quinta-feira, 10 de julho de 2025

Asas da Poesia * 47 *

 

Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

ASPIRAÇÃO
"Ah, beija-me com os beijos
da tua boca." (Ct. 1.2)

Estes lindos olhos teus,
Azuis como o azul do mar,
Poderiam ser só meus...
- Como é bom poder te amar!

Nesta face de menina
Estou sempre a contemplar-te;
Como à sedosa bonina
Bem quisera acariciar-te!

Estes seios convulsivos,
Cheios de amor sem par,
Estão sempre efusivos...
- Quem me dera te abraçar!

Estes lábios - rubra cor,
Continuamente a exalar
Anseios de um grande amor...
- Que delícia te beijar!
= = = = = = = = =  

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Sonho um mundo onde o respeito 
recupere o seu valor,
e onde o amor pelo direito 
gere o direito do amor.
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Poema de
PAULO LEMINSKI 
Curitiba, 1944 – 1989

Bem no fundo 

No fundo, no fundo, 
bem lá no fundo, 
a gente gostaria
de ver nossos problemas 
resolvidos por decreto

a partir desta data, 
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula 
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso, 
maldito seja que olhas pra trás, 
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem, 
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear 
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
= = = = = = = = =  

Trova de
AMÁLIA MAX 
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

Quando nos chegam tardias, 
esperanças sempre são 
aquelas parcas fatias 
de miolo velho... sem pão!
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Poema de
JOSÉ USAN TORRES BRANDÃO
Senhor do Bonfim/BA, 1929 – 2022

O médico

Entre quatro paredes, seu mundo restrito 
De grandes emoções, suas horas, dia-a-dia 
Aliviar a dor, salvar vidas, está escrito 
Sua missão, um sacerdócio sem hipocrisia.

Marcas do tempo, cedo batem à sua porta 
Esclerose, enfarte, cansaço, depressão
Seu lar, que não é seu ninho, teme sua sorte 
Médico, imagem tão mudada neste mundo cão.

Já não se fala dele como ser superior 
Hoje, nome desgastado, luta pra viver
Como qualquer ser, anônimo, sem valor 
Num mundo de mercado em que mais vale ter.

Médico, operário de Deus, salvando vidas 
Também chora, também ama e também sonha 
Na sua labuta com alma e corpo, suas feridas 
Leva uma existência bem tristonha.

Não é sem luta que ele ganha fama 
Nem é na flor que ele vê espinho 
Num pedestal também joga-se lama 
Médico, não ligues, segue o teu caminho.
= = = = = = = = =  

Trova de
ISTELA MARINA GOTELIPE LIMA 
Bandeirantes/PR 

Velhos sonhos, na lembrança, 
vou mantendo em meu viver 
e nunca perco a esperança 
de que vão acontecer!
= = = = = = = = =  

Poema de
CÍCERO GALENO URROZ LOPES 
Uruguaiana/RS, 1945 – 2017

A gaiola

Que coragem tens ou cruel brutalidade, 
que incauto inocente, pelo alimento, 
condenas à prisão pela vida inteira 
e dele usufruis financeiros resultados?

Ainda ontem pelo verde e pelo azul voava, 
o encanto da vida e o aconchego dos seus 
podia usufruir em plena natureza...
hoje o tens mísero, pequeno e dominado. 

A gaiola o prende em reclusão perpétua,
e há de cantar e olhar a luz e o verde, 
fechado entre grades, ruídos e estranhos;

o silêncio e a cor da mata e dos seus o canto 
serão torturas amargas daqui em frente 
a quem duas asas tinham poder de céu
= = = = = = = = =  

Trova de
JANETE DE AZEVEDO GUERRA 
Bandeirantes/PR

Amor, carinho, esperança... 
marcaram as nossas vidas. 
Hoje, somente lembrança 
nas fotos envelhecidas!
= = = = = = = = =  

Poema de
RODRIGO GARCIA LOPES
Londrina/PR

Na passagem dos céus que fogem de nós

Na imagem das coisas que retornam sem nós, 
Na miragem dessa solidão, você aqui:

Na repetição das antigas sensações 
Na fala a provocar o pensamento 
Parecendo um passado que se dobra 
Sobre esta polpa de presente:

Se a linguagem é nossa realidade 
E coisas forem apenas palavras
Então nos restará apenas a veracidade 
- Esse vácuo que nos acua ao avançar.
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI 
Bandeirantes/PR

Nas horas tristes, sombrias, 
a esperança é a companheira 
que afugenta as nostalgias
e nos ergue... a vida inteira!
= = = = = = = = =  

Poema de
LOU DE OLIVIER
São Paulo/SP

O tempo e os funerais 

O tempo que tudo apaga 
E a todos arrasta
Que a beleza estraga 
E torna impura a jovem casta...

Esse tempo comanda o vento 
E tudo o que há na natureza
Seca a vida a cada momento 
Deixa a morte como única certeza...

