sábado, 24 de janeiro de 2009

Antonio Sávio (Contemplação da Dor)



As noites de trevas perseguem as vitórias
E os quase heróis fraquejam, perecem e morrem
E assim nascem as histórias
Para os que acreditam nos versos que lêem, com a mesma pressa que correm.

Nascem as trevas infindas e obscuras,
Mas riscam os céus as estrelas cortando como lâmina as brumas.
Nascem para os ais e gemidos todas as curas...
Assim como somem os sonhos, no aluvião de cinzas do cigarro que fumas

As noites de trevas, de medo, serão uma constante
Mas resta aos homens de figa, soprar as brumas
Como quem afasta um vaso ou uma estante
Sem perturbar a tez, como quem não faz coisa alguma

Como quem sopra as plumas no céu perdidas,
Qual o vento se põe a soprar a vela de um escaler.
Como o sol e as trevas que saram feridas
Como quem sara um câncer, tal como uma ferida qualquer.
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Domingos Barroso (Teia de Poesias)

Idiossincrasia

Antes de dormir,
não escovarei os dentes.
Hei de eternizar essa quimera
de tapioca com manteiga e café com leite.
Quem sabe sonhar com meus ancestrais
sob teto de palha admirando as estrelas.
Antes de dormir,
não mijarei no assento.
Vou torcer para que amanheça a rede mijada.
Meu filho de seis anos debate-se em meu peito.
Um ritmo inocente rastejando-se pela sala.
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Manequins Embalsamados

Vinde, tem vinho.
Mas não existe embriaguez.
Questão de impulso e percepção.
Vinde, tem coisa.
Mas não há alucinações.
A síntese mais bela é agua oxigenada
nas coxas da cabocla lavando roupa.
Vinde, tem ritmo.
Mas longe a trova.
Trovões!
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São

Não, meu caro.
A angústia não tem motivo.
Tampouco é necessário um balaço no ouvido.
A angústia é obesa mas não é mórbida.
Não, caríssimo.
A angústia não traz fardo ao ombro.
A cruz dos tolos aquece os calos.
As nuvens me embriagam mesmo à noite.
As estrelas são cadáveres que brilham.
Prefiro ser pardo:
roubar dos santificados o vício.
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Fonte

As unhas morrem de ódio das cutículas.
Os neurônios abobalhados planejam suicídios.
Tudo em mim é inveja e tédio.
Tantos quartos empoeirados
para uma só aranha trêmula.
A única refeição do dia
não saiu da toca.
Não me resta outra morte
senão lançar-me os dedos às teclas.
Tudo em mim é tolice e frio.
Meu coração mama sangue
por uma seringa enferrujada.
Meu paraíso é obscuro.
Entes sorridentes dizem olá.
Conquistam-me pela lábia.
Desperto. Tarde.
Tudo em mim é paraíso.
Um inferninho legal.
Desses de Leônidas,
o espartano.
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Divino Osso

Não largo meu osso.
Osso saboroso
que dói no dente.
Todo santo dia
ou dia infernal
tiro uma casquinha.
Alimento-me a loucura.
Vejo nódoas verdes no teto.
Ouço grilos matinais.
Tem hora que caio da rede.
Mas o abismo jardim florido.
Trigal ao luar.
Cães, vândalos, pilantras
tentam roubar-me quando durmo.
Tenho dó dos tolos.
Só fecho os olhos fingimento.
Não largo mesmo meu osso
nem bêbado nem duende.
Meu osso é um osso labareda.
Queima as mãos dos incautos.
Não largo meu osso.
Meu osso é uma parada.
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Cicero Sandroni (Conversa de Bebado no Alto Escalão)



Mesmo nos anos mais duros da guerra, quando os aviões da Luftwaffe despejavam bombas sobre Londres e outras cidades inglesas, Winston Churchill jamais dispensou uma garrafa de champanhe ao almoço e outra ao jantar; uma dose de uísque ao entardecer e duas ou três antes de deitar-se, às duas da manhã. Então metia-se na cama, dizia para si mesmo ''danem-se todos!'' e dormia tranqüilamente, sem sonhar. Alcançar objetivos concretos, na paz ou na guerra, constituía para ele algo melhor do que o sonho. E se a realidade incluísse garrafas de fermentados ou destilados, melhor.

Em agosto de 1942, quando Hitler estava na ofensiva na frente russa, Churchill empreende cansativa e perigosa viagem aérea de Londres até Moscou, com escala no Cairo e em Teerã, para explicar ao seu antigo inimigo e então novo parceiro na guerra, Josef Stalin, que os aliados não abririam logo uma segunda frente na Europa, operação que desde a invasão nazista os soviéticos exigiam desesperadamente para ontem. Antes disso, tropas britânicas e americanas invadiriam a África para expulsar Rommel do Egito e controlar o Mediterrâneo. A invasão pelo norte da França só viria depois.

Na primeira reunião dos dois líderes e seus assessores (Motolov e Alexander Cadogan), enquanto eles discutiam no Kremlin, tropas nazistas estavam próximas da capital. Impaciente, Stalin exigia a abertura da segunda frente na Europa.

- O que os ingleses esperam? - indagava o marechal, com a voz alterada - Estão com medo de combater os soldados nazistas?

A argumentação de Stalin encontrou resistência por parte de Churchill, que ignorou o insulto: os aliados nada fariam além do acertado com Rooselvelt. Invadir o norte da França antes de 1943 (o desembarque na Normandia só ocorreu em julho de 1944) seria um desastre militar que permitiria a Hitler consolidar seu poder na Europa. Enfurecido, Stalin não teve outro recurso senão conformar-se. Mas arrancou a promessa de que a RAF e os americanos bombardeariam a Alemanha - o que Churchill não precisava prometer: os aviões aliados já despejavam bombas sobre Hitler.

Na véspera de sua partida, depois de dois dias de discussões, Churchill vai ao Kremlin para despedir-se. Mais conformado, Stalin adota tom cordial, em diálogo traduzido por um poliglota chamado Pavlov, que nada conhecia de reflexologia:

- Você parte ao raiar do dia. Por que não vamos à minha casa para beber um pouco? Tenho lá boa adega, você não se arrependerá.

Churchill respondeu que apoiava a política dos drinques à tarde, mesmo em uma Moscou quase nas mãos dos nazistas. Detalhes sobre o encontro estão nas suas Memórias da Segunda Guerra Mundial, em tradução de Vera Ribeiro, com selo da editora Nova Fronteira. Vale a pena ler a descrição da insólita happy hour de dois líderes que, naquele momento decisivo e dramático, parecia o encontro casual de dois amigos no melhor dos mundos; jogavam conversa fora enquanto russos e alemães lutavam encarniçadamente bem perto do Kremlin. Os dois tinham consciência do que acontecia na desesperada linha de resistência soviética, mas precisavam se conhecer melhor. E também porque, como diria o inglês, que diabo, gostavam de beber.

