sábado, 2 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 2

 


A. A. de Assis (Santo o que é?)

Estamos próximos do dia de São Francisco de Assis (4 de outubro). A propósito, li no Google que a Igreja Católica, ao longo de toda a sua história, já canonizou, ou seja, reconheceu oficialmente como santos, cerca de vinte mil homens e mulheres. Mas o que é exatamente um santo? E por que é que um é chamado “santo” (santo Antônio), outro “são” (são José)?

Primeiro o mais fácil: por mera questão de eufonia, nomes que têm consoante como inicial recebem “são” (são João, são Paulo, são Pedro); nomes iniciados com vogal ou “h” ficam com “santo” (santo Agostinho, santo André, santo Henrique). As exceções são poucas: Santo Cristo, Santo Tirso, Santo Tomás. No feminino a forma é sempre “santa”. E há um caso curioso: são Tiago, que originalmente era santo Iago, e no final ficou Santiago.

Agora o mais importante: o que é de fato um santo? Habitualmente a palavra “santidade” vem associada à ideia de sagrado, que por sua vez se associa à ideia de perfeição etc.

Assim, quando alguém é intitulado “santo”, entende-se que seja uma pessoa sem mácula, alguém que não comete nenhum dos pecados capitais – gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, soberba. Ou, mais bonitamente, alguém que se enquadra nas bem-aventuranças – os humildes, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, porque deles é o Reino dos Céus.

Santo é, sim, tudo isso e muito mais. Mas por que se chama “santo”? Gosto de lembrar que em francês “santé” significa saúde. Dois parisienses, antes de beber o vinho, levantam as taças e fazem o brinde: “Santé”. Isso aí: santidade é saúde, sanidade. No caso, saúde espiritual.

Ser santo é ser uma pessoa espiritualmente sã – alma serena, consciência limpa, coração puro. Irmã Dulce passou a ser chamada santa por ser espiritualmente sã (sana, sadia). Francisco de Assis passou a ser chamado santo por ser espiritualmente são (sano, sadio).

Aliás, é o bom Francisco, na sua simplicidade de poeta, quem nos ensina um dos modos mais fáceis de entender o que é ser santo: é ser no mundo um instrumento de Deus – alguém que onde houver ódio leva o amor, onde houver ofensa leva o perdão, onde houver discórdia leva a união, onde houver dúvida leva a fé, onde houver erro leva a verdade, onde houver desespero leva a esperança, onde houver tristeza leva a alegria, onde houver trevas leva a luz.

Santo é alguém que semeia paz e bem onde quer que esteja, e na eternidade segue cuidando de nós com o mesmo carinho, a mesma paciência, o mesmo inesgotável amor.

Mas será que santidade é uma condição exclusiva dos canonizados? Penso que não. Há neste mundo milhões de homens e mulheres anonimamente santos, muitos deles e muitas delas bem pertinho de nós. Deus conhece cada um e cada uma.

Que sirvam de modelo para todos nós. Amém.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-9-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Magnus Kelly (Florilégio de Trovas)


A madrugada eu transpunha
tendo a calçada por guia
e singular testemunha
da história que eu construía…
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Ante o costume danado
d’eu te querer tanto assim,
devia, sim, ser pecado
o teu desprezo por mim!
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Com sua bela pureza,
dos seus vinte e oito sons,
a Trova, traz a beleza
retratada em vários tons.
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Dê-me um pedaço de chão,
ó, governante mesquinho,
para que eu possa ter pão
e construir o meu ninho.
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É nas orações que faço
que agradeço, a cada dia,
guiar-me ao Pai, cada passo
desta minha travessia…
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Mané quis cantar de galo...
fez um funaré na festa:
armou-se com um gargalo;
findou com galo na testa!
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Na poeira... adormecidos...
retratos já desbotados
relembram sonhos vividos;
e, outros, apenas sonhados…
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Na poeira das lembranças,
cenas de dias risonhos;
de tristezas; de esperanças;
de amores; cantares; sonhos…
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Na rota dos seus carinhos,
meu coração clandestino,
se perdeu pelos caminhos,
sem alcançar seu destino.
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No Dia dos Namorados,
juras de eternos amantes,
apagam passos errados;
reacendem traços marcantes…
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Noite escura traz o brilho
do manto estelar distante,
mostrando ao velho andarilho
o que, de fato, é importante...!
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Outrora, afoito e bonito,
laçava toda potranca;
agora, somente as fito,
sou só moleza e pelanca!…
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Qual peça de atos tristonhos,
que o tempo escreve, um a um,
a vida nos ceifa os sonhos,
sem mandar recado algum.
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Quando papai fez partida,
eu tive, então, que ter punho
para dar sequência à vida,
baseado em seu rascunho.
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Quatro pessoas na cama
(dois filhos em nós grudados)...
e a gente sorri e se ama,
no Dia dos Namorados…
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Sob a Lua, um Trovador,
em frente ao velho sobrado,
é o signo do terno amor
e das paixões do passado.
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Supermercado... que espanto!
Será que, agora, emagreço,
com a metade do tanto
custando o dobro do preço?!

Hans Christian Anderssen (A Arca Voadora)


Era uma vez um comerciante que era tão rico que poderia asfaltar uma rua inteira com ouro, e mesmo assim sobraria o suficiente para mais uma ruazinha. No entanto, ele não fez isso, pois conhecia o valor do dinheiro e não o desperdiçaria dessa forma. Ele era tão inteligente que de cada centavo fazia uma cédula, e assim foi enquanto viveu.

O filho herdou sua fortuna e tratou de aproveitar. Ia a bailes todas as noites, construía pipas com notas de cinco e, em vez de jogar pedrinhas no mar, atirava moedas de ouro. Era um esbanjador.

Assim, logo perdeu todo o dinheiro, até não lhe restar nada, a não ser um par de chinelos, um camisolão de dormir e quatro centavos. Os antigos amigos o abandonaram, não queriam mais ser vistos andando na rua em sua companhia; porém um deles, que tinha bom coração, certo dia lhe mandou uma velha arca de presente, com o seguinte bilhete: “Faça as malas!”.

– É um bom conselho dizer “faça as malas” – ele falou. Mas nada restava para colocar na arca e, assim, ele mesmo se sentou nela. A arca era especial, pois quando alguém pressionar o fecho, ela levantava voo. Ele assim fez e a arca saiu voando pela chaminé, carregando o homem até as nuvens do céu.

Cada vez que o fundo da arca rangia, ele ficava com muito medo, pois, se as tábuas se soltassem, ele levaria tombos até cair nas árvores. Mas nada disso aconteceu, e ele chegou em segurança à Turquia. Ele escondeu a arca em um bosque, debaixo de umas folhas secas, e partiu para a cidade. Depois, se misturou perfeitamente à população, pois entre os turcos é normal as pessoas passearem por aí usando camisolões e pantufas, assim como ele estava.

Cruzando por acaso com uma senhora e uma criancinha, ele perguntou:

– Diga-me, cara senhora turca, que castelo é aquele perto da cidade, com janelas tão altas do chão?

– Lá vive a filha do sultão – a moça respondeu. – Segundo a profecia, ela vai sofrer muito por causa de um amor, e por isso ninguém tem permissão para visitá-la a menos que o rei e a rainha estejam presentes.

– Obrigado.

Em seguida, o filho do mercador voltou ao bosque, entrou na arca, voou até o telhado do castelo e entrou, pela janela, no quarto onde a princesa estava dormindo.

Ela acordou e ficou muito assustada, mas o rapaz lhe disse que era um anjo turco que tinha descido do céu para visitá-la. Isso agradou bastante a princesa. Ele se sentou ao lado dela e começou a conversar. Disse que seus olhos eram como dois lindos lagos escuros, nos quais os pensamentos nadavam como pequenas sereias, e que sua testa era uma montanha nevada que continha admiráveis salões repletos de quadros. Contou a ela a lenda da cegonha, que traz os bebês do rio e entrega aos pais.

A princesa ficou encantada com a história e quando ele perguntou se ela se casaria com ele, a moça concordou imediatamente.

– Mas você precisa voltar no sábado, quando meus pais vêm tomar chá comigo. – ela disse – Eles vão ficar muito orgulhosos quando souberem que vou me casar com um anjo turco. Mas você precisa pensar no que vai contar, pois eles gostam de ouvir histórias mais do que qualquer outra coisa. Minha mãe prefere as que são instrutivas e tenham uma moral ao fim, mas meu pai gosta mais das engraçadas, das que o fazem rir.

– Muito bem, eu voltarei trazendo como presente somente histórias – respondeu ele.