Cada segundo que se vai
Não volta mais em tempo algum 
É sempre o vento que atrai 
E repele sem remorso nenhum...

Família, amor, trabalho
Tudo o que se vive aqui 
O tempo condensa no orvalho 
Resta uma essência a reluzir...

Lágrimas, dores, perdas: 
É sempre igual
Mudam só cenário e personagens 
E assiste o soberano temporal 
A mais uma das últimas viagens...

Da vida então resta nada 
Os mortos viram antepassados 
Só resta uma data comemorada
O tempo anuncia: É dia de finados...
= = = = = = = = =  

Trova de
MARIA FARIAS INOCÊNCIO 
União da Vitória/PR

Mais que ouro, fama, respeito... 
Mais que honraria, abastança, 
é trazer dentro do peito 
simplesmente uma esperança!
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Poema de
TOBIAS BARRETO
Vila de Campos do Rio Real/SE, 1839 — 1889, Recife/PE

Amar

Amar é fazer o ninho, 
Que duas almas contém, 
Ter medo de estar sozinho, 
Dizer com lágrimas: vem, 
Flor, querida, noiva, esposa... 
Cabemos na mesma lousa... 
Julieta, eu seu Romeu: 
Correr, gritar: onde vamos?
Que luz! que cheiro! onde estamos? 
E ouvir uma voz: no céu!

Vagar em campos floridos 
Que a terra mesma não tem; 
Chegamos loucos, perdidos 
Onde não chega ninguém...
E, ao pé de correntes calmas, 
Que espelham virentes palmas, 
Dizer-te: senta-te aqui;
E além, na margem sombria, 
Ver uma corça bravia, 
Pasmada olhando pra ti!
= = = = = = = = =  

Trova de
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA 
Ponta Grossa/PR

O amor, atrás das vidraças, 
num peito que não se cansa, 
faz descerrar, quando passas, 
as cortinas da esperança...
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Poema de
CELITO MEDEIROS
Curitiba/PR

A arte e a poesia

Sou sonho de artista realizando 
Da poesia os versos e o encanto 
Como a água da pedra brotando 
A terra cobrirá com seu manto.

Na vida real eu tenho procurado 
Dos traços do pincel um caminho 
As estrofes da poesia d'um lado 
Nas telas encontrar o meu ninho.

Minhas mãos calejadas o brilho 
No movimento criado uma razão 
As cores fortes são meu gatilho 
Disparando toda a minha emoção.

Num tempo distante deste tempo 
Quando maior valor poder existir 
Eu estarei viajando como o vento 
Da minha assinatura poderei rir.

Da dedicação nas artes e poesia 
Toda inspiração gravada ali fica 
Marcar o que na tela não podia 
Na literatura foi uma boa dica.

No silêncio solitário do trabalho 
Das noites de espera da amada 
Querendo sempre mais eu falho 
Como aquele que não fez nada.

Se é interessante minha obra 
Muito de meu tempo dediquei 
Serpenteando traços tal cobra 
Usando a tecnologia eu inovei.

Do que fiz estou bem satisfeito 
Tudo com grande amor e carinho 
Este é o resultado do meu jeito 
Desejando não apreciar sozinho!
= = = = = = = = =  

Trova de
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes/PR

De ilusões eu fui vivendo...
e a esperança, disfarçada, 
via os meus sonhos morrendo, 
mas nunca me disse nada!
= = = = = = = = =  

Poema de 
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Melancolia de Poeta
(Dedicado à amiga e irmã de sonhos, Mara Melinni)

Há na alma do poeta um peso antigo,  
um fardo que o mundo não quer carregar,  
pois ele vê nos olhos de cada amigo  
de quatro patas, o que é amar.  

Ama os cães que correm livres na aurora,  
os gatos que vigiam a noite em vão,  
pássaros que cantam enquanto o tempo chora,  
e até os que habitam a solidão.  

Mas amar é dor, pois o mundo é rude,  
ouve os gritos que o silêncio traz.  
E o poeta em sua melancólica virtude,  
procura se a bondade no homem ainda jaz.  

Oh, doce animal, que não julga nem mente,  
que só pede o pão, um afago, um olhar,  
és a força que o poeta carrega em sua mente,  
quando o resto do mundo insiste em falhar.  

Há na alma do poeta uma ferida aberta,  
um abismo moldado pela compaixão.  
Ele vê a beleza onde a terra é deserta,  
e sente o pulsar do mais frágil coração.  

Cada ave que voa, cada peixe que nada,  
cada olhar de um lobo perdido na serra,  
é um chamado à alma que nunca se apaga,  
é o eco do amor que permeia a terra.  

Mas a melancolia, sombra que o persegue,  
é a certeza cruel que o tempo é voraz,  
que a vida dos que ama é um fio que entregue  
à eternidade que nunca volta atrás.  

E ainda assim, o poeta segue adiante,  
carregando no peito um jardim de esperança,  
pois sabe que a alma, mesmo vacilante,  
se enraiza no amor, que nunca se cansa.  

