sábado, 12 de janeiro de 2019

Cego Aderaldo (Cantorias)



Relata o Cego Aderaldo:

"Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue..."

Eu saí do Ceará
Deixei meu triste mocambo,
Com medo do dezenove,
Este pesadelo bambo.
Vinha o coronel Monturo
Junto com doutor Molambo...

A dona fome na frente,
Na cadeira do trapiche,
Dizendo: No Ceará
Tudo é fofo e nada é fixe.
Juro que aqui nesta terra
Não vinga mais nem maxixe...

A dona Fome me olhou
E disse a mim: — Eu pego!
Eu disse: — Não senhora!
Eu sei por onde navego,
Quem tem vista corre logo,
Quanto mais eu sendo cego...

Segui para Fortaleza,
Dei uma viagem além.
O barco era o "Maranhão",
E até corria bem,
Com três dias e três noites
Chegando nós em Belém...

Quando eu cheguei em Belém,
Me encostei naquele cais.
— Aonde vai esta linha?
Eu perguntei a um rapaz
Ele disse: — Nesta linha
Passa um trem para São Brás...

Eu parti para São Brás,
Para casa de Gaudêncio
Que já conhecia bem,
Ele, Salina e Merêncio;
Junto estes amigos
Não pude guardar silêncio...

Fui para Madre de Deus,
Terra de um povo fiel,
Ali ganhei qualquer cousa
Tomei açaí com mel,
De manhã peguei o trem,
Fui para Santa Isabel...

Depois fui para Americana,
Cantei lá no Apéu,
Do sitio de São Luís
Eu fui pra Jambuaçu;
Eu cantei no Castanhal,
E no Igarapeaçu...

No primeiro Caripi
Eu cantei, lá fui feliz,
No segundo Caripi
Cantei tudo quanto quis,
E ali tomei o trem,
Fui cantar em São Luís....

Ali chegou um convite,
Eu para Muricizeira,
Depois, cantei no Burrinho
Cantei no Açaí Teuã...
Fui cantar no Timboteuã...

Segui para Capanema
Com coragem e esperança.
Passei uns dois ou três dias
E segui para Bragança,
Dizendo sempre comigo:
— Quem espera em Deus não cansa...

Quando eu cheguei em Bragança,
Não quis ir no Benjamim,
Não encontrando hospedagem,
Me hospedei num botequim,
Que era coberto e cavaco
E circulado a capim...

O dono do botequim
Veio a mim e perguntou:
— Cego de onde tu és?
Me diga se é cantador.
Me diga se não tem medo
De Azuplim trovador...

Me perguntei: — Não senhor!
Será algum rio-grandense
Ou mesmo um paraibano,
Ou um cantador cearense?
Ele disse: — Não senhor,
É um cantor paraense...

Quando findei a palavra
Vi o paraense chegar,
Ele trazia consigo
Uma viola e um ganzá,
E trazia um tamborim,
Que é instrumento de lá...

Ele afinou a viola,
Quando bateu no ganzá,
Deu um tom no tamborim
Para o baião entoar,
Eu tirei a rabequinha
E fiz a prima chorá...

Cego -
— Eu lhe disse: — Oh! Paraense,
És uma ninfa de fada,
Teu cântico me parece
A deusa da madrugada.
Eu lhe peço, amicíssimo,
Que cante a sua toada...

Azuplim - 
— Cego, minha toada é,
Um trabalhador garantido.
Você pra cantar mais eu
Precisa ser aprendido,
Queira Deus tu me acompanhe, ai ai!
Pra cantar nesse gemido...

Cego -
Meu amigo, o teu gemido,
Tem destacado valor,
Canta bem perfeitamente,
Já vi que é bom cantador,
Mas amigo, esse gemido,
Me desculpe, que eu não dou...

Azuplim — 
Se num dás um só gemido
Também não és cantador,
Vá cobrar logo o dinheiro.
Do mestre que lhe ensinou, ai, ai!
O cego já apanhou...

Cego — 
Se gemer foi cantoria,
Você é bom cantador,
Pois gemes perfeitamente,
No gemido tem valor,
Mas geme com grande dor...

Azuplim — 
Ou que gema ou que não gema,
A boa palavra encerra,
Cego, cante aqui mais eu,
Que eu vim lhe fazer guerra,
Quero que você me diga, 
ai, ai!
A linguagem da minha terra...

Cego — 
A linguagem da tua terra,
Não é linguagem mesquinha,
É toda no guarani
Estudada, é bonitinha!
Para que não perguntaste
A linguagem da terra minha?...

