ex.a neste bilhete diz que é Custódio! — tornou Bruno.

— Custódio, que é sinônimo de anjo-da-guarda, ou anjo-custódio da Ex.ma Sr.ª D. Catarina Sarmento.

Abriu o moço a boca, e disse:

— Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... Queira V. Ex.a sentar-se... Eu não sei que alusão possa ser esta... Que... A respeito de... Calisto – sentou-se, estendeu o braço direito com a mão aberta, e atalhou o enleio de Bruno dizendo solenemente:

— Vou falar.

E, após curta pausa, relanceou discretamente os olhos à porta, como quem receia ser ouvido.

— Pode V. Ex.a falar, que eu fecho a porta — disse o confuso Mascarenhas.

— O Sr. Bruno de Mascarenhas — prosseguiu o morgado — é solteiro. Cedo ou tarde há de ser casado, porque é varão de preclaríssima linhagem, e duas forças invencíveis hão de compeli-lo a propagar-se: o sentimento congênito da espécie, e a glória, que vanglória não é, da prossecução da raça.

(Este exórdio abrupto envencilhou os espíritos de D. Bruno, os quais eram pouco entendidos em estilo garrafal.)

— Façamos de conta — prosseguiu Calisto — que V. Ex.a é hoje, como será, volvidos meses ou anos, casado com uma dama igual em sangue, de honrada fama, acatada do conceito geral, dama enfim, na qual V. Ex.a empregou suas complacências todas. À boa dita de esposo sucede-lhe a prosperidade de pai. Vê V. Ex.a em redor de si umas alegres criancinhas, que o beijam e o furtam, com graciosas meiguices, às graves cogitações nos negócios, e aos aborrecimentos que salteiam as existências mais descuidadas e desprendidas. A mãe dos filhinhos de V. Ex.a é o cofre de ouro; as crianças são as joias inestimáveis que V. Ex.a lá encontrou e lá encerra.

A mãe é a flor, os filhos são o fruto. V. Ex.a arde de amores deles e dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.

De repente, quando V. Ex.a está meditando nos júbilos da velhice, com seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula, de repente, digo, há um amigo em lágrimas, ou um inimigo secretamente satisfeito, que lhe diz: "Tua mulher desonra-te; essas crianças, que tu afagas, e para quem estás multiplicando os teus haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."

Pergunto eu ao Exmo. Bruno de Mascarenhas, a sua agonia, nessa hora de atroz revelação, como hão de expressá-la os que a não sentiram ainda?

— Não sei... — respondeu Bruno. — Só no caso de se darem as circunstâncias que V. Ex.a diz, é que se pode responder.

— Todavia, o seu entendimento e coração, já antes da experiência, podem antever qual deva ser a agonia do marido desonrado pela ignomínia de sua mulher...

— Sim...

— Até aqui a hipótese em V. Ex.a; agora o exemplo em Duarte de Malafaia, marido de D. Catarina Sarmento. Duarte era rico, e dos mais fidalgos; por excesso de amor casou com D. Catarina, filha de um nobilíssimo cavalheiro, porém magistrado empobrecido pelos desconcertos da política. Duarte entrou naquela casa, restaurou a decência antiga, e encostou ao seio as cãs do magistrado octogenário, assegurando-lhe o sossego e contentamentos dos anos últimos da vida.

Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a povoar o paraíso daquela ditosa família. Brincam à volta de sua mãe, e como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está gozando, e lhe augura a eles.

É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e ditosa. Surge das tenebrosas agonias um homem que despedaça às mãos os laços humanos e divinos da santa união do velho, da filha, do genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr. D. Bruno de Mascarenhas.

— Eu! ... — exclamou o moço com artificial espanto.

— V. Ex.a. Vejo-o admirado, não sei se da minha afoiteza, se da responsabilidade que lhe pesa, Sr. D. Bruno!

— Mas o que houve em casa do Sarmento? — perguntou alvoroçado o fidalgo. — O que eu antes de ontem vi foi a face do ancião lavada de lágrimas. O que eu vi ontem à noite foi Duarte de Malafaia fitar os olhos nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje verei em casa do desembargador Sarmento, se V. Ex.a o não pressagia... Não temos tempo para conjecturas; a chaga deve ser cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me a conjurar a nuvem negra que vai rasgar-se em torrentes de desgraças?

