sábado, 18 de novembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 19

 

Mensagem na Garrafa – 38 –

Criação da imagem por JFeldman com Microsoft Bing

Paulo Mendes Campos
Belo Horizonte/MG,1922–1991, Rio de Janeiro/RJ

MENINA NO JARDIM

Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama.

Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem. Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.

– Blá blé bli bá. – protestou a garotinha.

– É proibido pisar na grama. – explicou o guarda.

– Bá bá bá. – retrucou a garotinha com veemência.

– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.

– Buh buh. – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.

A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex”.

– Onde está sua mamãe?

A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.

– Que fizessem, deveriam fazê-lo. – disse o pai.

– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.

– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!

– E daí? Que tem isso?

– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela. – raciocinou a Lei.

– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?

O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:

– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.

– Buh bah. – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.

– Claro! – respondeu o pai.

– Que foi que ela disse agora?

– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 97

Ventos ventaram loucamente, o céu escureceu, negro negrume, primeiros pingos que se avolumaram e então o toró d'água. A galharia agitada, pássaros em pânico a piar, as calhas jorrando.  

O aguaceiro invadiu o anoitecer, assustou rosas e gerânios, encharcou os gramados, enquanto o ribeiro começou a roncar e a cascatinha ensaiou uma sinfonia da chuva. 

A ribalta, raios, relâmpagos. Sons e luzes na madrugada. Seres insones. Silêncio. Clareia a sexta quando Aurora desperta recebendo o amanhecer para outro dia de trabalho.

O sol desponta no horizonte.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

A. A. de Assis (1,5 milhão ou 1,5 milhões?)

Deve ter sido numa tarde de sábado, faz um bom tempinho. A gramática e a matemática, duas velhas amigas/rivais ou rivais/amigas, reuniram-se numa mesa de botequim para discutir um antigo problema. De logo uma disse pra outra: “Hoje só sairemos daqui depois de chegar a um consenso”.

A questão em pauta era a seguinte: o correto é dizer “1,5 milhão” ou “1,5 milhões?”. Pediram duas cervejas para lubrificar o raciocínio.

Na tentativa de já sair com vantagem, a gramática iniciou a contenda puxando a conversa para a erudição: “Temos que primeiro entender o significado das palavras ‘singular’ e ‘plural’, ambas herdadas do latim. ‘Singular’ (de ‘singularis’, derivado de ‘singulus’) significa ‘único’. ‘Plural’ (de ‘pluralis’, derivado de ‘plus’) significa ‘mais de um’. Daí temos que ‘’um’ é singular, ‘dois’ é plural”. Nisso a gramática e a matemática estavam de acordo. Um é, dois são; um milhão, dois milhões. Valeu um copo com espuma o bom começo do papo.

A briga subiu mesmo de tom foi quando entraram em jogo as frações. Se plural significa “mais de um”, então 1,5 deveria ser plural, visto que 1,5 é mais do que um. É um e meio. Um mais a metade de um. Ou seja, são duas porções – uma maior outra menor.

A discussão esquentou a tal ponto que o garçom chegou a ficar assustado, temendo que a qualquer momento as duas doutas debatentes esquecessem os bons modos e partissem para os tapas. Para abrandar os ânimos, ele por prudência serviu mais duas cervejas. Porém as duas senhoras (a gramática e a matemática) nem prestaram atenção na gentileza.

Era aquele tal de singulus, singularis, plus, pluris, pluralis... De que diabo estavam afinal falando? Uma e meia garrafa ou uma e meia garrafas? Na conta do garçom já eram quatro.

A gramática insistia: “Aquilo que vem depois de um número decimal iniciado por 1 (um) fica sempre no singular. Assim, até 1,9 dizemos ‘1,9 milhão’; daí por diante dizemos ‘2 milhões... 2,1 milhões... 3,2 milhões... 9,8 milhões...’’’

“Mas quem decidiu isso?”, quis saber a matemática.

“Eu decidi”, rebateu peremptória a gramática, sem contudo entrar em detalhes. Tá rindo?... Também eu acho empombada essa palavra “peremptória” – coisa de gente mandona. Mas se a gramática peremptou tá peremptado: “Alguém teria que dar a palavra final; então eu (a gramática), no uso das minhas milenares atribuições, resolvi que fração não conta; contam somente os números inteiros: 1,2,3,4,5... Entendeu?”.

