terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 458

 


Contos e Lendas do Mundo (A Serpente e o Pavão)


Certo dia, um jovem chamado Adi, o calculista, porque estudara matemática, resolveu partir de Bokhara e ir em busca de um conhecimento mais rico. Seu mestre aconselhou-o a viajar para o sul, e lhe disse:

- Busque o significado do pavão e da serpente.

Tal conselho deu muito o que pensar ao jovem Adi. Viajou através de Khorasan e finalmente até o Iraque. Neste último, conseguiu realmente encontrar um lugar onde havia um pavão real e uma serpente. E Adi pôde falar com eles.

- Estamos justamente discutindo acerca de nossos respectivos méritos - disseram a Adi.

- Pois é precisamente isso que quero estudar, assim peço que continuem - observou o jovem.

- Sinto que sou o mais importante - disse o pavão - represento a grande aspiração, o voo para o paraíso, a beleza celestial, e daí o conhecimento das coisas mais elevadas. É próprio da minha missão recordar ao homem, por meio da alegoria, os aspectos de seu eu que se acham ocultos para ele.

- Por minha parte - disse a serpente, sibilando ligeiramente - eu simbolizo exatamente as mesmas coisas. Como o homem, estou preso à terra. Isto faz com que eu lhe relembre sua condição humana. Como ele, sou flexível, quando sigo serpenteando pelo solo. Por vezes ele se esquece disso, também. De acordo com a tradição, sou eu a guardiã dos tesouros ocultos sob a terra.

- Mas você é repugnante! - exclamou o pavão - é astuta, silenciosa, perigosa.

- Você enumera minhas características humanas - retrucou a serpente - enquanto eu prefiro sublinhar minhas outras funções, como acabo de fazer. Agora, olhe para você mesmo: é vaidoso, gordo demais e emite um grito áspero. Seus pés são demasiado grandes, suas plumas desenvolvidas em demasia.

A essa altura da discussão, Adi resolveu intervir, dizendo:

- O desacordo em que se encontram me levou a perceber que nenhum dos dois tem inteira razão. E no entanto, se pode ver claramente, se deixarmos de lado suas preocupações pessoais, que juntos compõem uma mensagem para a humanidade.

E Adi, enquanto os dois oponentes o escutavam com atenção, pôde explicar-lhes quais eram suas funções.

- O homem se arrasta pela terra como a serpente. Poderia alcançar as alturas como um pássaro, mas, assim como a serpente é cobiçosa, ele retém esse egoísmo ao tentar elevar-se, e se torna, como o pavão, demasiado orgulhoso. No pavão real podemos perceber as potencialidades do homem, ainda que não consumadas devidamente. Na lustrosa pele da serpente podemos vislumbrar a possibilidade da beleza. No pavão a vemos assumir um aspecto extravagante.

Foi aí que uma voz no íntimo de Adi lhe disse:

- Isso não é tudo. Estas duas criaturas estão dotadas de vida; eis seu fator determinante. Discutem porque cada uma se fixou na sua própria forma de vida, pensando ser a realização de um verdadeiro status. Uma, contudo, monta guarda a um tesouro e não pode usá-lo. A outra reflete a beleza, um legítimo tesouro, mas não pode transformar-se com ela. No entanto, apesar de não terem tirado proveito do que lhes foi destinado, o simbolizam, para os que podem ver e ouvir.

Fonte:
Histórias dos Dervixes. Jornal Magus. agosto de 2000.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 1 –