Azuplim — 
Eu quero é que diga da minha
Por que muda de figura:
Cego, diga para mim
O que nós chama mucura,
Quero que você me diga, ai, ai!
O que é saracura...

Cego — 
É verdade, essa linguagem
Muda mesmo de figura,
O que nós chama casaco
Vocês só chamam mucura
E o que nós chama sericóia
Vocês chamam saracura...

Azuplim — 
Cego, diga para mim:
O que é jamaru?
Queira Deus você me diga
O que é jacuraru,
O que é macuracar ai, ai!
O que nós chama jambu...

Cego — 
É o que nós chama cabeça,
Vocês chama jamaru,
O que nós chama tejo,
Vocês chama jacuraru,
Tipi é mucuracar,
E agrião chamam jambu...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
O que nós chama jibóia,
Quero que você me diga
O que é tiranabóia,
Diga aí pra eu saber, ai, ai!
O que é "pegando a bóia"...

Cego — 
No Piauí tem um besouro
De nome tiranabóia,
Nossa cobra-de-veado
Cresce aqui, chamam jibóia,
Em minha terra almoço e janto,
... tanto aqui só "pego a bóia"...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
O que é a sacupema,
Veja se você me diz
O que é piracema,
Diga aí rapidamente, ai, ai!
O que nós chama panema...

Cego — 
O que nós chama raiz
Vocês chama sacupema,
O que nós chama peixe muito
Vocês chamam piracema;
A um sujeito preguiçoso
Chega aqui chamam panema...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
A língua dos Tupinambá,
A língua dos Aimoré,
Ou dos índios Caetá,
Ou sobre os índios Tamoios
Ou índios Tamaracá...

Cego — 
Sobre as gírias dos índios,
Desde o Norte até o Sul,
Pixueira é coisa fria,
Um beijo chama meiru,
Tacioca é uma casa,
Morada de caititu...

Azuplim — 
Agora o cego Aderaldo
Me respondeu muito bem,
Vi que gírias dos índios,
Ele segue mais além,
Pelo jeito que estou vendo
Você é índio também...

Cego — 
Meu amigo eu não sou índio,
Nasci num pobre lugar:
Que é tão propenso a seca
Que obriga a gente emigra
Sol danado de Iracema,
Terra de Zé de Alencar...

Azuplim — 
Cego, deixa de mentira,
Tua terra não tem nome,
Tua terra é uma miséria,
É lugar que não se come,
De lá veio cinco mil,
Tudo pra morrer de fome...

Cego — 
Dos cinco mil que vieram
Algum era meu parente,
Um era tio, outro primo,
Conterrâneo e aderente,
Mais esse povo só come
Massa de figo de gente...

Azuplim — 
Saí daí, cego canalha,
Com a sua poesia,
Nesta minha carretilha
Você hoje se esbandalha,
Teu cântico tem grande falha,
Quer cantar mais não convém...
Você somente o que tem
É entrar no bacalhau;
Apanhar de peia e pau
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
De onde tu vens contrafeito,
Cabeça de onça mancho,
Bote o matulão abaixo
E conte a história direito,
Me diga o que aqui tem feito
Por estes mundos além,
Se você matou alguém
Ou então se fez barulho,
Vai muito mau seu embrulho,
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
Quando eu pego um cantador
Dou três tacada danada,
Lhe deixo a cara inchada
De relho e chiquerador,
É o café que lhe dou,
É isto que lhe dou,
E não diz nada a ninguém,
Apanha e fica calado,
Triste e desmoralizado
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
Disse uma velha na rua
Que em outros tempos atrás
Você e um seu rapaz
Lhe roubaram uma perua;
Veja que moda esta sua
Roubando quem vai, quem vem,
Como tu não tem ninguém
Mais ladrão do que você.
Tome lá meu parecer:
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
O cantador que eu pegar
Pelo meio da travessa
Nem Padre lhe confessa
Enquanto eu não lhe soltar,
Dou-lhe arrocho de lhe quebra,
Osso e costela também,
Quebro tudo que ele tem,
Deixo-lhe o corpo em bagaço,
Tudo quanto eu digo eu faço,
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
Até as moças donzelas
Pediram aos cabras da feira
Para meter-lhe a madeira
E arrebentar-lhe as costelas.
Você abra o olho com elas,
Boa surra você tem,
Neste dia também vem
A velhinha da perua
Quebrar-lhe a cara na rua,
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
Também não quero brigar,
Não sou homem de intriga,
Eu não nasci para briga
E não vivo de pelejar;
Também não quero teimar
Porque isso não convém,
Lhe venero e quero bem,
Digo isso pode crer;
Não quero lhe aborrecer,
Cearense aqui vai bem...