E assim se despediram, mas, antes, a princesa deu ao rapaz um sabre cravejado de moedas de ouro, e elas poderiam ser muito úteis para ele.

O filho do comerciante voou até a cidade, comprou um camisolão novo e depois foi para o bosque, onde escreveu a história que seria lida no sábado seguinte. Não foi nada fácil, mas ficou pronta quando foi visitar a princesa no dia marcado.

O rei, a rainha e toda a corte estavam no chá com a princesa, e ele foi recebido com grandes honras.

– Conte-nos uma história – a rainha pediu. – Uma que seja instrutiva e cheia de ensinamentos.

– Sim! – acrescentou o rei – Mas que também seja um engraçada.

– Certamente – ele respondeu.

Logo começou, pedindo que todos ouvissem com atenção:

“– Era uma vez um pacote de palitos de fósforo que tinha muito orgulho de sua origem nobre. A árvore genealógica deles, isto é, o grande pinheiro de onde tinham sido cortados, havia sido, em sua época, uma árvore importante no bosque. Os palitos de fósforo estavam agora entre um isqueiro e uma velha panela de ferro, e conversavam sobre a juventude de cada um. Os fósforos começaram: “Ah, naqueles dias, nós crescíamos em galhos verdinhos, e toda manhã e toda tarde matávamos a sede com gotas de orvalho. Sempre que o Sol brilhava, sentíamos o calor de seus raios, e passarinhos nos contavam histórias cantando. Nós sabíamos que éramos ricos, pois as outras árvores só vestiam roupas verdes no verão, enquanto nossa família podia se exibir em lindos trajes verdejantes tanto no verão quanto no inverno. Mas um dia veio o lenhador e foi uma tragédia: nossa família tombou sob o machado. O chefe da casa conseguiu um posto de mastro principal em um barco muito elegante e navega pelo mundo. Outros galhos da família foram levados para diferentes locais, e nosso ofício, agora, é fazer fogo para pessoas comuns. É assim que pessoas distintas como nós acabam seus dias em uma cozinha”.

“– A próxima a falar foi a panela de ferro que estava ao lado dos fósforos.

“Meu destino foi muito diferente”, ela disse. “Desde minha chegada ao mundo, venho sendo usada para cozinhar e ser limpa depois. Sempre pensam primeiro em mim quando precisam de uma coisa sólida ou útil. Meu prazer é ser esfregada e areada após o jantar, e depois ficar no meu canto conversando com meus vizinhos. Todos nós, exceto o balde de água, que às vezes é levado ao pátio, vivemos juntos aqui entre as quatro paredes desta cozinha. Recebemos notícias por meio da sacola de compras, que vai ao mercado, mas ela às vezes nos conta coisas muito ruins sobre o povo e o governo. Sim, tanto que outro dia um pote velho ficou tão alarmado que caiu e se quebrou.”

“Mas o isqueiro a repreendeu: “Você fala demais”, e começou a raspar a pedra no metal até que faíscas começaram a voar. “Afinal, queremos uma noite agradável, não queremos?” “Sim, claro”, responderam os fósforos, “vamos falar sobre os que nasceram em berço esplêndido”.

“Mas a panela discordou: “Não, eu não gosto de sempre conversar sobre o que somos. Vamos pensar em outra diversão. Eu começo. Cada um vai contar algo que aconteceu; isso vai ser fácil e interessante também. No Mar Báltico, perto da costa da Dinamarca...”.

“Os pratos se aliaram à panela e comentaram: “Oh, que belo começo! Vamos gostar desta história, com certeza”. A panela de ferro então começou: “Sim. Bem, na minha juventude, eu morava com uma família muito tranquila, em uma casa onde, a cada quinze dias, os móveis eram lustrados, o chão era esfregado e as cortinas eram lavadas”.

“A vassoura comentou: “Que modo interessante você tem de contar uma história! Bem se vê que circulou nas altas rodas da sociedade, pois o que você diz transmite muita pureza”.

“Sim, é verdade”, acrescentou o balde de água, e soltou uns borrifos que molharam o chão. E assim a panela continuou a história, e o fim foi tão bom quanto o começo. “Os pratos tremiam de prazer; a vassoura recolheu um pouco da salsinha varrida e com ela coroou a panela, sabendo que isso ia irritar os outros e pensando: ‘Se eu a coroar hoje, amanhã será ela a me coroar’.”

“Em seguida, falaram as pinças de remexer as brasas: “Vamos dançar”, e começaram a esticar uma das pernas para o alto, de um jeito que até a poltrona no canto explodiu em uma gargalhada. “Vamos ganhar uma coroa também?”, perguntaram as pinças, e a vassoura foi buscar mais salsinha para fazer uma coroa. “No fim, são só povinho”, pensaram os fósforos.”

O rei, a rainha, a princesa e todos os nobres da corte continuavam prestando atenção à história.

“– Pediram que a chaleira cantasse, mas ela disse que estava resfriada e não conseguiria cantar a menos que houvesse algo fervendo dentro dela. Todos pensaram que aquilo era uma grande afetação, assim como julgavam uma afetação que ela nunca quisesse cantar, a não ser na sala de visitas, quando estava na mesa diante de gente fina. Perto da janela ficava uma velha caneta com bico de pena com a qual a menina escrevia. Não havia nada de especial na caneta, a não ser o fato de ter sido mergulhada muito fundo na tinta, mas ela tinha orgulho disso. “Se a chaleira não quer cantar, não precisa”, disse a caneta. “Tem um rouxinol em uma gaiola aqui do lado de fora, e ele canta. Não é um canto maravilhoso, mas por esta noite é suficiente.”

“Porém o bule, que era o cantor da cozinha e meio-irmão da chaleira, discordou: “Acho altamente impróprio que um pássaro estrangeiro seja ouvido aqui. Não me parece patriótico, o que acham? Vamos deixar que a sacola de compras decida o que é certo”. E a sacola falou: “Estou irritada, muito irritada por dentro, mais do que qualquer um pode imaginar. Estamos passando a noite do melhor jeito? Não seria mais sensato arrumar a casa? Se cada um fosse para seu devido lugar, eu proporia um jogo, e aí sim, como seria diferente!”.

“Vamos encenar uma peça!”, disseram todos, e bem nessa hora a porta se abriu e a menina da casa entrou. Ninguém mais se mexeu, ficaram todos calados e imóveis, apesar de não haver entre eles um único pote que não tivesse uma opinião boa de si mesmo e do que conseguiria fazer, se quisesse. Estavam todos pensando: “Sim, se tivéssemos decidido bem, poderíamos ter passado uma noite muito agradável”.

A história estava se aproximando do fim.

“– A menina riscou os fósforos; com que clarão eles acenderam e com que força pegaram fogo! Então eles pensaram: “Muito bem, agora todos vão ver que somos os maiorais, como brilhamos e iluminamos”, porém, enquanto pensavam nisso, a chama se apagou.”

– Que história ótima! – exclamou a rainha. – Sinto-me como se estivesse na cozinha e pudesse enxergar os fósforos. Sim, você deve se casar com a nossa filha.

– Certamente tu receberás a mão da princesa – completou o rei usando “tu” porque em breve o rapaz seria da família.

O dia da cerimônia foi marcado, e, na noite anterior, a cidade toda foi iluminada. Bolos e outras guloseimas foram distribuídos para os súditos. Pelas ruas, meninos andavam nas pontas dos pés gritando “Urra!” e assobiando. Em resumo, preparativos esplêndidos.

– Vou distribuir mais uns agrados – decidiu o filho do comerciante.

Então ele comprou rojões e biribas e todos os tipos de fogos de artifício que se pode imaginar, enfiou tudo na arca voadora e subiu com ela até o céu. Os estouros e zumbidos que fizeram! Os turcos, diante daquela cena, deram pulos tão altos que os chinelos saíram voando na altura das orelhas. Depois disso, ficou fácil acreditarem que a princesa iria se casar com um anjo turco de verdade.

Logo que desceu dos céus de volta para o bosque, após a queima de fogos, ele pensou: “Agora vou de novo para a cidade ouvir o que acharam da diversão”. Era muito natural que ele quisesse saber. E que coisas estranhas as pessoas diziam! Todo mundo a quem ele perguntou ofereceu uma história diferente, apesar de todos acharem que o espetáculo havia sido belíssimo.

– Eu vi o anjo turco – disse um. – Os olhos dele cintilavam como estrelas e a cabeça era como espuma de água.

– Ele voava em um manto de fogo, – disse outro – e querubins adoráveis saíam das dobras.