A floresta vai morrendo,
expondo seus braços nus...
E os ninhos em chama, ardendo,
sobre as cinzas dos bambus!
***
A fonte quase morrendo
nos braços da noite ingrata,
e, a lua cheia escrevendo
cordéis, em cordões de prata!
***
A velhinha, com mãos tontas,
curvada, terço na mão,
parece contar nas contas
as horas de solidão!
***
A verdade tem seus custos;
e, às vezes, é condenada,
pelas leis, que entre os injustos,
não têm certeza de nada!
***
Cada lágrima caída,
que, em silêncio tanto choras,
são reticências da vida
nas entrelinhas das horas!
***
Da infância, os sonhos mais belos,
eu guardo alguns, no meu peito:
O estalo dos teus chinelos,
ouço pai do mesmo jeito!
***
Enquanto a dor, passo a passo,
aperta o nó na garganta,
o poeta afrouxa o laço
e chora como quem canta!
***
Estuda amigo, que o estudo
evangeliza os teus lábios,
mostrando o segredo mudo
que há no silêncio dos sábios!
***
Graças a Deus, vê meu filho,
que em nosso rancho sem flor,
não temos nobreza e brilho,
mas sobra brilho no amor!
***
Meu canto, é jura secreta,
qual canto de rouxinol,
na voz de cada poeta
que canta à luz do arrebol!
***
Meus sonhos envelhecidos
nesses maltrapilhos traços,
são sinais dos tempos idos
camuflando os meus cansaços!
***
Mística Deusa romana,
foi Flora, na antiguidade,
para a própria raça humana,
sinal de fertilidade!
***
Na ausência do bem comum,
num mundo pobre de afeto,
rio, sem motivo algum,
ao ver sorrindo o meu neto!
***
Nas brumas de um mar revolto,
aos sopros dos vendavais...
Meu barco flutua solto
nas rotas da volta ao cais!
***
Numa atitude sem graça,
decido em minha euforia,
fingir que o tempo não passa
roubando a minha alegria!
***
O outono, sem dar sinais,
aos poucos, contando os passos...
Achando pouco os meus ais,
põe mais cravos nos meus braços!
***
Ouço ao longe, disfarçado,
pelos túneis da distância...
As vozes do meu passado
nos ecos de minha infância!
***
Peço-te coisas pequenas.
Vê que em meu verso indeciso,
peço uma gotinha, apenas,
da fonte do teu sorriso!
***
Pego o trinco, puxo e abro,
entro em meu quarto... E, sem medo,
só meu velho candelabro
descreve o nosso segredo!
***
Por meus pobres atos falhos,
dobrando os meus pesadelos...
O tempo em breves atalhos
pôs mais prata em meus cabelos!
***
Quando o amor se manifesta
e a luta não foi em vão,
o silêncio faz a festa
e escuta a voz da razão.
***
Quando o por do sol se espalha,
numa tarde calma e mansa,
depois que o sol se agasalha
acendo a luz da esperança!
***
São tantos nossos enredos,
que cada trama entre nós,
é porta-voz dos segredos
dos que vivem sempre a sós!
***
Se amor de mãe, não tem fim,
Deus deu-lhe esse dom fecundo!
Mãe, por amar tanto assim,
carrega as dores do mundo!
***
Sê fiel ao gesto pobre,
de quem mendiga o perdão;
perdão é o gesto mais nobre
de quem respeita outro irmão!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Paulo Mendes Campos (Réquiem para os Bares Mortos)


Me perdia muito pelas grutas sombrias dos bares. À noite, conchas iluminadas, a ressoar em profundezas submarinas. Hoje sou um homem derramado. Fugindo à tempestade, entrei uma vez no Nacional, e lá se erguia – portentosa figura – um velho, alto e cavo, a recitar os sonetos de Mallarmé. Foi uma visão dura, hermética, definitiva.

Antros de perdição – sim, é verdade – os bares são odiados por mães, esposas, filhos. A bebida é quase sempre ordinária; os moços que servem são falsos; os proprietários são ávidos. Rixas, despesas descabidas, saúde comprometida – os bares não prestam. Mas depois os bares morrem, e de seus túmulos surgem os espelhos, os mármores, os painéis históricos e a matéria plástica das agências bancárias. O tempo trança e destrança os velhos frequentadores, cúmplices de um espaço, de duas ou três anedotas, de uma canção dissipada em dias e semanas, cúmplices de uma certa mistura de luz e sombra. Então os velhos frequentadores são como peixes desentocados, e os bares antigos perdem suas arestas, suas escamas pontiagudas, seus vômitos repugnantes. Ali os amigos foram mais amigos, os inimigos, mais inimigos, as mulheres, mais compreensivas, e a vida tinha um programa.