Stalin jogava sua última carta naquele pôquer em que as fichas eram as vidas de milhões de soldados soviéticos: esperava embebedar Churchill e assim obter dele o compromisso de invadir a Europa nazista; com o monstro voltado para quem o atacasse no canal da Mancha ele teria um alívio nos Urais. Mas, diante da implacável firmeza do seu companheiro de copo, irritou-se:

- A Marinha britânica não tem senso de glória? Vocês eram os donos dos mares e agora têm medo de atravessar o Canal da Mancha?

- Você pode crer - respondeu Churchill - o que estamos fazendo é o certo. Eu entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.

- O que significa então que eu não entendo nada? - respondeu, abrupto, Stalin, fingindo-se envolvido.

- A Rússia é animal terrestre - retrucou Churchill - enquanto os britânicos são animais marítimos. Nós conhecemos a nossa força naval, sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Não despreze a força dos submarinos nazistas, que já destroçaram boa parte da nossa frota.

Stalin permaneceu instantes em silêncio, contendo a raiva que sentia daqueles ingleses resistentes à bebida e de quem precisava desesperadamente. Enfim, meio conformado, disse:

- Vamos chamar o Motolov, ele também gosta muito de beber.

Churchill concordou e por sua vez convidou o embaixador Alexander Cadogan, que segundo ele, também era bom de copo. E a conversa continuou, agora a quatro, com o professor Pavlov dividindo-se entre eles, enquanto as garrafas iam sendo esvaziadas. E assim passavam as horas, contando histórias e anedotas, levantando brindes à vitória que sabiam estar tão longe quanto perto de Moscou estavam os alemães. Nas palavras de Churchill: ''Bebemos uma multiplicidade de vinhos excelentes. Motolov assumiu seus ares mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente''.

O encontro terminou às 2h30m da manhã, com as despedidas de Stalin, que foi ler os telegramas que chegavam do front; a situação estava ruim, mesmo. Churchill voltou à Residência Estatal nº 7, ainda encontrou forças para ouvir as queixas de um impaciente general polonês que o esperava, e não teve tempo para dormir. Quando chegou ao aeroporto, às 5h, sua cabeça estalava. E lá encontrou, para as despedidas, um cambaleante Motolov.

- Você achou que eu não viria? - perguntou o russo, estremunhado.

Churchill agradeceu a gentileza do ministro do Exterior soviético e embarcou, sem fazer idéia de onde Motolov arranjaria forças para passar aquele dia. Quanto a ele, confessou: dormiu durante toda a viagem.

Mesmo na hipótese improvável de Stalin conseguir de Churchill embriagado o compromisso de invadir a França, dificilmente Roosevelt embarcaria nessa canoa. E por falar em Roosevelt: mesmo doente, o presidente americano jamais dispensou dois ou três martínis antes do jantar. Não era uma esponja do calibre de Churchill ou de Stalin, mas também entornava bem. O Times, os tablóides londrinos ou o The New York Times jamais informaram aos seus leitores londrinos que a guerra contra os nazistas era conduzida por três líderes que bebiam todas.

E que no final venceram Adolf Hitler, um ditador sanguinário e... abstêmio.

Fontes
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 26/05/2004. In Academia Brasileira de Letras.

Cicero Sandroni (Monstros contra Deuses)

Sucesso em Hollywood depende menos de talento e mais de estar no lugar certo na hora certa, dizia William Henry Pratt, ator inglês que emigrou para os Estados Unidos em 1913, adotou o nome de Boris Karloff e tornou-se mundialmente conhecido ao interpretar o monstro no filme Frankenstein, do diretor James Whale. O lugar certo para Karloff alcançar o sucesso foi a lanchonete do estúdio da Universal, em Hollywood, onde o diretor Whale tomava chá gelado e, ao vê-lo, impressionou-se com seu rosto.

O primeiro trabalho de James Whale para a Universal seria uma adaptação do romance de Mary Shelley e ele procurava um ator com o physique du rôle para encarnar o monstro. Quando viu Boris na lanchonete do estúdio, chamou-o e, comentou:

- Seu rosto tem possibilidades surpreendentes... Você gostaria de fazer um teste para o papel da criatura do doutor Frankenstein?

Boris espantou-se com a proposta, mas aceitou o teste e, logo na primeira cena, demonstrou que, se alguém poderia interpretar a criatura imaginada por Mary Shelley, era ele e ninguém mais. Começou a trabalhar obedientemente sob as ordens de um tirânico Whale. O ''escultor'' da face horrível e insondável foi Jack Pierce, o chefe de maquiagem do estúdio. E, desde a primeira tomada, a persona do monstro impressionou a todos. Em pouco tempo ninguém tinha dúvidas de que a figura desengonçada e maligna seria a principal atração do filme.

Não foi necessário passar muito tempo para Whale perceber que a grotesca figura permaneceria para sempre no imaginário de todos, enquanto ele, o diretor do filme, seria esquecido. E tinha razão. Só mesmo os cinéfilos guardaram seu nome, enquanto o monstro construído por Pierce a partir do corpo de Karloff tornou-se um dos ícones do terror do século 20, popularizando a obra de Mary Shelley. E a tal ponto que quando Bill Condon faz um filme para mostrar os dias finais de Whale, quem aparece na última cena é o ator Brandon Fraser imitando Karloff na pele do monstro. A criatura mais uma vez vencera o criador.

Lançado em 1931, com produção de US$ 250 mil, Frankenstein rendeu US$ 12 milhões à Universal e salvou a empresa da falência. Descoberto o filão, Carl Laemmle, o chefão do estúdio, queria mais filmes de terror com a dupla Whale/Karloff, mas o diretor resistiu a um novo confronto com aquela força da natureza, que eletrizava as audiências assim que sua figura disforme aparecia na tela. Só em 1935 Whale sentiu-se com forças para enfrentar o monstro novamente e consentiu fazer uma continuação da história de Mary Shelley: A noiva de Frankenstein, com Elsa Lanchester. Submetida ao mesmo tratamento de Pierce, Elsa (que também interpreta Mary Shelley no prólogo do filme) servia de contrapeso à presença de Karloff.

Boris Karloff prosseguiu então em sua carreira, muito marcado pela figura do monstro. Por excessiva modéstia, costumava dizer que não podia se comparar com os grandes atores ingleses da época, a exemplo de Laurence Olivier, Leslie Howard e John Gielguld. Talvez não fosse mesmo grande como eles, mas o sistema patronal de exploração, vigente em Hollywood, o condenava aos filmes de horror. E, quando ele conseguia escapar, era para interpretar gângsteres ou índios, ou então paródias de si mesmo, como no filme The seven lifes of Walter Mitty, com Danny Kaye.

Na vida real, segundo conta Cynthia Lindsay no livro Dear Boris, uma biografia, ele era tímido, cordial e excessivamente modesto. Apesar da fama, raramente conseguia bons papéis em filmes que não fossem de terror. E, tal como o monstro que ansiava pela liberdade e por uma vida ''humana'', ele também tentou livrar-se do estereótipo para mostrar sua capacidade de interpretar outros tipos que não apenas vilões ou monstros. Mas quase nada conseguiu. Peter Bogdanovitch contou um pouco do seu drama em Targets, de 1968, no qual Boris Karloff interpreta Byron Orlok, ator de filmes de horror que deseja fazer outro tipo de cinema, que não os filmes de violência.

