sexta-feira, 19 de abril de 2013

Luto

Peço a compreensão dos leitores se amanhã não houver postagens.

Hoje de tarde, a minha cadela Maya (uma pastora branca) deu seu ultimo suspiro. 

Contava então 17 anos de idade.

Espero que compreendam este dia de silencio e de dor.

José Feldman

George G. Vest (Tributo a Um Cão)

Maya (foto J. Feldman)
O mais altruísta dos amigos que o homem pode ter neste mundo egoísta, aquele que nunca o abandona e nunca mostra ingratidão ou deslealdade, é o cão.
 
O cão permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença. Ele dormirá no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente se lá seu dono estiver.
Quando somente ele estiver ao lado de seu dono, ele beijará a mão que não tem alimento a oferecer, ele lamberá as feridas e as dores que resultam dos encontros com a violência do mundo. Ele guarda o sono de seu pobre dono como se fosse um príncipe. Quando todos os amigos o abandonarem, o cão permanecerá.
 
Quando a riqueza desaparece e a reputação se despedaça, ele é constante em seu amor como constante é o sol em sua viagem através do firmamento. Se a fortuna arrasta o dono para o exílio, o desamparo e o desabrigo, o cão fiel perde o privilégio maior de acompanhá-lo, para protegê-lo contra o perigo e para lutar contra seus inimigos. E quando a última cena se apresenta, a morte o leva em seus braços e seu corpo é deixado na lage fria, não importa que todos os amigos sigam o seu caminho: Lá, ao lado de sua sepultura, se encontrará seu nobre cão, a cabeça entre as patas, os olhos tristes mas em atenta observação, fé e confiança, mesmo à morte.

Matheus Santos (Cães, Anjos sem Asas!!!)

"Existem pessoas que não gostam de cães... Estas com certeza, nunca tiveram em sua vida Um Amigo de quatro patas, ou se tiveram, nunca olharam dentro daqueles olhos para perceber quem estava ali.
 
Um cão é um anjo, que vem ao mundo ensinar Amor! Quem mais pode dar Amor incondicional? Amizade sem pedir nada em troca? Afeição sem esperar retorno? Proteção sem ganhar nada? Fidelidade vinte e quatro horas por dia? Ah! não me venham com essa de que os Pais fazem isso, porque os Pais são humanos e quando os agredimos ficam irritados e se afastam... Um cão não se afasta, mesmo quando você o agride; ele retorna cabisbaixo, pedindo desculpas por algo que não fez. Lambe suas mãos, a suplicar perdão.

Alguns anjos não possuem asas, possuem quatro patas, um corpo peludo, nariz de bolinha, orelhas de atenção, olhar de aflição e carência. Apesar dessa aparência, são tão anjos quanto os outros (aqueles com asas!) e se dedicam aos humanos tanto quanto qualquer anjo costuma dedicar-se. 

As vezes, um humano veste a capa de anjo e sai pelas ruas a resgatar anjos abandonados à própria sorte e lhes cura as feridas alimenta, abriga, só para ter a sensação de haver ajudado um anjo...

DEUS quando nos fez humanos, sabia que precisaríamos de guardiões materiais que nos tirasse do corpo, as aflições dos sentidos e nos permitissem sobreviver, a cada dia com quase nada, além do olhar e da lambida de um cão!
 
 Que bom seria, se todos os humanos pudessem ver a humanidade perfeita de Um Cão!!!" 

Fonte:
http://forumadestradoronline.com

Nilto Maciel (Catedrais de Barro)

 O mal de certa gente afeita a redigir, na hora de lapidar seus contos e poemas, é torná-los quase enigmáticos. Não, não é certo usar esse “quase”. Na verdade, se convertem em signos indecifráveis, semelhantes a fórmulas, ao mesmo tempo cabalísticas e matemáticas. Conheço muitas dessas pessoas de aparência normal (nada de cabeças desproporcionais, antenas verdes plantadas na testa, como aqueles extraterrestres de Hollywood). São idênticas a nós: leem Machado de Assis, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos e também Kafka e Joyce (em português). Vão a cinemas, teatros, ouvem música clássica, chorinho, Luís Gonzaga. Tomam chope, conhecem mulheres ou homens, gostam de feijoada, baião de dois e pizza. São quase (aqui cabe o advérbio) iguais aos outros seres humanos. Quando não chegam a tanto, se parecem com escritores.

        Ficcionistas novos (na idade) ou principiantes (alguns se iniciam na arte de escrever depois de maduros, aposentados, desiludidos dos prazeres da carne, do vinho, do queijo e dos doces) me mandam contos e poemas (devo agradecer aos céus por não produzirem aqueles romances enormes ou aquelas novelas intermináveis) e pedem opinião. Com enfado, corto aqui, podo ali, e, cansado, sugiro revisão gramatical. Também me tratam assim, com essa preocupação profilática, meus amigos mais adestrados no ofício de burilar (não escrevi burlar) frases, professores de gramática e língua portuguesa, todos de extrema erudição. Acato suas sugestões, embora nem sempre consiga efetuar a emundação proposta. Não me zango com eles; pelo contrário, sou-lhes grato. Não fossem eles, quantas barbaridades eu teria publicado!

Entretanto, os pimpolhos e os senhores a quem me referi se inflamam comigo. Uns deixam de me cumprimentar e saem por aí, zangadíssimos, a me achincalhar: sujeitinho metido a intelectual, escritorzinho sem cabedal, desconhecido até da própria família.  Até imagino suas infantilidades: rasgam, queimam, jogam fora os livros de mim recebidos em doação paternal.

