sábado, 27 de maio de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 9)

 

Monselhor Orivaldo Robles (Jabuticabas)

Um senhor idoso plantava com carinho uma pequena muda de árvore. Aproximou-se um jovem:

– Que planta é essa?

– Uma jabuticabeira, respondeu o ancião.

– Quanto tempo demora para dar fruto?

– Ah, novinha como está, ainda vai levar uns 15 anos.

– E o senhor espera viver tanto tempo assim? questionou com ironia o moço.

– Não, não creio que eu viva mais tantos anos.

– Então que vantagem o senhor vai ter com esse trabalho?

Com ar de decepção, tornou o velho:

– Só a vantagem de saber que ninguém colheria jabuticabas, se todos pensassem como você.

É uma das mil historietas em circulação na Internet. Provavelmente você já a tenha recebido. Dei com ela na minha caixa postal. Normalmente aciono logo a tecla “Delete”. Desta vez parei a considerar a lição nela contida.

Ao lado de muitas razões de empolgado aplauso, a sociedade atual revela hábitos não exatamente louváveis. Por toda a parte se verificam práticas individuais e coletivas que em nada aprimoram o convívio humano. A começar por um individualismo, que, se não alcançou o ponto extremo, dele anda perto. Vá lá que todos nós, pobres filhos de Adão, feitos do mesmo barro de discutível qualidade, desde o ventre materno sejamos portadores de um egoísmo sem freios. Mas aquilo que, em outras épocas, nos incentivavam a combater como vício, hoje se enaltece como grandeza. Ora, há condutas que, em qualquer tempo, latitude ou cultura, continuarão sendo o que sempre foram. Não perderam a característica de grosseiras deturpações do ser e do agir humanos, que os rebaixam a nível inferior ao de animais. Vai-se tornando aceitável que os fortes espezinhem os fracos, que os ricos se aproveitem dos pobres. Ainda que a maioria aplauda, não há como rotular de progresso um comportamento desse feitio. Não é possível admitir como superadas noções que lançam suas raízes lá onde se assenta o melhor do nosso ser. Desprezá-las é matar a esperança de qualquer felicidade possível.

Se admito como justificável só o que me traz proveito, independentemente do malefício que possa causar a outrem, estou revalidando a lei da selva. Restauro como ética a norma do “quem pode mais chora menos”, tosca versão do “homo homini lupus” (o homem é um lobo para outro homem) dito de Plauto (230-180 a. C.), popularizado por Hobbes (1588-1679).

Ainda mais se o individualismo é posto a serviço do consumo, outra marca do nosso tempo. Pode-se com certeza afirmar que nunca se registrou consumismo tão avassalador. Enquanto em regiões pobres do planeta persistem desnutrição e fome, em outras, ditas de Primeiro Mundo, se morre por excesso de comida. Com a agravante de que ninguém mais acha estranho. Tudo é visto com a aprovação de quem tem olhos apenas para o próprio umbigo. É a moderna versão da justificativa de Caim: “Sou, por acaso, guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Traduzindo: “Para me dar bem posso até matar; os outros que se danem”.

Hoje a lei é aproveitar-se de tudo o que é capaz de conferir lucro, satisfação ou prazer. Tudo aqui e agora. Tolice esperar para depois. Não há como consumir na hora? Então não tem valor. Por isso não faz sentido nada que não me traga imediato proveito. Tenho que desfrutar já do meu trabalho. Eu, não outro. Imagine se vou me cansar para que outro leve vantagem. Só um mané faz isso.

Depois, as pessoas reclamam da violência que voga por aí.

Fonte:
Maringá News. Blog do Rigon.
https://angelorigon.com.br/2013/02/25/jabuticabas/

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXV

A jangada flutuando,
ao longe, nos dá sinais,
de um lenço branco acenando
a lenços brancos no cais!
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À noite, que descalabro!...
O meu cansaço, era tanto,
que as velas do candelabro
choravam gotas de pranto!
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Ao ver meus netos me olhando,
bem cedo, ao romper do dia...
Percebo a aurora, acenando
para o outono da poesia!
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A saudade - é a ressonância,
daquela canção dolente,
que a mãe, cantava na infância,
curando as dores da gente!
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A saudade me convém,
e às vezes, também conforta,
quando sinto as mãos de alguém
na maçaneta da porta!
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Cada trova, é uma criança,
que me mostra passo a passo,
quantos versos de esperança
ponho nas trovas que faço!
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Depois da chuva caída,
leio em seus pés pelo chão,
digitais de nova vida
dando vida ao meu sertão!
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Esse teu jeito, menina,
com inocências divinais,
lembra-me uma flor divina
dos jardins angelicais!
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Há tanta gente sem lume,
feito a flor bem machucada,
mas, que mantém seu perfume
do início ao fim da jornada!
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Longe de ti, que ansiedade!...
Essa dor, que sinto a esmo,
se de ti, não for saudade,
é saudade de mim mesmo!
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Meus pais, naquela pobreza
de uma vida campesina,
deram-nos, toda a riqueza
de uma paz, quase divina!
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Na aridez dos tempos secos,
a humanidade tatua
a cor da fome nos becos
e a mendicância na rua!
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Não tenho luzes no olhar,
mas, meu viver, compartilho,
para que a luz do meu lar,
brilhe no olhar do meu filho!
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O outono, com seus percalços,
impõe-nos manchas e rugas;
discreto, põe passos falsos,
nos passos de nossas fugas!
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O Sol, não faz por maldade;
mas, pinta no fim do dia,
o entardecer, de saudade,
com cores de nostalgia!
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O Sol, se põe sem estresse,
esquece o peso da idade;
não sei por que, não se esquece
de encher o céu, de saudade!
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O teu olhar na moldura,
mãe!... Contemplo todo dia!
É a chama acesa, mais pura,
da luz do amor que me guia!
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Parte o jangadeiro ao canto
da voz, dos sonhos imensos;
ao longe, um lenço de pranto,
molha no cais, outros lenços!
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Por mais que o mundo desminta,
não há um gesto mais lindo,
que o da criança faminta,
num berço pobre, sorrindo!
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Quem ama a boa leitura,
acende a luz da razão,
e põe nas mãos da ventura,
uma luz em cada mão!
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Quem ama com destemor,
põe mais açúcar no afeto;
qualquer migalha de amor
enche um lar, do piso ao teto!
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Se a minha trova é singela,
a humildade, me retrata,
que a trova pode ser bela,
sem ouro, troféu nem prata!
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Se acaso, alguém te magoa,
não te sintas pois, magoado;
em silêncio, quem perdoa,
recebe o perdão dobrado!
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Sê fiel aos bons conselhos,
não te orgulhes da maldade;
vi muito orgulho de joelhos
aos pés do altar da humildade!
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Sempre escuto dos mais velhos,
conselhos bons, todo dia;
são breviários e evangelhos
da sábia luz que nos guia!
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Toda tarde, na ternura,
da voz de um sino plangente,
há sinais da partitura
da vida de muita gente!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Marques de Carvalho (Ao soprar a vela)


Ao Sr. José Feijó d’Albuquerque

  I

Às 8 horas da noite, quando chegou o marido, veio a Cândida, a saltar alegremente, recebê-lo à porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do penteador de cambraia branca.

Quanto se demorara ele!... Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já sentia tantas saudades!... Ele não imaginava o que era estar uma pobre mulher metida em casa, durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!...

E afagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, causando-lhe uns arrepios sensuais pelas costas, eriçando-lhe os cabelos dos braços e pernas.

Que não poderá vir mais depressa, — objetava o marido, sentando-se numa poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscência para a mulher. — Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora, brincando com as crianças, para entreter-se. Os pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e à mulher.

— E aceitaram? — interrogou a Cândida, saltando para as pernas do marido, a rir muito, com os lábios abertos lindamente, frisando-se graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.

— Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, máximo sabendo que nós a desejávamos para a libertar. Aquela gente está cada vez mais negreira! Enfim, escolhe-se outra qualquer, contanto que seja o dia de teus anos digna e liberalmente solenizado por mim. Continuemos, porém. Estava eu disposto a sair, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquele sujeito avermelhado, cuja cabeça está mais limpa de cabelos que os teus joelhos...