“Entender não entendi muito bem não”, emendou a matemática, “mas vou fazer de conta que sim, visto que sua especialidade é mesmo complicar as coisas. Para mim é tudo mais simples: 2 mais 2 são 4, e ponto. Não há o que discutir”.

Resumindo: 1,5 “litro” de água “basta” para matar a sede, mas 10,5 “litros” de cerveja não “bastam” para pacificar duas cabeças sábias quando se atracam numa boa polêmica.

O garçom trouxe mais duas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 22.6.2023)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXIV

ESQUECÊ-LA?

MOTE:
Para tentar esquecê-la,
não passo mais nessa rua,
não olho mais nossa estrela...
e ainda apago essa lua!
Antônio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF

GLOSA:
Para tentar esquecê-la,
eu busco, então, me esconder,
pois quando não posso vê-la
me sinto quase morrer!

Falei ao meu coração:
não passo mais nesta rua,
quero esquecer a emoção
que provoca a imagem sua!

Na tristeza de não tê-la,
não vejo o céu, nem o mar,
não olho mais nossa estrela,
nem vibro mais ao luar!

Vou roubar a luz do sol
e vestir minha alma nua,
vou me esconder no arrebol
e ainda apago essa lua!
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MEIA CAMA VAZIA

MOTE:
Contemplo à luz da saudade,
a meia cama vazia...
Outrora, nessa metade,
meu mundo inteiro cabia!
José Augusto Rittes
São Vicente/SP, 1914 – 2009

GLOSA:
Contemplo à luz da saudade,
uma saudade que dói
que tristemente me invade
e até minha alma corrói!

Olho, em nossa cama triste,
a meia cama vazia...
O amor já não mais existe,
só existe a nostalgia!

Nem posso crer, na verdade,
que tudo chegou ao fim,
outrora, nessa metade,
havia tudo pra mim!

Chorando, amor, eu divago,
e me cobre a nostalgia,
no teu lugar, hoje, vago,
meu mundo inteiro cabia!
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UM VERSO...

MOTE:
Vivi de amor, de alegria
hoje, a saudade, em surdina,
jorra sonhos e a poesia,
deixa um verso em cada esquina!
Leda Costa Lima
Fortaleza/CE

GLOSA:
Vivi de amor, de alegria
o meu ontem. O passado
cantava e feliz sorria
ao meu sonho tão sonhado!

Entrou, sem pedir licença,
hoje, a saudade, em surdina,
lembrando, quase em sentença
os meus tempos de menina!

Eu afasto a nostalgia,
pois a minha inspiração
jorra sonhos e a poesia
carregados de emoção!

Pra mim mesma, então, sorri...
Sinto, em mim, a adrenalina...
O poema que eu vivi
deixa um verso em cada esquina!
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SER FELIZ

MOTE:
Que a juventude é ditosa,
é uma ilusão de quem diz:
- A idade mais venturosa,
é quando a gente é feliz!
Lila Ricciardi Fontes
Sertãozinho/SP, 1916 – 2000, Ribeirão Preto/SP

GLOSA:
Que a juventude é ditosa,
é mesmo grande verdade,
é uma época preciosa,
a da nossa mocidade!

Mas sermos feliz só nela,
é uma ilusão de quem diz:
às vezes. deixa sequela
ou dorida cicatriz!

Numa imagem misteriosa
tudo de bom acontece!
- A idade mais venturosa,
é a que temos, nos parece!

A idade que se apresenta
num lindo e novo matiz,
e que mais nos acalenta,
é quando a gente é feliz!
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CONTEMPLANDO...

MOTE:
Vi, contemplando o teu rosto,
que a idade fez mais bonito
que a penumbra de um sol-posto
também põe luz no infinito.
Maria Nascimento Santos Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Vi, contemplando o teu rosto,
nos seus traços, alegria!
Rosto sereno e disposto.
Eras a própria poesia!

O teu porte de deus grego,
que a idade fez mais bonito,
me fez suspirar e chego
a tremer quando eu o fito!

Olhamos o Sol com gosto,
na certeza que nos vem,
que a penumbra de um sol-posto
pode iluminar também!

Esse teu olhar maduro,
que tem a força de um mito,
sendo o meu farol seguro,
também põe luz no infinito.
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NUM BILHETE...

MOTE:
Eu suplico: "Volte breve",
num bilhete... e na verdade,
a esperança é quem escreve
e quem assina é a saudade!...
Marilúcia Rezende
São Paulo/SP

GLOSA:
Eu suplico: "Volte breve",
quase em silêncio, baixinha
minha voz, murmura leve,
não me deixe, amor, sozinha!