Ele ouviu muitos outros relatos sobre si mesmo e sobre o casamento ser no dia seguinte. Depois disso, voltou à floresta para descansar na arca. Mas ela havia desaparecido! Uma faísca dos fogos de artifício que haviam ficado dentro dela tinha botado fogo na arca, que ficou queimada até restarem apenas as cinzas, de forma que o filho do comerciante não tinha mais como voar nem como ir ao encontro da noiva!

Ela ficou o dia seguinte inteiro no telhado, esperando por ele, e provavelmente está lá até agora, enquanto ele vaga pelo bosque contando contos de fadas, mas certamente nenhum tão divertido quanto o que ele escreveu sobre os fósforos.

Fonte:

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Versejando 79

 


Mia Couto (O peixe e o homem)


Pois que fez Santo António? Mudou somente o púlpito e o auditório [. .]. Deixa as praças, vai às praias; deixa a terra, vai ao mar e começa a dizer a altas vozes: já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh, maravilhas do Altíssimo! Oh, poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam, a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos na sua ordem com as cabeças de fora da água. António pregava e eles ouviam.
(EXTRATO DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO, PADRE ANTÓNIO VIEIRA)


Um dia destes, quando saía de casa, deparei com meu vizinho, Jossinaldo. Estava no patamar, como que me esperando. Dos braços cruzados, espreitava uma trela. Me arrepiei.

Sempre eu o tinha evitado, por causa dos ditos e desditos. O homem era conhecido pelo que fazia no parque: levava um peixe a passear pela trela. Caminhava na margem do lago, segurando a trela. No extremo da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe. Jossinaldo era, nos gerais, tido por enjeitado: a cabeça do coitado, diziam, cabia toda num chapéu. E acrescente-se que o temiam, sem outro fundamento que essa estranheza do seu fazer.

E agora lá estava ele, a tira pendente como uma língua que lhe emergia do corpo. Já eu remastigava uns apressados bons dias quando o vizinho se me interpôs e esticou o braço na minha direção.

– Peço-lhe este favor! – Estremeci, receoso. Que favor? E era esse mesmo obséquio: o de ir eu substituí-lo no passeio ao peixe. Esquivei-me. O homem não desistiu: que ele estava-se sentindo doente, desvanecente e o peixe do lago não podia ficar órfão, sem ninguém para o conduzir, na fluência das águas.

– Por amor, não recuse!

Fiquei vacilando enquanto, dentro de mim, ecoavam os rumores que descontavam em Jossinaldo e seus descostumes. No bairro todos acreditavam compreender o comportamento do exótico morador.

Meu tio, por exemplo, deitava o seguinte entendimento: que o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia, penitente. Meu avô discordava. Aquilo, para ele, tinha outras, mais fundas explicações. Não ouvíramos falar do sermão de Santo António aos peixes? Recordávamos o que fizera o Santo António que deixara o auditório das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de guelra e escama. Pois, Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as indecorosas ganâncias que eram da exclusiva competência humana.

Adjetivavam a peixada: os mandantes do crime são chamados de “tubarões”. Os poderosos da indecência são “peixe graúdo”. Os pobres executantes são o “peixe miúdo”.

E afinal, onde não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada transparência. Pois, quem pregava o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe do lago. Era ele o sermãonista.

Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer. Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa, caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado com lado. Na rua me olhavam, surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no pleno da via pública?

Debaixo dos olhares, nos dirigimos ao parque e parámos junto ao lago.

– Veja como ele vem a correr.

E era a maior verdade. O peixão, na vista do vizinho, se aproximou da berma.

Jossinaldo debruçou-se e enlaçou a trela à volta da cauda do animal.

– Vá, pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridades.

Com o coração de fora, lá segurei na corda. O bicho veio à superfície da água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente. E remergulhando me conduziu pela margem. Contornei por inteiro a lagoa para me reencontrar com Jossinaldo.

– Deixe-me despedir dele! Ajoelhado sobre as águas, o vizinho falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida. Ficou, tenho medo de dizer, conversando com o peixe. Ergueu-se Jossinaldo, lágrima escorrendo, e me apertou as mãos, as duas em duplicado. Não falou, retirou-se em silêncio.

Sou eu agora quem, pela luz das tardes, passeia o peixe do lago. À mesma hora, uma misteriosa força me impele para cumprir aquela missão, para além da razão, por cima de toda a vergonha. E me chegam as palavras do vizinho Jossinaldo, ciciadas no leito em que desfalecia: – Não existe terra, existem mares que estão vazios.

Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.

Fonte:
Mia Couto. O fio das missangas. Publicado em 2004.

Jorge Wanderley (Poemas Diversos)

ADERIR

Amo o que neles já vi com desprezo,
O uso das mãos, a música, o inexato
Poder de seus mistérios e seu vezo
De amar sem conta contra a estrela e o fato;

Desprezo e amo: acaso mimetizo
Os que a tal plano vim para negar?
Perco na gaia terra garbo e siso
E adiro ao solo que era de deixar?

Amo e não amo e tudo em mim questiona
Missão e crença, ardil e decisão.
Mas se me sabem, sofro; e se me atrevo

No além-mudez, sossego me abandona:
Daí, silêncio erijo e solidão,
E em solidão me deixo, erijo, escrevo.
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CORPO ANTERIOR

Que faço aqui, neste meu corpo, amando,
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?

Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.

Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,

São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.
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MÁQUINA

Deram-lhes máquina curiosa, essa
que é dos seus corpos. Não interligados,
encontram pares, mas um dia cessam;
passam por um percurso que, somado,

chamam de História e no correr do tempo
vão registrando como em seus poemas
(— que uns poucos querem frio como um templo
sem música e sem alma, todo esquema

de pétrea arquitetura no vazio).
Do que não sabem, amam perguntar,
magicar, intuir, ver pelo escuro,

tocando às vezes certo fugidio
não-saber, com escamas de voar,
e asas de peixe e jornais do futuro.
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NADA VEEM

Pois se entre todos vou desconhecido,
No além de minha condição negado,
Eis que por duas vezes vou servido
De recusa e cegueira, e acostumado.

Melhor: a quem recusa, recusado
Faço que fique no seu mal vencido,
E a quem não vê, pobre desentendido,
Engano, enquanto vim assinalado.

Tudo o que dizem, tenho conhecido,
Sei quando calam tudo que hão calado.
Vá lá que ceguem, já que entorpecido

Têm seu sentido, em si tão limitado;
Mas que neguem quem seja, tem nutrido
Minha vingança e meu poder chamado.
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SOU CRUZADO

Sou cruzado, mas esqueci meu rei,
Da nave em que cheguei, mal vou lembrado;
Quero guardar comigo o que ora sei
E de antes não sabia, descuidado.

Amar, perder, a ventania, a lei
Desordenada e injusta — este reinado
De amoráveis desastres que encontrei,
Deles cativo quero estar, atado.

Assim, longe de nave e de equipagem,
Fico; não deixo mais esses rigores,
Fico: não me acrescento mais àqueles

Que perdem quanto acharam na viagem,
Pois se retornam os navegadores,
As descobertas deixam de ser deles.
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Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley nasceu no Recife (PE), no dia 21 de janeiro de 1938, e morreu na mesma cidade, em 12 de dezembro de 1999. Formado em Medicina, com especialidade em Neurocirurgia, abandonou a carreira em 1981 para se dedicar integralmente à literatura. Em 1976, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez mestrado e doutorado em Letras na PUC (RJ). Em seguida, passou a dar aulas na UERJ. Tornou-se exímio tradutor, o que lhe rendeu um Prêmio Jabuti e “ofuscou a sua produção poética pessoal”. Em quatro décadas, escreveu os seguintes livros de poemas: Gesta e outros poemas (1960), Adiamentos (1974), A casa navega (1975), Coração à parte (1979), Mesa/musa (1980), A foto fatal (1986), Anjo novo (1987), Homenagem: Dez sonetos (1992), Manias de agora (1995), O agente infiltrado (1999). Escreveu ainda Arquivo/ensaio (1993), que reúne artigos de critica literária.

Fonte:
Ermira

Aparecido Raimundo de Souza (Rapídinhas) 3


VIA EXPRESSA

- Do que morreu o motorista?

- De volante...

- Como assim?

- Perdeu a direção.
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GIBI

- Você acredita que o capeta se assustou com Capeto?

- Quem é esse Capeto?

- O cachorro do Fantasma.
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AULA PRÁTICA DE PORTUGUÊS II

A aluna encontra seu professor a caminho do refeitório e não perde a oportunidade de demonstrar o que sente por ele. Ataca:

- Vou prender o senhor com o meu laço. Até hoje ninguém escapou nem resistiu ao meu charme.