— Deixa-te de tolices...

— Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo porque levantei-me e saí à viva força!... Agora, — concluiu sorrindo, — aqui tem você o seu Roberto, cheio de amor e paixão, disposto a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!

Sempre sentada sobre as pernas dele, Cândida semicerrou os olhos numa vertigem lúbrica, e estendeu para a boca de Roberto os seus lábios frescos e perfumados desse olor esquisito e bom, peculiar às mulheres que se tratam.

Mas ergueram-se de súbito, num enleio: aparecera à porta que dava para o corredor o moleque Euzébio, com o bule de chá...

II

Depois do chá, Roberto acendeu um charuto, foi buscar um livro e, acomodando-se numa grande voltaire, pôs-se a ler. Ficou a Cândida defronte dele, a mira-lo.

Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois bicos de gás encerrados em globos de cristal finamente lavrado. Com os cotovelos sobre a mesa, o rosto de queixo saliente e narinas aflantes descansando nas palmas das mãos, Cândida continuava a olhar para o marido com uma expressão estranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.

Parecia lançada à contemplação da própria felicidade. Era justamente aquilo que, anos antes, fantasiara a sua sonhadora imaginação de burguesinha estragada pelos mimos de seus pais extremosos e pacóvios (
inocentes): viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto dele, para o consolar em todos os desgostos, rir com ele nas horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irrepreensível e, sobretudo, contempla-lo a todo instante, silenciosa, longamente, envolve-lo nas sentimentais suavidades do seu enlanguescido olhar de crioula amorosa! Nunca se sentira tão feliz como depois de seu casamento com o Roberto, havia quase dez meses. Nem uma só contrariedade tivera após aquela noite comovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo no silêncio de uma discreta alcova toda cheia de flores, rendas, fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã imediata, quando leu no Diário de Notícias as linhas seguintes, que decorou à força de as repetir baixinho?

— "Uniram-se ontem à noite em matrimônio, na igreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado comerciante da nossa praça, e a Exma. Sra. D. Cândida Anunciada Seixas, filha do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietário abastadíssimo. Foram padrinhos os srs. Silvino Cunha e Antero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos jovens cônjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades a que têm jus por seus dotes distintíssimos."

Ficou a nadar em júbilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornais, comovidíssima pela lembrança de que, àquela hora, a cidade inteira estava sabedora da realização de seus íntimos desejos de moça apaixonada!... Daí em diante começaram a viver como dois anjinhos, como ela queria. Roberto era sempre de uma delicadeza afetuosa e séria para com a sua Candinha, que também, valha a verdade, contribuía, segundo seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ela achava impossível que duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas por dá cá aquela palha... Entretanto, assim acontecia às vezes. Aí estava, mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más línguas, era uma jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estefânia, era outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dor de coração! Mas com ela assim não sucedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador à hora de recolher ao lar: às 5 da tarde mandava fechar o armazém, tomava o bonde e vinha logo para junto dela, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ela conhecia de mais o gênio do marido para recear qualquer mudança futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a importante notícia que ela tinha para lhe dar.

Era verdade! fazia-se necessário contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta assim que ela abria a boca para falar..., mas hoje diria, estava resolvida! Quando? agora? — Agora não; deixá-lo com a leitura, que está tão entretido... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para ele!... para ele, que era tão lindo, tão bom, tão amado!...

Tudo isto pensava ela, continuando a fitar o esposo num enlevo apaixonado.

III

De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surpreendida, a Cândida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto dele o seu ardente olhar, como se desejasse cobri-lo com toda a veemência da paixão.

Ouvindo soarem no sino de Sant’Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.

— Vamos dormir? — propôs.

Cândida estremeceu e levantou-se.

O moleque veio fechar as portas e janelas e apagar o gás.

No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcova. Em cima do velador, uma vela cor de rosa ardia num castiçalzinho de porcelana de Sévres com pinturas alegóricas de Amores alados e Quimeras volitantes. No centro, uma causeuse (
sofá de dois lugares) de cetim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda, brochuras esparralhadas (espalhadas), num abandono adoravelmente assimétrico. Vidros de perfumarias com rolhas de cristal reluziam em cima do toucador de jacarandá, lançavam cintilações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das paredes laterais.

Ao fundo erguia-se a cama, — pudicamente oculta entre as rugas de um cortinado de labirinto finíssimo, suspenso do teto por uma passadeira dourada.

Levantava-se daquela cama um quê de evaporação de felicidade inenarrável, que penetrava no espírito dos dois esposos pelos sentidos do olfato e da vista. Parecia-lhes acharem-se diante do tabernáculo de seu amor, do altar de sua existência feliz e encantadora. Para Cândida, sobretudo, ela tinha uma importância transcendental: evocava-lhe uma recordação agridoce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove meses de agradabilíssima coabitação conjugal...

Quando iam deitar-se, Cândida enlaçou a cabeça do marido com os braços descobertos, — mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de cambraia enfeitada de rendas do Ceará.

Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos eflúvios, — essas queridas exalações de mulher amada, — num enlanguescimento concupiscente.

— Olha. – murmurou ela conservando-se na mesma posição, beijando-o na testa. — Quero dar-te uma notícia muito boa...

— Qual é? — perguntou Roberto estreitando-a nos braços.

— Tenho tanta vergonha!...

Esta exclamação pronunciou-a Cândida desprendendo-se do amplexo do marido e dando um pulo para o leito.

— Anda, fala, menina, que tolice é essa?

— Então apaga a luz, primeiro; pode ser que às escuras eu me sinta mais animada!...

Roberto soprou a luz da vela e disse deitando-se:

— Agora...

Cândida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as pontas dos frios dedos trêmulos. Depois, de súbito:

— É que, — murmurou com umas brejeiras risadinhas reprimidas, — é que eu... estou grávida!

Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores, — o beijo com que o esposo tenta revelar a indivisível alegria de ver convertido em realidade o seu mais persistente anelo, — respondeu àquela confissão prazenteira, na propícia obscuridade da alcova matrimonial...

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

Minha Estante de Livros (Crônicas do Cretáceo: O tempo antes de nós, de André Nemésio)


É um livro brasileiro de ficção científica escrito pelo biólogo André Nemésio e publicado em 2020.

SINOPSE

A trama baseia-se na possibilidade do surgimento da inteligência e da senciência mais de uma vez na história do nosso planeta e que a linhagem dos dinossauros teve tempo suficiente para que uma ou mais espécies inteligentes pudessem ter surgido. Partindo dessa premissa, e relacionando-a com as possibilidades de vida inteligente em outros planetas, a humanidade, em fins do século XXI, descobre evidências de que uma civilização desconhecida já esteve em nosso sistema solar milhões de anos antes do surgimento da espécie humana. Acreditando inicialmente que tal civilização teria origem extraterrestre, os cientistas gradualmente se dão conta, através do estudo de um cubo de ouro encontrado em Marte e aplicando o pensamento lógico-dedutivo, que, na verdade, a Terra já foi habitada não por uma, mas por duas espécies de dinossauros terópodes inteligentes no final do período Cretáceo. Essas duas espécies, conhecidas em seus respectivos idiomas como Korubo e Arama, erigiram civilizações com desenvolvimento tecnológico equivalente àquele alcançado pela humanidade no início do século XXI, e tiveram que lidar com um grande desafio: a chegada de um enorme asteroide em rota de colisão com a Terra. Embora tivessem a tecnologia para, ao menos, mitigar os efeitos do impacto, as desconfianças mútuas e o desprezo pela ciência por parte de alguns impediram que os dois povos lograssem êxito na tarefa de evitar o desastre, resultando no impacto que deu origem à cratera na região de Chicxulub, na atual Península de Yucatán, no México, há 66 milhões de anos, pondo fim à "era dos dinossauros".

O autor apoia-se nas mais recentes descobertas nas áreas da astronomia, geologia, geofísica, biologia evolutiva, paleontologia, paleoecologia e filosofia da ciência para construir sua trama, inclusive listando toda a literatura consultada e utilizada como fonte para sua história fictícia ao final da obra, dando à mesma um caráter adicional de divulgação científica. Os dinossauros terópodes, por exemplo, são retratados da forma mais exata possível, de acordo com os mais recentes estudos paleontológicos, que lhes atribuem penas. Além disso, referências e trocadilhos com várias outras obras de ficção científica estão presentes ao longo de toda a história.