Pouco se vê de Boris Karloff no filme Deuses e monstros, de Bill Condon, no qual a interpretação magistral de Yan McKellen no papel de James Whale, nos seus últimos dias, domina a história do começo ao fim. Mas nas sombras da tela - e na mente do Whale personagem - a presença do monstro, tal como criado por Karloff, é intensa. E repercute até hoje, nas imagens do terror produzido para o consumo das multidões, permanecendo no imaginário de todos e na iconografia do século 20. Quem, em criança, não sentiu medo do monstro Frankenstein, dos filme de Whale e seus epígonos, ou, mais tarde, não riu do jovem Frankenstein da comédia de Mel Brooks, ou ainda, entre nós, não se divertiu com o fascinante Frankenstein punk, curta-metragem de Cao Hamburguer?

O monstro está entre nós. E não apenas por sua figura aterrorizante. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Leclerc, o romance de Mary Shelley permite várias leituras. A que ele fez no seu livro Frankenstein, mito e filosofia apresenta o monstro na condição de metáfora das massas exploradas, que reagem de forma ''monstruosa'' na Revolução Francesa, ou nas manifestações da mob londrina. Para Leclerc, Mary Shelley construiu o seu monstro com pedaços do proletariado nascente (uma espécie de Prometeu acorrentado), influenciada pelos acontecimentos históricos da época e pelas idéias libertárias de seu marido, o poeta Percy Shelley, cujo codinome, na polícia política, era Red Shelley.

Mas, se no filme de Whale sobra muito pouco do texto de Mary Shelley, muito menos fica, é claro, da leitura ideologizada que Jean-Jacques Leclerc fez. No entanto, não se pode ser muito rigoroso com as versões filmadas. E, no caso de Frankenstein, de Whale, seu filme sobreviveu exatamente por aquilo que ele mais temia: a fixação de um mito criado no século 19, na aterrorizante figura do monstro, interpretado por Boris Karloff.

E, quando ele aparece na tela, patético e selvagem, podemos até pensar que, em relação ao Brasil de hoje, Leclerc talvez tenha um pouco de razão. Aqui, tal como no ancien régime na França ou durante a Revolução Industrial na Inglaterra, os donos do poder vêem e tratam as dezenas de milhões de excluídos da economia do mercado como seres monstruosos, ameaçadores e perigosos, quando são apenas sub-empregados, explorados, desempregados e desesperados em busca de um mínimo de condição humana. E muitos deles incapazes de articular palavras de defesa, tal como a criatura imaginada por Mary Shelley, o monstro cujas cordas vocais só emitiam grunhidos.

Fonte:
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 04/08/2004. In Academia Brasileira de Letras.

Cícero Sandroni (1935)



Cadeira n. 6 da Academia Brasileira de Latras, desde 2003.

Cícero Augusto Ribeiro Sandroni nasceu na cidade de São Paulo, a 26 de fevereiro de 1935, filho de Ranieri Sandroni e Alzira Ribeiro Sandroni (ambos nascidos em Guaxupé, Minas Gerais).

Fez os estudos primários e parte do ginasial na capital paulista. Com a transferência de sua família para o Rio de Janeiro, em 1946, aqui concluiu os estudos secundários. Cursou a faculdade de Jornalismo (hoje de Comunicação) da Pontifícia Universidade Católica e a EBAP - Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, onde foi bolsista.

Em 1954 fez os primeiros estágios em redações de jornais, inicialmente na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda e em seguida no Correio da Manhã, sob a direção de Antônio Callado e Luiz Alberto Bahia, onde chegou a chefe da reportagem. Convidado por Odylo Costa, filho, ingressou na redação do Jornal do Brasil, na época da reforma editorial do diário, e ao mesmo tempo atuou na Rádio Jornal do Brasil.

Em julho de 1958 transferiu-se para O Globo onde, destacado para a cobertura da área da política exterior, fez várias viagens internacionais entre as quais ao Chile para a cobertura da V Conferência Extraordinária dos Chanceleres Americanos, e aos Estados Unidos, convidado pelo Departamento de Estado americano e enviado por O Globo para escrever sobre a primeira visita de Nikita Kruschev à ONU. Na mesma ocasião entrevistou Alexander Kerensky, então diretor da Torre Herbert Hoover, na Universidade de Stanford, na Califórnia e participou de uma semana de estudos brasileiros, naquela universidade, em que a homenageada foi a poetisa Cecília Meireles. Em abril de 1960 integrou a equipe de O Globo que, chefiada por Mauro Salles, fez a cobertura da inauguração de Brasília. Naquele mesmo ano assumiu a chefia da reportagem política do Diário de Notícias, então sob a direção de Prudente de Morais, neto, onde escreveu a coluna “Notas Políticas”, em substituição de Heráclio Salles.

Convidado por José Aparecido de Oliveira e pelo prefeito de Brasília, Paulo de Tarso Santos, em 1961 transferiu-se para a nova capital, onde foi Secretário de Imprensa da Prefeitura do Distrito Federal, diretor de Relações Públicas da Novacap e ao mesmo tempo atuou, ao lado de José Aparecido, na coordenação da equipe, chefiada por Candido Mendes de Almeida, que preparou a primeira (e única) mensagem do Presidente Jânio Quadros ao Congresso Nacional. Integrou o Conselho Fiscal da Fundação Cultural de Brasília, presidida por Ferreira Gullar, ao lado do então deputado José Sarney.

No governo parlamentarista de João Goulart/Tancredo Neves, foi subchefe do gabinete do Ministro Franco Montoro, na pasta do Trabalho e Previdência Social e em 1962 foi nomeado representante do governo no Conselho Fiscal do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), sendo naquele mesmo ano eleito presidente do órgão, do qual foi demitido em abril de 1964.

Com a instalação do regime militar, voltou a trabalhar na Tribuna da Imprensa de Hélio Fernandes, e em O Cruzeiro, sob a direção de Odylo Costa, filho. Com Odylo, Álvaro Pacheco e o diplomata Pedro Penner da Cunha adquiriu uma empresa gráfica, de cujas máquinas saíram as duas primeiras edições da revista de contos Ficção, editada com a colaboração de Antônio Olinto e Roberto Seljan Braga. Em seguida, com Pedro Penner da Cunha, fundou a Edinova, editora pioneira no Brasil no lançamento de literatura latino-americana e do nouveau roman francês.

Em 1965 participou de conferência de jornalistas em Bonn, na Alemanha, que resultou na criação da agência internacional de notícias Interpress Service, da qual foi diretor no Brasil. Naquele mesmo ano retornou ao Correio da Manhã, onde escreveu a coluna diária “Quatro Cantos!, de oposição ao governo militar, e conviveu com Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Paulo Francis, José Lino Grünewald, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues. Sobre esta fase do seu trabalho, Alceu Amoroso Lima escreveu, em artigo publicado no Jornal do Brasil, “Cícero Sandroni renovou o colunismo, na imprensa do Rio de Janeiro”.