Aprendi duas ou três lições de podadura verbal. Não apenas no uso da língua, mas também na elaboração de um estilo e escolha e tratamento dos temas. Não propagarei os nomes de meus mestres, como não informarei os apelidos dos meus insolentes “alunos”.

Uma delas diz respeito ao uso reiterado de vocábulos, na mesma frase, na mesma oração, no mesmo parágrafo, na mesma página. Em meus escritos encontrei milhares de “mas”, “porém”, “estava”, “era”, “que”, “pôs”, etc. Alertaram-me desse pecado meus amigos. Como não se trata de erro ortográfico (é só defeito de estilo), não dei importância ao carão. Além disso, até nos grandes criadores são encontradas repetências sucessivas de vocábulos e expressões. Vejamos este trecho de Dom Casmurro: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira”.  O termo “que” aparece onze vezes; “mas”, quatro vezes.

Além de evitar a repetição de vocábulos, devemos nos esquivar de expressões reproduzidas em demasia, transformadas em clichês, os ditados, sem falar nos termos chulos e da moda, as gírias, os jargões.

Assim também devemos nos comportar em relação às descrições desnecessárias, às narrações de gestos e atos insignificantes (para a trama), aos adjetivos que servem de mero adorno, sobretudo os qualificativos de ordem moral (especificamente no caso de narrador onisciente). O estilo se faz mais límpido e agradável, se nos dedicarmos a um trabalho de remoção de entulhos nos diálogos. Precisamos extirpar as falas inúteis, se nada acrescentam à compreensão da narrativa. Chamemos a isso de benfeitorias. Encurtar a fala do personagem tagarela é sempre salutar. Isso pode ser feito com a transposição do diálogo direto para o indireto e, ainda, com o não emprego dos desagradáveis verbos dicendi. A frase deve ser clara. Nada de deixar o leitor em dúvida. Ou dar a tudo duplo sentido, como a chamar o leitor de idiota.

Entretanto (volto ao início desta crônica), não é preciso ser purista, seguir as normas gramaticais ao pé da letra, escrever à maneira de Camões, Bernardes, Vieira, Castilho. Ou, pior ainda, aprimorar tanto o estilo, a frase, que o leitor terminará por nada entender ou por se enredar todo nas malhas de um fraseado excessivamente obscuro. Sentir-se-á enjoado de tanto malabarismo verbal, de tanto neologismo, de tanta invencionice. O pior de tudo, porém, se dá quando o escriba se imagina bem diferente de todos os outros. Acima dos demais, como se escrevesse para deuses, gênios ou seres imaginários. Objetiva ser enigmista, ininteligível, ilegível. Certamente tenciona se afastar dos recursos gramaticais e estilísticos, romper todas as barreiras, ser o anti-Machado, o anti-Graciliano, o anti-Pessoa. Corre de medo de frases assim: “Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu” (Dom Casmurro). Ou desse modo: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes (Vidas secas). Ou de Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto” (“Aniversário”). Fogem da difícil simplicidade!

Portanto, nem desleixo, nem esmero demasiado. Um é pobre, feio, sem arte. O outro é similar ao falso rico: “tem” mansão (só a fachada), carro importado (alugado por uma semana), jatinho (emprestado). São catedrais de barro. E isso não é arte, é falsidade, é logro.

Fortaleza, 19/20 de fevereiro de 2013.

Fonte:
Literatura sem Fronteiras

Oficinas de Criação Literária na Biblioteca Pública do Paraná , em Curitiba

Poesia:
Fabrício Corsaletti
(14 a 16 de maio)

Infantojuvenil:
Ricardo Azevedo
(11 a 14 de junho)

Crítica Literária:
Luis Augusto Fischer
(10 a 12 de julho)

Crônica:
Antônio Torres
(13 a 15 de agosto)

Narrativa experimental:
Marcelino Freire
(10 a 12 de setembro)

Jornalismo Cultural:
Marcos Flamínio
(9 a 11 de outubro)

Conto:
Antonio Carlos Viana
(12 a 14 novembro)

Mais informações:
oficina@bpp.pr.gov.br

Inscrições gratuitas. Vagas limitadas.


Fonte:
Assessoria de Imprensa da BPP

Oficinas e Encontros nas Bibliotecas de São Paulo

Palestra: Era uma voz que sempre dizia – Era uma vez...

Com Ilan Brenman, mestre em Educação pela USP, psicólogo, autor de livros infantis e contador de histórias.

A voz do contador de histórias ressoa para sempre na alma dos que viveram os contos ouvidos, nos quais moram bruxas, princesas, feiticeiros, soldados, heróis, monstros e seres fantásticos. A voz e as palavras do contador, articulando-se em emoções e enredos, passam pelo seu corpo e ressoam nos seus ouvintes, estabelecendo ligações invisíveis. No caminho de formação de um leitor, passa-se, certamente, pelos momentos de ouvir histórias. Momentos em que a oralidade assume toda sua importância - mesmo nas sociedades contemporâneas. Inscrições diretamente na biblioteca.

20 de abril (sáb), 11h – BP Hans Christian Andersen
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O livro para crianças no Brasil: Mudanças e permanências
Com a Profª Marli Vidal

Varinhas de condão já foram instrumentos de trabalho. Nos recantos desta biblioteca, ainda podem ser encontradas, em encantadores livros, moradas de fadas, bruxas, do Saci e da Cuca. Os tempos mudaram. As crianças-leitoras de hoje dominam instrumentos sofisticados e precisos – suportes eletrônicos variadíssimos – mas continuam a guardar os sonhos. A literatura muda, mas permanece. Viajarmos pelos caminhos da Literatura Infantil desde que na Belmonte ela veio morar, em 1953.