Recebeu críticas positivas na imprensa. Foi um dos três finalistas do IV Prêmio Le Blanc e também finalista do Prêmio Argos de Literatura Fantástica 2021. Ganhou uma tradução para a língua inglesa, publicada em outubro de 2021.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B4nicas_do_Cret%C3%A1ceo

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 17

 

Contos e Lendas da África (O macaco, a cobra e o leão)

Há muito, muito tempo, em uma aldeia chamada Kejee’jee, vivia uma viúva que criava seu bebê sozinha. Ela trabalhava muito para conseguir alimentar a si e ao filho. Eram muito pobres, inúmeras vezes passavam fome.

Quando o garoto, que se chamava ’Mvoo Laa’na, ficou um pouco mais velho, perguntou à mãe:

— Mamãe, estamos sempre passando fome. Que trabalho meu pai fazia para nos sustentar?

— Seu pai era caçador — respondeu a mulher. — Ele colocava armadilhas pela floresta e comíamos o que ele capturava.

— Ah! Isso não é trabalho, é diversão! — alegrou-se ’Mvoo Laa’na. — Também farei armadilhas. Vamos ver se consigo pegar algo para comermos.

No dia seguinte, foi à floresta cortar galhos das árvores e voltou à noite. No segundo dia, construiu armadilhas com os galhos. No terceiro dia, trançou fibras de coco e fez cordas. No quarto dia, espalhou o maior número de armadilhas que conseguiu. No quinto dia, colocou ainda mais armadilhas. No sexto dia, foi à floresta verificá-las. Apanhou mais animais que o necessário para comer, então foi à grande cidade de Oongoo’ja vender o excedente. Comprou milho e outras coisas. Deixou sua casa repleta de comida.

Sua sorte continuou por um bom tempo. Assim, ele e mãe passaram a viver confortavelmente. No entanto, depois de certo tempo, não encontrava mais nada em suas armadilhas.

Certa manhã, viu um macaco preso em uma das arapucas. Estava prestes a matá-lo quando o animal disse:

— Filho de Adão, eu sou Neea’nee, o macaco. Não me mate. Liberte-me e deixe-me ir embora. Salve-me da chuva, pois um dia eu poderei salvá-lo do sol.

’Mvoo Laa’na retirou-o da armadilha e o deixou partir.

Neea’nee então subiu em uma árvore e de um galho alto disse ao jovem:

— Darei um conselho em troca de sua gentileza. Todos os homens são maus, acredite em mim. Nunca ajude homem nenhum, pois ele se voltará contra você na primeira oportunidade.

No segundo dia, ’Mvoo Laa’na encontrou uma cobra presa na mesma armadilha. Estava saindo para avisar a todos na aldeia, quando a cobra lhe chamou:

— Volte, filho de Adão! Não diga aos aldeões para virem aqui me matar. Eu sou Neeo’ka, a cobra. Me liberte, eu lhe imploro. Salve-me da chuva hoje, pois talvez um dia eu consiga salvá-lo do sol.

Então o jovem libertou a cobra, que lhe disse antes de partir:

— Retribuirei sua gentileza quando a oportunidade surgir. Mas não confie em nenhum homem. Se você for gentil, eles pagarão com maldade tão logo tenham a chance.

No terceiro dia, ’Mvoo Laa’na encontrou um leão na mesma armadilha em que havia pego o macaco e a cobra. Estava receoso em se aproximar, mas o leão disse:

— Não fuja! Eu sou Sim’ba Kong’way, o velho leão. Deixe-me sair desta armadilha, não o machucarei. Salve-me da chuva, pois eu poderei salvá-lo do sol quando você precisar.

’Mvoo Laa’na confiou nas palavras do leão e o libertou. Antes de partir, Sim’ba Kong’way lhe disse:

— Filho de Adão, você me ajudou e eu te retribuirei se puder. Mas nunca ajude a um homem, pois ele retribuirá unicamente com ofensas.

No dia seguinte um homem ficou preso na mesma armadilha. Quando ’Mvoo Laa’na o libertou, o homem assegurou-o inúmeras vezes de que jamais esqueceria que o jovem havia salvado sua vida.

Parecia que ’Mvoo Laa’na já havia capturado todos os animais da floresta. Logo ele e sua mãe voltaram a passar fome e não conseguiam encontrar nada que pudessem comer. Até que um dia o rapaz disse:

— Mãe, pegue a pouca carne que nos resta e faça sete tortas. Vou caçar com meu arco e flecha.

Ela assou as tortas para ’Mvoo Laa’na, que as levou em sua incursão na floresta.

O jovem andou muito e não encontrou nenhuma caça. Percebeu que estava perdido e só lhe restava uma das tortas. Continuou vagando, sem saber se ia na direção de sua casa ou no caminho contrário. Penetrou cada vez mais no bosque até chegar a uma área selvagem e desolada onde nunca havia estado antes. Estava exausto e desesperançoso, a ponto de cair no chão e esperar pela morte, quando de repente ouviu alguém chamar seu nome. Olhou para cima e viu Neea’nee, o macaco, que disse:

— Aonde vai, filho de Adão?

— Não sei. — respondeu ’Mvoo Laa’na tristemente. — Estou perdido.

— Não se preocupe! — consolou o macaco. — Sente-se e descanse até eu voltar. Pagarei com gentileza a bondade que você um dia me fez.

Então Neea’nee foi até um pomar e roubou bananas e mamões papaia.

— Aqui tem bastante comida. Há algo mais que você queira? Está com sede?

E antes que ’Mvoo Laa’na respondesse, Neea’nee saiu novamente e voltou com uma cabaça cheia de água. O jovem comeu e bebeu até se saciar. Então despediram-se e cada um seguiu seu rumo.

Após andar um grande percurso sem encontrar o caminho de volta para casa, ’Mvoo Laa’na encontrou Sim’ba Kong’way, que lhe perguntou:

— Aonde vai, filho de Adão?

E com a mesma tristeza de antes, o rapaz respondeu:

— Não sei. Estou perdido.

— Alegre-se! — disse o velho leão. — Descanse um pouco aqui. Hoje retribuirei sua bondade.

’Mvoo Laa’na sentou-se e Simba sumiu na floresta, mas logo voltou com caça e também trouxe fogo. O rapaz cozinhou a carne e sentiu-se muito melhor após comer. Despediram-se e tomaram caminhos opostos.

Depois de percorrer mais uma longa distância, o jovem encontrou uma fazenda, onde foi recebido por uma senhora muito, muito velha, que lhe disse:

— Forasteiro, meu marido está muito doente, eu preciso de alguém que saiba fazer um remédio para ele. Você pode me ajudar?

— Minha boa senhora, eu não posso. Sou um caçador, não um médico. Nunca fiz um remédio na vida.

Então ’Mvoo Laa’na seguiu pela estrada que levava à cidade principal, quando viu um poço com um balde ao lado. Disse para si mesmo:

— É exatamente o que eu precisava: tomar um pouco de boa água de um poço. Deixe-me ver se o balde chega até o fundo.

Olhou pela borda para verificar a altura da água e encontrou uma grande cobra dentro do poço, que assim que o viu disse:

— Espere um pouco, filho de Adão! — e se esgueirou até sair do poço. — Ora, então não se lembra de mim?

— Não lembro, juro que não! — explicou o rapaz, afastando-se.

— Pois eu jamais me esqueceria de você. — tornou a cobra. — Eu sou Neeoka, você me libertou da armadilha. Eu disse a você: “Salve-me da chuva, que um dia te salvarei do sol”. Você será um estrangeiro no local para onde vai. Por isso, me dê sua bolsa e eu colocarei nela coisas que serão úteis na cidade.

’Mvoo Laa’na entregou sua pequena bolsa à Neeo’ka, que a encheu com correntes de ouro e prata, dizendo que ele poderia usá-las como julgasse melhor. Os dois se despediram amavelmente e se separaram.