Com a censura imposta à imprensa após o Ato Institucional nº 5 e o arrendamento do jornal, deixou o jornalismo diário e ingressou em Bloch Editores, onde foi redator-chefe das revistas Fatos e Fotos, Manchete e Tendência. Sob sua direção esta última recebeu, em 1974, o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria de Melhor Contribuição à Imprensa. Em 1976 dirigiu, para Fernando Gasparian, a última fase do Jornal de Debates, semanário de política e economia fundado por Mattos Pimenta, que se notabilizara, na década de 50, na luta pela criação da Petrobras.

Ainda em 1976 lançou novamente a revista Ficção, com Fausto Cunha, Salim Miguel, Eglê Malheiros e Laura Sandroni. Na segunda fase, em 44 edições, Ficção publicou mais de quinhentos autores brasileiros. Naquele mesmo ano coordenou, com os escritores Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Hélio Silva, José Louzeiro, Ary Quintella e Jefferson Ribeiro de Andrade um manifesto contra a censura aos livros, assinado por mais de mil intelectuais brasileiros, conhecido como o Manifesto dos Mil. Publicado na imprensa, o documento impediu a continuação da censura aos livros, que proibira a circulação de mais de quatrocentos títulos de autores brasileiros e estrangeiros. O mesmo grupo renovou o Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e levou à sua presidência o Acadêmico Antonio Houaiss.

Em 1977, a convite de Walter Fontoura, retornou ao Jornal do Brasil inicialmente como redator do Caderno B, onde escreveu sobre arte e cultura e foi crítico de cinema. Em seguida editou o suplemento literário “Livro” e de 1979 a 1983 escreveu a coluna “Informe JB”. Em 1984 assinou a coluna “Ponto de Vista”, no jornal Última Hora, com a colaboração do poeta José Lino Grünewald. Nesse tempo, foi um dos primeiros jornalistas a defender a realização de eleições diretas para a presidência da República.

Em 1984 editou o Jornal do País, semanário de Neiva Moreira e, em 1985, escreveu artigos sobre política para a Tribuna da Imprensa. Colaborou com a revista Elle, onde publicou perfis de artistas e escritores e colaborou com resenhas de livros para a página literária de O Globo. Naquele mesmo ano passou a colaborar com a Companhia Vale do Rio Doce na área de assuntos culturais. Foi editor do “house-organ” Jornal da Vale e coordenou duas edições do Prêmio Nacional de Ecologia, instituído pela CVRD e apoiado pelo CNPq., Petrobras e a SEMA. Em 1990 foi editor-geral da Tribuna da Imprensa e a seguir passou a escrever uma página semanal sobre cultura e política.

Em 1991 fundou, para a prefeitura do Rio de Janeiro, o mensário literário RioArtes, o qual dirigiu até ser convidado, em fins de 1992, pelo então ministro da Cultura, Antonio Houaiss, e o presidente da Funarte, Ferreira Gullar, para dirigir o Departamento de Ação Cultural da entidade. No DAC, entre outras atividades na área das artes plásticas e da música, organizou o Salão Nacional de Artes Plásticas de 1993 e 1994 e a Bienal de Música de 1994. Na mesma ocasião dirigiu, com Ferreira Gullar e Ivan Junqueira, a revista Piracema.

Editor de Cultura e Opinião do Jornal do Commercio em 1995, afastou-se no ano seguinte para escrever, com Laura Sandroni, a biografia de Austregésilo de Athayde. Voltou ao Jornal do Commercio em 2000, como diretor-adjunto da Redação e participou, com Antônio Calegari, da reforma gráfica que modernizou o Jornal. Criou o suplemento cultural Artes e Espetáculos e deixou a redação em agosto de 2003 para escrever a história do Jornal do Commercio.

Sexto ocupante da Cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de setembro de 2003, na sucessão de Raimundo Faoro com 36 votos (a unanimidade dos votantes), foi recebido em 24 de novembro de 2003 pelo Acadêmico Candido Mendes de Almeida. No mesmo ano, eleito tesoureiro da Presidência de Ivan Junqueira, dois anos depois, Secretário-Geral do Ministro Marcos Vinicios Vilaça. Tomou posse como Presidente da ABL em 13 de dezembro de 2007, eleito pela unanimidade dos seus pares.

Cícero Sandroni tem participado de vários júris de prêmios jornalísticos notadamente o Esso de Jornalismo, o Prêmio Embratel de Jornalismo e o Prêmio de Jornalismo Científico do CNPq. Na área de literatura integrou o júri do concurso de contos da revista Ficção, e do Prêmio Goethe de literatura do ICBA. Colaborador de jornais e revistas, tem participado de seminários de jornalismo e literatura e pronunciado palestras sobre aqueles temas em centros universitários. Escreveu prefácios para vários livros, entre os quais Memórias Improvisadas de Alceu Amoroso Lima e Medeiros Lima, segunda edição.

Casado desde janeiro de 1958 com a escritora Laura Constância Austregésilo de Athayde Sandroni, tem cinco filhos, Carlos (1958) sociólogo e Doutor em Etnomusicologia pela Universidade de Tours, França; Clara (1960), cantora e bacharel em música pela UniRio; Eduardo (1961), ator e diretor de teatro formado pela CAL; Luciana (1962) autora de literatura infantil e mestre em literatura pela PUC de SP e Paula (1970), atriz, diretora de teatro e pós-graduada em teatro pela UniRio. O casal tem um neto, Pedro, nascido em agosto de 2003.

Participações

- Sócio da ABI desde 1971, foi eleito membro do Conselho Administrativo em 1979. A partir de então atuou ao lado do presidente da entidade, Barbosa Lima Sobrinho até a sua morte, em junho do ano 2000.
- Foi diretor da Biblioteca Bastos Tigre, secretário-geral da Diretoria e presidente do Conselho Administrativo no biênio 2000/2001.
- No episódio do impeachment do Presidente Fernando Collor assessorou Barbosa Lima Sobrinho, ao lado de Raymundo Faoro, Evandro Lins e Silva e Clóvis Ramalhete.
- Atualmente é membro do Conselho de Ética e da Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da ABI.
- Membro da Academia Carioca de Letras, Cadeira número 13. 2003.
- Sócio titular do PEN Clube do Brasil. 1985
- Membro da Assembléia Geral da GERIS - Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social.
- Membro do Capítulo Brasileiro da Society foi International Development, SID. Presidente do Capítulo Brasileiro da SID em 1987.
- Curador do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade.
- Membro do Conselho Consultivo do Instituto Cultural Brasil-Alemanha.
- Membro e Presidente (1992) da Associação de Canto Coral.
- Membro do Conselho da Sociedade dos Amigos do Museu do Inconsciente.
- Sócio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RJ.
- Sócio do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro.