24 de abril (qua), 19h – BP Belmonte
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Cada história tem seu livro
Cia do Mar

O livro infantil entra em cena, passando a ser elemento básico de toda intervenção e da trilha sonora, criada a partir do próprio livro. Historias contadas e encenadas, com efeitos sonoros e apetrechos curiosos.

19 de abril (sex), 11h – Ônibus-biblioteca Roteiro Jardim Luso – Z. Sul
21 de abril (dom), 13h – Ônibus-biblioteca Roteiro Chácara Santana – Z. Sul
23 de abril (ter), 12h – Ônibus-biblioteca Roteiro Vila Paranaguá – Z. Leste
24 de abril (qua), 12h – Ônibus-biblioteca Roteiro Vila Guilhermina – Z. Leste

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Contos e Cantos Africanos
Com o Grupo Sansakroma

Buscando referências na cultura oral dos africanos, brasileiros e cubanos, o Grupo Sansakroma promete um momento de muitas histórias, música e diversão, tendo uma exposição de arte africana com máscaras, esculturas e instrumentos como cenário.

19 de abril (sex), 14h – Ônibus-biblioteca Roteiro Jardim Primavera – Z. Sul
20 de abril (sáb), 14h – Ônibus-biblioteca Roteiro Jardim Miriam – Z. Sul
21 de abril (dom), 14h – Ônibus-biblioteca Roteiro Colônia – Z. Sul
25 de abril (qui), 14h – Ônibus-biblioteca Roteiro Jardim Peri – Z. Norte

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    Contação de Histórias

No tempo que a galinha tinha dentes...
Com Beth Filipini

Os mais belos contos, fábulas, lendas, mitos e "causos".
24 de abril (qua), 10h e 14h30 – BP Thales Castanho de Andrade
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Lendas, mitos e contos da América Latina
Com Grupo Girasonhos

As histórias fantásticas da América Latina revelam uma riqueza cultural plena de imaginação e fantasia. Um legado que será transmitido às crianças a fim de despertar nelas o encantamento com a cultura latino-americana com histórias como: O homem jacaré (Colômbia), O cavalo sete cores (Guatemala), A mulata de Córdoba ( México), O homem pássaro (Peru) e Dona Raposa e os peixes (Argentina). 
 
24 de abril (qua), 14h – Ponto de Leitura Tide Setúbal
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Sarau do Ricardo ao Assumpção
Com o grupo de Teatro Projeto Bazar e Convidados

Homenageando o poeta Cassiano RICARDO e o músico Itamar ASSUMPÇÃO, patronos da biblioteca, o SARAU é um espaço para a manifestação e fruição das várias linguagens artísticas, com destaque para a música, a literatura e o teatro. O público é convidado a participar, podendo escolher poemas, crônicas e outros textos para recitar ou ler, entre as obras previamente selecionadas no acervo, de acordo com o tema do mês. Em abril, o tema do sarau será "Elogio da Leitura", no mês em que se celebram o Dia Mundial do Livro e o Dia Mundial do Livro Infantil.
 
19 de abril (sex), 14h – BP Cassiano Ricardo

Fonte:
Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas. Secretaria de Cultura. Prefeitura de São Paulo

2º Concurso de Poesias Carlos Cezar - 2013 (Resultado Final)

A premiação do 2º Concurso de Poesias Carlos Cezar - 2013 será dia 04 de maio deste ano, às 15 horas, no Auditório Cultura "Maria Ignez Pereira", na Estação Cultura, que fica na Praça Duque de Caxias, em Moji Guaçu, SP.

Maiores informações, por favor, falar com Maria Ignez, pelo telefone (19) 3861-2984.

Vencedores

1º Lugar
Josué de Vargas Ferreira
Ribeirão Preto, SP

2º Lugar
Jaime Pina da Silveira
São Paulo, SP

3º Lugar
Renata Paccola
São Paulo, SP

4º Lugar
Ariosvaldo Alves de Oliveira
Bayeux, PB

5º Lugar
Giovanna Carla Silva e Oliveira
Brasília, DF

Menção Honrosa

Alfredo Barbieri
Taubaté, SP

Celso Ricardo de Almeida
Fervedouro, MG

Domingos Freire Cardoso
Ílhavo, Portugal

Lenir Mattos de Moura
Arraial do Cabo, RJ

Lucas Paiva Ribeiro
Moji Guaçu, SP

Menção Especial

Aurineide Alencar de Freitas Oliveira
Dourados, MS

Dom Antonio Affonso de Miranda
Taubaté, SP

Edileuza Bezerra de Lima Longo
São Paulo, SP

Marina Gomes de Souza Valente
Bragança Paulista, SP

Sarah de Oliveira Passarella
Campinas, SP

Obrigado pela confiança no Concurso promovido pela CaEs e UBT de Moji Guaçu.

Fonte:
Olivaldo Junior

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 7

CAPÍTULO XLI / A AUDIÊNCIA SECRETA

O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar o Doutor João da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume. Minha mãe saiu da sala, e, dando comigo, perguntou se acompanhara Capitu.

--Não, senhora, ela foi só.

E quase investindo para ela:

--Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa.

--Que é?

Toda assustada, quis saber o que é que me doía, se a cabeça, se o peito, se o estômago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre.

--Não tenho nada não, senhora.

-- Mas então que é?