Hoje sou um homem entornado. Mas no tempo do Alvear, por exemplo, alcei-me nas tristezas mais lindas de beira-mar. Ama-se o bar morto porque ele possui o dom – o dom é ilusão – de coagular o tempo. Habitamos essas gotas luminosas. Elas revolvem à nossa frente, várias, aparentemente opacas. Mas, se aproximamos a visão, esses cristais mágicos começam a funcionar como um palco, cheios de vida. Descortina-se em luz amarelada o bar do Hotel Central: há ostras em uma bandeja, fatias coradas de rosbife e uma garrafa de Old Parr. São três à mesa: um mau pintor, um mau milionário e um mau almirante. Apesar de simpáticos, nunca nos falamos. Mas hoje (quando é hoje?) eu os visito com frequência nesse coágulo de treva e refulgência, onde os três convivas se abrigaram da morte. À meia-noite, o milionário faz a barba com uma gilete nua, molhando o rosto em uísque.

O Vermelhinho, com um pouco de exagero, foi um entreposto de todas as motivações humanas. Poetas negros – reaparecidos pela primeira vez depois do Simbolismo – defendiam do naufrágio da raça, apertando-os contra o peito, originais que nunca seriam publicados. Foi uma época de facilitário poético, com um crédito de esperança a perder de vista. Não se fechava a porta da glória a ninguém. Todas as estradas do país se entrecruzavam no Vermelhinho, que ainda guardava embrulhos e recados. A geração tomava batida com fervor e a esquerda festiva punha seus primeiros ovos, discretamente, nas cadeiras de palhinha.

Acreditava-se em samba.

A vida tinha um caminho,
a vida tinha mais vinho
nos juncos do Vermelhinho

Em frente, no alto, entre vegetações grossas, ficava o bar da ABI. Tinha a princípio um certo rigor suíço, prematuramente desmoralizado. Alemães, árabes, italianos, nordestinos, gaúchos e mineiros, com esse cinismo que é a nossa força destrutiva abrasileiraram depressa o terraço. Mais de uma senhora tornou-se mãe de repente entre as grossas vegetações; e instituiu-se, por força, o espeto.

Hoje sou um homem esvaziado de seu conteúdo: vou alcançando a perfeição do vazio. Já estou seguindo com pouco receio por esses Tibetes sem princípio e sem fim. Mas cumpri as estações do caminho; paguei por tudo aquilo que aprendi.

Bar morto, bêbado morto, caminho morto. Há azulões no crepúsculo; ou uma saudade de azulões. É sempre safra de cajus quando me surge o Pardellas. Consumo de novo as tardes consumidas. Aí me sinto com o charuto de Eustáquio, os óculos de Santa, e um tomo das Origens da França contemporânea, conduzido por Zé Lins nas tardes da Cinelândia e do Castelo de antigamente. Ali a vida era canto e conto. Mas no velho Recreio as sombras se espessam, aglutinadas. Quem mastiga sem convicção peito de boi com molho de raiz forte?

Recreio velho, rogai por nós. Túnel da Lapa, Chave de Ouro, rogai por nós. Hoje sou um homem sem mais nada. Rogo por vós. Rogo por vós um céu, com o vosso firmamento, os vossos luzeiros, os vossos ornatos, os vossos homens imaginosos e as vossas freguesas perdidas. E assim me recolho do chão em que fui derramado e subo até vós.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Anjo Bêbado. Ed. Sabiá, 1969.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho) –3–


TERCEIRO EPISÓDIO: UM AVÔ MUITO VELHO


A narrativa inicia-se anunciando que algo aconteceu ao avô Loio, muito velho. Morava no Gravatá a poucos passos do Largo da Palma aonde chegava sem pressa, sentindo o cheiro do incenso que vinha da igreja se misturando com o aroma dos pãezinhos de queijo.

A neta Pintinha é a alegria do avô.

A pretinha viva e esperta, a mostrar os dentinhos no riso alegre, a falar pelos cotovelos na língua embrulhada, era a grande alegria do pai, Chico Timóteo, da mãe Maria Eponina, e dele próprio, o velho negro Loio.

Desde os primeiros passos ela anda com ele; ele a leva à escola, depois ela vai com as amigas e, finalmente, chega o dia em que Pintinha recebe o diploma de professora.

O velho Loio era tocador de sanfona. Num retrocesso temporal ficamos sabendo do passado do velho negro Loio. Seu pai era pescador, perdeu uma perna no mar, dizia que na guerra com os tubarões. Vendera o saveiro, e, comprando uma porta vende charutos, dá sorte e compra uma loja no Mercado Modelo. Loio apaixonou-se por Aparecida, aos dezoito anos, e aquela mulher era tudo para ele: mãe, amiga e amante, uma sanfoneira como ele.