Cego — 
Amigo, como mudou,
Que coisa misteriosa!
Tens o perfume da rosa
Que há pouco desabrochou.
Por isso tem o maior verdor
Do que lá no bosque tem.

O anjo lá de Belém
Ouviu nossa cantoria,
Entrarmos em harmonia,
Paraense aqui vai bem...
Havia quatro cervejas
Que um coronel apostou
Dizendo que todas quatro
Pertencem ao vendedor
Nós dois bebemos as cervejas
Nem um nem outro apanhou...

(Estado do Pará, junho de 1919)

Cego Aderaldo (1878 - 1967)

Aderaldo Ferreira de Araújo (Cego Aderaldo), nasceu em 1878 na cidade do Crato/CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, perdeu sua depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. 

Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. 

Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Foi para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.

Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. 

Logo depois, em 1933, teve a ideia de apresentar vídeos, que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.

Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios,  mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. 

Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.

Morreu em Fortaleza, em 1967, aos 89 anos de idade.

Fontes:
Imagem: Monumento de Cego Aderaldo, em Quixadá/CE
Prefácio de Rachel de Queiroz, in Eu sou o Cego Aderaldo
SP: Maltese Editora, 1994

Mário Quintana em Prosa e Verso 6


MEU TRECHO PREDILETO

O que mais me comove, em música, são essas notas soltas - pobres notas únicas - que do teclado arranca o afinador de pianos...

PROSÓDIA

As folhas enchem de ff as vogais do vento.

CLOPT! CLOPT!

É a ruazinha que tosse, tosse, engasgada com o homem da muleta.

SÓ PARA SI

Dona Cômoda tem três gavetas. E um ar confortável de senhora rica. Nas gavetas guarda coisas de outros tempos, só para si. Foi sempre assim, dona Cômoda: gorda, fechada, egoísta.

JANELA DE ABRIL

Tudo tão nítido! O céu rentinho às pedras. Pode-se enxergar até os nomes que andaram traçando a carvão naquele muro. Mas, mesmo que o céu soubesse Ler, isso não teria agora a mínima importância. E sente-se que Nosso Senhor, em comemoração de abril, instituirá hoje valiosos prêmios para o riso mais despreocupado, para o sapato mais rinchador, para a pandorga mais alta sobre o morro.

VIRAÇÃO

Voa um par de andorinhas, Fazendo verão. E vem uma vontade de rasgar velhas cartas, velhos poemas, velhas contas recebidas. Vontade de mudar de camisa, por fora e por dentro... Vontade... pata que esse pudor de certas palavras? Vontade de amar, simplesmente.

CARRETO

Amar é mudar a alma de casa.

PARÁBOLA

A imagem daqueles salgueiros n'água é mais nítida e pura que os próprios salgueiros. E tem também uma tristeza toda sua, uma tristeza que não está nos primitivos salgueiros.

OS MÁSCARAS

O Homem Invisível via-se obrigado a botar máscara. Era uma face enganadora, alheia, sinistra, melancólica...

O Poeta, para entrar em contato com os outros homens, põe-se a fazer poemas.

O POEMA

Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério da vida...

COMUNHÃO

Os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais.

PASSARINHO EMPALHADO

Quem te empoleirou lá no alto do chapéu da contravó, tico-tico surubico? Tão triste.., tão feio... tão só... Meu tico-tiquinho coberto de pó... E tu que querias fazer o teu ninho na máquina do Giovanni fotógrafo!

GARE

Faz tanto tempo que se está esperando o trem que não vem, o trem de Belém que as bagagens alheias, amontoadas no banco, cheiram-me a poeira de séculos: devem estar aqui, embolorando, o caduceu de Mercúrio, a  cabeleira de Absalão, uma peça íntima de Cleópatra, um báculo de bispo, uma tabaqueira de Luís XV, um olho de vidro, uma fivela, uma bolsa de água quente, um lenço com um nó, um...

Sinto-me tão infeliz. Para que me fui meter nesse triste inventário, meu Deus? E, a cada suspiro que dou, o meu anjo da guarda perde mais uma peninha da asa.

Fonte:
Mario Quintana. Sapato florido. São Paulo: Globo, 2005.

Nilto Maciel (As Pontas da Estrela)


Os bêbados de Palma ainda diziam besteiras em torno do parto feliz e inesperado da Beata, quando no bar de Pedro Mateiro entrou, correndo, a figura agitada e esvoaçante de Bemtevi, suado e assustado.

– Que aconteceu, homem de Deus? Alguma desgraça?

– Diga logo: caiu alguma igreja?