Quando o rapaz chegou à cidade, a primeira pessoa que encontrou foi o homem que havia libertado da armadilha, que o convidou para ir à sua casa. ’Mvoo Laa’na aceitou o convite e jantou em companhia de seu novo amigo e sua esposa.

Assim que teve uma oportunidade, o homem foi até o sultão e disse:

— Há um forasteiro em minha casa com uma bolsa cheia de correntes de ouro e prata. Disse que ganhou de uma cobra que vive em um poço. Mesmo que esteja disfarçado, sei que na verdade é uma cobra fingindo ser homem.

Ao ouvir tal acusação, o sultão ordenou que seus soldados capturassem ’Mvoo Laa’na. O homem libertado da armadilha convenceu a todos de que, caso a bolsa fosse aberta, dela sairia algum feitiço que atingiria os filhos do sultão e do vizir.

As pessoas ficaram tão aterrorizadas que amarraram ’Mvoo Laa’na. Nesse momento, a grande cobra apareceu, ela havia saído do poço para ir à cidade. Neeo’ka deitou-se aos pés do homem que havia acusado ’Mvoo Laa’na.

Ao ver aquilo, os cidadãos disseram:

— Como isso é possível? Essa é a grande cobra que vive no poço. Ela está deitada ao seu lado. Mande-a embora.

Mas Neeo’ka não moveu um músculo. Então eles desamarraram ’Mvoo Laa’na, pois temiam que fosse um mago, e desculparam-se de todas as formas possíveis.

— Por que esse homem o convidou para jantar em sua casa e depois o acusou? — perguntou o sultão.

Nesse momento, ’Mvoo Laa’na lembrou-se de tudo o que havia acontecido, de como o macaco, a cobra e o leão o advertiram sobre o que aconteceria caso ajudasse algum homem.

O sultão então disse:

— Embora muitos homens sejam ingratos, nem todos são, somente os maus. A punição para esse homem será ser amarrado em um saco e afogado no mar. Ele foi tratado com bondade, mas pagou o bem com o mal.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

José Fabiano (Trovas Brincantes)


Ah, mulher, tu me cativas,
mas os teus modos são tais,
que as glândulas que me ativas
são somente as lacrimais…
= = = = = = = = =

Ao lavar meu coração,
verifico, num instante,
que precisa de sabão
e muito mais de "amaciante"...
= = = = = = = = =

Casado com a Rebeca,
o músico Sebastião,
de tanto tocar "rabeca"
acabou no "rabecão"...
= = = = = = = = =

Casou-se com bom partido
de família de renome.
Hoje ela usa, do marido,
tão-somente o sobrenome…
= = = = = = = = =

Com mulher, deves dispor,
para a boa convivência,
além de gramas de amor,
alguns quilos de paciência...
= = = = = = = = =

Com nosso consentimento,
sem-terra invade o que quer.
Por que o mesmo tratamento,
não damos ao sem-mulher.?...
= = = = = = = = =

Como a tristeza me irrita,
quando olvidando que é dama
e que apenas me visita,
vai comigo para a cama!…
= = = = = = = = =

Como lamenta a desgraça!
Sua vaidade anda rota:
toma "litros" de cachaça,
mas sofre apenas de "gota"...
= = = = = = = = =

Depois da "idade do lobo",
ao ver tudo por que passo,
ocorre a "idade do bobo",
que finda "na do palhaço"...
= = = = = = = = =

Dou um boi para jamais
entrar numa briga dessa
e uma boiada dou mais
pra sair dela depressa...
= = = = = = = = =

Eu sinto aquele alvoroço
que se sente na hora H,
se a cozinheira, no almoço,
me diz: - "Habemos" papá...
= = = = = = = = =

Eu tenho me perguntado
qual, enfim, é meu formato;
uns dizem que sou "quadrado",
outros falam que sou "chato"…
= = = = = = = = =

Frequentava, quando jovem,
os bares todos os dias.
Velho - todos se comovem
só frequenta as drogarias...
= = = = = = = = =

"Hálux", que nome pomposo!
Sabes por acaso o que é?
Além de algo luminoso,
é também dedão do pé...
= = = = = = = = =

Muito fácil perceber
o caminho do pecado.
Basta só reconhecer
qual o mais congestionado.
= = = = = = = = =

Mulher fala o "feminês",
língua que utiliza assim:
"não", no lugar do "talvez",
"talvez", no lugar do "sim"...
= = = = = = = = =

Nosso amor -tenho a impressão-,
precisa de um PAC também;
Plano de Aceleração
de Casamento, meu bem...
= = = = = = = = =

O homem sente falta imensa
do ar e da mulher que ele ama.
Há só uma diferença:
o ar atende e não reclama...
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Podem bem ser comparados
num ponto o café e o amor.
Ambos, quando requentados,
perdem o antigo sabor...
= = = = = = = = =

Quando com ela dialogo,
e ela me toca e me alisa,
eu vou perguntando logo:
- De quanto você precisa.?
= = = = = = = = =

"Sê bem-vindo!" Interessante
é ler em supermercado
o que pensa um assaltante
de quem vai ser assaltado…
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Se de "Ana" o diminutivo
é "Aninha", estranho, então,
ao pensar que o aumentativo
deva ser menor: "Anão"…
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Se queres unir-te a alguém,
de início não te recuses
a saber se são também
compatíveis suas cruzes.
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Todo ingrato é aquele ser,
em geral mal-educado,
que não se digna dizer
nem "muito desobrigado"…
= = = = = = = = =

Tudo passa, e eu acho graça,
quando fico a me lembrar
que a passadeira não passa,
sem o ferro de passar...
= = = = = = = = =

Vidas a dois mal vividas
são, de fato, complicadas!
Lembram, às vezes, partidas
que terminam em... patadas...
= = = = = = = = =
Fonte:
Enviado por Assis
José Fabiano & A. A. de Assis. Trovas brincantes. 2007 (livreto)

Humberto de Campos (A virgem)

Após aquela noite de festa, em que dançara desesperadamente com todos os rapazes que lhe pediam essa honra, amanheceu mademoiselle Beatriz com febre alta, e uma tosse forte, com grandes dores no peito. Chamados os Drs. Miguel Couto, Austregésilo e Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em conjunto, às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora brasileirinha falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso enterro de virgem que já se viu no bairro de Botafogo.

Quebrados, assim, os grilhões que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e "maxixes", foi mademoiselle Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à luminosa porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se imagina.

Tratando-se de um acontecimento raro, e que se torna cada vez menos frequente, a recepção das virgens se reveste, no céu, de uma suntuosidade excepcional. Para ver, e saudar, de perto, a heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreos, agitando palmas de rosas, todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada põe o pé no batente florido, rompe por todo o Paraíso o coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas, comoventes, às das onze mil companheiras de Santa Úrsula.

Era essa a recepção que aguardava mademoiselle Beatriz, quando ia ficando tudo inutilizado por um incidente imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro de ouro das nuvens, a aproximação da venturosa, ordenou S. Pedro que Santa Cecília e Santa Matilde o ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus, estabelecendo a sua identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando patente, com a pureza do seu corpo, a inocência do seu coração.

Assim, porém, que principiou este serviço delicado, as santas recuaram, escandalizadas. E, entreolhando-se, chamaram São Pedro.

- A moça não é esta, meu santo!

O chaveiro correu, aflito, e fixando os olhos puros no corpo virginíssimo de Beatriz, indagou, espantado:

- De que foi que você morreu, minha filha?

- De pneumonia, meu santo!

O apóstolo encarou-a, incrédulo, e insistiu:

- Você não está enganada, não?

- Não, senhor.

- Você não morreu em algum desastre de estrada de ferro, de alguma queda de aeroplano, de algum encontro de automóveis?

- Não, senhor! - teimou a moça, firme, sacudindo a cabeça.

- Que significam, então, - tornou o santo, - essas equimoses no seu colo, no seu estômago, no seu ventre, nas suas pernas como quem foi arrastada de bruços pelo calçamento?

Beatriz baixou os olhos negros pelo seu claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:

- Ahn! Não é nada, não!

E explicou, com graça:

- É que eu morri, dois dias depois de um grande baile, em que dancei o tango com os rapazes mais elegantes do Rio de janeiro!