D. Bruno refletiu dois segundos, como se houvesse pejo de responder, no primeiro instante:

— Da melhor vontade. Eu desisto destas relações, para evitar desgostos sérios à Sr.ª D. Catarina.

— Fala-me um honrado português, que tem o apelido dos Mascarenhas? — perguntou com solenidade o Barbuda.

— Juro pela honra de meus avós.

— Que vai fazer V. Ex.a? — tornou Calisto.

— Antecipo um passeio que mais tarde tencionava fazer à Europa. Parto no paquete de amanhã para França.

— Sem dizer nem fazer saber à Sr.ª D. Catarina que esteve aqui um amigo do desembargador Sarmento.

— Nada direi, Sr. Barbuda.

— Aperto-lhe e beijo esta mão. Agradeço-lhe em nome dos cinco filhos de Duarte Malafaia, ou dos cinco anjos que lhe chamam pai.

E saiu com os olhos marejados.

Fonte:
Universidade da Amazônia

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Leandro Bertoldo (Por que eu ainda acredito em livros?)


O motivo pelo qual eu ainda acredito em livros – mesmo com a última pesquisa do Instituo Pró-Livro, da 4a. edição dos “Retratos da Leitura no Brasil”, em 2016, apontar que 44% da população não é leitora e 30% nunca ter comprado um livro na vida – pode ser um tanto romântico, mas é verdadeiro: Eu ainda acredito em livros porque eu ainda acredito nas pessoas, e livros transformam pessoas.

A esse pensamento se juntou um outro, que se transformou no meu modelo de trabalho: a produção sob demanda. Você certamente já ouviu falar dela, mas realmente sabe o que ela significa?

Bem, a definição é simples. É aquela produção onde o produto é feito especialmente para o consumidor. Mas a ideia vai muito além disso. O que torna esse tipo de produção interessante é o fato que ela influencia diretamente o meio ambiente através do nosso comportamento, pois ela reduz significativamente a geração de lixo e melhora a qualidade de vida desta e das futuras gerações.

Sim, através da produção sob demanda diminuímos livros em estoque, e livros estocados são árvores mortas, trabalho perdido, esforços e tempo jogados fora, materiais desperdiçados, sonhos congelados.

Há outras consequências que poderíamos apontar, mas uma delas é fundamental: em um livro – seja um romance, um conto ou poesia – pode estar a solução tão procurada por alguma coisa, seja uma mudança de vida, a coragem que faltava para isso, o princípio de uma ideia, ou quem sabe a ideia completa para algo que você nunca havia pensado... Pois é, é como eu disse: livros transformam pessoas.

É por acreditar nessa ideia que me tornei escritor. E é por acreditar ainda mais nela que criei a minha própria produção sob demanda. Você pode conhecê-la aqui neste blog, em especial acessando https://arvoredasletras.com.br/vivenciando-a-linguagem-leitura-e-escrita/, e ver como os livros são feitos na máquina “Paula Brito” e todo o conceito construído, as etapas de desenvolvimento e tudo o que sustenta esse trabalho.

Tenho 4 livros publicados: Janelas da Alma: uma tempestade íntima, um conflito, um retorno, Entrelinhas Contos mínimos, Relicário Pessoal – haicais e o infantil O Menino que Aprendeu a Imaginar. Todos eles são feitos utilizando a produção sob demanda, ou seja, os livros são feitos para você na quantidade que desejar e enviados para a sua casa com toda segurança e conforto. Mas isso, por si só, seria comum. O que faz com que meus livros sejam diferentes é a matéria-prima utilizada. Todos eles são feitos com capa em papel ecológico inteiramente personalizada com fibras de material orgânico e tinta natural, numa verdadeira artesania literária, sendo o miolo do livro de papel reciclável, demonstrando um valor importante na preservação do meio ambiente, através do uso consciente de recursos renováveis.

É isso que faz da Árvore das Letras, além de uma escola, uma editora realmente independente e do selo Alforria Literária uma nova forma de fazer literatura. Conheça os livros, veja-os de perto, sinta-os e entenderão, através de sua leitura e de todo o trabalho envolvido, a materialização do pensamento de George Bernard Shaw: “Alguns homens observam o mundo e se perguntam “por quê?”. Outros homens observam o mundo e se perguntam “por que não?”.