Então, resolvo escrever,
num bilhete... e na verdade,
não sei se você vai ler,
nem se terá validade!

Que o meu pedido o enleve,
pois parte do coração...
A esperança é quem escreve
com as letras da emoção!

Nesse bilhete eu lhe digo:
Você é a felicidade.
Volte, amor, fique comigo...
e quem assina é a saudade!…

Fonte: Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Coelho Neto (A vaquinha branca)

Por aqueles agros, fosse de verão, fosse de inverno, tivessem as árvores a sua verde opulência 
ou forrasse-as a neve; cantassem de ramo a ramo calhandras e pintassilgos ou apenas enregelados pardais piassem, lá ia, ao romper d'alva, caminho do monte, com a velha sainha de saragoça e sócios nos pequeninos pés, a pastorinha Eudália.

Órfã, fora recolhida por má gente que, sem pena da sua idade frágil, mandava-a ao monte, com o gado, dando-lhe uma migalha de pão, e ai! dela se murmurava queixa.

“Faz frio!...”

“Eh! lorpa (pateta), bradavam-lhe, quem sabe se te havemos de engordar à beira do lume, como uma princesa? Não estão lá fora as árvores, que são também criaturas de Deus? Ou levas o gado ao monte ou saias duma vez desta casa, que aqui ninguém te viu nascer”.

E a coitada partia.

No tempo das flores era até um gozo aquele andar matinal por veigas virentes, no som das águas levadias que pareciam brincar nos seixos. Ai! dela, porém, quando o vento entrava a esfuziar gelado, levantando em remoinho as folhas mortas. Ainda assim cantava a pobrezinha, e, com as faces coradas, parecia haver agasalhado no corpo a primavera, saindo-lhe a voz dos passarinhos nos cantos que desferia, abrolhando-lhe as rosas vermelhas no rosto lindo, crescendo-lhe o trigo maduro nos cabelos de ouro, correndo as águas ligeiras em pranto dos seus olhos claros.

Falando às ovelhas magras lá ia, por atalhos fragueiros, tiritando, a descobrir restos de ervas que servissem de pasto ao seu rebanho. Entre as ovelhas, por ser linda e mansa, andava uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora. Mirrasse todo o pascigo (pastagem) ficando o terreno desnudo, como arrasado por fogo, sempre para a vaquinha havia um molho de feno.

Mal começava o outono melancólico, quando toda a gente da aldeia ia ao monte apanhar acendalhas (gravetos) e ramos para o lume, Eudália, descendo pelas veredas ásperas, à hora do crepúsculo, trazia feixes de feno e, como lhe perguntassem se fazia logo com tal palhada, respondia sorrindo:

— Tenha eu o catre bem fofo e caía a neve que cair, sopre o vento que soprar, dormirei quentinha. 

No rigor do inverno, se alguém entrasse no palheiro em que dormia a pastora, acharia a vaquinha ruminando sobre o feno e a pequenita aconchegada e ela e, até o fim das neves, o leito de Eudália alimentava o animal que, com o calor do seu corpo branco, aquecia a sua amiga. Assim as duas atravessavam o inverno — a vaquinha farta, Eudália agasalhada.

A primavera entrara com o sol e as flores e toda a alegria festival dos passarinhos. Os sinos soavam na pureza do ar azul e toda a gente aldeã, com os seus trajos melhores, acudia à festa enchendo o adro onde se haviam instalado, em tendas, bufanheiros com sortimentos que deslumbravam — saias de pano fino, corpetes de alamares, arrecadas e cordões de ouro, rendas e sapatinhos tão êxitos que parecia incrível que fossem feitos para ser calçados.

“Talvez sejam para amêndoas“, dizia a pastorinha.

Quanta sedução! E os bufarinheiros (mascates) apregoavam os preços e cada arca que abriam deixava o povo verdadeiramente maravilhado.

Eudália atravessara a feira com o seu rebanho e, ainda que os olhos a levassem para, as tendas ricas, lá foi tristonhamente a caminho do monte. Uma manhã, remendando, com paciência, a sainha de saragoça e lembrando-se do que vira no adro, a pastorinha suspirou:

— Ai de mim! São tão felizes os que lá andam em baixo! Ainda que não comprem, sempre é um consolo olhar aquelas lindas coisas que os bufarinheiros trazem nos seus ceirões (cestos) e malas. Pobre de mim! nem posso parar onde cantam para que não riam da minha esfarrapada miséria os moços e as moças que pavoneiam tantas galas.