E, desatando a rir, entrou, entre os anjos, no céu…

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 09

 

Nilto Maciel (Um Grande Homem)

Salazar não conseguiu dormir quase nada naquela noite. Levantou-se mais de dez vezes, tentou ler, ligou a televisão. Voltava à cama, olhava para a mulher dormida, imaginava um segundo de safadezas, desistia, metia-se debaixo do lençol. Não, não seria daquela vez que o sono viria. E como conseguiria dormir? Só se fosse um insensível. Mais de dez anos atrás daquela mesa, a dar ordens, organizar o serviço, e, sem qualquer motivo, ser destituído da função. Uma injustiça inominável! E se virava na cama, olhos arregalados, quase cheios de ódio. Se ao menos a mulher acordasse para conversarem! Mas, não, a desgraçada dormia feito uma porca. Nem ligava para sua insônia, suas preocupações, aquela tragédia em sua vida. Uma insensível!

Na sala, releu pela centésima vez a notícia da queda do avião no Pará. Destroços na selva, mais de uma centena de mortos. História sem qualquer emoção. Coisas do cotidiano. Muito pior o que lhe acontecera. Ora, dez anos na direção do departamento e, num piscar de olhos, a destituição. Uma vergonha! Seus antigos subordinados não o chamavam mais de doutor, e riam pelos cantos. Uns calhordas! Fulano, leve este processo ao desembargador. E fulano virava a cara, fazia-se de desentendido. Falou comigo, Salazar? E pensar nos sonhos de seu pai! “Meu filho vai ser um grande homem”. Pobre velho! A vida toda a falar em riqueza e poder. “Ou você acha que eu dei esse nome a ele por acaso? Sim, há de ser um grande homem. Talvez um ditador”.

A televisão mostrava uma sequência de assassinatos. O superpolicial metralhava bandidos como a dona de casa mata moscas com spray. E nada o impressionava. Aquilo parecia filmes de noites passadas. Olhou para o jornal, fez menção de agarrá-lo, mas preferiu desligar a televisão. Exatamente quando uma rajada de tiros estraçalhava a cara de um bandido.

Foi à geladeira e bebeu suco de uva. Os invejosos da repartição não o trataram sequer por senhor. Teve vontade de dar gritos. Exigir respeito. Ora, subalternos deviam chamar chefe de doutor. Pelo menos de senhor. Nada de intimidades. Não, não podia exigir nada. Afinal, não era mais o chefe. Uma vergonha!

Sentou-se na beira da cama, pensou em rezar, olhou de viés para a mulher gorda que roncava, deitou-se bem devagar. Quem seria o seu substituto? Talvez um velhote qualquer, desses de bigodes e óculos bifocais. Nomeado exclusivamente com o propósito de infernizar sua vida. Desmoralizá-lo perante os funcionários. “Salazar, faça isso, faça aquilo”. Aos gritos. Como ele fizera durante tanto tempo.

No entanto, o sono chegou. E Salazar se viu pequeno, raquítico, quase anão, a servir café a todos. Especialmente à jovem e terna Rosa, sua substituta na chefia do departamento.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LV

Sei bem que não consigo
O que não quero ter,
Que nem até prossigo
Na estrada até querer.

Sei que não sei da imagem
Que era o saber que foi
Aquela personagem
Do drama que me dói.

Sei tudo. Era presente
Quando abdiquei de mim...
E o que a minha alma sente
Ficou nesse jardim.
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Sei que nunca terei o que procuro
E que nem sei buscar o que desejo,
Mas busco, insciente, no silêncio escuro
E pasmo do que sei que não almejo.
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Sepulto vive quem é a outrem dado.
E quem ao outrem que há em si, sepulto
Não poderei, Senhor, alguma vez
Desalgemar de mim as minhas mãos ?
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Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?

Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sou o que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.

Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...
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Se tudo o que há é mentira
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito.
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.
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Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta.
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Sim, já sei...
Há uma lei
Que manda que no sentir
Haja um seguir
Uma certa estrada
Que leva a nada.

Bem sei. É aquela
Que dizem bela
E definida
Os que na vida
Não querem nada
De qualquer estrada,

Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.
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Sim, tudo é certo logo que o não seja.
Amar, teimar, verificar, descrer.
Quem me dera um sossego à beira-ser
Como o que à beira-mar o olhar deseja.
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Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos são

Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.

Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Aparecido Raimundo de Souza (Bobices e bobagens)

BETO GOZADOR conversa com Eustáquio Cabeleira. 

BETO GOZADOR: — Cadê o toicinho que estava aqui?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: —  O gato comeu...

BETO GOZADOR: — Engraçadinho! Cadê o gato?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Foi caçar rato.

BETO GOZADOR: — Cadê o rato?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Foi para o mato.

BETO GOZADOR: — Está legal: Cadê o mato?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — O fogo queimou.

BETO GOZADOR: — Já vi que tirou o dia para me sacanear. Tudo bem: Cadê o fogo?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — A água apagou.

BETO GOZADOR: — Ok. Vou entrar na sua. Cadê a água?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — A Emengarda, sua namorada usou para lavar a louça do almoço.

BETO GOZADOR: — Ah, então minha gatinha lembrou de nosso almoço?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Com toda certeza... comentou com a minha Lurdinha.

BETO GOZADOR: — Bom saber. Fiquei de dar uma volta com a Emengarda logo mais à noite... faz tempo que não saímos para nos divertirmos.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Aproveita a ocasião. Leva a Emengarda num cinema, come uma pizza. Mulher nova, na idade da sua, gosta de ser paparicada. Se você não comparecer, logo virará chifrudo.

BETO GOZADOR: — Vá lamber sabão.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Se você me apresentar o sabão...

BETO GOZADOR: — Eustáquio, você não consegue manter um papo sério. Como a Lurdinha lhe aguenta? 

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Escuta aqui, ô meu. Qual é a sua?

BETO GOZADOR: — Na verdade, não sei. E você, saberia me dizer qual é a de nós dois?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Olha, eu estou igual ladrão de cemitério. Chegou defunto novo, vou ver se trouxe alguma joia pendurada no esqueleto...

BETO GOZADOR: — Como assim?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Espero o encerramento do velório e do enterro. Aguardo todo mundo ir embora e quando dá meia noite, ataco a sepultura. 

BETO GOZADOR: — E tem dado certo?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Do último corpo que viajou para os quintos, tirei dois cordões de ouro.

BETO GOZADOR: — Acho que você pirou da cabeça ou entrou na fase da leucotriquia (embranquecimento dos cabelos). Aliás, quando tiver um tempinho, se olhe no espelho. Sua pessoa está me saindo um leucotriquiano de primeira e em bom estado de conservação. 

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Leuco... o quê? - Repita. O que é isso?

BETO GOZADOR: — O intelectual por aqui é você. Dá uma de Faustão. Se vira nos trinta.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Está bem. Vou parar de conversar com você. Só sai asneiras de sua boca. Credo em cruz! Desconfio que você está precisando urgentemente usar uma sorrelfa (dissimulação).

BETO GOZADOR: — Uma o quê?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Esquece. Gostaria de ganhar de presente um panléxico (léxico universal)?

BETO GOZADOR: — Se você me disser sem pensar qual é a capital do inferno?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Por que? Você já esteve lá?

BETO GOZADOR: — Que pandemônio você está querendo criar na minha cabeça?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Vamos mudar de assunto?

BETO GOZADOR:  — Certamente. Qual o tema?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Sabia que a minha Lurdinha fez ontem, por incrível que pareça, o seu primeiro truque? 

BETO GOZADOR: — Legal. E qual foi?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Dormiu a noite toda.

BETO GOZADOR: — Então ela é boa de cama?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Melhor até do que eu pensava. Me surpreendeu...

BETO GOZADOR: — Como assim?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Além de ser boa em tudo, de manhã cedo, nem preciso me preocupar com o despertador.

BETO GOZADOR: — Não?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Não.

BETO GOZADOR: — Mas...

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Ela ronca por nós dois.

BETO GOZADOR: — Ronca?

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Sim. Demais. Parece um trator desembestado.

BETO GOZADOR: — Tenho a saída mágica para acabar com esse impasse.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Verdade? Qual?