Bibliografia
Jornalismo na televisão
- Redator e comentarista dos telejornais apresentados por Heron Domingues, na TV Rio e na TV Continental.
- Redator e apresentador substituto do programa de entrevistas "Frente a Frente", de Heron Domingues, na TV Tupi.
- Produtor da série Caminhos da Sobrevivência, dirigido por Washington Novaes e transmitido pela TV Manchete, sob o patrocínio da Companhia Vale do Rio Doce.
- Comentarista do telejornal de Fernando Barbosa Lima na TVE.
- Criador e apresentador do programa de entrevistas literárias “A Arte de Ler”, na TVE.
- Desde 2001 é comentarista de livros do telejornal Edição Nacional, da TVE/Rede Brasil.

Livros publicados
- O Diabo só chega ao meio-dia, contos, Nova Fronteira, 1985.
- O vidro no Brasil, ensaio histórico, Objetiva, 1989.
- Austregésilo de Athayde, o século de um liberal, Agir, 1998. (Prêmio José Ermínio de Moraes de 1999 da ABL)
- Cosme Velho, passeio literário pelo bairro, Relume Dumará, 1999.
- 50 anos de O Dia, história do jornal, 2002
- O peixe de Amarna, romance, Record, 2003.
- Carlos Heitor Cony, da coleção Perfis do Rio, Relume Dumará, 2003.
- De Pedro I a Lula - História do Jornal do Commercio, Quorum, 2007.

Colaborador em obras coletivas
- Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, edição do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, coordenação de Alzira Abreu, RJ.
- Novo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni, editora Best Seller, SP.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Sandra M. Julio (Ecos da saudade ...)



Encontrei teu olhar perambulando meus sonhos... Descuidado, despertou a saudade adormecida na engelhada ausência.

Lembranças brincaram relembrando doces instantes em que meus olhos pousaram em teu mais doce sorriso. Dele minh’alma ainda se embriaga, acordando tua imagem.

As fímbrias do luar iluminam sonhos quando trôpegos caminham por horizontes buscando a paz que goteja dos versos que a mim dedicas, nas entrelinhas do teu coração.

Não sabes do amor que trago em mim, ele é como a brisa perfumando as flores, como o orvalho saciando a sede de áridos sonhos, é o gorjeio de cada pássaro entoando teu nome na mais doce oração.

Sabe... Quando as fantasias adormecem na rede do tempo e a solidão se faz coberta para a fria saudade, ouço teu palmilhar envolto nos cabelos da noite, esculpindo carícias num infinito que abre as portas do desejo.

Jamais partiste... Meus sonhos a ti encontram no colo de cada noite, és parte indelével de mim.

Tua lembrança é a primavera florescendo em cada estação, nela o tempo faz pouso, e a felicidade reflete no espelho de cada sonho, estilhaçando-se em sorrisos e alegrias.

Em cada anoitecer busco nas estrelas o teu olhar... Faço da prece canção e a consagro ao vento, para que a cada noite presenteie seus lábios com o meu mais doce beijo.

Assim desarrumo os ecos da saudade, quando embriagam meus reflexos.
20/01/09

Fonte:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece

Sarau em Itu dia 31 de Janeiro

O Ponto de Leitura de Itu realizará no sábado, dia 31, um Sarau Beat com o grupo Coesão Poética de Sorocaba.

A Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima, uma das 516 iniciativas selecionadas pelo governo federal como Ponto de Leitura, sediará no próximo dia 31, a partir das 19 horas, um Sarau em homenagem à geração beat. Haverá música ao vivo, exposição de cartazes psicodélicos, sons de vinis dos anos 60 e 70, declamação de poemas e textos dos maiores expoentes do gênero e exibição do filme Chappaqua, além de curtas metragens sobre o tema.

A geração beat (beat generation em inglês) é um termo usado tanto para descrever um grupo de escritores americanos que vieram a se tornar conhecidos no final da década de 1950 e no começo da década de 1960, quanto ao fenômeno cultural que eles escreveram e inspiraram (posteriormente chamados beatniks).

As principais obras da geração beat na literatura são Howl (1956) de Allen Ginsberg, Naked Lunch (1959) de William S. Burroughs e On the road (1957) de Jack Kerouac. Tanto Howl quanto Naked Lunch foram o foco da prova de obcenidade que ajudaram a liberar o que poderia ser publicado nos Estados Unidos. E On the road transformou o amigo de Kerouac, Neal Cassady, em um herói dos jovens.

Os escritores beat davam ênfase em um engajamento visceral em experiências com as palavras combinadas com a busca a um entendimento espiritual mais profundo. Ecos da geração beat podem ser vistos em muitas outras subculturas (hippies, punks etc.).

Os anos 60, acima de tudo, foi um período de explosão de juventude em todos os aspectos. Era a vez dos jovens, que influenciados pelas idéias de liberdade começavam a se opor à sociedade de consumo vigente. O movimento beat, que nos 50 vivia recluso nos EUA, passou a caminhar pelas ruas nos anos 60 e influenciaria novas mudanças de comportamento, como a contracultura e o pacifismo. O psicodelismo foi um caminho que grande parte da juventude estava escolhendo ou iria escolher nos anos 60, dentro do contexto da contracultura. Teve vida curta, mas foi de grande influência e incandescência.

Os cartazes psicodélicos eram criados para uma platéia bem exclusiva, com letreiros praticamente ilegíveis, carregando a mensagem implícita: "Se você não consegue ler, não é para você."

Fontes:
Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

Pinheiro Chagas (1842 - 1895)



Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (Lisboa, 13 de Novembro de 1842 — Lisboa, 8 de Abril de 1895) era um prolífico escritor, jornalista e político português. Destacou-se como romancista, historiador e dramaturgo, tendo escrito inúmeros romances históricos e diversas peças de teatro, algumas das quais se mantiveram em cena por mais de um século. Foi diretor de vários periódicos de Lisboa. Exerceu as funções de deputado e par do Reino e foi Ministro da Marinha e Ultramar na fase decisiva das movimentações das potências européias em torno da partilha de África. Foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Biografia

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas nasceu em Lisboa, a 13 de Novembro de 1842, filho de Gertrudes Ramos e de Joaquim Pinheiro das Chagas, major do Exército, veterano das guerras liberais e secretário particular do rei D. Pedro V. Destinado a seguir a carreira militar, frequentou o Colégio Militar, a Escola do Exército e a Escola Politécnica de Lisboa. No seu percurso militar, que interrompeu em 1866, alcançou o posto de capitão. Retomaria a carreira militar em 1883, ao ser chamado para integrar o ministério.

A produção literária

Foi aluno brilhante, começando desde cedo a demonstrar grande interesse pela escrita. A sua primeira obra publicada foi Anjo do Lar (1863), uma coletânea de poemas, a que se seguiu Poema da Mocidade (1865), outra coletânea poética, agora prefaciado por António Feliciano de Castilho.

Foi o prefácio de Castilho àquela obra de poesia juvenil, apropriadamente intitulada Poema da Mocidade, que levou à eclosão da Questão Coimbrã, polemica onde o grupo de Pinheiro Chagas, Júlio de Castilho, Brito Aranha, Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão enfrentou Teófilo Braga e Antero de Quental, num epifenómeno literário das tensões entre conservadorismo e reformismo que atravessavam a sociedade portuguesa de então.