O professor, seguro de si e sem deixar de lado seu melhor sorriso, rebate de imediato. Dá o troco:

- Asseguro que a senhorita não conseguirá, ainda que leve em consideração o fato de ter sido a única da sala a ganhar nota máxima na redação...

- E por que o meu amado mestre acha que eu não terei sucesso em meu empreendimento?

- Porque desde que entrei para esta escola eu fiquei lasso.
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O VISTO IMAGINADO

- Uma menina nova, lá da escola, na hora do recreio, me encarou de cima embaixo com uma cara muito engraçada. Parecia uma lâmpada.

- E você, o que fez?

- O que queria que eu fizesse? Tive a ligeira impressão de que se tocasse nela, acenderia!...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 8: Ademar Macedo

 


Júlia Lopes de Almeida (Ondas de ouro)

Palavras com *, vocabulário no final do texto.
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Sim, era preciso acabar a tarefa antes da noite... o caixeiro já lhe dissera três vezes da parte do patrão: – Olhe, Sr. Mendonça, as tranças foram encomendadas para hoje às seis horas, sem falta, e daqui a nada estão por aí a buscá-las...

Ele, o Sr. Mendonça, levantava os olhos, abanava afirmativamente a cabeça calva e, sempre calado, baixava de novo os olhos pequeninos e secos para o trabalho. O caixeiro descia rápido a escada de caracol, para a loja, e o oficial lá ficava no primeiro andar, separando com os dedos, engelhados* pela velhice e amarelecidos pelo fumo, umas madeixas muito loiras, muito sedosas, muito flexíveis, que lhe caíam sobre o peito e os joelhos numa cascata luminosa e ondeante. Aquele ouro fulvo* tocado pela réstia do sol da janela, aquela massa de cabelos finos, agitados pela viração, entoava num grande reverbero metálico a sinfonia triunfal da luz.

O velho, mal vestido, com o colarinho amarrotado e o casaco luzente nas costuras, parecia um nababo avarento, sumindo os dedos gostosamente naquele tesouro opulento e flácido. Não quisera que o auxiliassem; irritou-se contra um aprendiz por se ter oferecido com insistência. Nada! aquilo era coisa sagrada; nenhuma pessoa lhe tocaria sem profanação. E os companheiros sorriam atônitos, vendo o Sr. Mendonça, geralmente desleixado, escovar muito e polir as unhas, perfumando as mãos, antes de começar o seu querido trabalho.

A pouco e pouco foram-no deixando; vendo-se só, o velho beijou repetidas vezes a trança loira, assim como um crente beija uma relíquia santa. Negara-se a trabalhar na oficina, e pedira um recanto isolado, onde não levasse sumiço um único fio do precioso cabelo...

Fora-lhe concedida, sem exemplo, a permissão de ir para a pequena sala da frente, alcatifada* e com cortinas. Ali estava só. Nos armários de vidro, em roda, como únicas testemunhas, cofres de perfumarias, estojos para unhas, tondeuses*, pompons de arminho, escovas de luxo, pattes de lièvre*, esponjas, águas de toilette* enfrascadas, caixas completas de maquillage*, cosméticos, elixires, óleos e sabonetes arrumados em caixinhas de três, com rótulos coloridos e brilhantes, ou separados e envoltos em papéis prateados, azuis, ou cor de gravanço*.

Entre aquela variedade infinita de aromas e de tons, aqui e ali, rumas* de pentes de todos os feitios, da mais fina tartaruga ao mais negro búfalo, do melhor marfim ao mais grosseiro osso. Pendentes e cuidadosamente alisadas, tranças negras, castanhas, loiras, grisalhas, restos de uma multidão incógnita, destroçada, perdida na noite escura da miséria, na podridão da vala comum, nas enfermarias dos hospitais, ou nas células das penitenciárias.

De espaço a espaço, sobre cabeças de pau, um chinó* preto, reluzente, e caricatamente garrido, ou umas cuias de arame muito fino, cobertas de caracóis alvos, jeitosos e macios.

A envolver tudo isto, o enervante cheiro do heliotropo branco, ou os suavíssimos e esquisitos aromas do Musc* ou do Psidium*.

No relógio de metal bronzeado, sobre o dunquerque*, em frente ao espelho, os ponteiros giravam, giravam implacavelmente para o pobre Mendonça, que supunha, talvez, ter entre os dedos não uma pobre cabeleira loira, desfeita, mas o próprio sol, eternamente irradiante e puro.

Antes que subisse o quarto recado do patrão, beijou o velho muitas vezes aqueles fios de ouro; e, acabado o trabalho, fingia ainda ocupar-se dele, temendo a angústia da separação.

Era o único vestígio da sua adorada Angelina, morta havia um mês, um anjo de docilidade e de meiguice, que suportara sorrindo a cruz da sua pobreza, sempre consoladora, sempre resignada. Levara-a a tísica, a mesma moléstia que arrebatara a mulher e os outros dois filhos mais velhos! Tinha-lhe ficado aquela só, e nela concentrara todo o seu carinho; e um dia, que triste dia de verão fora esse! o médico da Policlínica dissera-lhe: “A sua menina está mal... alivie-a do peso dos cabelos, mande-a tomar ares num arrabalde... leve-a imediatamente para fora.”

E ele, estrangulado de angústia, empenhara tudo, relógio de prata, corrente, joiazinhas de família, uma cômoda antiga. Apurado o dinheiro, transportou para Santa Teresa a sua doentinha; mas Angelina piorou de tal sorte, que no fim de um mês teve de torná-la à cidade; aí durou pouco. E o velho, acariciando os cabelos loiros, lembrava-se daquelas horas negras: a pequena, muito desfigurada, estendida no leitozinho estreito, enquanto ele piedosamente enxotava com o lenço branco as moscas que a assaltavam. Foi então, horrorizado com a ideia de entregar à vala aquele corpo idealmente puro, sonhando como uma felicidade comprar para o seu branco lírio um canteiro separado de todos mais, que ele se lembrou, como único recurso, de ir vender as tranças loiras da filha, guardadas havia muitos dias, desde a consulta da Policlínica.

Antes isso... separar-se-ia desse amado despojo, mas a sua casta, a sua angélica, a sua imaculada filha teria um canteirinho condigno!

E, como um negociante banal, foi fazer o preço, propor o negócio e ao mesmo tempo contratar a obra! Tudo assentado, fizeram-se as cerimônias do ritual, e ele acompanhou serenamente a filha ao cemitério...

Eram cinco horas. Subira o quinto recado do patrão. A réstia de sol já não entrava pela janela. Embaixo, nas calçadas da rua, muita bulha de passos e um rumor alto de vozes. Mendonça tinha concluído a obra. Pela escada de caracol ouviu uns passos de homem e outros leves, rápidos, evidentemente de mulher; depois um ruge-ruge de vestido do seda, e umas gargalhadinhas em falsete.

– Pronta a encomenda, Sr. Mendonça? perguntou, num acentuado sotaque francês, o dono da casa.

O velho quis responder ao patrão, mas não pôde; ergueu a trança, e delicadamente pôs-a sobre a alcatifa do balcão.

Tirando às pressas as luvas altas, num gesto petulante, a recém-chegada estendeu as mãos alvas, carregadas dos anéis caros, para o cabelo tão carinhosamente tratado pelo velho, e pôs-se a examiná-lo, separando com força as três madeixas da trança, cheirando-a, olhando-a de perto, de longe, e deixando-a por fim cair sem caridade sobre o veludo escuro de um sofá.

Mendonça estremeceu; imaginara ingenuamente que os cabelos da filha iriam adornar a cabeça de uma virgem, que se engrinaldasse de rosas frescas, e tivesse com eles todo o desvelo de uma menina educada. Vendo em frente aquela mulher arrogante e brutal atirá-los sem cuidado sobre o traste mais próximo, mordeu os beiços e amparou-se ao balcão. O suor corria-lhe pela calva, as mãos crispavam--se-lhe com ódio.

Diante do alto espelho, a freguesa tirava o chapéu de abas reviradas, com bouquets de flores. Ele via refletido no cristal o seu vestido de seda escarlate, a jaquette* cor de café com leite, aberta na frente, com uma grande rosa vermelha na lapela; a descomunal aranha de pérola e brilhantes a luzir-lhe no peito, os pulsos cheios de braceletes; as bichas de brilhantes nas orelhas, o rosto coberto de veloutine rose* sobre pastas de cold-cream*; os beiços tintos a carmim, os olhos engrandecidos, o cabelo sujo por tintas cor de cenoura, com louros claros e escuros, em manchas desiguais. Colocava no penteado a trança, que o dono da casa, muito solícito, erguera do sofá; via-se de frente, de perfil, desvanecidamente; depois, voltando-se para o francês:

– Fica-me bem esta cor, não acha?