Fonte:
Resumo Semanal da Árvore das Letras, enviado pelo criador do site, em 23 de setembro de 2019.

Júlio Ribeiro (A Carne – análise)


A obra A carne, de Júlio Ribeiro, é um romance naturalista publicado em 1888 que aborda temas até então ignorados pela literatura da época, como divórcio, amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade. O lançamento de A Carne, em 1888, fez grande sucesso e causou escândalo entre as famílias paulistanas tradicionais. As jovens eram proibidas de ler a obra e muitos pediam segredo ao comprar.

O romance por muito tempo lhe figurou de obsceno, mas o livro é mais do que um mero escândalo sexual. Foi um dos livros mais discutidos e populares do país, e ainda hoje são vendidas edições antigas (porém mutiladas) da obra. A maior qualidade do romancista não está precisamente em sua ficção, mas em sua disposição para chocar uma sociedade moralmente hipócrita que veio por décadas lhe aprisionar à margem da grande Literatura.

A divergência de opiniões a respeito do romance tem fundamento. A temática naturalista de Júlio Ribeiro explicita manifestações de desejo sexual, sadismo, ninfomania, perversões, nudez e sexo. O olhar sobre o livro, enfim, sempre se dividiu entre a apreciação estética e o julgamento moral. Foram vários os vetos feitos ao livro, entre os quais o mais categórico partiu de Álvaro Lins que, em 1941, classificou a obra como "mediocridade intelectual". Manuel Bandeira lhe rendeu uma análise biográfica cercada de integridade moral, mas foi um dos poucos a lhe render glórias por sua posição didática e combativa.

Com uma personagem diferente, ativa com intensos desejos sexuais, Júlio Ribeiro foi alvo de infinitas ofensas e injúrias. Por causa de uma mulher "perigosa", quiçá, as outras denúncias de Júlio Ribeiro ficassem despercebidas ou os críticos não as queriam ver. A personagem principal Helena Matoso, mais conhecida pela alcunha de Lenita, sente fortes concupiscências. Para muitos críticos, esse intenso desejo, provocado pela carne, será considerado um “histerismo”, qualidade que advém de Magdá, a histérica personagem do romance de Aluísio Azevedo: O homem (1887). Muitos estudos tecem essa semelhança devido à irritabilidade ou ao nervosismo excessivo causado pela força da carne – do desejo sexual – em ambas. Para Magdá, seria certa a tese da histeria. Para Lenita, não.

A personagem Lenita chocou a sociedade do final do século XIX, causando-lhe incômodo, que ainda via a mulher como ser passivo, devendo ser sempre inferior aos homens. A Carne recebeu vários predicativos à época, a maioria depreciativos, por causa de cenas lúbricas. Ademais, o espanto se deu não só por causa do erotismo da trama, mas também por causa de uma mulher independente, rica e inteligente – mesmo que esta estivesse atrás da máscara do sexo apresentado no romance, sendo difícil sua aceitação para o mundo de então; essa mulher de vanguarda foi vista pela miopia enferma da sociedade cujas dimensões ultrapassavam o natural, e esta, querendo perenizar conceitos e tabus ultrapassados, deixou que os momentos eróticos e exóticos fossem o único ponto máximo do romance, encobrindo a importância da heroína ao contexto social brasileiro e mundial.

A cegueira da sociedade foi contaminada pelo tom “obsceno” do livro, e o mais importante foi esquecido: o surgimento de uma mulher independente, em todos os sentidos, mesmo que seja em romances. O livro era dissidente e, por isso, obteve alguns poucos panegíricos e muitas depreciações. Não houve parcimônia a Júlio Ribeiro. Ele foi um escritor que causou uma espécie de cissiparidade nos leitores: ao mesmo tempo em que desdenhavam o romance, liam-no em solipsismo. Todavia, mais tardar, as críticas de tom exageradamente leviano tão-somente ajudariam a promover a obra, pois, através dos julgamentos ferinos, A Carne foi ganhando mais e mais popularidade. Se não pelo seu “valor literário”, como julgavam e ainda julgam, pelo menos, pela polêmica que causou a obra, introduzindo aos leitores, mesmo sendo com suaves matizes, ideais progressistas que tanto defendia Júlio Ribeiro: modernização do Brasil, abolição da escravatura, a República, entre outros. Assim, até mesmo aqueles que repudiavam a obra, liam-na às escondidas, intencionando descobrir o proibido, querendo ter acesso ao que, socialmente, não era permitido.