Ele busca na dor uma força escondida,  
uma chama acesa na escuridão,  
pois quem ama os animais, ama a própria vida,  
e encontra na simplicidade sua redenção.  

Oh, melancolia que molda o poeta,  
que o faz ver o mundo como ninguém,  
tu és a dor que nunca se completa,  
mas também és a alma que o mantém.  

Pois há nos olhos do cão que o espera,  
no cantar do pássaro ao amanhecer,  
uma mensagem que transcende a esfera  
daquilo que o homem pode entender.  

E assim, o poeta, com seu olhar profundo,  
segue amando os seres que o mundo rejeita,  
pois amar os animais é amar o mundo,  
é tocar a pureza que nele se deita.  

Que a melancolia seja então sua guia,  
não como um fardo, mas como razão,  
pois amar é a força que o dia irradia,  
e crava no peito a sua missão.
= = = = = = = = =  

Trova de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ 
Curitiba/PR

No meu livro da Lembrança, 
ainda sem conclusão, 
saudade é aquela esperança 
que compôs a introdução...
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Soneto de
EUCLIDES BANDEIRA 
Curitiba/PR, 1876 – 1947

Ausência

Recresce, arpoante e funda, a saudade cruel. 
Corri ela foi meu sol, partiu minha risada!
Cada dia que passa é uma gota de fel 
que se me infiltra na alma e a põe envenenada.

Mais larga a ausência, mais a lembrança dourada 
resplandece, espertando emoções em tropel: 
o riso, o gesto, a voz; boca a boca soldada, 
os seus beijos febris que eram de fogo e mel…

Claro perfil de luz, louro encanto irradiando 
o revérbero astral de flavescente véu 
que dourava o meu sonho e o verso decadente.

Onde estás? interrogo. E a mágoa cresce quando 
sinto tudo em silêncio em torno. .. O próprio céu 
misterioso e azul, como os olhos da Ausente…
= = = = = = = = =  

Trova de
VÂNIA ENNES 
Curitiba/PR

Saudade vive e contesta, 
me acorda de madrugada, 
faz lembrar-me o fim da festa... 
o beijo... e a noite estrelada! 
= = = = = = = = =  

Poema de
JANSKE NIEMANN SCHLENKER
Curitiba/PR

Um pequeno túmulo

Lá na campina, queria ser flor
para que tua mão me colhesse,
ou ser o capim,
para que pudesses descansar em mim,
ou ser o caminho
por onde voltasses a ser meu,
ou ser um pequeno túmulo
- sem nome e sem data -
á beira da tua estrada
... e só tu saberias onde estou...
= = = = = = = = =  

Trova de
WANDA ROSSI DE CARVALHO 
Bandeirantes/PR, 1920 – 2014

Depois de uma aurora linda, 
sigo o momento que avança 
e, quando a tarde se finda, 
renovo minha esperança!
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Renato Benvindo Frata (Outonal)


Camisa suada, relógio para mais de dez, palmas de mãos doloridas, eu rastelava folhas do quintal e, estando sob o imenso abacateiro a juntá-las em meio ao monte farfalhento, inadvertidamente olhei para o céu de nuvens. Eram muitas, esgarçadas, que quaravam ao sol de sábado de fim de outono.

Algo me chamou à atenção: parecia que alguém com mãos invisíveis lá em cima imitava meus gestos e as recolhia, fazendo delas também um grande monte, como as do chão. Eram tufos viandantes de algodão a compor um bloco. Bem acima de mim, a me chamar a atenção.

Ao refletir sobre o que admirava, imaginei que ventos vindos de direções diversas convergiam juntos para aquele ponto no céu e as empurravam, juntando-as. Seria coincidência essa comparação louca?

Minhas mãos doloridas e já maculadas por pequenas bolhas, pediam repouso e então, ficando de cócoras e encostado ao pé da árvore, saboreei por instantes o trabalho dos rasteleiros do céu, compenetrados naquele serviço, para notar o trabalho cuidadoso que os ventos fazem quando rasteiam nuvens sem as ferir, tão leve é a alteração de suas formas. Mas fiz mais: meu espírito parecia ter se desprendido em voo para atravessar quimeras até alcançar subindo rápido à imensidão, e ali ele se perdeu de mim. Eram ventos que vindos do norte, do nordeste, do sudeste, do sul, sudoeste, do oeste e noroeste compunham uma espetacular rosa dos ventos em que todos, de uma só vez, unidos em uníssonos assobiares, burilavam ao seu jeito as sedosas nuvens aproximando-as, acumulando-as como se juntassem ovelhas num pasto azul em um cercado celestial.