– Oh! perfeitamente, é de um tom belíssimo, ravissant*!

– Sim?... Vou fazer com ela esta noite um papel de fada, no Sant’Anna... Que diz, farei sensação?

E em uns requebros amaneirados, prolongou o diálogo, diante do velho Mendonça, dizendo muitas coisas fúteis, em gíria de bastidores.

O desgraçado homem olhava, olhava para os cabelos da sua pura, da sua casta, da sua imaculada filha, com os olhos rasos de lágrimas, numa grande mágoa que o abatia.

No fim de meia hora, a atriz, arranjados os frisados da testa e abotoadas as luvas, segurava o grande leque pintado, a sombrinha de cabo extravagante e alto, e descia a escada de caracol, calcando os degraus com os pés calçados em meias de seda e sapatinhos estreitos.

Mendonça ficou colado ao mesmo sítio, com os olhos fixos no mesmo ponto e o pensamento preso à mesma ideia... Nunca mais veria os cabelos da sua Angelina, aquelas opulentas ondas de ouro, aquele precioso espólio! Que sol o aqueceria então?

Não tornar a vê-los! a isso não se resignava o desgraçado pai, mas... e lembrou-se do que a atriz dissera:

– Esta noite no Sant’Anna vou fazer um papel de fada...

Às oito horas lá estava à porta do teatro o oficial de cabeleireiro. Era cedo e ele já tinha na algibeira o seu bilhete de galeria. Foi o primeiro a subir, e sentou-se num bom lugar, à frente. O gás muito amortecido, os camarotes e a plateia vazios davam um aspecto taciturno ao teatro. Ah! no tempo da filha não fora nunca a um espetáculo; a pequena morrera sem ter visto isso... E sentia remorsos, o Mendonça, como se ele tivesse ido agora com o propósito de se divertir! E lá, na galeria, sozinho, limpava as lágrimas, que lhe corriam em fio, embebendo-se nas suas barbas brancas.

Principiava a aparecer gente, em pontos desgarrados da sala, até que uma onda grossa veio enchê-la quase de repente; o gás abriu em grandes leques a sua luz forte e a orquestra rompeu num tango alegre, vibrando no ar uns estalidos de castanholas e os sons metálicos dos pistons.

Erguido o pano, o velho Mendonça abriu muito os olhos, debruçando-se avidamente. Agitava-se em cena um bando de coristas, pintadas e quase nuas, esganiçando-se num coro alegre; depois, vinham as damas principais, os atores; e a plateia ria, e os aplausos ecoavam sem que o Mendonça tomasse parte em nada. Todo o primeiro ato rolou indiferentemente para ele. Durante o intervalo não se levantou; temia perder o lugar, e não ver depois bem os cabelos da filha; mas no segundo ato não entrou a fada, nem tampouco no terceiro! Mendonça sentia-se fatigado e desiludido ao começar o quarto e último ato, em que os quadros se sucediam animados e com brilhantes cenários.

Ia ele quase em meio quando, de entre umas nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas, apareceu, em maillot* e cetim branco, com diadema, varinha de condão e o manto de cabelos loiros espalhado nas costas, a fada protetora da desventurada ingênua.

Era ela! Mendonça levantou-se, pôs toda a atenção naquela grande cabeleira solta, sedosa, fulgurante, resplendendo, numa prodigiosa magnificência, centelhas de ouro, refrangível*, ondeante e vivo! Tantas vezes vira a sua Angelina coberta por aquelas madeixas longas!

E à luz da ribalta, os virginais cabelos da filha pareciam-lhe mais formosos e mais ofuscadores ainda! Não via mais nada; nem o corpo esbelto da atriz, nem as transfigurações que ela ia produzindo com a sua magia; todo o seu espetáculo era aquela trança desatada, que lhe mandava, da falsidade do palco, num perfume de saudades, uma piedosa ilusão da vida!

Sim! Revivia um pouco a sua adorada morta, e ele batia as palmas, chorava como um doido e, em um delírio frenético, pedia bis, em altos gritos, vendo sumir-se a Fada entre nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas.

Mandaram-no calar-se; ele continuou sempre, até que a polícia interveio. O velho Mendonça foi tirado à força do teatro; alguns espectadores riram; e lá dentro, a atriz, muito orgulhosa, convenceu-se de que realmente fizera sensação.
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* VOCABULÁRIO EM ORDEM ALFABÉTICA
Alcatifada = atapetada.
Chinó = cabeleira postiça para o alto da cabeça.
Cold-cream =“Creme frio”: creme refrescante para a pele.
Dunquerque = armário constituído de prateleiras e geralmente de portas envidraçadas de modo a permitir a exposição de objetos de valor material e/ou afetivo.
Engelhado = Enrugado, encarquilhado.
Fulvo = De cor amarelo-tostada; alourado.
Gravanço = grão de bico.
Jaquette = Jaqueta, terninho.
Lièuvres = Pata-de-lebre; isto é, objeto feito de pata de lebre (esponja de pó, pente ou escova).
Maillot = Maiô.
Maquillage = Maquiagem.
Musc = Almíscar.
Psidium = Gênero de plantas do qual faz parte a goiabeira.
Ravissant = Encantador.
Refrangível = suscetível de sofrer refração.
Rumas = pilhas, montão.
Toilette = Banho; no caso, água de banho, colônia.
Tondeses = Cortadores.
Veloutine rose = Marca de pó de arroz, um tipo de talco utilizado para maquiagem.


Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Dicionário Houaiss Eletrônico – junho de 2009.

Ronnaldo de Andrade (Album de Spinas) 2

À ESPERA

Anseio, sem receio,
pela doce presença:
sentença de paixão!

Vejo o coração sendo coração,
o amor desabrochar qual rosa
deixando de ser sublime botão.
Quando a amada chega muda
o ambiente. Amo-a com razão!
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A SAUDADE VIROU TATUAGEM NA MEMÓRIA

Sentado no alpendre
do casebre solitário,
cheio de lembrança,

volto outra vezes ser criança.
Vejo-me a brincar no terreiro,
um beija-flor com sua dança
beijocando as flores (logo ali).
Ah, bom tempo! Que mudança!
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EM QUESTIONAMENTO

Aumento meus vícios
destruo meus sonhos,
produzo meus versos

áridos, ásperos, azedos qual limão,
causas da estrada infinita amoroso!
A cabeça pesada, passos dispersos,
sinto-me alucinado, em um labirinto
de dúvidas; gostos vis, contraversos.
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SEM VOCÊ SOU UM LIVRO
À ESPERA DO PREFÁCIO


Desabo em felicidade,
em sonhos profundos;
em desejos afogo-me.

Jogo-me para fora de mim,
assim eu enxergo meu riso,
o seu, você perto. Jogo-me
calmo nos seus braços; faço
o que nunca fiz. Prologo-me!
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SOLILÓQUIO REFLEXIVO

Divago nas ruas
cheio dos sonhos
que sempre trago,

vagos, na memória do pretérito.
Observo que minha nova história
está me cometendo seu estrago.
Amargo: o amanhã nunca chega;
meu presente: Cigarro que trago.
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5x9

Aceitar a morte,
viver nosso luto,
avançar em paz

mesmo com as feridas abertas
expelindo pus, com forte cheiro,
faz-se essencial. Quem é capaz?
Morrem vida, os amores, paixões;
lembranças a morte não desfaz!

Fonte:
Versos enviados pelo autor.

Fernando Bonassi (Corações vagabundos)

O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.

— Boa noite.

— Boa.

Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro. Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez. Passava.

— Aposto que eu sei onde a gente vai...

O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia se controlar! E ainda tomavam cafezinho:

— Sem açúcar, por favor...

Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais caro. Perguntou na primeira vez:

— Quanto é pra fazer tudo?

Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá era sempre igual. Uma vez perguntou:

— Teve aumento?

Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre.

Portanto ele podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina. "Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar. Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço por dentro. Não chegava a lugar nenhum.

Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:

— Você.

O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim, porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:

— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.

O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:

— Você gosta de beber, né?

— É bom, fica tudo mais fácil...

— Devia comer de vez em quando.

Dessa vez o homem não riu.

— Você é casado?

— Hum-hum.

— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da rotina.

— Não é uma questão de confiança.

— Ela é doente?

O homem voltou a rir.

— Você é doente?

— Não.

— Gay?

Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição. Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando perguntou:

— Eu não sou boa pra você?

O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:

— Você é a melhor coisa da minha semana.

— "Coisa"?!

O homem bufou diante da mulher, levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.

— Você me engorda.

Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele não sentiu o enjoo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles botões...”

— Até sexta-feira...

Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração espremido...

— Tá bom, te espero aqui.
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Fernando Bonassi é paulistano, nascido em 1962. Escritor, roteirista e cineasta, tem inúmeros livros lançados, dentre os quais: A incrível história de Naldinho, um bandidão o bandidinho?, O céu e o fundo do mar, 100 coisas, Declaração universal do moleque invocado (indicado para o Prêmio Jabuti em 2002), O amor é uma dor feliz, Tá louco! e Passaporte. Tem contos e livros publicados na França, Alemanha e EUA. É formado em Cinema pela ECA-USP, tendo participado como diretor/roteirista dos filmes Castelo Rá Tim Bum e O trabalho dos homens.

Estante de Livros (A Literatura Brasileira através dos Textos, de Massaud Moisés)


Este volume oferece um panorama do que a literatura brasileira ostenta de melhor e de mais representativo ao longo de sua evolução histórica. Dentro de cada uma das sete épocas em que se divide a história literária - Época de Formação e Origens, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo e Modernismo -, são focalizados os autores de maior importância, apresentando-se de cada um deles, um ou mais excertos antológicos, os quais são precedidos de uma notícia que os situa cronologicamente no quadro de nossas letras e seguidos de um comentário crítico que lhes destaca os principais pontos de interesse, orientando assim a atenção do estudante para a correta apreciação do texto antológico.

A literatura brasileira é prodigiosa. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade estão entre seus principais representantes.

Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Na literatura brasileira, o “Bruxo do Cosme Velho” é associado ao Realismo Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Na literatura brasileira, o “Bruxo do Cosme Velho” é associado ao Realismo

A literatura brasileira conta com mais de quinhentos anos de história. O primeiro documento produzido no Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, é considerado também como o primeiro texto literário do Brasil, embora tenha sido escrito por um português. O texto só ganhou status de literatura porque Pero Vaz de Caminha não era um mero escrivão e, por isso, não se contentou em fazer um simples relato de viagem: basta ler a carta para perceber o cuidado com as palavras e as metáforas construídas para descrever a terra recém-descoberta.

As primeiras manifestações da literatura brasileira foram fortemente marcadas pelo modelo literário de Portugal, já que nossos primeiros escritores ou eram portugueses de nascimento ou brasileiros com formação universitária em Portugal. Sendo assim, é importante conhecer também a literatura portuguesa para que possamos entender o modelo que serviu de referência para a construção de nossa literatura. Por terem sido tão influenciados pelo cânone lusitano, muitos autores preferem referir-se aos textos produzidos nessa época como “manifestações literárias” ou até mesmo como “ecos da literatura no Brasil”. Isso mudou apenas na segunda metade do século XVIII, quando surgiram os primeiros escritores brasileiros comprometidos com as causas políticas nacionais, importante condição para a formação de uma literatura genuinamente brasileira.

Embora jovem, especialmente quando comparada à milenar literatura europeia, a literatura brasileira é prodigiosa. É inquestionável seu papel social de transmitir os conhecimentos e a cultura de nossa sociedade. Passeando por nossas diversas escolas literárias e em diferentes períodos históricos, podemos observar vários pontos de contato entre a literatura e a História do Brasil, comprovando assim que o fazer literário do escritor não é indiferente à realidade. Todos, inclusive os artistas, participam dos problemas vividos pela sociedade e tentam, por intermédio da palavra, retratá-la ou denunciá-la.

Por motivos didáticos, a literatura brasileira é dividida em escolas literárias, o que facilita seu ensino e estudo.

José de Anchieta, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Manoel de Barros e Mario Quintana estão entre os principais representantes da literatura brasileira, que conta com muitos outros nomes fundamentais para a compreensão de nossa identidade literária, nomes que contribuíram de maneira indelével para a formação da cultura nacional.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Adega de Versos 48: Antonio Manoel Abreu Sardenberg

 


Sofia Lobo (Marés)

No mar ninguém irá tocá-la. Ela mergulha, depois sobe em cima da prancha, de pé, e começa um lento trabalho de remar em direção ao horizonte. O sol a faz suar sob a camiseta anti-UV, não pode arriscar se queimar, isso sempre acaba mal.

Respira devagar, exalando a cada remada, enchendo os pulmões de sal. Há várias pessoas no litoral, algumas de máscara, outras não, a maioria não, mas crianças correm pela areia e seus pais bebem água de coco nos quiosques.

Ela se ajoelha sobre a prancha e apoia o remo à sua frente, deixando que a maré a guie. Inspira uma vez, expira, inspira de novo, expira. Se ela pudesse fazer qualquer coisa para conter as lágrimas, teria feito, mas ali era só o que tinha: água salgada.

Aprendeu a chorar em silêncio, à noite, e, quando começou a dormir acompanhada, aprendeu também a chorar com o mínimo de movimento, dissolvendo os espasmos dos soluços em suspiros. Com o tempo, percebeu que não sabia mais como gritar, como tremer, como jogar um copo de vidro contra a parede e se encolher no chão. Sabia apenas abraçar os próprios ombros e ofegar.

Uma onda maior faz a prancha balançar. Ela cai dentro da água, afundando no abraço turvo até seus ouvidos doerem e suas costas baterem contra a areia, sentindo o forte puxão no seu tornozelo direito.

Soube de corpos afogados que eram encontrados quilômetros longe de suas cidades. Poderia se afogar. Poderia morrer assim. Esperava morrer sempre que entrava no mar, longe de qualquer controle. Ali dentro, com a pressão apertando seus ouvidos e a água abraçando seu corpo todo, não sentia medo, no mar ninguém, ninguém mesmo, iria tocá-la. Seria levada quilômetros pelo litoral, gostava de pensar onde ele a devolveria, queria que fosse numa praia bonita, com um pôr-do-sol espetacular.

Outra onda empurra a prancha, puxando-a pelo tornozelo até a superfície. Segura a prancha e apoia a testa nela, com a ponta dos pés sem tocar o chão. Felizmente o remo não tinha caído. À sua frente está apenas aquela linha marcada de azul sobre azul. Decide sair da água. Por enquanto.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 4 –

AFLIÇÃO

Cipreste verde-triste
que sonhas sem cessar,
a minha mágoa assiste
meu sono vem velar.

Em mim já não existe
a glória de lutar...
Estou de lança em riste
e tenho que esperar.

A força me abandona,
o pranto me condena,
estou prendido à zona

de um pantanal sem fim.
A vida que me acena
não tem pena de mim.
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CANTILENA

Hoje penso nos versos que escrevi
e aos poucos vou me convencendo, enfim,
que muitos deles viverão em ti
como lembranças eternais de mim !

Representando as mágoas que sofri,
os teus ouvidos, num rumor sem fim,
vão beijar, semelhando um colibri
que beija as lindas flores de um jardim...

E não esquecerás meu canto infindo,
onde estiveres, fada dos meus sonhos,
pois docemente irá se definindo

minha voz melancólica e serena,
com lamentos talvez até tristonhos,
porém inconfundível cantilena !
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NOSTALGIA

Certa noite disseste aos meus ouvidos
que gostavas dos versos que te fiz
e ouvindo teus encômios incontidos
nem sabes como me senti feliz !

E então ficamos algum tempo unidos,
fazendo-nos carícias pueris
pra sermos hoje dois desconhecidos
pensando que o destino assim o quis...

Eu guardo na memória, todavia,
todo teu ser, com tanta nostalgia,
tal um golpe daqueles que fatais

a gente sofre sempre por alguém.
Sei que outras poderão surgir, porém...
Por que, afinal, só tu não voltas mais!?
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SONETO DE SONHADOR

Já não me encontro só nem desgraçado
pois te levo total em meu olhar;
nem poderei viver sem teu agrado
enquanto não consiga te olvidar.

Quando às vezes passeio pelo prado,
a natureza em flor a contemplar,
parece que tu segues ao meu lado
e os dois formamos um ditoso par.

E prossigo sonhando à luz do dia,
que estás presente em todos os momentos,
na tarde calorosa ou noite fria,

e também de manhã andando a esmo;
porque vencendo obstáculos violentos
sinto que fazes parte de mim mesmo.
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UM SONETO ARDENTE

Beijar-te os lábios num delírio mudo,
prender-te toda nos meus fortes braços,
amar-te num amor sincero e rudo,
depois cantar-te nos meus versos lassos.

Cantar a sensação dos teus abraços
quando por ti das dores me desnudo,
fazer das ilusões mil estilhaços,
estar feliz atrás do flóreo escudo

que ostentas em tua alma virginal,
era trilhar a estrada da ventura
num sonho límpido e descomunal

e achar a fonte cristalina e pura
que torna o coração sempre jovial
e os nossos males mais profundos cura.