A partir daí passa a colaborar intensamente na imprensa e a manter uma atividade literária a que cedo associou uma não menos intensa atividade política. Passou a publicar textos de ficção, sendo um dos introdutores do romance de aventuras em Portugal. Também se interessou pela História, tendo produzido trabalhos, que embora operosos, não seguem as preocupações de rigor e de erudição dos mais conceituados historiadores da época.

Apesar das suas obras oscilarem entre um estilo rigoroso e uma atmosfera de afetação, a popularidade de Pinheiro Chagas foi grande, sendo durante muito tempo considerado como um dos mais populares escritores portugueses. A prová-lo esta que o plebiscito literário realizado em 1884 pelo jornal O Imparcial de Coimbra, que tendo feita uma sondagem sobre quem seriam os três escritores portugueses mais notáveis nessa época, obteve dos seus leitores a seguinte classificação: 1.º Camilo Castelo Branco; 2.º Manuel Pinheiro Chagas; e 3.º José Maria Latino Coelho.

Eça de Queiroz, que, fazendo referência ao seu passado como militar, o apodava de brigadeiro Chagas, aparecia apenas no 4.º lugar, seguido de Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Guerra Junqueira, numa ordenação que pouco diz sobre a popularidade futura dos escritores.

Apesar dessa opinião dos leitores e das suas obras terem gozado de êxito imediato e grande divulgação, tal não se repercutiu após a morte do autor, sendo este praticamente esquecido. Para isso muito contribuíram as polemicas que manteve com Eça de Queirós, que o fizeram pouco querido da geração de intelectuais que se lhe seguiu. Hoje algumas das suas obras têm vindo a ser reeditadas, com razoável êxito. A peça A Morgadinha de Valflor (1869) teve assinalável êxito e manteve-se popular, sendo encenada, particularmente por grupos amadores, durante todo o último século. Foi ainda tradutor de obras de Jules Verne e de Daniel Defoe, contribuindo em muito para a introdução e popularidade do romance de aventuras em Portugal.

Numa nomeação controversa, foi feito professor de Literatura Clássica do Curso Superior de Letras, conjugando também nessa função a sua atividade literária com os seus ideais políticos. Entrou em choque com muitos dos principais protagonistas da vida literária portuguesa de então, do que resultaram inúmeras polemicas, das quais a mais azeda e prolongada, durando mais de 20 anos, foi mantida com Eça de Queirós. A sua produção literária, em especial na área da História, levou a que em 16 de Janeiro de 1866 fosse eleito sócio efetivo, e depois secretário-geral, da Academia das Ciências de Lisboa.

O jornalista e parlamentar

Contudo, foi na atividade jornalística que Pinheiro Chagas mais se destacou, demonstrando uma capacidade de trabalho e combatividade inesgotáveis. Tendo-se iniciado no jornal A Revolução de Setembro, na altura dirigido por António Rodrigues Sampaio, cedo assumiu um estilo que privilegiava a visão crítica da sociedade e da governação, mesclando o jornalismo noticioso com a intervenção política. A partir dessa iniciação, Pinheiro Chagas colaborou em diversos periódicos, nos quais sustentou acesas polemicas, fez comentário político, animou secções de folhetim e fez crítica artística, em especial literária, teatral e das artes plásticas.

Foi a partir desta presença na imprensa que Pinheiro Chagas construiu a sua carreira política, a qual ganhou ímpeto em 1871, aos 29 anos de idade, quando passou a colaborar no jornal A Discussão, órgão oficioso do recém-fundado Partido Constituinte liderado por José Dias Ferreira. Nesse mesmo ano, nas eleições gerais de 9 de Julho, é eleito deputado para a 20.ª Legislatura da Monarquia Constitucional, pelo círculo uninominal da Covilhã, por onde se candidatara com o apoio de Manuel Vaz Preto Geraldes, um importante cacique de Castelo Branco. Foi reeleito, pelo mesmo círculo, nas eleições gerais de 12 de Julho de 1874 (21.ª Legislatura).

Para além das suas funções como deputado, a partir de 1875 passa a exercer as funções de diretor político de A Discussão, cujo título seria alterado em Janeiro de 1876 para Diário da Manhã, com Pinheiro Chagas como seu diretor.

Nas eleições gerais de 13 de Outubro de 1878 foi novamente eleito pela Covilhã, para uma legislatura que terminaria em 19 de Junho de 1879 com a dissolução prematura das Cortes. Na eleição seguinte, realizada a 19 de Outubro de 1879, perde o lugar para o candidato do Partido Progressista, mas numa eleição suplementar, realizada no ano seguinte no círculo de Arganil, volta a ser eleito, regressando assim ao parlamento em meados de 1880. Na eleição geral de 21 de Agosto de 1881 foi reeleito pelo círculo de Arganil.

Como deputado revelou-se participativo e de grande combatividade, tratando uma grande profusão de temas, sem contudo se notar uma linha condutora da sua ação política, apenas sendo clara a sua postura conservadora e pró-colonial, defendendo a consolidação da presença portuguesa em África e a necessidade de dotar o país dos meios necessários à defesa do império ultramarino face ao crescente apetite das potências européias por territórios que nominalmente eram considerados como sob controlo português.

O incidente com Manuel Joaquim Pinto

Quando a Comuna de Paris foi formada em 1871, a imprensa portuguesa foi extremamente crítica. Entre os jornalistas mais contundentes estava Pinheiro Chagas, que escreveu um artigo de opinião, em que ironizava que se fosse a Portugal nem valia a pena julgar a líder communard Louise Michel, pois que para pôr aquela mulher na ordem, bastava levantarem-lhe as saias e darem-lhe um bom par de açoites, numa apologia implícita do uso da violência doméstica contra os males da emancipação das mulheres.

O Revolução Social, um dos primeiros jornais portugueses ligados à Associação Internacional dos Trabalhadores, o primeiro movimento internacionalista que aliou comunistas, socialistas e anarquistas, publicou então uma resposta, da autoria do jornalista e professor primário Manuel Joaquim Pinto, em que criticava duramente a deficiência dos argumentos e a baixeza das razões de Pinheiro Chagas.

Manuel Joaquim Pinto dava aulas numa escola de ensino livre que funcionava em Alcântara, então um bairro operário de Lisboa. Era uma escola gratuita destinada sobretudo a proporcionar o acesso à educação aos filhos dos operários das fábricas que durante o século XIX se tinham fixado nas imediações daquele local.

Pinheiro Chagas, ofendido pelo artigo, escreveu uma carta a Manuel Joaquim Pinto pedindo explicações. Quem não se ficou pelos ajustes foi o professor anarco-comunista, que se dirigiu ao parlamento e lá, encontrando Pinheiro Chagas, resolveu aplicar a sugestão feita a propósito de Louise Michel: deu umas valentes bengaladas no deputado, para grande escândalo da imprensa e das Cortes. Por esse atentado, Manuel Joaquim Pinto, foi julgado e condenado a dezoito meses de prisão e ao pagamento de uma multa.