BETO GOZADOR: — Falando sério, mano. Sem gozação. Eu tenho a solução perfeita e definitiva para pôr fim aos roncos da sua querida e doce amada.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — OK, então fala. Sou todos ouvidos.

BETO GOZADOR: — Disponho, lá em casa de um invento meu. Trata-se de um abafador caseiro para roncadores inveterados. Fiz para usar em meu pai.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — E como funciona?

BETO GOZADOR: — Simples demais. A noite quando a Lurdinha se preparar para dormir, você introduzirá um par de mangueirinhas de plástico nos orifícios do nariz dela e conectará outras duas nos buracos dos ouvidos. Uma terceira estará acoplada a um motorzinho desses que as mães usam para nebulizações em crianças. Ela dormindo e retumbando, ao respirar, receberá o ar do motorzinho e logicamente se assustará com os próprios estrondeamentos espocando nos tímpanos, e medrosa, cessará as reverberações imediatamente.  

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Legal. Gostei da ideia. Perfeito. Você me caiu do céu. Quer saber? Acho que depois dessa, se a coisa der certo com a Lurdinha e a geringonça funcionar como manda o figurino, vou lhe indicar para outros amigos que têm as suas metades das maçãs em profundas roncações desenfreadas. E não pararei por aí. Apresentarei você ao meu primo, o Juarez Bicudo. Ele é o chefão da Associação Nacional dos Inventores.

BETO GOZADOR: — Se ele me registrar como inventor de assombros, estarei dentro.

EUSTÁQUIO CABELEIRA: — Pelo visto, Bicudo o fará. Ficaremos, pois, assim. Manda lá para casa o trambolho. E me aguarde. Se não funcionar, devolvo o motorzinho e as mangueirinhas para que você enfie goela abaixo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 29: Resiliência

 

A. A. de Assis (Seu Sezefredo)

Já faz um bom tempo, numa das minhas visitas ao chão natal*, participei de um almoço com um grupo de poetas fidelenses – moqueca de robalo preparada com especial esmero pelo chefe Jaime Olé. Na saída, logo na primeira esquina, encontramos Seu Sezefredo vendendo picolé e sorvete. Rodeamos o carrinho dele e cada um de nós fez seu pedido. De pronto José Theófilo puxou conversa com o sorridente velhinho: “O senhor é uma das pessoas mais queridas desta cidade. Um dia ainda vai ser nome de rua”.  

Wálter Simão concordou: “Também acho. É um homem justo, honesto – a bondade em pessoa, e tem o carinho de toda a população. Porém me parece mais apropriado fazer uma estátua dele ao lado do carrinho, com um braço erguido, como se estivesse cantando os seus costumeiros pregões”.

Antônio Roberto acrescentou: “Seja nome de rua, seja estátua, seja o que for, seria uma justíssima homenagem. Além de ter muitas outras virtudes, ele é também um poeta. Vende suas delícias em versos – Piiicolé de tamariiiindo... quem prova fica mais lindo; sorveeete de tangeriiiina... nunca vi coisa mais fina; casquinha de goiaba... vem buscar, pois logo acaba!” 

Pedro Emílio opinou: “Tudo bem, tudo bem, mas eu penso que o ideal mesmo seria dar o nome dele a uma escola. Todas as crianças o amam. Ele faz brincadeiras com a meninada, sabe o nome de todos e todas, bota apelidos engraçados, vende fiado a quem não tem dinheiro na hora, conta historinhas, canta modinhas, onde chega é uma festa”.

Evando Salim interveio mudando o rumo da prosa: “Pois para mim a maior homenagem reservada para Seu Sezefredo virá no final de sua passagem por este mundo: ele receberá direto de Deus um convite para ir morar no céu. Tem todas as condições para isso, inclusive uma que considero primordial: é um homem que, do jeito dele, usa o seu talento para o bem da sociedade”.

Um espanto na roda de amigos. “Como assim? – perguntou Wálter.

Evando explicou: “Seu Sezefredo nasceu com o talento de vendedor ambulante. Porém não se limita a ganhar o pão de cada dia – vai muito além: faz isso com máxima simpatia, amor e ternura, adoçando a boca e o coração da freguesia. Ou seja: passa a vida inteira servindo alegria às pessoas, e assim cumpre exemplarmente sua bonita missão na Terra. Tem, então, acredito eu, todas as características de futuro cidadão do Reino da paz”.

Deu daí que a roda virou uma bela tertúlia sobre a fundamental importância de cada um fazer da melhor maneira possível, e sempre em nome do bem de todos, aquilo que nasceu para fazer. 

Final unânime: no que dependesse dos poetas de São Fidélis, Seu Sezefredo, quando fosse chamado, poderia apresentar-se tranquilamente a São Pedro. O Reino do céu é a morada dos puros de coração – um lugar de gente boa e simples igual a ele. Estaria, portanto, em casa.

Vem-me essa história à lembrança toda vez que ouço a parábola dos talentos. 
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* Assis se refere à cidade de São Fidélis/RJ, onde nasceu. 

Fonte:
Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 6.julho.2023

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXII

À TUA ESPERA

Não vês? Estou em casa à tua espera,
meu coração se agita, comovido.
Se vens aqui, renasce a primavera,
e tudo fica alegre e colorido.

Sabes que a minha vida eu já te dera
com tanto amor, feliz, enternecido,
que o meu viver, sem ti, já não quisera
nem um minuto a mais... do merecido...

Mas venhas, meu amor, que a nossa tenda
está farta de amor, não há contenda,
aqui, há paz, o mar e a verde mata...

Vivamos este amor tão envolvente,
que embriaga e nos leva ao céu fulgente
e a nos saudar a lua cor de prata!
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BENDITA SEJAS

Bendita sejas tu, musa divina
porque vens inspirar este poeta,
a tua voz suave me fascina
e chega ao fim a minha dor secreta.

Bendita sejas tu, que me ilumina
e nos meus versos tua luz projeta
além da fé, do amor que me domina
trazendo inspiração à minha meta.

Chegas tranquila, calma e de mansinho
pondo flores em todo o meu caminho,
vens perfumando o meu viver tristonho.

Que seja sempre assim, poesia amada,
amiga e companheira de jornada
buscando a paz nas regiões do sonho!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

INTERROGAÇÃO

Quando nascemos, dizem que o Destino
já vem traçado para o ser Humano,
e sendo assim, cresci, desde menino,
envolto num mistério, num engano.

Como entender que o amor do ser Divino
possa me dar sentença de tirano?
Se a predestinação me fez cretino,
como me corrigir, se sou mundano?

Que culpa cabe a mim, se esta premissa
for verdadeira e a providência omissa
para me condenar sem indulgência?

Porventura, o que a vida nos promete
nada se cumpre e apenas nos remete:
— por que nos deu o senso e a inteligência?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

IPUPIARA

Estou voltando à nossa Ipupiara
e não consigo controlar o pranto,
cidade amiga — de beleza rara —
onde aprendi o amor e seu encanto.

Quando parti, jamais imaginara
que essa tristeza me ferisse tanto.
Longe da terra, a vida me ensinara
respeitar e adorar este recanto.

Quis voltar e rever... Faz tanto tempo,
que a alegria da volta no momento
me faz sentir muitas recordações.

Ainda ouço os conselhos de meu pai
e, orando, minha mãe andando vai
entre saudades, sonhos e emoções.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O QUE É A VIDA?

A vida é uma jornada de aventura,
o ser humano nasce, vive e morre.
Uma réstia de sonho e de ventura,
eis o prêmio maior a que concorre.

A mocidade passa e a desventura
vem apressada e pela vida escorre
impondo ao coração esta amargura
que mata devagar... e não socorre...

Eis a vida, em resumo, companheiro,
mas a esperança e a fé falam primeiro
e amenizam, no mundo, a nossa dor.

Porque depois a vida é permanente
numa escola avançada e inteligente
sempre em busca de Deus, o Criador!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Fonte:
Enviado pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Machado de Assis (Folha rota)

Tinham dado Ave-Marias; a Sra. D. Ana Custódia saiu para ir levar umas costuras à loja que era na Rua do Hospício. Pegou das costuras, entrouxou-as, pôs um xale às costas, um rosário ao pescoço, deu cinco ou seis ordens à sobrinha e caminhou para a porta.