Escondendo o rosto com as mãos, rompeu a mísera em sentido pranto.

— Não te aflijas, disse-lhe uma voz ali perto. 

Levantando sobressaltadamente a cabeça, à procura da pessoa que falara em tal ermo, onde não aparecia vivalma, viu Eudália a vaquinha que deixara de pastar e, imóvel, fitava-a com os olhos cheios de bondade. Bateu-lhe o coração e, pálida de medo, ia fugir quando a vaquinha docemente tomou:

— Não te assustes. Amiga melhor não tens do que eu, que te falo por graça de Deus. Muito tens sofrido, sendo digna de melhor sorte, porque és boa e os teus pensamentos são puros. És nova e, ainda que formosa como nenhuma, queres enfeitar-te. É justo. Não chores: aqui estou eu para valer-te. Toma o teu tarro (vaso de ordenha de leite), ordenha-me e verás o leite, saído de corpo virgem, mudar-se em luzentes moedas de prata. Leva-as e gasta-as como entenderes, e, sempre que tiveres necessidade de dinheiro, faze o que te disse e logo serás servida com abundância. Lembra-te, porém, do inverno e do feno que me sustenta nesse tempo de esterilidade. Dentro da maior ventura cumpre ter sempre presentes na memória os dias adversos.

A pastorinha não se decidia a mover-se e foi necessário que a vaquinha repetisse a ordem e até a impusesse para que ela tomasse o tarro e, acocorando-se, começasse a mungi-la.

Que leite claro e como rebrilhava à luz! O tarro pesava tanto que ela o depôs no chão e o leite sempre a jorrar. Quando a espuma transbordou a vaquinha disse:

– Despeja-o agora, toma as moedas, vai à feira e compra o que quiseres. Faze-te bela e sê feliz. Não te esqueças, porém, de mim. Aqui fico á tua espera. Poderás ser rica como a mais rica se não te descuidares do feno que me deve nutrir no inverno e, quanto mais me fortaleceres, tanto maior será a soma que de mim poderás tirar.

Tímida, a princípio, Eudália, levantou o tarro, que pesava; por fim despejou-o e centenas de moedas rolaram tilintando. Um tesouro! Deus do céu! Um tesouro. Encheu um saco e, rindo, cantando desceu o monte a correr. Foi direita à feira e, de tenda em tenda, comprou de tudo, gastando até à última moeda.

E que linda ficou com uma saia bordada, corpete de alamares, sapatinhos de veludo, arrecadas (brincos) e cordão de ouro!

Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar moedas às mancheias ao balcão dos bufarinheiros e a gente que a havia agasalhado, a princípio com arrogância, com brandura depois, interrogou-a sobre a origem daquela fortuna, mas como Eudália guardasse o seu segredo força lhe foi pagar as ovelhas e a vaquinha branca, sendo despedida, por impura, da companhia dos que se diziam seus únicos protetores.

Riu-se a pastora e, sem ouvir as vozes que lhe lançavam de ingrata e perdida, meteu-se airosamente nas danças e não houve moça mais requisitada do que ela, que até os orgulhosos filhos dos rendeiros foram tirá-la para as quadrilhas.

Quando, noite alta, regressou à montanha, a vaquinha, que ruminava deitada sobre feno fresco, perguntou-lhe:

— Então, como te correu o dia?

— Feliz! Feliz! Como te agradeço, minha vaquinha branca, toda a alegria que experimentei. Diverti-me como nunca e estou bela como as princesas dos contos. Vi-me a um grande espelho, mais claro do que as fontes, e achei os meus olhos encantadores. Como são azuis! E esta saia? e este corpete? e estes sapatinhos? e estas joias? E, atirando os braços ao pescoço da vaquinha branca, pôs-se a beijá-la, contento.

Todas as manhãs, cedinho, lá ia com o tarro à teta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal lhe chegavam para os desperdícios. Não perdia festas: viam-na em toda a parte. Corriam versões diversas sobre a fortuna de Eudália. Uns diziam que era pactuada com o demônio, outros que se perdera desonestamente; ela folgava alheia a tudo. Tinha a mina que lhe não faltava com as moedas, que lhe importava o mais?