Negra como ele, mais velha que ele doze anos, de tantas coisas entendia que a sabedoria em pessoa. Sanfoneira, jogadora de baralho e dados, cantora nas ruas do cais, prostituta aos sábados, cartomante e rezadeira, mulher sem pouso certo que apenas tinha de seu o maior coração da Bahia.

Numa ocasião, Aparecida põe as cartas e lhe diz que viu que há uma morte nas mãos dele. Um dia a polícia chegou e ele foi reconhecer Aparecida no chão, morta, numa poça do próprio sangue. A partir daí Loio vai trabalhar no mercado com o pai até o dia em que morreu com dores no peito, tendo deixado “como herança a birosca, um bocado de dinheiro e um terreno no Rio Vermelho”. Comprou outra porta no mercado e tornou-se comerciante remediado.

Continuou a tocar a sanfona, mas nunca aceitou convites para tocar nas festas. Só comparecia a circos e foi lá que conheceu Verinha. Vendeu o terreno, comprou uma casa no Gravatá, e dizia que o Largo da Palma era tanto de Verinha quanto da Santa.

Quando os negócios prosperaram precisou contratar um ajudante. Depois de duas tentativas Maria Ecléa, vendedora de rendas do Ceará ofereceu o filho, Chico Timóteo. A confiança cresce entre eles, quando a mãe de Chico falece, Loio o convida para almoçar na casa dele. Assim começa o namoro, vem o noivado e o casamento de Chico Timóteo com Maria Eponina. Loio oferece sua casa para o casal e vai morar nos quarto dos fundos.

Andando pelo Largo da Lapa, o velho negro Loio vai relembrando o passado.

Vem a recordação do dia em que Pintinha é professora nomeada, e vai ensinar na Amaralina. Encanta-se com a dedicação da neta com os alunos, filhos de pescadores.

Mas naquela noite, Pintinha não voltou das aulas. O desespero e a loucura tomam conta de Maria Eponina e de Chico Timóteo. A polícia veio dizer que Pintinha foi agredida, bateram, violentaram e atiraram nela e agora está entre a vida e a morte.

Três meses de dor, de sofrimento. Duas operações depois voltou para casa. Tão doente, com tantas dores, não reconhecia ninguém. O velho negro Loio buscava paz no Largo da Palma.

Um dia vai falar com o médico, Dr. Eulálio Sá, e soube que as operações só prolongaram um pouco a vida, mas que as dores seriam insuportáveis. Quando foi ver a neta, doeu muito seu coração de velho e saiu de cabeça baixa para o Largo da Palma.

Procurou o farmacêutico, pediu um veneno para matar um cachorro que estava velho e doente. Ao chegar em casa, dissolve o veneno na água e dá para Pintinha. Lavou o copo muito bem, depois e ficou na sala. Agora ele tem uma morte nas mãos.

A filha veio do quarto, “indiferente, sem lágrimas e quase sem voz: Traga uma vela, pai, Pintinha acaba de morrer.

COMENTÁRIO

Nesse episódio, a eutanásia é o tema em torno do qual se desenvolve a narrativa. Embora ela só apareça no final, durante todo o conto há signos de morte e de tragédia. A delicadeza com que o narrador descreve a forte ligação entre o avô e a neta, a dedicação extrema que há entre eles é tecida ao longo da narrativa.

Com uma síntese brilhante tomamos conhecimento da vida desse velho avô, que só procurou a paz, o amor e que por amor no fim da vida realiza o ato anunciado nas primeiras linhas “O velho, quando aquilo aconteceu, trancou-se em si mesmo”.

Apenas o Largo da Palma é capaz de trazer a paz, talvez que todos o esqueçam, mas “Todos sabem em Salvador da Bahia que, apesar da idade, antigo de muitos séculos, o Largo da Palma tem boa memória. Como esquecer o velho negro Loio, nas manhãs de sol ou de chuva, a levar a neta para as aulas?

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 457

 


Malba Tahan (O Domador de Elefantes)


Evita o iracundo; afasta-te do homem colérico.
Salomão, Provérbios, 22, 24.