Não sei se naquele momento entrei em um breve ressonar, e mesmo tendo inconscientemente fechado os olhos, devo ter sonhado: a maravilha que vi só pode existir em sonhos. O fato é que o espírito viajante ao presenciar de perto o espetacular ajuntamento, notou que as nuvens, ao se reunirem, ganhavam formas diversas, transformavam-se em baleia, elefante, árvore, uma grande boca sorrindo, uma torre de cata-ventos e outras várias a me deixarem maravilhado, de onde concluí que os ventos quando se abraçam, assemelham-se a um encontro de uma grande família com crianças em algazarra que, ao brincarem, compõem com massinhas mil travessuras de formas abstratas, e ficam nessa festa até que uma nuvem adulta e sisuda a quem reputo a tia solteirona e brava que passa o dia a limpar assoalho, chegue para as repreender.

E desfaça a tão gostosa brincadeira.

Pois foi assim que se deu.

Inesperadamente, essas nuvens mansas sofreram ação de outros ventos, dessa vez mais fortes, bravos, nervosos. Eram os convectivos ascendentes que ao chegarem, desfizeram rapidamente aquelas figuras, ganharam massa enegrecida e volume descomunal. Incorporaram-se e se transformaram logo em carrancudas cumulus congestus, para se compactarem e se escurecerem mais em cúmulus-nimbus, com direito a barrados escuros e carrancas no céu.

Os simpáticos assobiares de segundos antes transformaram-se em pigarreares violentos que se alvoroçaram fazendo tremer o ar cuspido junto a trovões e raios que me tiraram da sonolenta abstração, instante em que uma lufada vigorosa invadiu o meu recanto e bateu com tanta força sobre o monte de folhas que juntara que as distribuiu a esmo por todo o quintal.

Claro que não gostei de ver meu sonho de velho cansado interrompido, e de ter perdido todo o trabalho feito à mercê de incômodos corporais, o suor se excedendo em bica e as mãos cravejadas de bolhas. Porém, considerando que sempre haverá quem se preste a estragar prazeres, tenho a certeza de que não faltarão momentos para que a paz de espírito num dia qualquer de outono, e sob um abacateiro do quintal, leve-nos ao enternecimento, oferecendo-nos a visão, o sentimento e a comunhão sobre quão sábia e bela é a natureza para meditarmos, motivo justo para que aprendamos a nunca a maltratá-la.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Aventuras de Pedro Malasartes – 1 (De como Malasartes entrou no céu)


Pedro Malasartes, um personagem folclórico que ganhou em cada recanto do Brasil, uma versão de sua estória. Originária da Europa, onde em cada país encontrase os seus pedros, como por exemplo, o Pedro Urdemales da Espanha, o Till Eulenspiegel da Alemanha, ou seja, em todas as culturas camponesas, onde há grandes diferenças sociais entre as classes, podemos encontrar contos populares onde o pobre é o esperto e o rico é o tolo. 

Aqui no Brasil encontrou condições favoráveis para permanecer e se espalhar por todas as nossas regiões. Assumindo particularidades brasileiras, se tornou um dos personagens mais populares de nossa cultura.

Personagem cosmopolita, cujo arquétipo, de espertinho com cara de bobo, é encontrado em diversas partes do mundo. Um burlão invencível nas histórias como ao tempo, que gerou tantos outros personagens como o João Grilo, o Amigo-da-Onça ou ainda o Zé Carioca. E é um contador de histórias que traz aos leitores o Malasartes: histórias de um camarada chamado Pedro, do polivalente Augusto Pessoa, que pesquisou nos mestres Câmara Cascudo, Basílio de Magalhães e Sílvio Romero, entre outros, e coletou algumas histórias para reuni-las nesse bom lançamento da Rocco Jovens Leitores.

Diversos autores já colocaram palavras para o camarada Pedro em seus livros, como o seu xará Pedro Bandeira, em seu Malasaventuras - safadezas do Malasarte (Moderna,1985), ou Sérgio Vianna, com Pedro Malasartes: Aventuras de um herói sem juízo (Resson, 1999) ou ainda Ana Maria Machado, com Histórias à Brasileira: Pedro Malasartes e outras, em dois volumes (Cia das Letrinhas, 2002 e 2004). E a todo o momento e em toda época exerce um poder de atração a diversas gerações de autores e leitores.

Malasartes é um matuto, um caipira de origem desprivilegiada, que conta com sua esperteza para alcançar seus objetivos. Um arquétipo do malandro brasileiro, que desafia as regras sociais, para obter benefícios próprios. Graças aos narradores de contos populares, os contadores de histórias, é que se difundiu o conto e garantiram sua continuidade.

Bem atípico de outros heróis da literatura tradicional e popular, Pedro é sempre colocado como um astucioso, cínico, inesgotável mente de fazer enganos aos seus adversários, sem escrúpulos e sem remorso, buscando o prazer imediato da situação para logo a seguir continuar se aventurando pelo mundo a torrar os tostões dos poderosos que enganou.

Pedro Malas Artes, como os portugueses o chamavam, vem fazendo arte em 12 contos, trazido em prosa e verso, de suas melhores peripécias pelo mundo. O carioca Augusto Pessoa apresenta histórias como Sopa de Pedra, A árvore que dava dinheiro, entre outras, ator, cenógrafo, figurinista, dramaturgo alia a sua experiência em adaptar contos populares ao teatro, a divertida aventura de representar esse personagem tão brasileiro. 
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artigo de Cadorno Teles, de Amontada/CE
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De como Malasartes entrou no céu – 1

Quando Malasartes morreu e chegou ao céu, disse a S. Pedro que queria entrar.