-- É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do chá; logo... Não é nada mau; mamãe assusta-se por tudo; não é cousa de cuidado.

--Não é moléstia?

--Não, senhora.

É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro, mas tu estás constipado; conhece-se pela voz.

Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permitiu adiar a confidência, pegou em mim, levou-me ao quarto dela, acenda vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu perguntei-lhe, para principiar, quando é que ia para o seminário.

--Agora só para o ano, depois das férias.

--Vou... para ficar?

--Como ficar?

--Não volto para casa?

--Voltas aos sábados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares padre, vens morar comigo.

Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou-me, depois quis repreender-me, mas creio que a voz lhe tremia, e pareceu-me que tinha os olhos úmidos. Disse-lhe que também sentia a nossa separação. Negou que fosse separação; era só alguma ausência, por causa dos estudos; só os primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e aos mestres, e acabaria gostando de viver com eles.

--Eu só gosto de mamãe.

Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la, por fazer crer que ela era a minha única afeição; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é muita vez tão involuntária como a transpiração. Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmá-las; mas as contradições são deste mundo. A verdade é que minha mãe era cândida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado; nem por simples intuição era capaz de deduzir uma cousa de outra, isto é, não concluiria da minha repentina oposição que eu andasse em segredinhos com Capitu, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante alguns instantes; depois replicou-me sem imposição nem autoridade, o que me veio animando à resistência. Daí o falar-lhe na vocação que se discutira naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.

--Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela; não te lembras que até pedias para ir ver sair os seminaristas de S. José, com as suas batinas? Em casa, quando José Dias te chamava Reverendíssimo, tu rias com tanto gosto! Como é que agora?... Não creio, não, Bentinho. E depois... Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo as reflexões que ouvira ao meu professor de latim.

Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda falou gravemente e longamente sobre a promessa que fizera; não me disse as circunstâncias nem a ocasião, nem os motivos dela, cousas que só vim a saber mais tarde. Afirmou o principal, isto é, que a havia de cumprir, em pagamento a Deus.

--Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existência, não lhe hei de mentir nem faltar, Bentinho; são cousas que não se fazem sem pecado, e Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assirn, não, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e santo; você conhece muitos, como o Padre Cabral, que vive tão feliz com a irmã; um tio meu também foi padre, e escapou de ser bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho.

Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos que ela emendou logo a palavra; manha, não, não podia ser manha, sabia muito bem que eu era amigo dela, e não seria capaz de fingir um sentimento que não tivesse. Moleza é o que queria dizer, que me deixas de moleza, que me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em benefício dela e para bem da minha alma. Todas essas cousas e outras foram ditas um pouco atropeladamente, e a voz não lhe saía clara, mas velada e esganada. Vi que a emoção dela era outra vez grande, mas não recuava dos seus propósitos, e aventurei-me a perguntar-lhe:

--E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?

--Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me dispensava?

--Talvez em sonho; eu sonho às vezes com anjos e santos.

--Também eu, meu filho; mas é inútil... Vamos, é tarde; vamos para a sala. Está entendido: no primeiro ou no segundo mês do ano que vem, irás para o seminário. O que eu quero é que saibas bem os livros que estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o Padre Cabral. No seminário há interesse em conhecer-te, porque o Padre Cabral fala de ti com entusiasmo.

Caminhou para a porta, saímos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, e quase a vi saltar-me ao colo e dizer-me que não seria padre. Este era já o seu desejo íntimo, à proporção que se aproximava o tempo. Quisera um modo de pagar a dívida contraída, outra moeda, que valesse tanto ou mais, e não achava nenhuma.

CAPÍTULO XLII / CAPITU REFLETINDO

No dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de três amigas que tinham ido visitá-la, Paula e Sancha, companheiras de colégio, aquela de quinze, esta de dezessete anos" primeira filha de um médico, a segunda de um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que fora excesso de leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e com lamparina...

--Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.

E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que não era preciso, estava boa.

Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe, acrescentando que passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Também eu lhe contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela, e por fim as últimas respostas decisivas: dentro de dous ou três meses iria para o seminário. Que faríamos agora? Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se.

Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto- ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das fendas, duas moscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da aflição. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou cá para fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas doía-me vê-la padecer. Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arrependia de haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho efetivo por parte de José Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido um desengano que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...

CAPÍTULO XLIII / VOCÊ TEM MEDO?

De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.

--Medo?

--Sim, pergunto se você tem medo.

--Medo de quê?

--Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ela me tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.

--Mas... não entendo. De apanhar?

--Sim.

--Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e dar-lhe o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:

--Medroso!

--Eu? Mas...

Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você? Desculpe que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...

--Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar.

--Tem razão, foi só maluquice; até logo.

--Como até logo?

--Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais que eu. receoso disso mesmo, buscasse agora razões para animá-la. Capita, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se metera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me atendeu.

CAPÍTULO XLIV / O PRIMEIRO FILHO

--Dê cá, deixe escrever uma cousa.

Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:

--Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.

--Que é? Diga.

--Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?

-- Eu?

Fez-me sinal que sim.

--Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.

--Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer...

--Não diga isso!

-- ...Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?

--Venho.

--Contra a ordem de sua mãe?

--Contra a ordem de mamãe.

--Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?

--Não fale em morrer, Capitu!

Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso.