Enredo

O livro conta a história da garota Lenita, cuja mãe morrera em seu nascimento e o pai educara-a ministrando-lhe instrução acima do comum. Lenita era uma garota especial, inteligente e cheia de vida. No entanto, aos 22 anos, após a morte de seu pai, tornou-se uma jovem extremamente sensível e teve sua saúde abalada. Com o intuito de sentir-se melhor, Lenita decide ir viver no interior de São Paulo, na fazenda do coronel Barbosa, velho que havia criado seu pai. Lá, conhece Manuel Barbosa, o filho do coronel. Manuel era um homem já maduro e exímio conhecedor das coisas da vida, vivia trancado no quarto com seus livros e periodicamente partia para longas caçadas; vivera por dez anos na Europa, onde se casara com uma francesa de quem separara-se há muito tempo. Lenita firmara uma sólida amizade com Manuel, que, aos poucos, vai se revelando uma tórrida paixão, no início, repelida por ambos, mas depois consolidada com fervor em nome do forte desejo da "carne".

O livro narra a ardente trajetória desse romance singular, marcado por encontros e desencontros, prazer e violência, desejo e sadismo, batalha entre mente e carne. A história caminha para um trágico desfecho a partir do momento em que Lenita, encontrando cartas de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se traída e resolve abandoná-lo; estando grávida de três meses, casa-se com outro homem. Manuel, não suportando tamanha traição, suicida-se, o que comprova o resultado final da batalha "mente versus carne". No início, triunfam os prazeres da carne, no trágico final, os desenganos da mente.

Comentários

Ronald de Carvalho lembra que o romance A Carne, não esteve à altura do seu talento. Ele contrabalança seus aspectos positivos e negativos:
"A Carne é um livro de exaltação, um hino dionisíaco ao prazer, ao gosto relativista, ao aproveitamento do momento que passa. Apesar do processo zolista, evidente que no arranjo das cenas, no exagero das paixões, na brutalidade das criaturas, e, até, num certo propósito de confundir o leitor ingênuo; apesar da grosseria da palavra e do gesto, notadamente violentos e estranhos, ásperos e pesados, há na Carne uma poesia instintiva, um penetrante perfume de selva exuberante e selvagem. É uma obra comprometida pelo tom geral e escandaloso e atrevido, mas onde, não se pode negar, sobressaem muitas qualidades apreciáveis e um forte lirismo."

Agripino Grieco retorna à linha do escândalo em sua análise sobre a evolução da ficção brasileira e a posição da obra de Júlio Ribeiro dentro da mesma:

"Com as patifarias de Lenita, esse professor da Paulicéia serviu pastilhas afrodisíacas aos estudantes ginasianos, embora depois lhes esfriasse o ânimo com as austeras lições de complicadíssima gramática. Pedagogo atacado de delírio erótico, Júlio Ribeiro pôs o seu casal frascário a vagar por entre as mais lindas paisagens, à maneira de um magarefe idílico, de um charcuteiro que amasse as árvores e as flores. Mas, examinando-se bem, haveria na publicação desse romance uma espécie de provocação aos puritanos da província que irritavam o evocador do padre Belchior de Pontes."

Na mesma linha concisa trabalha Antonio Soares Amora, que contrapões o tom polêmico do livro e seus deslizes estéticos:

"Desde o momento do seu aparecimento teve, A Carne, como não podia deixar de ser, o condão de despertar violentas críticas: é que o romance, intencionalmente naturalista, dedicado a Emilio Zola, vinha de consagrado mestre da língua; no entanto chocava, como ainda hoje choca, pela concepção materialista da vida, onde são falsos os caracteres, sobretudo Lenita, a protagonista, e má a tecedura gramatical. Boa no romance apenas a expressão literária, que é de um admirável escritor. Apesar de tudo o que evidentemente tem de mau o romance, enquanto romance, continua a despertar interesse de certo público, pelo que oferece, já no título, dos "segredos materialistas" da patologia sexual."