A passagem pelo Ministério da Marinha e Ultramar

Por esta altura os seus dotes de oratória, demonstrados no parlamento e nas cerimônias públicas onde era um dos oradores mais convidados, aliados à sua ativa participação na imprensa, tinham feito de Pinheiro Chagas um dos mais importantes e influentes políticos do tempo. Assim, quando em Outubro de 1883 o governo presidido por Fontes Pereira de Melo se viu confrontado com crescentes problemas colocados pelas potências européias, para além das pressões antiescravagistas lideradas pela Grã-Bretanha, Pinheiro Chagas foi chamado para substituir José Vicente Barbosa du Bocage na pasta da Marinha e do Ultramar, transitando este para a pasta dos Negócios Estrangeiros.

Manter-se-ia naquela pasta até 16 de Fevereiro de 1886, data em que o ministério presidido por Fontes Pereira de Melo deu lugar a outro, agora presidido por José Luciano de Castro. Tratou-se de um período decisivo em que as rápidas movimentações das potências européias na frente diplomática, e na consolidação da sua ocupação do território em África, punham em crise a velha partilha de esferas de influência naquele continente, ameaçando a manutenção do controlo luso sobre boa parte dos territórios tradicionalmente reclamados como estando sob soberania ou protetorado português.

Pinheiro de Chagas e o seu colega dos Negócios Estrangeiros, José Vicente Barbosa du Bocage, tiveram de enfrentar difíceis negociações com o governo britânico sobre a soberania portuguesa na costa ocidental de África, com destaque para as questões relacionadas com o controle da foz do rio Zaire e com o escravagismo no Daomé, em especial em torno dos problemas levantados pelo presença portuguesa em São João Baptista de Ajudá. Nas eleições gerais realizadas 29 de Junho de 1884 foi eleito deputado pelas Caldas da Rainha.

Estas questões, associadas à contestação que a França, Alemanha e Bélgica fizeram ao acordo que havia sido laboriosamente negociado em princípios de 1884 sobre a navegação na foz do Zaire, levaram convocação da Conferência de Berlim, que decorreu de Novembro daquele ano a Fevereiro do ano seguinte. Todas estas difíceis negociações foram feitas num ambiente de grande exaltação patriótica em Portugal, em boa parte preparado pelas intervenções jornalísticas anteriores do próprio Pinheiro Chagas, que tornavam impopulares as posições do governo português, muitas vezes obrigado a transigir face à força dos interesses das grandes potências européias.

Foi neste contexto de tensão sobre as questões coloniais que Pinheiro Chagas se associou a um grupo de intelectuais e políticos para fundar, à imagem das sociedades de exploração britânicas, a Sociedade de Geografia de Lisboa. O objetivo era dar corpo a um conjunto de viagens de exploração em África que rivalizassem com as realizadas sob a égide britânica, francesa e belga.

Foi assim que nasceu o mapa cor-de-rosa e se realizaram as grandes viagens de exploração de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, Serpa Pinto, Augusto Cardoso, Henrique de Carvalho e Francisco Newton, quase todas entre 1884 e 1885. Nas eleições gerais de 1887, 1889 e 1890 foi eleito deputado pelo círculo de Viana do Castelo, mantendo sempre uma muito ativa presença parlamentar. Também a sua presença na imprensa não abrandou, para além de ser à época considerado como um dos mais conceituados escritores portugueses. Neste período, também a sua intervenção na Sociedade de Geografia de Lisboa e na Academia das Ciências merece nota.

Por decreto de 29 de Dezembro de 1892 foi nomeado par do Reino vitalício, tomando assento pela primeira vez na Câmara dos Pares na sessão de 30 de Janeiro de 1893. Em Agosto de 1893 foi nomeado presidente da Junta de Crédito Público, cargo que ocuparia até falecer. Manuel Joaquim Pinheiro Chagas faleceu em Lisboa a 8 de Abril de 1895. Foi um dos grandes vultos da história portuguesa, tendo sido vítima de uma odiosa agressão, mal esclarecida, da qual nunca se recuperou.

Vida familiar

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas casou com Maria da Piedade Maternidade da Silva, com quem teve seis filhos:
• Raúl Pinheiro Chagas, nascido em 1864;
• Alice Pinheiro Chagas, nascida em 1866;
• Mário da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1870, advogado, deputado e bastonário da Ordem dos Advogados;
• Álvaro da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1872, que foi jornalista e deputado monárquico, líder da resistência contra a República no Alto Minho;
• Frederico da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1882, segundo-tenente da Armada, monárquico convicto que se suicidou em 1910;
• Valentina Pinheiro Chagas, nascida em 1883.

Obras publicadas

A lista que se segue não é exaustiva, tendo-se procedido à atualização ortográfica de alguns dos títulos. Algumas das obras publicadas por Pinheiro Chagas não se encontram nela incluídas, particularmente as que foram publicadas em periódicos.
Obras poéticas:
• Anjo do Lar (1863)
• Poema da Mocidade (1865), prefaciado por António Feliciano de Castilho

Obras de ficção:
• Tristezas à Beira-Mar (1866)
• A Flor Seca (1866)
• Os Guerrilheiros da Morte (1872)
• A Corte de D. João V (1873)
• O terremoto de Lisboa (1874)
• As Duas Flores de Sangue (1875)
• A Mantilha de Beatriz (1878)
• A Jóia do Vice-Rei (1890)

Obras dramáticas:
• A Morgadinha de Valflor (1869)
• Deputado de Venhanós (1869)
• A Judia (1869)
• À Volta do Teatro (1868)
• Madalena e Helena (1875)
• Quem Desdenha (1875)

Obras de história e de crítica:
• Ensaios Críticos (1866)
• Novos Ensaios (1867)
• Portugueses Ilustres (1869)
• História de Portugal (8 volumes, 1869-1874)
• História Alegre de Portugal (1880)
• As negociações com a Inglaterra (1890)
• As colônias portuguesas no século XIX (1891)
• Migalhas da História de Portugal (1893)

Fonte:
Maria Filomena Mónica (coordenadora), Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910). vol. 1. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Assembleia da República, Lisboa, 2004. (Colecção Parlamento)

Pinheiro Chagas (Astúcias de Namorada)

Namoro no Jardim (Cerâmica de Pombal)
PRÓLOGO

Este livro é um livro de verão. Fez-se para ser lido à sombra de uma árvore copada, à hora do meio dia, quando pode prestar-se apenas à leitura uma vaga atenção, e quando portanto se querem livros de enredo ligeiro e risonho, que nem resolvam problemas, nem arrepiem os nervos.

As Astúcias de Namorada estão escritas há largo tempo. As aventuras do seu manuscrito davam assunto a outro romance. Tem de curioso o ser o seu entrecho baseado sobre um fato sucedido realmente em Lisboa. Há de haver leitores que o taxem de inverossímil, pois saibam que é verdadeiro. Mais uma vez tem razão Boileau.

Le vrai peut quelquefois n’etre pas vraiseblable.