Na décima quinta página do livro Yu-King poderás ler, ó Irmão dos árabes, a singular aventura ocorrida na Índia com um domador de elefantes.

Vamos traduzi-la com a maior fidelidade, seguindo, nas linhas e nas entrelinhas, o pensamento do velho sacerdote budista que a escreveu. No antigo paix (pequeno domínio) de Carvásti, para além do Ganges, o rá (rei, senhor) Lauit anunciou ao povo que precisava, com certa urgência, de um domador de elefantes.

Apresentou-se um homem chamado Sougraha, que se dizia perito nesse perigoso ofício.

— Conheço, ó rei — declarou Sougraha —, três maneiras seguras por meio das quais será fácil domesticar um elefante. A primeira é pelas argolas de prata…

— Está bem — acudiu secamente o monarca. — Aceito a tua oferta. Poderás amanhã, depois da prece, iniciar o teu trabalho. O elefante bravio, de minha predileção, será trazido para o pátio. Terás, no fim, uma boa recompensa.

Momentos depois, ao deixar o palácio, o vaidoso Sougraha passou ao lado de um grupo de servos e um destes proferiu um gracejo qualquer. Não se conteve o domador; avançou impetuoso, colérico, contra o jovem e feriu-o gravemente.

Preso pelos guardas, foi o agressor conduzido à presença do rei.

— Que foi isso, meu amigo? — interpelou, muito sério, o monarca. — Que se passou, afinal?

— Senhor — respondeu Sougraha, com tremores na voz. — Não poderei ocultar a verdade. Ao sair deste palácio, depois da audiência, cruzei, na escada, com um grupo de servos. Um destes dirigiu-me uma pilhéria. Não me contive. Avancei, de golpe, contra o gaiato e castiguei-o com extrema violência. Foi tudo, confesso, obra irrefletida do impulso de um momento.

Ponderou, então, o rei, serenamente, com intencional frieza:

— Como pretendes, ó Sougraha, domesticar um elefante bravio, se não és capaz de conter a fera odienta que vive dentro de ti? Aprende, primeiro, meu amigo, a dominar os teus impulsos, o teu gênio, a tua cólera.

E, numa decisão irrevogável, concluiu:

— Retira-te! Não mais me interessa a tua colaboração. Educa-te primeiro, para que possas, depois, educar.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 5 – Pigmalião


Considerado em sua era d’ouro,
grande escultor, artífice sem par.
Na sua faina tinha sempre os louros,
gênio da arte, talento a criar.

Mas às mulheres devotava, inteiro,
desprezo sempre, nelas só defeitos.
Por tal razão permaneceu solteiro,
dedicando-se à arte e seus preceitos.

Ousou criar uma estátua tão bela,
de uma mulher, rivalizando esta,
com as mais lindas e puras donzelas
de todo reino, de todas as festas.

Por tão perfeita obra se apaixona,
dá-lhe vestidos, brincos e colares.
De seu carinho será casta dona,
único tema de doces cantares.

Sente da pedra a frieza insana,
para beijar sem pejo os lábios duros.
Chora o desejo de torná-la humana,
para que goze dos amores puros.

Mas eis que em Chipre da deusa o festim,
Vênus, do amor, começa com seus cânticos.
No belo templo, no altar carmesim,
ele oferendas tece em ais românticos.

A Vênus pede que a estátua seja
de carne, sangue, de amor perfeito.
A deusa atende, ele o altar beija,
e nas mulheres não vê mais defeito.

A casa chega, corre pressuroso
para beijar a estátua estremecida.
Beija seus lábios de contorno airoso
e sente neles o calor da vida.

Abraça o corpo, que ao toque enternece.
Sente suas carnes quentes e sedosas.
Celebra Vênus, sua paixão parece
ser infinita, tudo, enfim, esquece.

Ele a recebe em cândido himeneu.
O amor vivido gera um filho amado,
que ao crescer um belo templo ergueu
à deusa Vênus, em solo sagrado.

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Monteiro Lobato (O Estigma)


FUI UM DIA A ITAOCA levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura.

— Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.

Assim fiz e lá cheguei sem novidade. No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado. Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan*, à espera dalgum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu viva alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do embaraçador. Caminhei cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a certeza do transvio.

Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o “ó de casa”. Abre-me um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.

— O patrãozinho é lá em cima, na casa grande.

Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.

Um grupo de crianças brincava por ali, em torno duma fogueirinha de cavacos fumarentos.

— Fumaça para lá, santinha para cá!

Ao avistarem-me calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.

— Papai está?

Estava e ia chamá-lo, respondeu, esgueirando-se pela casa adentro. As outras, com o dedinho na boca, vi-as a me espiarem da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre catorze e dezesseis anos, de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.

— Faça o favor de entrar! — disse-me com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam de alto a baixo, num relance. — Sente-se e espere um bocadinho.

— A menina é filha do...

— Não, senhor. Prima. Mas moro aqui desde que morreram meus pais.

— Tão nova e já órfã!...

— De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na febre amarela de
Campinas. O primo trouxe-me de lá e...

Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa.

Reconhecemo-nos incontinênti, com igual espanto.

— Bruno! — berrou ele. — Que milagre!

— E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!

Abraços, explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidência.

— Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo...

— Desde a opa da colação de grau. Como passa o tempo!... Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.

Durante estas expansões a menina do avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia regalava meus olhos na linda criatura que ela era. Fausto, percebendo-o, apresentou-me.

— Laurita, minha prima...

— Já nos conhecemos — disse eu.

— Donde? — exclamou Fausto surpreso.

— Daqui mesmo, de há cinco minutos.

— Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café para aqui.

A menina ao retirar-se pôs no andar esse requebro que o instinto aconselha às moças na presença de um homem casadouro.

— Galantinha, hein? — disse Fausto, mal se fechou a porta.

— Linda! — exclamei, carregando com fúria o i. — Que frescura! Que corado!

— O corado corre à conta do forno. Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses de roça com outros tantos de capital.

— Excelente vida! É o sonho de toda gente.

— Não me queixo, nem quero outra.

— Colheste, então, o pomo da felicidade?

Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.

— Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos! — galanteei, tomando um deles.

— Qual? — acudiu a menina. — Esse que tem marca de carretilha?

— Sim!

Ela desferiu a mais sonora das risadinhas.

— Justamente os que têm marca são de Lucrécia...

— Ora você — cascalhou Fausto —, a confundir as artes da prima com as da preta!

— Os meus são estes — disse Laura, apontando os não carretilhados.

Provei um, e:

— Realmente, a diferença é enorme.

Novo “pizzicato” da menina.

— Pois a massa é a mesma e tudo tempero de Lucrécia...

Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.

— Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação, que é o melhor.

Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.

Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava largo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.

Ao jantar apresentou-me sua mulher.

Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar de ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente má.

Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio da esposa.

Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas.

Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e mau de senhora absoluta.

Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras partimos. Sem demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.

— Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?

— E estamos a pagar a língua. É sempre assim na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo. O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que não há casamento — há casamentos. Cada caso é um caso especial.

— Tendo aliás de comum — disse eu — um mesmo traço: restrição da personalidade.

— Sim. É mister que o homem ceda cinquenta por cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos  felicidade conjugal.

— “Felicidade conjugal”, dizes bem, restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.

A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o “prazer paulista” de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.

— No teu caso — perguntei —, foste feliz?

Fausto retardou a resposta, mastigando-a.

— Não sei. Cedi os cinquenta, e espero que minha mulher imite a minha abnegação. Ela, porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto: procuramos o equilíbrio ainda...

— E Laura? — perguntei estouvadamente...

Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com barrancos acima, avencas viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse, apontando para aquilo:

— Sabes o que é uma face noruega? Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... é como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida...

Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.

Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três impressões na alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado — complexa, sutil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos — o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto — vagamente perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas. Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer das três personagens.

Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro quando alguém me cutucou as costelas.

— Tu, Fausto!

— Eu, sim, Bruno!

Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.

— Morta! — foi a resposta seca e torva.

Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando a súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombra, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.

— E tua mulher? Os filhos?

— Também morta, a mulher. Os filhos, por aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida, e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história — e gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o Paraíso...

Eis o que ouvi:

— Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a a morar conosco. Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina que seria.

“Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher — não o suspeitaste naquele jantar? — era uma criatura visceralmente má.

“O ‘má’ na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que lá pôs Dante, e em lugar meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...

“Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde me levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei. Com a experiência de hoje agarrava a mais reles das promotorias. O viver que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.”

— A face noruega!...

— Era exata a comparação, gélida como nos corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.

“Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus, permanente — e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o perigosíssimo amor dos trinta anos.

“O vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das reixas (ira, ódio) encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me a pior casta de amor — o amor secreto...

“Correram meses.

“Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou minha mulher contra os ‘amásios’!

“A caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo, recalcado no fundo do meu ser.

“Intimou-me a expulsá-la incontinênti. Resisti.

“Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair perante ela e todo mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro a ‘senhora’. Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho na alma as cicatrizes das áscuas (brasas acesas) que espirraram aqueles olhos.

“Apanhei a luva.

“Estas guerras conjugais portas adentro!... Não há aí luta civil que se lhes compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição. A sós comigo, porém, que inferno!

“Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura, quando...

“Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao
pomar?”

— O pinhal d’Azambuja!

— Foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio favorito de Laura. Emboscava-se nele com um livro, ou com a costura, e dessa arte sossegava um momento da inferneira doméstica.

“Um dia em que saí à caça, menos pela caçada do que para retemperarme da guerra caseira na paz das matas, ao montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.

“Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronde de enorme guabirobeira.

“Ao pisar no terreiro vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.

“— Papai, não viu Laura?

“— Laura?...

“Estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:

“— Não vá ter acontecido alguma para nhá Laurita, patrão! Saiu cedo,
antes do café, já é quase noite e nada de voltar.

“— A senhora... — comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.

“— Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece que comeu cobra...

“O coração palpitou-me violento e saí em procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante.

“Nada!

“Eu desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado à frente, gritou:

“— Está aqui um cestinho!

“Corremos todos. Estava lá o cestinho de costura e, mais adiante... o corpo frio da menina.

“Morta, a bala!

“A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida: um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina estria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.

“Suicidara-se...

“Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.

“Trouxeram-na a braços. Em casa minha mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você isto: minha mulher não viu o cadáver da menina.

“Dias depois humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por diante.

“A mim o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.

“Não compreendia aquilo.

“Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido?

“Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito indicioso.

“Mistério!

“Mas correram os meses e um belo dia minha mulher deu à luz um menino.

“Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.

“A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala com a notícia do bom sucesso.

“— Desta vez foi um meninão! — disse ela. — Mas nasceu marcado...

“— Marcado?

“— Tem uma marca no peito, uma cobrinha-coral de cabeça preta.

“Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi... vi um estigma que reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro, e a ‘cobrinha’, uma estria abaixo.

“Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.

“— Ela já viu isto? — perguntei à parteira.

“— Não! Nem é bom que veja antes de sarada.

“Não me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos da mãe, dizendo com frieza de juiz:

“— Olha, mulher, quem te denuncia!

“A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhou-os como louca, à medida que lhe alcançava a significação. Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus. Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.

“Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de delírio...”

Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.

— Meu filho — disse ele. — Mostra a Bruno a tua cobrinha.

O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então ver o estigma. Era perfeita a ilusão: lá estava a imagem do orifício aberto pelo projétil e do fio de sangue escorrido.

— Veja você — concluiu o meu triste amigo — os caprichos da natureza...

— Caprichos de Nêmesis... — ia eu dizendo, mas o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele próprio o eloquente delator.
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Nota:
O asno de Buridan é uma imagem muito comum no estudo da filosofia, para expressar um paradoxo do livre-arbítrio. Criada por Jean Buridan (1300-1358), refere-se a uma situação hipotética em que um asno é amarrado a uma mesma distância de um fardo de feno e uma tina d’água. Incapaz de tomar uma decisão racional, o asno morre de fome e sede.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1915.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho)–2–


SEGUNDO EPISÓDIO: O LARGO DE BRANCO

Eliane, “cabelos brancos”, sozinha, morando num quarto muito pobre e pequeno na rua Bângala, vai a um encontro. Ela foi abandonada por seu companheiro, Geraldo, depois de 30 anos, ficando sem recursos. Na verdade “ele jogara o dinheiro na cama e, como se estivesse a pagar a vida quase inteira em comum, saíra a bater a porta com estupidez”.