Era tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do escrito, como não atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou pequena, é possível que a escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos pudesse ouvir ou ler. Quem, se éramos sós? D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão era completa. Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro de Santa Teresa; ninguém mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos do Pádua. Nada mais, ou somente este fenômeno curioso, que o nome escrito por ela, não só me espiava do chão com gesto escarninho, mas até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma idéia ruim; disse-lhe que, afinal de contas, a vida de padre não era má, e eu podia aceitá-la sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a secreta esperança de vê-la atirar-se a mim lavada em lágrimas. Capitu limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:

--Padre é bom, não há dúvida; melhor que padre só cônego, por causa das meias roxas. O roxo é cor muito bonita. Pensando bem, é melhor cônego.

--Mas não se pode ser cônego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beiços.

--Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não quero perder é a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido à moda saia balão e babados grandes. . . Mas talvez nesse tempo a moda seja outra. A igreja há de ser grande, Carmo ou S. Francisco.

--Ou Candelária.

--Candelária também. Qualquer serve, contanto que eu ouça a missa nova. Hei de fazer um figurão. Muita gente há de perguntar: "Quem é aquela moça faceira que ali está com um vestido tão bonito?"--"Aquela é D. Capitolina, uma moça que morou na Rua de Mata-cavalos... "

--Que morou? Você vai mudar-se?

--Quem sabe onde é que há de morar amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima, cantando... Pater noster...

Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graça de um e a prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe final que foi este:

--Pois sim, Capitu, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma condição.

Ao que ela respondeu:

--Vossa Reverendíssima pode falar.

--Promete uma cousa?

--Que é?

--Diga se promete.

--Não sabendo o que é, não prometo.

--A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me acudido outra idéia.

--Duas? Diga quais são.

--A primeira é que só se há de confessar comigo, para eu lhe dar a penitência e a absolvição. A segunda é que...

--A primeira está prometida, disse ela vendo-me hesitar, e acrescentou que esperava a segunda.

Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca: não ouviria o que ouvi, e não escreveria aqui uma cousa que vai talvez achar incrédulos.

-- A segunda... sim... é que... Promete-me que seja eu o padre que case você?

--Que me case? disse ela um tanto comovida.

Logo depois fez descair os lábios, e abanou a cabeça.

--Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo, você não vai ser padre já amanhã, leva muitos anos... Olhe, prometo outra cousa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.

CAPÍTULO XLV / ABANE A CABEÇA, LEITOR

Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.

Quanto ao meu espanto, se também foi grande, veio de mistura com uma sensação esquisita. Percorreu-me um fluido. Aquela ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a aniquilação, tudo isso produzia um tal efeito, que não achei palavra nem gesto fiquei estúpido. Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão...

CAPÍTULO XLVI / AS PAZES

As Pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as negociações partiram de mim, mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir embora; mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão súplices, que me deixei ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e...

Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia...

Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento do espírito, e finalmente "os seus calundus." Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia os olhos molhados... Era amor puro, era efeito dos padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.

CAPÍTULO XLVII / "A SENHORA SAIU"

--Está bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me só uma cousa, por que é que você me perguntou se eu tinha medo de apanhar?

--Não foi por nada, respondeu Capitu, depois de alguma hesitação... Para que bulir nisso?

--Diga sempre. Foi por causa do seminário?

--Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu também não creio.

A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que "a senhora saiu", quando a senhora não quer falar a ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... A verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento. E eu não desci triste nem zangado; achei a criada galante, apetecível. melhor que a ama.

As andorinhas vinham agora em sentido contrário, ou não seriam as mesmas. Nós é que éramos os mesmos; ali ficamos somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.

CAPÍTULO XLVIII / JURAMENTO DO POÇO

--Não! exclamei de repente.

--Não quê?

Tinha havido alguns minutos de silêncio, durante os quais refleti muito e acabei por uma idéia; o tom da exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha vizinha.

--Não há de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em idade de casar, que somos crianças, criançolas,--já ouvi dizer criançolas. Bem; mas dous ou três anos passam depressa. Você jura uma cousa? lura que só há de casar comigo?

Capitu não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira:

--Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não casando nunca.

--Que eu case com outra?

--Tudo pode ser. Bentinho. Você pode achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ela e casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim nessa ocasião?

--Mas eu também juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que só me casarei com você. Basta isto?

--Devia bastar, disse ela; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você jura... Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja o que houver.

Compreendeis a diferença, era mais que a eleição do cônjuge, era a afirmação do matrimônio. A cabeça da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente, a fórmula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podíamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do poço. Esta fórmula era melhor, e tinha? a vantagem de me fortalecer o coração contra a investidura eclesiástica. Juramos pela segunda fórmula, e ficamos tão felizes que todo receio de perigo desapareceu. Éramos religiosos, tínhamos o céu por testemunha. Eu nem já temia o seminário.

--Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um colégio qualquer; não tomo ordens.

Capitu temia a nossa separação, mas acabou aceitando este alvitre, que era o melhor. Não afligíamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrário, qualquer resistência ao seminário confirmaria a denúncia de José Dias. Esta reflexão não foi minha, mas dela.
–––––––––––
continua…

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Manuel Borges dos Santos Neto (Declaração de Amor)

Parque do Ingá
Bom dia, cidade bonita, para quem o poeta escreveu a mais linda canção. Uma canção que fala de saudade, de um amor distante e de um sonho de uma retirante que chamou Maria do Ingá. A mesma canção que embala todas as noites as crianças que adormecem sonhando e depois despertam cantando cada verso da canção que o poeta também cantou.

Bom dia para os pássaros que levantam cedinho e alegremente gorjeiam sobre os galhos do ipê-roxo, todos enfileirados ao longo das ruas, cujas flores mais se parecem como um enorme tapete lilás sempre que o vento, por pura peraltice, derrama uma por uma suas pétalas ao chão.