O santo porteiro respondeu:

- Estas louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu depois que tantas fizeste, lá pelo mundo?!

- Quero, S. Pedro pois o céu é dos arrependidos e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

- Mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto, não entras.

- Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

S. Pedro zangou-se só com aquela proposta. E disse:

- Não, para falares a Nosso Senhor, precisavas entrar no céu e quem entra no céu Dele não pode mais sair.

Malasartes se pôs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu só pela frestinha da porta para que tivesse uma ideia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes.

S. Pedro já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça. Mas de repente, gritou:

- Olha, S. Pedro, Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu não te dizia?!

S. Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render as suas homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

E Pedro Malasartes então pulou para dentro do céu.

O santo viu que tinha sido enganado. Quis por o Malasartes para fora, mas ele contrariou:

- Agora é tarde! S. Pedro lembre-se que me disse que do céu uma vez entrando, ninguém pode mais sair. É a eternidade!

E S. Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malasartes lá ficar.

Fonte:
Lindolfo Gomes. Contos populares brasileiros. São Paulo: Melhoramentos, 1965.
Artigo de Codorno Teles, no Recanto das Letras

José Feldman (Textos & Trovas) Máscaras da vida

Texto construído tendo por base a trova de Renato Alves (Rio de Janeiro/RJ)
Fiz da vida um Carnaval,
mas terminei num impasse:
A máscara do irreal
grudou-se na minha face!
Fiz da vida um Carnaval, onde cada dia era uma nova festa, uma celebração vibrante de cores e sons. Desde pequeno, sempre encontrei na música e na dança um refúgio, uma forma de esquecer as dores e as frustrações do cotidiano. As ruas da cidade se tornavam meu palco, e eu, um artista em busca de aplausos e sorrisos. As fantasias que usava não eram apenas trajes, mas armaduras que me protegiam da realidade. Cada máscara que eu colocava me permitia ser quem quisesse, longe das amarras do eu cotidiano.

Naquele Carnaval, tudo era permitido. Sorrir, dançar, amar sem medo. As pessoas se entregavam à euforia, e eu, em meio a essa alegria, me sentia invencível. As cores se misturavam, as risadas ecoavam e a música envolvia tudo como um abraço caloroso. Mas, à medida que os dias passavam, percebi que havia algo mais profundo escondido atrás da festa. A realidade, como um espectro, pairava à espreita, esperando o momento certo para se revelar.

O que começou como uma celebração transformou-se em um labirinto de ilusões. A cada desfile de Carnaval, percebia que as risadas se tornavam mais distantes, os olhares mais vazios. As pessoas, antes tão vibrantes, pareciam presas em suas próprias fantasias, vivendo uma vida que não era a sua. Eu também me vi preso nesse ciclo. A alegria que antes me preenchia começou a se transformar em uma máscara pesada, grudada em meu rosto como um lembrete constante de que a vida estava se tornando uma encenação.

Certa noite, enquanto as luzes do Carnaval brilhavam intensamente, eu me afastei da multidão. O som da música se tornava um ruído ensurdecedor, e a dança, uma repetição mecânica de movimentos. Sentei-me à beira de um lago, onde a água refletia as estrelas como pequenos diamantes no céu. Olhei para meu reflexo e percebi a verdade que eu havia ignorado. A máscara do irreal não era apenas um adorno; tornara-se parte de mim, uma segunda pele que ocultava quem eu realmente era.

A realidade começou a se infiltrar em meus pensamentos. O que eu havia construído em torno de mim era uma fantasia que me afastava de uma vida autêntica. A busca incessante por aprovação e aplausos me deixava em um impasse, preso entre a necessidade de ser visto e o desejo de ser verdadeiro. O Carnaval, que deveria ser um momento de libertação, transformou-se em uma prisão de ilusões.

Naquela noite à beira do lago, decidi que era hora de desmascarar a verdade. O primeiro passo foi enfrentar a dor que eu havia ignorado por tanto tempo. As memórias de perdas, de desilusões, de momentos em que a vida não foi uma festa. Enfrentei cada uma delas, uma a uma, permitindo que a tristeza e a vulnerabilidade emergissem. Com lágrimas nos olhos, percebi que era essa autenticidade que me tornava humano, que me conectava aos outros de forma genuína.

Na manhã seguinte, acordei com o sol filtrando-se pelas janelas. O Carnaval ainda pulsava lá fora, mas eu estava disposto a participar dele de uma maneira diferente. Não como um espectador, mas como alguém que escolhe dançar ao ritmo de sua própria música. Comecei a me despir das máscaras que havia usado por tanto tempo, uma a uma. Cada peça que caía ao chão era um peso a menos, uma libertação da expectativa que havia me aprisionado.