O novidadeiro encostou-se na parede, acocorou-se e sentou-se no chão sujo de cusparadas e cinzas de cigarro. Deu três suspiros e se disse curado da carreira. Abriu a boca para contar as esperanças dos outros. Nenhuma palavra disse, como a deixar que as badaladas da meia-noite penetrassem no seu assombro. Os grandes relógios das igrejas e os cucos dos sobrados mais uma vez se confundiam na babel do tempo.

Nem bem o alto-falante irradiou o cântico da Ave-Maria, o sol aquela poça de sangue medonha em cima da serra, a notícia do parto da Beata encheu de luto as ladeiras de Palma. Depois, um ventinho frio inundou o ar de pedaços de bilhetes comprometedores, cartas amorosas e outras fúteis anotações, a anunciar a Pedro Mateiro mais uma rodada.

– O menino nasceu...

– De novo?

As garrafas gargalharam nas prateleiras e o polvo de Palma despertou, com seus mil braços a agitarem-se nas janelas.

– Nasceu com uma ...

– Cabeça?

– Não, uma estrela.

Pedro saltou o balcão e se uniu aos bêbados. E todos beberam e pediram cigarros a Pedro. Bem perto e bem longe do bar, janelas e portas se abriram, de repente. Alvoroçavam-se as ruelas de Palma, escura e misteriosa.

– Deixe de doidice, rapaz.

– É verdade, uma estrela bem na testa.

Nenhuma mentira durava mais de um dia na cidade e o padre toda madrugada gritava endemoninhado contra os luxuriosos e levantadores de falso. As velhinhas tremiam sobre os sofridos joelhos e desmaiavam.

Não podia ser. Explicasse a coisa direito. Quem já tinha visto nascer uma pessoa com uma estrela na testa?

– Dizem que é uma estrela de cinco pontas.

– E é ruim?

Como podia saber uma coisa daquelas? Por acaso se chamava Camões ou Cego Aderaldo? Além do mais, não tinha certeza do número exato de pontas. Uns falavam em cinco, outros em seis.

A cada palavra, mais se complicava o narrador. Quiseram saber então qual a pior das estrelas, se a de cinco ou a de seis pontas.

Também isso não sabia explicar Bemtevi. Além do mais, a cada hora nascia mais uma ponta. Sim, pela última informação, já eram dez.

– O que será isso, meu Deus?

– Não sei. Só sei que, quanto mais se contam as pontas, mais elas são.

Abandonaram os copos os bebedores, persignaram-se todos e, ajoelhados, rezaram aos pés do balcão.

– Maldição!

– Obra do Capiroto.

Na calçada, Bicudo dormia desde a boca da noite. A primeira notícia abateu-se sobre sua embriaguez como uma marretada: mais duas talagadas e a baba escorreu e os olhos se cerraram. De novo tombou sobre si mesmo, a maldizer-se. A meia-noite despertou-o do sonho de amor. E ouviu estrelas e retomou o fio perdido da meada.

– É o filho de Efigênia?

– E do gringo.

Podia ser do padre, do padre podia ser. Ou do sacristão, de algum cristão. Ou era filho do cão?

– Homem, não diga isso.

Lembraram-se do fenômeno da estrela na testa. Como podia ser essa tal estrela? Cheia de pontas, brilhante, rosário de contas, cintilante?

Um dedo apontou para o Cruzeiro do Sul e todos os olhos bêbados dançaram no céu estrelado.

– Amarela?

Não se sabia bem a cor. Falou-se primeiro na cor do ouro. Outras cores do arco-íris, porém, já andavam de boca em boca.

– Então não é uma estrela.

Quem ali sabia os mistérios do céu?

– É muito pequena?

– Do tamanho de uma testinha?

Se nada sabia Bemtevi, por que jurava ser uma estrela aquilo que podia ser uma lágrima, talvez um pingo d’água, insignificante grão de areia? Deixasse então de mistérios, ou não dissesse mais nada.

E Bicudo propôs fossem ver o menino.

Não podiam. A casa permanecia fechada a quatro chaves. Do lado de dentro, só a Beata e a parteira, e o menino com sua estrela.

Pedro coçou a cabeça, contou seus bêbados e olhou para a rua por cada uma das portas.

– Você viu o menino?