Bom dia para quem vive momentos à sombra das sibipirunas no meio do bosque verde, respirando um pouco de ar puro à beira de seus lagos.

Para quem anda pelas largas avenidas por entre os carros barulhentos e sempre à tardinha se encontra com outras pessoas que passeiam em volta da matriz ou vão ao teatro aplaudir os espetáculos, meus bom dia também.

Bom dia para os homens e mulheres que chegaram primeiro, que enfrentaram as chuvas, as madrugadas de intenso frio e muitas vezes o calor do sol causticante só para transformar tudo nesse encanto de concreto armado, onde as praças ficam cheias de gente, de plantas e de flores e até os pombos, como se fossem velhos conhecidos, comem na mão.

Muito bom dia para tudo e para todos. Mas para você, MARINGÁ, que de tão bonita que é mais se parece com uma menina-moça que gosta de amar, sonhar e beijar.

O meu bom dia, todos os dias, com sabor bem gostosos de quem te ama demais!

Fonte:
Manuel Borges dos Santos Neto. Crônicas. Edição do autor.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 6

CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO

E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:

--Pronto!

--Estará bom?

--Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

--Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

CAPÍTULO XXXIV / SOU HOMEM!

Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:

--Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!

--Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolência . Está muito bem, ninguém dirá que é de pessoa que não sabe pentear.

--O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças. Ora, mamãe!

E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação...

Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me os lábios. Uma exclamação, um simples artigo, por mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: "Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem..."

Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitação, dizendo que minha mãe me mandara chamar para a lição de latim; o Padre Cabral estava à minha espera. Era uma saída; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as maneira da filha, mas a filha não dizia nada.

Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição; sentei-me na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos em que perdia a consciência de mim e das cousas que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu Sentia-os estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

--Sou homem!

Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri à porta da alcova. Não havia ninguém fora. Voltei para dentro, e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a América, e perdoai a banalidade em favo; do cabimento- com efeito, há em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a vista dos nossos nomes aberto por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As próprias mãos tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.

--Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares, mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta.

CAPÍTULO XXXV / O PROTONOTÁRIO APOSTÓLICO

Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma cousa. Tive idéia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado no chão, mas o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.

O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário apostólico. Esta distinção do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o título com admiração- era a primeira vez que ele soava i aos nossos ouvidos, acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia:

--Protonotário apostólico!

E voltando-se para mim:

--Prepara-te, Bentinho, tu podes vir a ser protonotário apostólico Cabral ouvia com gosto a repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência, posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido- esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo, bastava que lhe chamassem o protonotário Cabral. Subentendia-se apostólico.

--Protonotário Cabral.

--Sim, tem razão; protonotário Cabral.

--Mas, Sr. protonotário, -- acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do título,--isto o obriga a ir a Roma?

--Não, D. Justina.

--Não, são só as honras, observou minha mãe.

--Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a refletir, --não impede que nos casos de maior formalidade, atos públicos, cartas de cerimônia, etc; se empregue o título inteiro: protonotário apostólico. No uso comum, basta protonotário.

--Justamente, assentiram todos.

José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distinção, e recordou, a propósito, os primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália; mas ninguém pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:

--Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre.

Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada à terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:

--Há de ser padre, e padre bonito.

--Não esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário apostólico.

--O protonotário Santiago, acentuou Cabral.

Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do título com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias... Aliás essas pedem um Capítulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação eclesiástica, ainda que sem grande interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas era esta que o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos pobre que a dele. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer uma saúde, os olhos com que aceitou seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para agradar a minha mãe novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro eclesiástico, e queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e oferecia-se a falar ao "senhor bispo", tudo marchetado do "protonotário Santiago."

CAPÍTULO XXXVI / IDÉIA SEM PERNAS E IDÉIA SEM BRAÇOS

Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto vamos é isto... Idéia só! idéia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e outra vez me fugiram as palavras que trazia Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.

Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Idéia só! idéia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.

CAPÍTULO XXXVII / A ALMA E CHEIA DE MISTÉRIOS

-- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?

--Hoje não dei lição; tive férias.

Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele cousas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar o padre, à tarde em minha casa.

--Pode, mas para quê?

--Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.

O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém- não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um Brande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.

Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais...

Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu, abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só aparentemente verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.

Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.

CAPÍTULO XXXVIII / QUE SUSTO, MEU DEUS!

Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta:

--Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?

--Ora, vivam! exclamou o pai.

-- Que susto, meu Deus!

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dous lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe, o pai não lhe meteu mais medo No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e Fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:

-- Mamãe, jantar, papai chegou!

CAPÍTULO XXXIX / A VOCAÇÃO

Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mínimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor, esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal, traz sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.

--Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que você goste também. Papai está bom? E mamãe? A você não se pergunta- essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?

A todas as perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem trazia um vestidinho melhor e os sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade do costume, deteve-se um instante à porta da sala antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como desse a este duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias para se desforrar da concorrência, fez um pequeno discurso em honra "ao coração paternal e augustíssimo de Pio IX."

--Você é um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu:

--A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contanto que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito bem estudar as letras humanas, que também são úteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

--A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à igreja e até persegui-la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja S. Paulo.

--Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus sem ser padre cá fora; pode-se ou não se pode?

--Pode-se.

--Pois então? exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta de si. Sem vocação é que não há bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.

--Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

--Homem, é a melhor.

--Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina- meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia? Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saber, e são sempre melhor ensinadas naquelas casas.

Prima Justina interveio:

--Como? Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de S. José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas conseqüências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade, sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não me apareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se.