Ao longo dos dias que se seguiram, a vida continuou a ser um Carnaval, mas agora eu participava dele de forma autêntica. Aprendi a rir sem medo, a dançar sem vergonha e a amar sem reservas. A máscara do irreal, que antes grudara-se em meu rosto, agora era apenas uma lembrança de um tempo em que eu não sabia quem era. Eu me permiti ser vulnerável, e essa vulnerabilidade me trouxe uma força inesperada.

As pessoas ao meu redor começaram a notar a mudança. O brilho em meus olhos não era mais uma ilusão, mas a chama de alguém que havia encontrado seu verdadeiro eu. As conexões se tornaram mais profundas, as risadas mais sinceras. Eu não precisava mais da aprovação alheia; a alegria que eu buscava estava dentro de mim, e a vida se transformou em uma celebração genuína.

O Carnaval se tornou uma metáfora da vida. Aprendi que, mesmo nas festas mais vibrantes, é essencial estar em contato com a realidade, com a dor e com a alegria que a vida traz. A máscara do irreal, que um dia me aprisionou, agora estava guardada como um símbolo de uma jornada de autodescoberta. E assim, enquanto a vida continuava a ser um Carnaval, eu dançava livre, com o coração leve, pronto para enfrentar o que quer que viesse, sempre fiel à verdade do meu ser.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado em 1994 com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Guy de Maupassant (Um prudente)


Blérot era meu amigo de infância, o meu mais querido camarada; não tínhamos segredos um para o outro. Ligava-nos uma profunda amizade de espíritos e de corações, uma intimidade fraternal, uma absoluta confiança mútua. Ele dizia-me os seus mais melindrosos pensamentos, inclusivamente as pequeninas vergonhas de consciência que mal se ousa confessar aos seus botões; outro tanto eu fazia com ele.

Eu tinha sido confidente de todos os seus amores; ele fora-o de todos os meus.

Quando me anunciou que se ia casar, magoou-me isso como uma traição. Senti que era a cordial e absoluta afeição que nos unia. Sua mulher estava entre nós. A intimidade da cama estabelece entre duas criaturas, mesmo quando cessam de se amar, uma espécie de cumplicidade ou misteriosa aliança. Homem e mulher são como que dois sócios discretos, desconfiados de todo o mundo. Mas este laço tão estreito, que o beijo conjugal aperta, cessa bruscamente desde que a mulher toma um amante.

Lembra-me como se fosse ontem toda a cerimônia do casamento de Blérot. Eu não quisera assistir ao lavrar das escrituras, porque são coisas de que mediocremente gosto; só fui à mairie e à igreja.

A noiva, que eu não conhecia, era uma rapariga alta e loira, um pouco delgadinha, bonita, de olhos descorados, cabelo descorado, tez descorada e mãos descoradas. O seu andar tinha um balançozinho onduloso, como se a conduzisse uma barca. Parecia ir fazendo pelo caminho uma série de demoradas reverências graciosas.

O Blérot parecia apaixonadíssimo. Não tirava os olhos dela, e eu sentia palpitar nele um desejo imoderado daquela mulher.

Fui visitá-lo dias depois. Disse-me ele:

— Não imaginas quanto eu sou feliz. Amo-a perdidamente. De resto, minha mulher é... é...

Não acabou a frase; mas pondo na boca dois dedos, fez um gesto que significava: — divina, deliciosa, perfeita, e muitas coisas mais.

Perguntei, rindo:

— Pois tanto?! Ele respondeu:

— Tanto quanto tu possas fantasiar!

Apresentou-me. Ela foi encantadora, familiar sem excesso, disse-me que era minha a casa. Mas eu bem sentia que o Blérot é que já não era meu. A nossa intimidade fora cortada pela raiz. A custo atinávamos com alguma coisa que dizer.

Parti. Fiz depois uma viagem ao Oriente. Voltei pela Rússia, Alemanha, Suécia e Holanda. Só recolhi a Paris ao cabo de dezoito meses de ausência.

No dia seguinte, como vadiasse pelo boulevard a tomar o gosto a Paris, vi caminhar para mim um homem muito pálido, feições cavas, tão parecido com o Blérot quanto um tísico descarnado pode ser parecido com um rapagão rubicundo e sofrivelmente barrigudo. Eu olhava-o, surpreendido, inquieto, parafusando:

— Será ele?

Ele viu-me, soltou um grito, estendeu os braços. Abri os meus, e abraçámo-nos em pleno boulevard.

Depois de um passeio entre a rua Drouot e o Vaudeville, como fôssemos a separar-nos, porque ele parecia já esfalfado de caminhar, disse-lhe:

— Tu não tens bom parecer... Andas doente? 

Respondeu-me:

— É verdade, um pouco incomodado...

Tinha a aparência de um homem a morrer; e subiu-me ao coração uma onda de ternura por esse velho e tão querido amigo, o único que jamais tive. 