Ela vai encontrar-se com Odilon, seu primeiro marido de quem ela tinha se separado há trinta anos. Ele estava voltando a Salvador e queria um encontro, “naquele dia mesmo, ao meio dia, no Largo da Palma. Em frente, bem em frente da igreja”.

Na carta ele lhe dizia que soubera de sua situação e queria vê-la. Quando chega “o Largo da Palma, em junho, sempre espera o sol para vencer o frio que sobre da noite”. Ela chegou cedo. As pedras, no chão, deviam ter séculos.

O narrador faz uma volta ao passado de Eliane para narrar a infância dela, o nascimento da irmãzinha, Joanita, a alegria da mãe, sempre a sorrir, o pai calado, cada vez mais calado. Depois, o tempo em que o pai chega bêbado, até o dia em que cai, deitado de bruços, como um morto.

A ambulância chega, vem o médico e um estudante, que Eliane ouve o médico chamar de Odilon. O pai é levado, e Odilon vai todo dia dar notícias, até o dia em que o pai volta, doente para casa, sem poder mais trabalhar. Em três meses Odilon será médico, e tudo nele respira bondade, calma e boa vontade. Ela conclui que Odilon não é um homem comum. A casa fica triste, a mãe perde o riso, a família está na miséria. A morte do pai foi um alívio. Todos viam que Odilon estava apaixonado por Eliane.

Eles ficam noivos, casam. Ela entende, então que o marido era “um homem inteiramente desligado do mundo” Só o que interessava a ele eram os doentes, o hospital, o ambulatório, chegando ao ponto de comprar remédios para os doentes, mesmo sabendo que a mãe e a irmã precisavam muito de dinheiro.

Ele era feio, desajeitado e desligado do mundo, mas a tratava com o maior carinho. A dor maior aconteceu quando ela ficou sabendo que não poderia ter filhos. O choque que sofreu foi tão grande que Odilon se afastou do hospital por três dias. Mas mesmo todo o amor que o marido dedicava não era suficiente, pois ela se sentia cada vez mais separada dele.

Algumas vezes, irritada, zangada, dirigia-se a ele ofendendo-o, dizendo palavrões.

Ele era incapaz de zangar-se. No último dia o agrediu aos gritos, saiu batendo a porta. Foi para um hotelzinho, à beira da praia, e foi lá que viu Geraldo, o homem mais bonito que tinha conhecido. Quando ele se aproximou, olhou-a, não teve coragem de se afastar.

Agora, depois de trinta anos, Odilon voltava, sabendo do abandono, queria vê-la. Ela sentiu fome e lembrou que, talvez “A Casa dos Pãezinhos de Queijo” estivesse aberta.

Mas ela se aproxima da igreja, e vê Odilon.

Está de pé, o paletó chegando aos joelhos, a calça frouxa sobre as pernas, o laço da gravata quase no peito, velho e sujo o chapéu de feltro. E, talvez, por causa do buquê de rosas vermelhas que tem na mão, parece um palhaço de circo. É ele, Odilon, não há dúvida. Os cabelos grisalhos, bastante envelhecido, mas o mesmo homem de sempre. (…) E como se nada houvesse acontecido naqueles trinta anos, desde que se separaram, ele apenas diz: – Vamos, Eliane, vamos para casa.(…) E Eliane, não tem dúvida de que o seu velho largo, como num dia de festa está vestido de branco. (p.47)

COMENTÁRIO

Novamente o espaço do Largo da Palma é testemunha de uma história humana. O largo fica de branco, festivo para dar alegria e alívio a uma velha mulher desiludida e triste. Uma história de amor transparece nas entrelinhas, feita de fidelidade, persistência, resistindo ao tempo e ao abandono.

O “branco” é uma cor simbólica, representando uma mudança de condição. Recebe todas as cores, por isso tem um valor limite de cor de passagem, da qual se esperam mutações do ser. É a cor da revelação e da graça; desperta o entendimento, a consciência desabrochada.

O texto é construído lentamente, despertando o interesse em relação ao desfecho, e lá está o Largo da Palma, antigo, firme, fiel a seu destino, iluminado pelo sol, com o céu muito azul, veste-se de branco, trazendo para Eliane a certeza de que haverá uma transformação em sua vida, sua consciência desperta para valores que, quando jovem, não soube avaliar devidamente.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.