Bem mais cortante é a avaliação de Lúcia Miguel Pereira. Ela não ameniza os defeitos do livro e encontra nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a causa maior para o desarranjo estrutural da trama elaborada por Júlio Ribeiro:

"O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de valor, autor de um romance histórico do mais desmarcado romantismo, com cenas à Eurico, deixou-se empolgar pelos famosos ‘estudos de temperamento’. E malgrado seu poder descritivo, só conseguiu compor um livro ridículo.

(...)
Lenita é tão inexistente, com seu corpo demasiadamente exigente, como as incorpóreas heroínas românticas. Como a maior parte das personagens do nosso naturalismo, foi uma romântica às avessas, isto é, construída, não segundo a observação, mas de acordo com fórmulas preestabelecidas, que prescreviam a substituição dos sentimentos pelos instintos."

A personagem mais famosa de Júlio Ribeiro também recebeu as agudas considerações de Silvio Romero. Ao comentar os livros naturalistas lançados em 1888, o eminente crítico chama a atenção para o papel da leitura na formação da personalidade difusa da amante de Barbosa:

"Lenita é uma preciosa de truz, uma pedantesca moça, a quem a leitura e o estudo desorientado não puderam sofrear os ímpetos da carne e que se prostituiu sofregamente com o primeiro que lhe apareceu e que lhe dava lições."

Fonte:

III Jogos Florais de Itaocara/RJ - 2019 (Classificação Final)



VENCEDORES:

NACIONAL

CATEGORIA NOVO TROVADOR 

TEMA: PRAÇA

Rubia Carla Sterza Versoza 
Londrina/PR

Alberto Valença Leal de Lima 
Recife/PE

José Arthur Basaglia 
São Paulo/SP

Sílvio Romero Ribeiro Tavares 
Campinas/SP

Cícero Matos de Castro Novo Trovador 
São Gonçalo/RJ

César Augusto Ribas Sovinski 
Curitiba/PR
____________________________________________

MUNICIPAL (Itaocara/RJ)

TEMA: PRAÇA

Jaime Gomes de Lima 

Luiz Carlos da Silva Câmara 

Maria Clara Vieira Câmara 

Josué Lima de Araújo 
____________________________________

NACIONAL

TROVA HUMORÍSTICA 

TEMA: DEMOCRACIA

VENCEDORES 

Carlos Alberto de Assis Cavalcanti 
Arcoverde/PE

Roberto Tchepelentyky 
São Paulo/SP

Hélio Castro 
São Paulo/SP

Ana Cristina
São Paulo/SP

José Almir Loures 
Astolfo Dutra/MG

Edy Soares 
Vila Velha/ES

Wanda de Paula Mourthé 
Belo Horizonte/MG

Jessé Fernandes do Nascimento 
Angra dos Reis/RJ

Roberto Nini 
Mogi Guaçu/SP

Sandro Pereira Rebel 
Niterói/RJ

NACIONAL

VETERANOS

TROVA LIRICA/FILOSÓFICA 

TEMA: LIBERDADE

VENCEDORES: 

Maria Helena Ururahy Campos Fonseca 
Angra dos Reis/RJ

Margarida Tanini 
Juiz de Fora/MG

Maria Alice Araújo Veloso 
São Gonçalo/RJ

Relva do Egypto Rezende Silveira 
Belo Horizonte/MG

Antônio Augusto de Assis 
Maringá/PR

Abílio Kac 
Rio de Janeiro/RJ

Maria Madalena Ferreira 
Magé/RJ

Magnus Kelly 
Natal/RN

José Antônio de Freitas 
Pitangui/MG

Aparecida Gianello dos Santos 
Martinópolis/SP

MENÇÕES HONROSAS:

Roderique Pedro Albuquerque 
Itaboraí/RJ

Edmar Japiassú Maia
Rio de Janeiro/RJ

Maria das Graças dos S. Vaz
Niterói/RJ

Jorge Roberto Vieira de Carvalho
Niterói/RJ

Fonte:
A. A. de Assis