Apertei-lhe as mãos:

— Mas então que tens! Dói-te alguma coisa?

— Não, é um esfalfamentozinho. Não é coisa de cuidado. 

— Que te diz o médico?

— Anemia... Receita-me ferro e carne em sangue. 

Atravessou-me o espírito uma suspeita, e perguntei: — És feliz?

— Decerto, felicíssimo.

— Inteiramente feliz?

— Inteiramente.

— Tua mulher?

— Encantadora. Amo-a mais que nunca.

Mas notei que ele corara. Parecia contrafeito, como se receasse novas perguntas. Travei-lhe o braço, levei-o para um café àquela hora deserto, fi-lo sentar à força, e olhando-o fito:

— Vá, meu velho diz a verdade.

Ele balbuciou:

— Mas se eu não tenho nada que te dizer...

Prossegui com firmeza:

— Isso não é verdade. Tu andas doente, doente do coração sem dúvida, e não ousas revelar a ninguém o teu segredo. Aí anda desgosto assolapado. Mas hás de dizer a mim. Anda diz.

Ele tornou a corar, e depois gaguejou, desviando o olhos:

— Até é vergonha... mas estou... estou desbancado!...

Como se ficasse, eu tornei-lhe:

— Anda, desembucha.

Ele então pronunciou bruscamente, como se o fizesse perder a tramontana algum pensamento martirizador, ainda inconfessado:

— Pois lá vai! A minha mulher... dá cabo de mim. Ora aí está.

Eu não percebia:

— Dá-te má vida? Faz-te sofrer constantemente? Mas como? Em quê?

Ele murmurou em voz débil, como se confessasse um crime:

— Não. Amo-a... de mais.

Fiquei atrapalhado perante aquela confissão brutal. Veio-me depois uma gana de rir, e pude enfim responder:

— Mas parece-me que tu... Sim, parece-me que podias muito bem... amá-la menos!

Ele pusera-se de novo muito pálido, e decidiu-se afinal a falar-me sem rebuço, como dantes:

— Não, não posso. E morro. Sei-o. Morro. Mato-me. E tenho medo. Em certos dias, como hoje, tenho desejos de a abandonar, de partir para sempre, para o fim do mundo, para viver muito tempo. E depois, chegada a noite, recolho a casa sem querer, encurtando as passadas, com o espírito torturado. Subo lentamente a escada. Toco. Lá está ela, sentada num fauteuil; e diz-me: — «Vens tão tarde...» — Beijo-a. Vamos depois para a mesa. Enquanto como não cesso de pensar: — «Em jantando, saio, e meto-me em qualquer comboio para qualquer parte.» — Mas quando voltamos à sala, sinto-me tão cansado que nem coragem tenho para me erguer. Fico. E depois... e depois... Sucumbo sempre...

Não pude deixar de sorrir outra vez.

Ele reparou, e prosseguiu:

— Tu ris; mas afirmo-te que o caso é muito sério.

— Mas porque não prevines tua mulher? — disse eu. — Só se ela for um monstro é que não compreenderá.

Blérot encolheu os ombros:

— Tu falas bem! Se a não previno, é porque lhe conheço a natureza. Nunca ouviste dizer, ao falar-se de certas mulheres: — «Já vai de volta com o terceiro marido»? — Ouviste, decerto, e decerto sorriste, como ainda há pouco. E todavia, era bem verdade. Que volta dar-lhe? Ela não tem a culpa, nem eu. É assim porque a natureza assim a fez. Tem um temperamento de Messalina, meu caro. Não o sabe ela mas sei-o eu... infelizmente. E é encantadora, meiga, terna, achando moderadas e naturais as nossas doidas carícias que me esfalfam, que dão cabo de mim. Tem os modos de uma colegial sem malícia. E não tem malícia nenhuma, coitadinha... Oh! Todos os dias tomo resoluções enérgicas. Pudera! Ando a cair da boca aos cães... Mas basta um olhar dos seus olhos, um desses olhares em que leio o desejo ardente dos seus lábios, e sucumbo logo, calculando: — «Será a última vez. Não quero mais estes beijos mortais.» — E depois, tendo cedido mais uma vez, como hoje, saio, caminho à toa pensando na morte, pensando que estou perdido, que não há remédio. Ando com o espírito tão impressionado, tão doente, que ontem fui dar um giro pelo cemitério. E pensava, olhando para aquelas campas alinhada como pedras de dominó: — «Qualquer dia cá estou.» — Recolhi, bem decidido a dar-me por doente, a fugir-lhe. Não pude. Tu sabes lá!... Pergunta a um fumador empeçonhado de nicotina se pode renunciar ao seu vício mortal e delicioso; ele te dirá que cem vezes o tem tentado, embalde. E acrescentará: — «Paciência! Antes morrer dele!» — Eu estou na mesma. Uma vez pilhado na engrenagem de tal paixão ou de tal vício, é aguentar até à última.