E o estio ardeu esplêndido, entrou o outono e começaram a cair as folhas amarelas. Quando Eudália descia para as festas encontrava gente nos matos recolhendo, à pressa, galhos e ramos secos para a provisão do inverno.

Veio a neve, murcharam os campos. Uma manhã de grande frio, como Eudália passara a noite pensando em uma capa que vira e em certa propriedade que resolvera adquirir, farta, com vinha e trigo, pascigo e águas, onde a sua fortuna medraria em milhões, saltou do leito de folhas, corada e formosa, e saiu à procura da vaquinha branca.

Chamou-a, debalde! Os caminhos estavam vidrados de neve refletindo sinistramente o esqueleto das árvores, não corria arroio, não cantava pássaro — voz, só a triste do vento uivando pelos algares. E a vaquinha branca?

A pastora buscou-a em todo o bosque sem folhas e, depois de longo e fatigante caminhar, deu com a perdida que agonizava nas profundezas de um abismo pedregoso.

Precipitou-se chorando e, ao chegar junto da que a fizera venturosa, tomando-lhe a cabeça nos braços, chamou-a sentidamente. Abriu a vaquinha os olhos vasquejantes e, reconhecendo a pastora, disse-lhe:

— Imprevidente, esqueceste o meu feno. Apesar das minhas constantes recomendações, não te lembraste do inverno. Ele aí está, rigoroso e em miséria e eu morro à míngua e comigo. Foi teu descuido, vai-se a tua fortuna. Se houvesses sido prudente, tecia, hoje agasalho e fartura, serias rendeira, dona de terras e de searas e eu viveria longos anos enchendo o teu tarro de moedas. Os prazeres desvairaram-te — tudo esqueceste nos bailes o nos folguedos das feiras e agora, pobre e sem amigos, ficas no monte solitária — sem pão, sem lar, com a lembrança apenas dos prazeres que gozaste. Foste imprudente, Eudália. 

Disse e expirou. Pobre pastora!

Uma tarde, cansada de chorar e faminta, descia o monte para esmolar um pão, quando a neve a envolveu sepultando-a em frio.

Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.

Machado de Assis (Pobre Cardeal!)

Martins Netto costumava dizer que era o homem mais alegre do século, e toda a gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe (aperitivo) dos jantares, um repositório de ditos picantes, anedotas joviais, repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria, ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878, dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:

— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a você que a isto mesmo devo uma grande amargura...

Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:

— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri muitas causas importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita gente, do que me não arrependo.

Na véspera de entrar o processo do João da Cruz, estive com um tal capitão José Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de mil circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão José Leandro dizia conhecer desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Mata-cavalos; lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...

E então, para mostrar-me que o João da Cruz nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia, em 1817, estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado, bradando:

— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah! minha senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!

D. Luísa levantou-se assustada, e perguntou-lhe o que era, se falava do general...

— Não, acudiu João da Cruz, não é nada com o digno marido de V. Excia.; falo do cardeal! pobre cardeal!

— Mas que cardeal?

João da Cruz tinha-se sentado, suspirando grosso, esfregando os olhos com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe a dor, que parecia tão profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não tardou que ouvissem no saguão da casa um rumor de espada; era o general que entrava. Daí a pouco estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara de morrer o núncio (espécie de embaixador apostólico), cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.

D. Luísa olhou espantada para ele e para João da Cruz. Foi só então que o general o viu, a alguma distância, de pé, cheio de respeito e melancolia.

— V. Excia. já sabe então da triste notícia? Morreu um santo homem, santo e magnífico, sem desfazer nas pessoas que me ouvem; ah! um varão digno do céu!

— Entrou aqui, disse D. Luísa, há poucos instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que cardeal podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...

— É verdade que entrei fora de mim; a tal ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de V. Excia., estando V. Excia. de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a notícia, ali ao pé da Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar; fiquei tonto, entrei aqui tonto.

O general sentou-se espantado; disse ao João da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o cardeal, e se era assim tão amigo dele. João da Cruz não respondeu logo verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação e saudade; depois levou o trapo aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido, olhava compassivamente para o pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por benefícios que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes: logo que chegou, em 1814, e quando uma vez Sua Eminência estivera doente. Se nunca falou disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou e lhe trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que Deus tinha!) foram amargas e dolorosas.

— Bem, mas agora...

— Agora direi tudo, se V. Excia. assim o ordena.