--Vai com ela, Bentinho, disse minha mãe.

--Não precisa, não, D. Glória, acudiu ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonotário...

--Adeus, Capitu.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor fora, descer à chácara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitu que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.

--Não venha, não; amanhã falaremos.

--Mas eu queria dizer a você...

--Amanhã.

--Escuta!

--Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma preta, que veio de dentro acender o lampião do corredor, vendo-nos naquela atitude, quase às escuras, riu de simpatia e murmurou em tom que ouvíssemos alguma cousa que não entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão.

CAPÍTULO XL / UMA ÉGUA

Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica. A conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira. e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de saída. "Sim, é isto, pensei; vou dizer a mamãe que não tenho vocação, e confesso o nosso namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia. o penteado e o resto..."
–––––––––
continua…

terça-feira, 16 de abril de 2013

Eber Sander (Como Entender as Mulheres)

Desisto. Não vou mais tentar entender as mulheres. Depois de algum tempo (não muito tempo), chega-se à conclusão que é deveras impossível entender as mulheres.

Se estiver sol, reclamam por estar quente; se estiver frio, reclamam por estar gelado. Se estiver mais ou menos, reclamam por não estar quente, nem frio. Desisto, não quero mais entender as mulheres. Como decifrar seus códigos, como desvendar suas angústias,seus medos, suas frustrações?

Quando tem os lindos cabelos loiros, sofrempor tê0lo. Já as que têm os cabelos enrolados, recorrem às chamadas chapinhas, a xampus milagrosos e até mesmo a entidade divina. Deus tem que trabalhar muito em alguns casos.

Não vou mais tentar entender as mulheres. Dizem que carro não faz diferença, que o importante é o papo, a gentileza, mas nunca vi um homem a pé com uma bela mulher.Não dá para entender as mulheres. Perguntam minha opinião,se estão gordinhas, se estão, digo que estão,se não estão, digo que não estão. Impressionante que sempre estou errado,por mais que esteja certo. A gordinha está sempre mais gordinha aos seus olhos, e amagrinha nunca está tão magrinha aos seus olhos. Não vou mais tentar entender as mulheres.

Em uma festa qualquer, onde há belas mulheres, muitas bebidas, diz que estou a paquerar, mas de fato não estou,de tanto ela insistir, tenho que olhar. Aí vem ela e diz que estava com a razão, que pequei duas vezes, por mentir e por estar olhando, e para isso não tem perdão. Não consigo entender as mulheres.

Minhas opiniões sobre suas roupas também não valem de nada. Mulheres não se vestem para os ficantes, namorados, maridos. Mulheres se vestem para outras mulheres, para competir com as outras mulheres. Para ganhar das outras mulheres. Para fazer inveja às outras mulheres. Então por que me perguntar?

Eu continuo não entendendo as mulheres. Jamais imaginaria que o céu e o inferno  podem estar tão próximos um do outro. Em um momento é céu. No outro, Deus nos proteja!

Mas que bobagem a minha tarefa. Mulheres não foram feitas para serem entendidas. Mulheres foram criadas para serem respeitadas, amadas, adoradas. E homem nenhum, em lugar nenhum, em momento nenhum vai entender as mulheres. E é bom que não se entenda, se entendermos perderemos o encanto e a magia que cerca a aura feminina. E convenhamos: nunca iríamos entender as mulheres mesmo!

Fonte:
Éber Sander. Perguntas indiscretas e outros contos e cronicas. Itatiba/SP: Berto, 2009.

Concurso de Trovas Alternativo Navegando nas Poesias (Resultado Final)

Tema: Profundeza

Lírica/Filosófica.


VENCEDORES:
Sertanejo em seu lamento
não blasfema, não faz guerra
só quer tirar seu sustento
da profundeza da terra.
DYRCE PINTO MACHADO
Cantagalo/RJ


Palavras sem profundeza,
faladas ou mesmo escritas,
sem conteúdo e beleza...
é melhor não serem ditas.
JOTA DE JESUS
Bacaxá- Saquarema/RJ


Mais mistérios e riquezas
que no fundo do oceano
por certo há nas profundezas
da mente do ser humano.
ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/PR


Sem teu amor, meu fanal,
naufraguei entre os abrolhos
na profundeza abissal
do mar azul dos teus olhos.
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG


A lua tristonha e calma,
buscando versos de amor,
sonda as profundezas da alma,
de um poeta trovador!
CAMPOS SALES
São Paulo/SP


MENÇÃO HONROSA:
Navegando nas Poesias
minha vida se renova.
Entre tantas alegrias,
na profundeza da trova.
JOSÉ GILBERTO GASPAR
São Bernardo do Campo/SP


O poeta, amargo, tristonho,
quando a musa lhe diz não,
nas profundezas do sonho
vai buscar inspiração.
JOÃO COSTA
Saquarema/RJ


Desatento à profundeza
de teus olhos cor do mar,
eu mergulhei sem defesa
nas ondas do teu olhar!
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Tirol, Natal/RN


És pélago, profundeza,
és um mar todo de amor.
Afogar-me em tua beleza,
é o sonho de um trovador.
JOSÉ WARMUTH TEIXEIRA
Tubarão/SC


Atingi profundidade
da dor, deveras supina,
na voragem da saudade
deste amor, da minha sina.
LUIZ GODIM DE ARAUJO LINS
Copacabana/RJ


MENÇÃO ESPECIAL:

A profundeza da mente,
arquivo de nossos traços,
mantém guardada, latente,
a dor de nossos fracassos!
HELOYSIO ALONSO TEIXEIRA
Cantagalo/RJ