— Venha quem vier, não abras, disse ela com a mão no ferrolho; já sabes o costume.

— Sim, titia.

— Não me demoro nada.

— Venha cedo.

— Venho, que a chuva pode cair. O céu está preto.

— Oh! Titia, se roncar trovoada!

— Reza; mas eu volto já.

D. Ana persignou-se e saiu.

A sobrinha fechou a rótula, acendeu uma vela e foi sentar-se a uma mesa de costura.

Luísa Marques tinha dezoito anos. Não era um prodígio de beleza, mas não era feia; pelo contrário, as feições eram regulares, as maneiras gentis. O olhar meigo e cândido. Mediana de estatura, delgada, naturalmente elegante, tinha proporções para vestir bem e primar pelos adornos. Infelizmente, não tinha adornos nem os vestidos eram bem cortados. Pobres, já se vê que deviam ser. Que outras coisas seriam os vestidos de uma filha de operário, órfã de pai e mãe, condenada a coser para ajudar a sustentar a casa da tia! Era um vestido de chita grossa, cortado por ela mesma, sem arte nem inspiração.

Penteada com certo desleixo, parece que isso mesmo lhe dobrava a graça da fronte. Encostada à mesa velha de trabalho, com a cabeça inclinada sobre a costura, os dedos a correrem pela fazenda, com a agulha fina e ágil não excitava a admiração, mas despertava a simpatia.

Logo depois de sentar-se, Luísa ergueu-se duas vezes e foi até à porta. De quando em quando levantava a cabeça, como a prestar atenção. Continuava a coser. Se a tia chegasse achá-la-ia a trabalhar com uma tranquilidade verdadeiramente digna de imitação. E beijá-la-ia como costumava e lhe diria alguma coisa graciosa, que a menina ouviria com agradecimento.

 Luísa adorava a tia, que lhe servia de mãe e pai, que a educara desde os sete anos. Por outro lado, D. Ana Custódia tinha-lhe afeto verdadeiramente maternal; uma e outra não possuíam outra família. Havia certamente dois parentes mais, um correeiro, cunhado de D. Ana, e um filho deste. Mas não se frequentavam; havia até motivos para isso.

Vinte minutos depois de sair D. Ana, sentiu Luísa um rumor na rótula, como que um som leve de bengala que por ali roçasse. Estremeceu, mas não se assustou. Levantou-se devagarinho, como se a tia pudesse ouvi-la e foi até à rótula.

— Quem é? disse em voz baixa.

— Eu. Está cá?

— Não.

Luísa abriu um pouquinho a janela, uma curta fresta. Estendeu a mão por ela, e apertou-lhe um rapaz que estava do lado de fora.

O rapaz era alto, e se não fosse noite fechada podia ver-se que tinha uns bonitos olhos, sobretudo um porte airoso. Eram graças naturais; artificiais não possuía nenhuma; vestia modestamente, sem pretensão.

— Saiu há muito tempo? – perguntou ele.

— Há pouco.

— Volta já?

— Disse que sim. Não podemos hoje falar muito tempo.

— Nem hoje, nem quase nunca.

— Que quer você, Caetaninho? – perguntou a moça tristemente. – Eu não posso abusar; titia não gosta de me ver à janela.

— Há três dias que te não vejo, Luísa! – suspirou ele.

— Eu, há um dia só.

— Viste-me ontem?

— Vi: quando você passou de tarde às cinco horas.

— Passei duas vezes; de tarde e de noite: sempre fechado.

— Titia estava em casa.

As duas mãos tornaram a encontrar-se e ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos, três ou quatro.

Caetaninho tornou a falar, a queixar-se, a gemer, a maldizer da sorte, enquanto Luísa o consolava e confortava. Na opinião do rapaz, não havia ninguém mais infeliz do que ele.

— Queres saber uma coisa? – perguntou o namorado.

— Que é?

— Penso que papai desconfia...

— E então?...

— Desconfia e não aprova.

Luísa empalideceu.

— Oh! mas não faz mal! Eu só espero poder arranjar a minha vida; depois se queira ou não queira...

— Isso não, se titio não aprova, parece feio.

— Desprezar-te?

— Você não me despreza, emendou Luísa; mas desobedecerá a seu pai.

— Obedecer em tal caso, era feio da minha parte. Não, não obedecerei nunca!

— Não digas isso!

— Deixa-me arranjar a vida, verás: verás.

Luísa estava silenciosa alguns minutos, mordendo a ponta do lenço que tinha ao pescoço.

— Mas por que motivo é que você pensa que ele desconfia?

— Penso... suponho. Ontem soltou-me uma indireta, lançou-me um olhar de ameaça e fez um gesto... Não tem dúvida, dá-lhe para não aprovar a escolha de meu coração, como se eu precisasse consultá-lo...

— Não fale assim, Caetaninho!

— Também não sei por que motivo ele não se dá com titia! Se se dessem, tudo caminhava bem; mas é a minha desgraça, é a minha desgraça!

Caetano, filho do correeiro, lastimou-se ainda durante uns dez minutos; e sendo já longo o tempo da conversa, Luísa pediu-lhe e alcançou que ele se retirasse. Não o fez o moço sem um novo aperto de mão e um pedido que Luísa recusou.

O pedido era um... ósculo, digamos ósculo, que é menos cru, ou mais poético. O rapaz pedia-o invariavelmente, e ela invariavelmente o negava.

— Luísa, disse ele, no fim da recusa, espero que muito breve estaremos casados.

— Sim; mas não faça zangar seu pai.

— Não: farei tudo de harmonia com ele. Se recusar...

— Peço a Nossa Senhora que não.

— Mas, diga você; se ele recusar, que devo eu fazer?

— Esperar.

— Pois sim! Isso é bom de dizer.

— Vá; adeus; titia pode vir.

— Até breve, Luísa!

— Adeus!

— Passarei amanhã; se você não puder estar à janela, ao menos espie por dentro, sim?

— Sim.

Novo aperto de mão; dois suspiros; ele seguiu; ela fechou de todo o postigo.

Fechado o postigo, Luísa foi sentar-se outra vez à mesa de costura. Não ia alegre, como era de supor em uma moça que acabava de falar ao namorado; ia triste. Mergulhou toda no trabalho, ao que parece para esquecer alguma coisa ou aturdir o espírito. Mas não durou muito o remédio. Daí a pouco tinha levantado a cabeça e olhava fitamente o ar. Devaneava naturalmente; mas não eram devaneios azuis, senão negros, bem negros, mais negros que seus grandes olhos tristes.

O que ela dizia consigo era que tinha duas afeições na vida, uma franca, a da tia, outra encoberta, a do primo; e não sabia se tão cedo poderia mostrá-las juntas ao mundo. A notícia de que o tio desconfiasse alguma coisa e desaprovava talvez o amor de Caetano desconsolava-a e fazia-a tremer. Talvez fosse verdade; era possível que o correeiro destinasse o filho a outra. Em todo o caso as duas famílias não se davam — não sabia Luísa por que motivo —, e este fato podia contribuir para tornar difícil a realização de seu único e modesto sonho. Essas ideias, ora vagas, ora medonhas, mas sempre tingidas da cor da melancolia, abalavam seu espírito durante alguns minutos.

Depois veio a reação; a mocidade readquiriu seus direitos; a esperança trouxe a sua cor viva aos sonhos de Luísa. Ela olhou para o futuro e confiou nele. Que era um obstáculo momentâneo? Nada, se dois corações se amam. E haveria esse obstáculo? Dado que houvesse, ele seria o ramo de oliveira. No dia em que o tio soubesse que o filho a amava deveras e era correspondido, não tinha mais do que aprovar. Talvez mesmo a fosse pedir à tia D. Ana, que a estremecia, e recebê-lo-ia com lágrimas. O casamento seria o vínculo de todos os corações.

Nesses sonhos passaram ainda uns dez minutos. Luísa reparou que a costura estava atrasada e voltou de novo a atenção para ela.

D. Ana voltou; Luísa foi abrir-lhe a porta, sem hesitação porque a tia convencionara um modo de bater, a fim de evitar surpresas de gente má.