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Hélia Andrade (Romance vintage moderno)

arte de Monika Luniak (Polônia)
Moravam no mesmo condomínio. Em torres diferentes, mas no mesmo condomínio. Ela, no 14º, ele no 16º andar. Se bem observassem, veriam que, da cozinha dela, dava para ver um pouco da sala dele. Se a cortina estivesse aberta. Aliás, quase sempre estava, era meio desligado o Igor. Mas a Letícia nunca tinha visto a sala dele antes, pela janela de sua cozinha. Às vezes até ficava na varanda da sala, olhando para o horizonte, sem mirar nada específico. O apartamento do Igor nunca tinha lhe chamado a atenção.

Eram vizinhos, mas nunca tinham se olhado. Nunca se cruzaram pela piscina do prédio, ou pela academia. Pelo salão de jogos, pelos jardins do condomínio, pela garagem. Nem mesmo um oi apressado nos elevadores, enquanto olhavam as telas de seus smartphones. Ou já haviam se encontrado nessas situações? Nenhum dos dois tinha certeza. Talvez até tivessem se esbarrado, mas nunca se notaram. Nunca! Para o encontro, precisaram de uma ajudinha específica...

Da tecnologia. Sim, eram jovens, modernos, conectados. Foi um aplicativo que proporcionou o encontro. Sem o empurrão tecnológico, talvez continuassem sendo dois vizinhos desconhecidos. A vida moderna é assim, não? São tantas atividades diárias, tanta correria, atribulação, metas de trabalho, de saúde, de vida. Sobra pouco tempo para conhecer os vizinhos. Se acaba o açúcar (opa, açúcar não foi um bom exemplo, olha as dietas restritivas!), quem, hoje em dia, bate na porta do vizinho com uma xícara e alonga o papo, sem pressa, como faziam nossos avós?

Foi ele quem a viu primeiro. Pelo aplicativo, claro. Ficou interessado, era bonita, dizia gostar de grunge, como ele. Morava perto. Muito perto! Eram vizinhos, seria possível? Se tudo estivesse certo, ela morava no seu condomínio. Quanta coincidência! Ele resolveu arriscar e a chamou. Ela viu sem acreditar. Um vizinho? Ficou receosa, parecia arriscado. E se ele fosse um maníaco perseguidor? Decidiu ignorá-lo. Ele persistiu. Ela não deu bola. Ficou assustada com a insistência e deu um tempo no aplicativo.

Ele não se deu por vencido. Eram vizinhos, poderia forjar um encontro casual. E assim o fez. Por várias vezes esperou-a em locais possíveis de encontrá-la ao acaso: na academia, na piscina, no pilotis. Mas esses encontros casuais forçados nunca aconteciam. Quando já estava desistindo, por fim, encontrou-a na portaria, aparentemente esperando uma carona, enquanto ele saía para correr. Ele não acreditou. Ela pareceu reconhecê-lo de sua foto no perfil e disfarçou. Ele não podia perder aquela chance. Chamou-a pelo nome e se apresentou como o Igor, do aplicativo. Ela sorriu, um riso tímido, incrédulo e resistente. Falaram amenidades, ela fingiu desinteresse e disse que sua carona já ia chegar. Ele pediu que ela voltasse a usar o aplicativo, para poderem conversar. Ela disse que não estava mais, que havia cansado daquilo. Ele insistiu. Ela cedeu. Pelo aplicativo, se conheceram, se curtiram e engataram uma relação que já dura quase um ano. Quem disse que a tecnologia não ajuda as coisas? Quem disse que não pode surgir um romance sério por meio de um aplicativo?

Quem disse? Eles diziam, mas a história não era bem assim. Ensaiaram esse enredo e o repetiam à exaustão a quem perguntasse. As pessoas se interessavam por essa versão da história. Dava-lhes um pouco de esperança. Era uma história que dera certo em meio a milhares de encontros de uma noite só, promovidos por aplicativos. Nem tudo estava perdido, enfim. Quando incitados por interlocutores esperançosos e curiosos, eles sempre aumentavam um detalhe aqui, outro ali, dando mais glamour ao seu romance moderno de mentirinha. Porque não foi bem assim.

Viram-se, de verdade, pela primeira vez, foi na fila da padaria. Sim, encontraram-se na fila do pão! Ele a viu, disfarçou o nervosismo e engatou uma conversa. Descobriram-se vizinhos e seguiram caminhando até o condomínio. A rápida caminhada foi agradável e resolveram dar uma chance aos dois. Trocaram telefones, descobriram afinidades além da localização geográfica, estreitaram a convivência e logo os dois apartamentos no mesmo condomínio passaram a ter dimensões mais fluidas, confundindo-se. A cozinha da Letícia passou a observar a sala do Igor e vice-versa. Já não eram mais dois vizinhos desconhecidos.

Depois do segundo mês de relacionamento, a Letícia apresentou o Igor à avó. Era bem moderninha a avó da Letícia. Em nada lembrava aquelas vovós do nosso imaginário, com seus bordados e gatos, a casa cheirando a café e bolo de fubá. Era uma vovó que estava em todas as redes sociais, postava fotos de suas viagens pelo mundo e arrumava uns cobertores de orelha por aí de vez em quando.

- Vocês se conhecem há muito tempo, lá do prédio? – quis saber a avó da Letícia.

- Na verdade, a gente se conheceu na padaria, por acaso. Nunca havíamos nos encontrado pelo condomínio – Letícia respondeu.

A avó olhou meio séria, meio marota e soltou uma risada irônica.

- Vocês são demais. Quase acreditei. Vão me dizer que se conheceram na fila do pão? Isso é tão... 1930! Podem falar a verdade, sei que, no mínimo, se encontraram por algum aplicativo de paquera. Isso, sim, é normal para a época de vocês.

E deu uma piscadela para os dois. Letícia e Igor ficaram sem graça. Confirmaram a versão da avó. Parecia mais verossímil que a real, da padaria. Aperfeiçoaram a versão moderna, do aplicativo, combinaram detalhes e passaram a adotá-la para contar aos outros. E assim faziam desde então. A história real, guardavam só para eles. Quem sabe, um dia, falariam do quão difícil é encontrar a pessoa da sua vida na fila do pão.

Fonte:
Isso Rende uma História. 21 maio 2017.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Varal de Trovas n. 526

 


Sammis Reachers (O valente Marcondes e o ancião larápio)

Atualmente, Marcondes abandonou a vida de rodoviário e está trabalhando no comércio. Vários podem ser os motivos, e quem sabe um deles é o que passaremos a relatar...

Jovem despachante, Marcondes iniciou sua carreira como cobrador, na empresa Ingá. Moleque malandro, desenrolado, gente fina mas também valente, "brabo" que só ele.

Efetivo no ponto em frente à estação das Barcas, no centro de Niterói, nos finais de semana ele costumava ser escalado para trabalhar do outro lado da rua, em frente à loja Leader, próximo ao Plaza Shopping. Não me pergunte como, mas nessas vezes Marcondes aparecia por lá com um banquinho de madeira, que era pra poder ficar sentado quando houvesse uma trégua na frenética movimentação de ônibus.

Posicionando seu banquinho tranquilamente encostado na parede da loja, nosso amigo costumava pôr sua mochila embaixo do mesmo, pois não havia mais onde guardá-la e ele não queria ficar com a mesma pendurada nas costas, durante oito longas horas. No mais, ali era prático e fácil de vigiar, pois ele só precisava levantar-se, ir até o veículo da vez e marcar a ficha, a apenas uns quatro metros do tal banquinho.

Certo dia, durante uma dessas marcações, um homem, já bastante idoso, viu o banco de apoio desocupado e simplesmente sentou-se nele. Marcondes percebeu, mas resolveu ficar quieto, pois isso acontecia às vezes, e geralmente com idosos: o cidadão ou cidadã via um banco solitário, parado no meio do nada, e já devia imaginar que era público, pois ia logo sentando-se, como se estivesse no sofá de casa. Nosso amigo então permaneceu em pé, e seguiu com as atividades. Marca carro daqui, marca carro dali, e nada de o velhinho levantar-se. Entretido com o trabalho, Marcondes    esqueceu-se momentaneamente do velhote.

De repente, sentiu    uma pontada, uma intuição latejando lá no fundo de seu ser, mandando observar o tal banquinho. Ao olhar, percebeu que o banco estava lá, mas agora vazio. "Ufa!", pensou nosso amigo, já cansado de ficar em pé. Mas sua alegria durou pouco; a parte abaixo do banco também estava 'vazia': sua mochila havia desaparecido!