O mais intenso luar
e os raios que o Sol descerra,
jamais poderão beijar
as profundezas da Terra...
RUTH FARAH NACIF LUTTERBACK
Cantagalo/RJ

É na profundeza d'alma,
que se abriga o sentimento...
Alma pura, vida calma,
ao culpado, só tormento.
THERESINHA DE JESUS LOPES
Juiz de Fora/MG


Mergulhei na profundeza
do teu olhar, e encontrei
tanta doçura e pureza,
que, por ti, me apaixonei!
IZO GOLDMAN
São Paulo/SP


Chamo por Deus... e acredito
que está em todo lugar:
- perto de mim... no infinito...
na profundeza do mar.
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


Fonte:
Eliana Jimenez. http://www.poesiaemtrovas.blogspot.com.br 
Imagem = formatação com imagem obtida na internet, de autor anonimo.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXVIII)

Fernando Pessoa e Camões
Sonetos
(foi mantida a grafia original)
026

Grão tempo há já que soube da Ventura
a vida que me tinha destinada;
que a longa experiência da passada
me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,
bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destruí, não fique nada;
vingai vos desta vida, qu'inda dura.

Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
e, por que mais sentisse a falta dela,
de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
não foi milhor, vivei nesta alma minha,
que não tem a Fortuna poder nela.

162
Ilustre o dino ramo dos Meneses,
aos quais o prudente e largo Céu
(que errar não sabe), em dote concedeu
rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus reveses,
ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no Mar alto Eritreu,
e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito
o Pirata insolente, que se espante
e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante,
o seja só co sangue de Turquia!

112

Indo o triste pastor todo embebido
na sombra de seu doce pensamento,
tais queixas espalhava ao leve vento
cum brando suspirar da alma saído:

—A quem me queixarei, cego, perdido,
pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento
que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto me encareces?
Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assi que co mal cresce a causa dele.

078

Lá a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos d'ouro delicados,
e as flores, nos campos esmaltados,
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados,
de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,
—Não sei (dizia) ó Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada?
Responde Sílvio:—Amor não o consente,
que ofende as esperanças da tornada.

127

Já não sinto, Senhora, os desenganos
com que minha afeição sempre tratastes,
nem ver o galardão que me negastes,
merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos
de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança,
que o ofendido toma do culpado,
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu de vossos males e esquivança,
de que agora me vejo bem vingado,
não o quisera eu tanto à vossa custa.

105

Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

113

Lembranças que lembrais meu bem passado
para que sinta mais o mal presente,
deixai-me (se quereis) viver contente,
não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
viver (como se vê) tão descontente,
venha (se vier) o bem por acidente,
e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória,
pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assi que nada perde, quem perdida
a esperança traz de sua glória,
se esta vida há-de ser sempre em tormento.

015

Lembranças saudosas, se cuidais
de me acabar a vida neste estado,
não vivo com meu mal tão enganado,
que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais
a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado
de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência,
para quantos desgostos der a vida,
cuide em quanto quiser o pensamento;

que, pois não há i outra resistência
para tão certa queda da caída,
aparar-lhe hei debaixo o sofrimento.

023

Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d'ouro, que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
como quem não tem outra, hei de tomar te.

E se não for contente meu desejo,
dir lhe hei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte.

084

Males, que contra mim vos conjurastes,
quanto há de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento,
baste vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes
derrubar meu tão alto pensamento,
mais pode a causa dele, em que o sustento,
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte,
há de acabar o mal destes amores,
dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d'ambos contente seja a sorte:
vós, porque me acabastes, vencedores;
e eu, porque acabei de vós vencido.

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem com formatação sobreposta obtidas na internet, sem identificação do autor.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 5

CAPÍTULO XXVII / AO PORTÃO

No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.

--Sim, meu devoto!

--Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.

CAPÍTULO XXVIII / NA RUA

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era à rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.

CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.

--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..

--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?

-- Mamãe querendo.

-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO

Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.

--Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido, era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre que lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma cousa. Pádua solicitava do sacristão uma das varas do pálio. José Dias pediu uma para si.

--Há só uma disponível, disse o sacristão.

--Pois essa, disse José Dias.

--Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.

--Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha.

Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na paróquia, como José Dias. Assim fez, mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.

--Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu José Dias piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.

--Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.

Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.

Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam. fiquei comovido. Pádua roía a tocha amargamente.

É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.

A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quina ou dezesseis anos que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça, os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:

--Não chore assim!

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:

--Não ria assim!

Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distancia, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distancia menor, -- o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.

Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.

CAPÍTULO XXXI / AS CURIOSIDADES DE CAPITU

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a idéia da Europa, mostrou se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:

-- Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?

--Não marcou dia; prometeu que ia ver; que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um Capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.

--Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento- descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.

Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações em latim:

--César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércio!

--E quanto valia cada sestércio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:

--É o maior homem da história!

A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai, tinha um grande colar, um diadema e brincos.

--São jóias viúvas, como eu, Capitu.

-- Quando é que botou estas?

-- Foi pelas festas da Coroação.

--Oh! conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...

CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.

--Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.

Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:

--Há alguma cousa?

--Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?

--Eu bem. José Dias ainda não falou?

--Parece que não.

-- Mas então quando fala?

--Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...

-- Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.

--Teimo- hoje mesmo ele há de falar.

--Você jura?

--Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.

--Você?

--Eu mesmo.

--Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

--Se embaraçar, você desembaraça depois.

--Vamos ver.

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continua…