Vinha um pouco amuada a velha; mas passou logo depois do beijo à sobrinha. Trazia o dinheiro da costura que fora levar à loja. Tirou o xale, descansou um pouco; foi ela própria cuidar da ceia. Luísa ficou cosendo algum tempo. Ergueu-se depois; preparou a mesa.

Tomaram um pouco de mate as duas, sozinhas e silenciosas. Era raro o silêncio, porque D. Ana, sem ser palradora, estava longe de ser taciturna. Tinha a palavra alegre. Luísa reparou naquela mudança e receou que a tia houvesse visto o vulto do primo de longe, e, não sabendo quem fosse, naturalmente ficara molestada. Seria isso? Luísa fez esta pergunta a si mesma e sentiu corar de vergonha. Criou algumas forças, e interrogou diretamente a tia.

— Que tem, que está tão triste? perguntou a moça.

D. Ana limitou-se a levantar os ombros.

— Está zangada comigo? – murmurou Luísa.

— Contigo, meu anjo? – disse D. Ana apertando-lhe a mão –  Não, não é contigo.

— É com outra pessoa. – concluiu a sobrinha. – Posso saber quem é?

— Ninguém, ninguém. Fujo sempre de passar pela porta do Cosme e passo por outra rua; mas por desgraça, escapei ao pai e não escapei ao filho...

Luísa empalideceu.

— Ele não me viu, – continuou D. Ana - mas eu bem o conheci. Felizmente era noite.

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual a moça repetia as palavras da tia. Por desgraça! dissera D. Ana. Que havia pois entre ela e os dois parentes? Tinha vontade de a interrogar, mas não se atrevia; a velha não continuou; uma e outra refletiam caladamente.

Foi Luísa quem rompeu o silêncio:

— Mas por que foi desgraça encontrar o primo?

— Por quê?

Luísa confirmou a pergunta com um gesto de cabeça.

— Contos largos, – disse D. Ana - contos largos. Um dia te contarei tudo.

Luísa não insistiu; ficou acabrunhada. O resto da noite foi sombrio para ela; fingiu ter sono e recolheu-se mais cedo do que costumava. Não tinha sono; velou ainda duas longas horas a trabalhar com o espírito, a beber uma ou outra lágrima indiscreta ou impaciente de lhe retalhar a face juvenil. Dormiu finalmente; e como de costume acordou cedo. Tinha um plano feito e a resolução de o executar até o fim. O plano era interrogar a tia outra vez, mas então disposta a saber a verdade, qualquer que ela fosse. Foi depois do almoço, que se lhe ofereceu a melhor ocasião, quando as duas se sentaram a trabalhar. D. Ana recusou a princípio; mas a insistência de Luísa foi tal, e ela amava-a tanto, que não lhe recusou dizer o que havia.

— Tu não conheces teu tio, disse a boa velha; nunca viveste com ele. Eu conheço-o muito. Minha irmã, que ele tirou de casa para perdê-la, viveu com ele dez anos de martírio. Se eu te contasse o que ela sofreu não havias de acreditar. Basta dizer que, se não fosse o abandono em que o marido a deixou, o pouco caso que fez da moléstia, talvez ela não tivesse morrido. E daí pode ser que sim. Creio que ela estimou não tomar remédios, para acabar mais depressa. O maldito não deitou uma lágrima; jantou no dia da morte como costumava jantar nos mais dias. O enterro saiu e ele continuou a vida de antes. Coitada! Quando me lembro...

Neste ponto, D. Ana interrompeu-se para enxugar as lágrimas, e Luísa não pôde também reter as suas.

— Ninguém sabe para o que veio ao mundo! – exclamou sentenciosamente D. Ana - Aquela era a mais querida de meu pai; foi a mais infeliz. Destinos! destinos! O que te contei é já bastante para explicar a inimizade que nos separa. Acrescenta-lhe o gênio mau que ele tem, os modos grosseiros, e a língua... oh! a língua! Foi a língua dele que me feriu...

— Como?

— Luísa, tu és inocente, nada sabes deste mundo; mas é bom que aprendas alguma coisa. Aquele homem, depois de fazer morrer minha irmã lembrou-se de gostar de mim, e teve o atrevimento de vir declará-lo na minha casa. Eu então era outra mulher que não sou hoje; tinha cabelinho na venta. Não lhe respondi palavra; levantei a mão e castiguei-o no rosto. Vinguei-me e perdi-me. Ele recebeu o castigo calado; mas tratou de vingar-se também. Não te contarei o que disse e trabalhou contra mim; é longo e triste; basta saber que cinco meses depois, meu marido me pôs pela porta fora. Estava difamada; perdida; sem futuro nem reputação. Foi ele a causa de tudo. Meu marido era homem de boa-fé. Queria-me muito e morreu pouco depois de paixão.

Calou-se D. Ana, calou-se sem lágrimas nem gestos, mas com um rosto tão pálido de dor, que Luísa atirou-se a ela e abraçou-a. Foi esse gesto da moça que fez romper as lágrimas da velha. Chorou-as D. Ana longas e amargas; ajudou a chorá-las a sobrinha, que de envolta com ela lhe disse muita palavra consoladora. D. Ana recobrou a fala.

— Não terei razão em odiá-lo? perguntou ela.

O silêncio de Luísa foi a melhor resposta.

— Quanto ao filho nada me fez, continuou a velha; mas, se é filho de minha irmã também é filho dele. É o mesmo sangue, que eu odeio.

Luísa estremeceu.

— Titia! disse a moça.

— Odeio, sim! Ah! que a maior dor da minha vida seria... Não, não há de ser assim. Luísa, eu, se te visse casada com o filho daquele homem, morria decerto, porque perderia a única afeição, que me resta no mundo. Tu não pensas nisso; mas juras-me que em nenhum caso farás semelhante coisa?

Luísa empalideceu; hesitou um instante; mas jurou. Esse juramento foi o golpe último e mortal de suas esperanças. Nem o pai dele nem a mãe dela (D. Ana era quase mãe) consentiriam em fazê-la feliz. Luísa não se atreveu a defender o primo, a explicar que ele não tinha culpa nos atos e vilanias do pai. Que adiantaria isso, depois do que ouvira? O ódio estendia-se do pai ao filho; havia um abismo entre as duas famílias.

Naquele dia e no outro e no terceiro, chorou Luísa, nas poucas horas em que podia estar só, as lágrimas todas do desespero. No quarto dia já não tinha mais que chorar. Consolou-se como se consolam os desgraçados. Viu ir-se o único sonho da vida, a melhor esperança do futuro. Só então compreendeu a intensidade do amor que a prendia ao primo. Era o seu primeiro amor; estava destinado a ser o último.

Caetano passou ali muitas vezes; deixou de vê-la duas semanas inteiras. Supô-la doente e indagou da vizinhança. Quis escrever-lhe, mas não havia meio de entregar uma carta. Espreitava as horas em que a tia saía de casa e ia bater à porta. Trabalho inútil! A porta não se abria. Uma vez viu-a de longe à janela, apertou o passo; Luísa olhava para o lado oposto; não o viu vir. Chegando ao pé da porta, parou ele e disse:

— Enfim!

Luísa estremeceu, voltou-se e dando com o primo fechou o postigo com tanta pressa que um pedaço de manga do vestido ficou preso. Cego de dor, Caetaninho tentou empurrar o postigo, mas a moça havia-o fechado com o ferrolho. A manga do vestido foi puxada violentamente e rasgada. Caetano afastou-se com o inferno no coração; Luísa foi dali atirar-se ao leito lavada em lágrimas.

As semanas, os meses, os anos passaram. Caetaninho não foi esquecido; mas nunca mais se encontraram os olhos dos dois namorados. Oito anos depois morreu D. Ana. A sobrinha aceitou a proteção de uma vizinha e foi para casa dela, onde trabalhava dia e noite. No fim de catorze meses adoeceu de tubérculos pulmonares; arrastou uma vida aparente de dois anos. Tinha quase trinta quando morreu; enterrou-se por esmolas.

Caetaninho viveu; aos trinta e cinco anos era casado, pai de um filho, negociante de fazendas, jogava o voltarete e engordava. Morreu juiz de uma irmandade e comendador.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 10/1878.