Naquela região, num tremendo domingo, as ruas ficavam bastante desertas. O valente do Marcondes passou a vista para todos os lados, como uma águia, quando viu, a certa distância, o velhote, meio capenga, correndo e levando sua mochila. Imagine a fúria do nosso despachante!

Dando uma forte arrancada, já de punhos fechados, certo de que alcançaria rapidamente o ancião larápio, nosso herói sentiu algo atravancando o seu avanço: sua calça nova e da melhor qualidade, que ele comprara recentemente... Acontece que nosso amigo, vaidoso, mandara uma costureira apertar bem as pernas da calça, para que ficassem bem justinhas e sexys. Só que ficaram tão, mas tão justas, que impediam o valente de correr!

Imagine a tristeza do bruto, preso em suas calças apertadas, vendo o coroa capenga fugindo com sua mochila, sozinho, em plena luz do dia... e ele sem poder alcançá-lo. Por sorte do nosso amigo, a cidade estava tão deserta àquela hora que praticamente nem testemunhas havia para presenciar aquele ultraje, aquela humilhação de nosso guerreiro gladiador e sua calça de cantor sertanejo...

E assim nosso herói, mano sagaz, malandro bom de briga mestrado e doutorado na faculdade da favela, dentro dela, seus tesouros: três moedas de um real, uma penca de bananas d'água (era o almoço do bruto), uma garrafa de água (quente), um boné encardido da Cyclone e dois cuecões samba-canção sujos, que era tudo o que ele tinha...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Folclore em Versos) O Canto do Uirapuru*

Lenda da Amazônia


Tudo é quietude! Dolente,
trina a flauta de bambu:
- e a mata escuta, silente,
o canto do Uirapuru!
--------------------------
 
Pequenina e graciosa,
a índia, cor de canela,
tinha voz meiga, maviosa...
e a tanga verde e amarela.

Olhos de corça amansada,
mais negros do que o saci,
era feliz... porque amada
por um guerreiro tupi.

Na verde mata, fez ninho.
E a cantar seu grande amor,
parecia um passarinho,
a adejar de flor em flor!

Mas... o guerreiro, malvado,
seu carinho desprezou,
e por outra apaixonado,
o ninho antigo deixou!

Foi definhando, angustiada,
aquela índia menina,
pelo noivo abandonada...
e a guardá-lo na retina!

Enfim... Tupã, condoído,
a abrandar-lhe a triste sorte,
dá-lhe à vida outro sentido,
para poupá-la da morte;

- Numa avezinha encantada,
cor auri-verde-canela,
foi a índia transformada
e voz maviosa revela!

Uirapuru é seu nome
e pelas frondes viçosas,
toda a angústia que a consome,
canta... em notas dolorosas!

Seu trinar, límpido e triste,
a mata escuta silente!
E a mágoa que nele existe,
é a mágoa que a gente sente!

Numa pergunta constante,
dorida. Uirapuru diz
ao seu amado distante:
- Tão triste estou!... És feliz?!..
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* Nota do blog sobre a lenda: Existem várias versões da lenda do Uirapuru. Abaixo coloco três delas:

01

Tupã estava zangado por causa do barulho ensurdecedor que havia na floresta.

– Isto não pode continuar, dizia consigo o Todo-Poderoso.

Era só surgir por ali um guainumbi, com seus trilos estridentes, que a passarada toda se punha a arreliar: as acauãs gritavam, berravam os araçaris, chilreavam os maracanãs, martelavam as guirapongas, chalravam as anhumas e os araporós. Um inferno! Tupã não agüentava mais! Sentara-se numa branca nuvem a pensar, a pensar, quando ouviu certo murmúrio:

- Araã! Araã!

Baixou os olhos e sorriu. Poucas vezes Tupã sorria, mas, desta vez, luziu-lhe pelo semblante um ar de simpatia. Lá estava, debruçada sobre a relva, uma linda menina. Chorava a pobrezita. Tupã condoeu-se e desceu ao campo.

– Que tens? Por que choras?

Ouvindo a voz de Tupã, ofegante o peito e suspensa a respiração, calou-se a indiazinha. Assim, volveu ao Deus os olhos tão úmidos como a várzea no tempo de enchente.

– Que tenho? Ururau, o cacique, comigo não quis casar… Preferiu Araúna que melhor soube flechar…

Tupã se enterneceu. Ururau, chefe da tribo, para escolher a esposa, havia determinado a prova: venceria quem flechasse no vôo o nobre anajé. Araúna acertara.

– Teu nome?

- Chamo-me Oribici… Ó Tupã, faze de mim uma ave, para que eu possa ver se, de fato, Ururau ama Araúna…

- Oribici! – disse Tupã – atenderei a teu pedido. Porém, teu nome daqui para frente será Uirapuru.

No mesmo instante, no céu límpido e sereno, um raio esfuziou. Tupã desapareceu, e da relva, onde até então jazera Oribici, derramando lágrimas sem fim, nascia uma fonte de água clara. Tão copioso fora seu pranto, que dele surgiu um novo córrego.

E Oribici? Ninguém mais a viu. Entretanto, apareceu naquele sítio um pequeno pássaro vermelho-telha – o uirapuru.

Momentos depois, pousava num alto jacarandá, próximo à taba do cacique. Lá estava Ururau abraçado à Araúna. Eles se amavam. E o uirapuru fez:

- Araã! Araã!

O cacique ouviu-o e sobressaltou-se.

– Que houve? – perguntou Araúna.

– Estranho o canto desse pássaro… Espere. Volto já…

E lá se foi o guerreiro como que fascinado pelo Araã que ouvia… Quanto mais se distanciava, mais longe ouvia os sons daquela voz.

Escureceu, mas Ururau caminhava… caminhava sem cessar.

– Araã! – gritava lá longe.

– Araã! – respondia o eco.

– Araã! Araã! – seu ouvido escutava.

Em dado momento, no meio da noite, na densa floresta escura, o uirapuru cantou. Era um canto divino, cheio de uma desconhecida melodia, como que trazida do céu. Ururau ficou enfeitiçado e, assim, caminhou durante vários dias, sem caçar, sem pescar, sem comer, através da mataria.

– Araã! – soavam os rios.

– Araã! – faziam até seus passos.

Ele, que tinha suas tabas nos campos frios de Curirama, começou a sentir os calores excessivos das ipueiras do Pindorama. E a antiga tribo nunca mais viu de volta o seu valoroso chefe.

Não se sabe o que aconteceu, porém diz o povo que Ururau enlouqueceu e anda à procura do uirapuru pelas matas. Esse destino é a vingança de Oribici que o amava tanto.
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02

Unauá é uma índia de voz encantadora que um dia se vê cercada por três índios de uma tribo inimiga. Temendo ser atacada, faz o que pode para fugir. Primeiro, busca abrigo no alto de uma árvore.

Depois, canta para pedir ajuda aos guerreiros de sua própria tribo. Abençoada pelo deus Anhum, Unauá consegue escapar ao transformar-se no uirapuru, pássaro dono do mais belo e raro canto da floresta.
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03

Certo jovem, não muito belo, era admirado e desejado por todas as moças de sua tribo por tocar flauta maravilhosamente. Deram-lhe então, o nome de Catuboré, flauta encantada. Entre as moças, a bela Mainá conseguiu o seu amor; casar-se-iam durante a primavera.

Certo dia, já próximo do grande dia, Catuboré foi à pesca e de lá não voltou.

Saindo a tribo inteira à sua procura, encontraram-no sem vida, à sombra de uma árvore, mordido por uma cobra venenosa. Sepultaram-no no próprio local.

Mainá, desconsolada, passava várias horas a chorar sua grande perda. A alma de Catuboré, sentindo o sofrimento da sua noiva, lamentava-se profundamente pelo seu infortúnio. Não podendo encontrar paz, pediu ajuda ao Deus Tupã. Este, então, transformou a alma do jovem no pássaro irapuru, que, mesmo com escassa beleza, possui um canto maravilhoso, semelhante ao som da flauta, para alegrar a alma de Mainá.

O cantar do irapuru ainda hoje contagia com seu amor os outros pássaros e todos os seres da natureza.

Fontes:
A Lenda em Versos (trova e poema):
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

Textos da Lenda:
- Waldemar de Andrade e Silva. Lendas e mitos dos índios brasileiros. 
São Paulo, FTD, 1997.
- Hermínio de Campos Melo. In MELO, Anísio (org.). Estórias e lendas da Amazônia. São Paulo, Livraria Literat Editora, 1962. Antologia ilustrada do folclore brasileiro.
- Paulinho Tapajós. A lenda do Uirapuru. Ed. Nova Fronteira, 2012.