E depois de limpar os olhos vermelhos:

— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo chegado de Gênova e passando por alto uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta língua. Confesso que pouco ou quase nada sabia dela; mas ensinando ia aprendendo. Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia. Imagine V. Excia. com que dor recebi semelhante afronta; felizmente, provado o engano da denúncia, fui solto daí a poucos dias. Contente da justiça que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta fora devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência negou-o uma e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a denúncia era falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e obteve-a. Mas qual foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular beneficio? perguntei eu. Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só por isso, e sem que me conhecesse, estimava-me.

— Ah! bem compreendo, disse o general.

— Foi o que me ligou a ele; fez-me depois alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e que me dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então ele propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte transportou-se ao Brasil, e o cardeal, no ato de embarcar, instou comigo para que viesse também; recusei, dizendo-lhe que ia alistar-me no exército que devia expulsar o pérfido invasor...

— Bravo! disse o general.

— Sua Eminência, não podendo arrancar-me daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me em lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos, livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um miserável... Para que o queria ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia dar esse herege a um objeto de tanta valia?

João da Cruz disse aqui coisas duras ao soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a descompostura, levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá-lo.

— A morte é caminho de nós todos, disse ele, e demais o núncio já estava com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos, são naturais de um bom coração.

— Muito obrigado, acudiu João da Cruz; pode V. Excia. estar certo de que se me dissesse o contrário, eu duvidaria da minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se pareceria afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.

— Não me parece que seja...

— Não? Pois vou pô-lo; não direi a ninguém o motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá... Pobre cardeal... Vou ver...

Como o general se levantasse e fosse para dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe de José Leandro disse-lhe que ficasse para jantar.

— Agradeço... agradeço... Vou ver se arranjo... se posso...

Disse isso, entre pausas e suspiros, olhando para a roupa; mas D. Luísa pegou no filho pela mão e retirou-se da sala. João da Cruz saiu; chegando ao saguão parou e não vendo o porteiro que estava no pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à família, fez um gesto de desespero, dizendo:

— Esta gente ainda está mais defunta que o cardeal.

José Leandro cuidou logo de ver as exéquias, e pediu ao pai que o levasse; o pai noticiou à mulher que El-Rei ordenara grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em casa três dias, celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria em Santo Antônio. Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu adoecer o general; sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era impossível levar o filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro, criado a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo que um escravo não poderia arranjar ao filho algum bom lugar na igreja, pediu a João da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.

— Obséquio? diga obrigação, minha senhora; mas V. Excia. sabe... que... que... eu... não poderei... sem... 

O general concordou que era constrangê-lo a assistir ao enterro de um amigo que lhe deixara tantas saudades... E voltando-se para o pequeno, prometeu levá-lo à procissão de S. Sebastião, que era muito bonita, e que ele nunca vira. José Leandro reprimiu as lágrimas; ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz fez logo uma descrição vivíssima das exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria I, no ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches reais, tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da Cruz não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem o cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija. Ao contrário, esse último encontro dava fortaleza ao coração...

— Bem, se não há dúvida... disse o general.

Lá isso, pedia licença para dizer que sim, que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava; não lhe perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais, tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um príncipe da Igreja? etc., etc. Não, não; o menino que esperasse a procissão, que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais que fossem de estrondo...

— De estrondo? interrompeu o pequeno.

E chorando, chorando, pediu outra vez que o levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro, diziam, e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho com ele, até que, desesperado:

— João da Cruz, disse o pai, entenda-se com esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao alfaiate e ao sapateiro. Também precisa de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa... Ela que lhe dê... Vão e deixem-me em paz!

Foi assim que ele arranjou a roupa nova, — embora de luto — luto que fosse, era nova. José Leandro lembrava-se ainda das exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si a figura pomposa de João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha. Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram cinco ou seis, mas ele só se lembrava do de Angola, e do de Pernambuco, e os das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o braço, e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira abaixo, vinha falando da “bonita festa” e recitando-lhe pedaços inteiros do sermão. No Largo da Carioca entraram na sege (carruagem) que os esperava; à porta de casa, é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da melancolia, desceu trôpego e entrou.

Não imagina como achei esta anedota engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render a roupa ao outro. Pobre cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só palavra com o núncio, e se o viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas mentia com tanto aprumo, a invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem concertada, aproveitados todos os incidentes, que era difícil não cair na esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos anos, acho-lhe muito pico (ácido). Mas, vamos ao resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus ou a você.