Levantou-se, estendeu-me a mão. Invadiu-me uma cólera tumultuosa e odienta contra aquela mulher, contra a mulher em geral, criatura inconsciente, encantadora e terrível. Blérot estava abotoando o sobretudo para sair. Disse-lhe cara a cara brutalmente:

— Mas, com trezentos diabos! Para te deixares assim matar, antes lhe arranjes amantes!

Ele tornou a encolher os ombros, sem responder, e partiu.

Seis meses decorreram sem o ver. Cada dia esperava receber uma participação de enterro; mas não queria pôr os pés em casa dele, obedecendo a um sentimento complicado, feito de desprezo pela mulher e por ele, de cólera, de indignação, de mil sensações diferentes.

Um belo dia de primavera, andava eu a passear nos Campos Elísios. Era uma dessas tardes tépidas que em nós revolvem alegrias secretas, que nos incendeiam os olhos e derramam sobre nós um gosto tumultuoso de viver. Alguém me bateu no ombro. Virei-me; era ele, soberbo, florescente, corado, gordo, barrigudo.

Estendeu-me as mãos ambas, ímpar de prazer, e clamando:

— Felizes olhos que te veem!

Eu encarava-o, estupefato de surpresa:

— Sim senhor... sim senhor... Os meus parabéns... Em seis meses puseste-te como uma flor.

Ele fez-se carmesim, e tornou, rindo amarelo:

— Faz-se pela vida... faz-se pela vida...

Eu olhava-o, com uma obstinação que visivelmente o constrangia. E pronunciei:

— Estou, estou completamente curado, muito obrigado...

Depois, mudando de tom:

— Foi uma fortuna encontrar-te, meu velho. Hein? Havemos de nos ver amiúde, pois não?

Mas eu estava aferrado à minha ideia. Queria saber! E perguntei:

— Olha lá, deves-te lembrar da confidência que me fizeste, há seis meses... Então... então... tu agora resistes?

Ele articulou atrapalhadamente:

— Suponhamos que te não disse nada, e deixa-me em paz. O que é certo é que te encontrei, e que já te não largo. Hás de vir jantar a minha casa.

Tomou-me de repente um desejo louco de ver aquele interior, de compreender. Aceitei.

Duas horas depois, introduzia-me em sua casa.

A mulher recebeu-me de um modo encantador. Tinha um porte simples, adoravelmente ingênuo e distinto, que extasiava, As suas mãos compridas, o seu rosto, a sua garganta — eram de uma alvura e de uma delicadeza finíssimas; deliciosa e fidalga, carne de raça. E ainda o seu andar tinha o antigo movimento amplo de chalupa, como se cada perna, a cada passada, vergasse ligeiramente.

O Blérot beijou-a na testa, fraternalmente, e perguntou:

— Ainda não veio o Luciano?

Ela respondeu, numa voz clara e leve:

— Não, filho. Bem sabes que ele vem sempre tarde.

Ouviu-se a campainha. Apareceu um rapagão muito moreno, de faces penugentas e aspecto de Hércules de sala. Apresentaram-nos um ao outro. Chamava-se Luciano Delabarre.

O Blérot e ele apertaram-se energicamente as mãos. Fomos depois para a mesa.

O jantar foi delicioso, cheio de alegria. Blérot não se fartava de falar comigo, familiarmente, cordialmente, francamente, como outrora. Era a cada instante:

— Bem sabes, meu velho... — Ouviste, meu velho!... — Escuta, meu velho...

Depois, de repente, exclamava:

— Não imaginas o prazer que sinto em te encontrar. Até parece que me nasce uma alma nova.

Eu examinava a mulher e o outro. Conservavam-se perfeitamente corretos; mas pareceu-me, uma ou duas vezes, que trocavam um olhar furtivo e rápido.

Apenas acabado o jantar, Blérot declarou, voltando-se para a mulher:

— Minha querida, encontrei o Pedro, levo-o comigo; vamos dar à língua por esse boulevard, como dantes. Perdoa-nos esta gazeta de solteirões. Cá te fica o sr. Delabarre.

Ela sorriu-se e disse-me, estendendo-me a mão:

— Não o demore por lá muito.

E lá vamos nós de braço dado, pela rua fora. Então, querendo a todo o custo saber:

— Vamos a saber, o que há de novo? Conta lá...

Mas ele interrompeu-me bruscamente, e no tom rabugento de um pacato a quem vão incomodar sem razão, respondeu:

— Ora tu, meu velho! Deixa-me em paz com as tuas perguntas!...

Depois acrescentou a meia-voz, como que falando consigo, nesse tom convicto de quem tem tomada uma decisão justa:

— Era o que faltava, deixar assim dar cabo de mim...

Não insisti. Caminhávamos depressa e pusemo-nos a palrar. De repente, ele segredou-me ao ouvido:

— Vamos nós às garotas? 

Desatei a rir francamente:

— Pois sim. Vamos lá, meu velho.

Fontes:
Guy de Maupassant. A sereia e outras histórias. Publicado em 1883, Disponível em Domínio Público.   
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