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Caldeirão Poético XIX



CECY B. CAMPOS
Juiz de Fora/MG

ÁLBUM

Desfolhando o velho álbum de retratos,
que jazia abandonado em alguma prateleira,
relembrei pessoas, que estavam esquecidas,
e não reconheci imagens que eram minhas.
O tom amarelado esmaecia
sorrisos jovens que ficaram tristes:
tirava o viço de vidas tão distantes
e que, um dia, foram parte de minha vida.
Entre as velhas amizades retratadas,
revi amigos dos quais eu lembro os nomes
e outros, dos quais, nada mais resta,
porque ficaram perdidos pelo tempo.
Ao contemplar aquelas fotos desbotadas,
vou rejuntando, aos poucos, os pedaços
de uma história que nem sei se já vivi.
_____________

FLORBELA ESPANCA
Vila Viçosa/Portugal 1894 – 1930 Matosinhos/Portugal

TARDE NO MAR

A tarde é de ouro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas, 
São as asas do sol, agonizantes...
____________________

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE

GATU’S BAR 

Tira gosto é cajarana
Para Pitú, Ypióca,
Mas eu prefiro paçoca
Sempre que vou a Santana
Eu tomo uma boa cana
Para poder me esquentar…
Sem saber onde parar
Vou seguindo pelo faro
Você sabe aonde paro?
Eu paro no GATU’S BAR.

Voltando liso, sem grana,
Deixo esta bela cidade
No bolso levo saudade
Quando saio de Santana
Bom boêmio não se engana
Quando é noite de luar…
Eu sei que vou viajar
Nesta estrada traiçoeira
Pra tomar a saideira
Eu paro no GATU’S BAR.
______________________

JÚLIA DA COSTA
Paranaguá/PR, 1844 – 1911

SONHOS AO LUAR

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Serás por acaso o eco
De meu triste cogitar?...

Eu também amo a saudade
Que me inspira a solidão;
Amo a lua que me fala
Do passado ao coração.

Como tu choro uma noite
De luar que se ocultou;
Como tu choro a esperança
De uma aurora que passou.

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Quem és tu que na minh’alma
Vens de manso dedilhar?...

Serás inda a sombra errante
De uma noite que morreu?...
Meigo raio de ventura
Que em meu seio se escondeu?...

Quem és tu? Dize quem és
Branca sombra lá do céu!
Dize o nome do teu canto
Que eu dir-te-ei quem sou eu!
__________________

MARCOS ASSUMPÇÃO
Niterói/RJ

GIRASSÓIS E CORTESÃS

Eu não sei como domar a fera
que insiste em habitar em mim.
Fera fere à faca a carne fraca
e essa vontade de ir embora.

Um milhão de pensamentos luz.
Solidão que bate e desespera
e nas entre linhas do poeta
toda dor transformará canção.

Eu carrego um gosto de sal
e a chuva das manhãs.
Nas minhas mãos, girassóis
pra enfeitar as cortesãs.
___________________________

NEMÉSIO PRATA 
Fortaleza/CE

GLOSA

Mote:
Um sonho lindo que eu tive
onde tudo era harmonia
acordei... não me contive...
Era um sonho!... Que agonia!
José Feldman (Maringá/PR)

Glosa:
Um sonho lindo que eu tive
trouxe-me doces lembranças
quando jovem, em aclive,
via na vida esperanças!

Fora uma bela visão
onde tudo era harmonia
dando-me viva impressão
do quão feliz eu seria!

Hoje em infausto declive
na vida, sem me por freio,
acordei... não me contive...
foi só mais um devaneio!

Que o sonho fosse verdade
era tudo o que eu queria,
mas quedei-me à realidade:
Era um sonho!... Que agonia!
__________________

VÂNIA M. DINIZ
Brasília/DF

TERNURA

O olhar era intenso,
Como brilhantes faiscantes,
Admiráveis,
Imutáveis.

Havia neles,
Mais do que o brilho,
O regozijo pela vida,
E o fulgor da esperança.

Fixavam um ponto distante,
Como perdidos no sonho,
Quimeras incandescentes,
De longa duração.

Nada parecia irreal,
Na intensidade do momento,
Refletido em soberbas pupilas.

Sinônimo era ternura,
Da expressão a mais linda,
Que enxerguei um dia...
___________________________

WALT WHITMAN
Estados Unidos, 1819 – 1892

ENQUANTO EU LIA O LIVRO

Enquanto eu lia o livro, a famosa biografia:
- Então é isso (eu me perguntava)
o que o autor chama
a vida de um homem?
E é assim que alguém,
quando morto e ausente eu estiver,
irá escrever sobre a minha vida?
(Como se alguém realmente soubesse
de minha vida um nada,
quando até eu, eu mesmo, tantas vezes
sinto que pouco sei ou nada sei
da verdadeira vida que é a minha:
somente uns poucos traços
apagados, uns dados espalhados
e uns desvios, que eu busco
para uso próprio, marcando o caminho
daqui afora.)