No dia seguinte fui para o júri, com a anedota fresca de memória, até porque sonhara com ela, tanto que acordei rindo. Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados. Quando vi o réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido assim no dia do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos, tipo de astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia contar uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio superior, e toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita gravidade. De quando em quando tomava rapé; reparei logo que a caixa de rapé era de ouro.

O interrogatório durou cerca de quarenta minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da falsificação, explicou algumas contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as respostas dele com interesse e sem desprazer. De quando em quando a anedota do cardeal vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em Mata-cavalos, no tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa, as desculpas, as lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá, engenhoso era ele, e divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi algumas páginas, depois disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura fastiosa...

Não era isto; era a narração dos feitos do réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a beca do advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão, as suíças do juiz, e finalmente o retrato do imperador, que pendia da parede. Aqui foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação, tanto as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no qual ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei de memória, e fui arrancando ora um verso, ora outro, alguns truncados, e quando dei por mim, acabara a leitura.

Ouvi depois a acusação, que me deixou em alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o espírito. Minha alma sentia grelar (germinar) um grão de simpatia, ou outra coisa, que desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para ele sem sorrir; de uma vez, para não rir alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz durou pouco mais de quarto de hora. Os autos foram entregues ao conselho e nós saímos da sala.

Lá, na sala secreta, os debates foram longos e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era preciso decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse, e o diabo — não podia ser outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser estas palavras: “Pobre Cardeal! Ah! minha senhora D. Luiza!” que grande desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga de rir. Já não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha pública, e a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...

Enfim, contados os votos, acharam-se divididos seis que sim, seis que não; ia decidir o voto de Minerva, e o réu foi absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito inclinar a balança, e era certa a condenação. Saí alegre; não contei nada do que se passara dentro de mim, senão a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi correr mundo.

E foi ela que trouxe a absolvição de João da Cruz; foi essa empulhação (trapaça) de 1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o meu voto, não por ser pífia, mas por ser jovial. Os anos, porém, foram passando, e agora ainda que sou o homem mais alegre do século, acho em mim este ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no outro mundo.

— Tudo são mistérios indecifráveis, respondeu o amigo íntimo do Martins Netto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o general em 1817, não teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria uma ponta de remorso, nem eu este conto.

— Pobre cardeal!

Fonte: Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha, publicado em 1938. Publicado originalmente em A Gazeta de Notícias, 6 de julho de 1886. Disponível em Domínio Público

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Isabel Furini (Poema 52): Metamorfose 2

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.

Mensagem na garrafa – 37 -


António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

A JANELA DO MEU QUARTO

Abro, no quarto, a janela,
de manhã, de madrugada,
tenho uma vista tão bela,
tão serena, tão singela,
que a alma fica enamorada.

O sol desponta, defronte,
em luzinha tão travessa,
que até o verde do monte
brilha mais, no horizonte
deste dia que começa.

E a brisa surge, teimosa,
num breve correr, risonho,
beija a erva, abraça a rosa,
sopra a folhinha, ansiosa,
vem carregada de sonho.

Já há pombos arrulhando,
são dois, à volta, no chão,
ele, a beleza mostrando,
ela, vaidosa, acenando
ora num sim, ora não.

Lancei, por todo o lugar,
umas quantas vitualhas
que os pardais, a saltitar,
buscam fazer um manjar
daquelas poucas migalhas.

E o gato, cheio de cobiça,
perante tanto alvoroço,
pensa, com certa preguiça,
que, nesta calma mortiça,
já tem, à frente, o almoço.

As folhas das oliveiras
no quintal, à minha frente,
viram-se ao sol, faceiras,
abrem-se de mil maneiras,
sorriem pra toda a gente.

Longos minutos me quedo
sem pensar na despedida
porque há uma flor sem medo
que desvenda o seu segredo,
despertando para a vida.

Ergue-se como um farol
na linda cor que irradia
e, por isso, a aquece o sol
quando escuta o rouxinol
lançar trinos de alegria.

Então, fica-me, dessa hora,
olhos erguidos aos céus,
a certeza de que, agora,
ao ver uma nova aurora,
eu digo obrigado a Deus.

Depois desta comunhão
é, com saudade, que parto,
rezo uma última oração
e fecho, com lentidão,
a janela do meu quarto.