O romance que fecha o volume, e que se intitula Um melodrama em Santo Tirso, ponho-o aqui a título de curiosidade arqueológica. Foi a minha estréia no jornalismo. Fundara-se a Gazeta de Portugal. Eu tinha conhecimento pessoal do seu proprietário, Teixeira de Vasconcelos. Procurei-o para lhe ler o romance. Ele ia sair. -Deixe-me ver alguma coisa que lhe pareça melhor, disse-me ele. Li-lhe tremendo a cena em que Eduardo descreve as fisionomias dos literatos lisbonenses. Teixeira de Vasconcelos riu-se, e tirou-me das mãos o manuscrito.

-Il y a quelque chose lá, continuou ele, isto para estréia basta. O seu romance há de ser publicado.

E foi. Estava eu batizado folhetinista.

Hoje, relendo o romance, sorrio-me das ingenuidades do principiante, e, para conseguir desculpa do leitor, vejo que não tenho remédio senão dizer-lhe retrospectivamente com Alfredo de Musset.

Surtout considérez, illustres seigneuries

Comme l’auteur est jeune, et c’est son premier pas.

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ASTÚCIAS DE NAMORADA

Havia baile, ou antes sarau dançante, numa casa em Almada.

Num pequeno jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos pendurados sobre o rio, vinham os grupos dos convidados descansar um pouco das polcas e das valsas, respirar, e relancear os olhos pelo delicioso panorama do Tejo, em cujas águas traçava a lua como que uma estrada argêntea. De quando em quando enchia-se o jardim de risos, de segredinhos; a lua iluminava por entre as folhas roupas alvejantes, que passavam flutuando como o véu dos silfos; depois pelas janelas abertas da sala saía uma bafagem de baronia, proveniente dos primeiros compassos duns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolfavam-se em turbilhão pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitário, mas não silencioso; porque nele se escutava o rumorejar da brisa, o eco da música do baile, e o murmúrio do rio que gemia docemente em baixo nas fragas.

Num dos intervalos das polcas, e quando o jardim se povoava de novo com os fugitivos do baile, um par, mais fatigado talvez que os outros, veio sentar-se numa espécie de caramanchão, que ficava na extremidade do jardim, mais próximo da orla do rochedo, e por conseguinte quase suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as águas. Devo retificar o que disse; não foram ambas as pessoas indispensáveis para formarem um par, não foram ambas as pessoas que se sentaram; só o fez uma senhora de vinte e cinco anos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos rasgados e cabelos negros, que cintilavam como o ébano à luz brilhante da lua cheia.

O cavalheiro ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter visivelmente proporcionado um lugar junto de si, como se podia deduzir do modo como aconchegou o vestido, fazendo ocupar à crinoline o menos espaço possível; mas essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu braceiro não ousou percebê-las, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda que os seus olhos ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando esta o não podia ver, denunciavam que não era a indiferença que o impedia de aproveitar o favor que se lhe queria conceder.

E contudo esse tímido moço estava na idade em que esses favores se ambicionam com mais ardor do que aos trinta e cinco anos a pasta de ministro, estava na idade em que se devaneiam escadas de seda flutuando ao sopro das auras, serenatas interrompidas por um amante cioso, amores aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter um sorriso, uma flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só ao pensar quantas vezes se teria acendido o farol de Hero antes da terrível noite, em que a morte, envolta em horrendas vagas, segundo a admirável expressão de Bocage, arrojou um cadáver lívido aos pés da torre, em que ainda não expirara o eco dos beijos da antecedente noite.

E o tímido rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma palavra qualquer, que lhe não ocorria em presença dessa formosa senhora, cujos pés desejava beijar; e pensava que imensa felicidade no seria a sua, se em vez de estar sem ânimo, embaraçado e vermelho, diante dela, estivesse na outra margem do Tejo, e tivesse que o atravessar a nado para cair ofegante e exânime junto desse adorado vulto. Então não seria necessário falar; a sua palidez, os seus olhos cheios de amor diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o ensopado por causa dela, lhe não dissesse alguma coisa que lhe desembaraçasse a língua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois corações, que ansiavam por se unir.

A gentil senhora esteve um instante olhando para ele com um sorriso meio despeitado, meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva branca ainda não parecia suficientemente alisada, meneou a cabeça com um gesto encantador, que fez ondular as suas tranças negras, e que espalhou na atmosfera um aroma inebriante, aspirado com delícias pelo tímido moço. Depois voltou os olhos para o rio, encostou a face à mão enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro magnífico.

A noite estava linda, uma destas noites de luar, como o cálido estio as envia aos países meridionais. No céu dum azul suavíssimo, algumas nuvens, volteando em torno da lua, recortadas em mil arabescos pela brisa noturna, embebidas todas no cândido fulgor do astro da noite, pareciam as maravilhosas ondas do véu luminoso que Febe arrasta pelo firmamento, em noites assim lânguidas e serenas. O Tejo desenrolava a sua imensa toalha líquida, prateada no centro pelo luar, e negra junto do cais, ou à sombra dos mastros dos navios imóveis nos ancoradouros. Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria à beira do rio, e pelas faldas das suas sete colinas. As longas fileiras dos seus candeeiros de gás formavam à borda do Tejo como que uma fila de chamas. Alguns barcos de pescadores deslizavam silenciosamente, soltando ao sopro da brisa as suas velas brancas.

Este panorama, que só tem rivais na baía de Nápoles ou na enseada de Constantinopla, devia fascinar quem o contemplasse, como a gentil senhora em quem falamos, do caramanchão dum jardim, cheio de árvores, onde expiravam os últimos ecos duma valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, lutava com os luminosos reflexos, que dimanavam dos lustres, cintilando nas salas.

Parecia ela efetivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a voz trêmula e profundamente comovida do seu jovem companheiro a fez estremecer.

Essa voz, toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:

-Que... linda... noite! -Lindíssima, não é? respondeu ela, voltando para o seu interlocutor o rosto ainda encostado na mão, o que lhe permitiu erguer os olhos para ele sem levantar a face, dando assim às pupilas uma expressão voluptuosa, que encerra um encanto irresistível, um magnetismo fascinador... Como que parecem flutuar na atmosfera todos os sonhos dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo aquele bote, que resvala à flor das águas, como um cisne da noite? Pensava se seria esse o barco de Lamartine, e se levaria lambem dois amantes, que fossem murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que tanto nos encantam, quando o autor do Lago as traduz na melodiosa linguagem da sua poesia.

-Ah! bem sei, respondeu o desastrado: Ainsi toujours possés vers de nouveaux rivages...

-Oh! meu Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os versos, mas, como não quero privá-lo do prazer de os recitar, peço-lhe que me acompanhe à sala, e permito-lhe depois que venha de novo confiar à lua e ao Tejo as inspirações de Lamartine.

E a formosa menina, rubra de despeito levantou-se, e tomou o braço do seu interlocutor, que ficara fulminado por aquela inesperada apóstrofe, e que debalde tentava balbuciar umas palavras sem nexo.

Frederico era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e três anos, duma gentileza verdadeiramente notável, dum espírito inteligente e cultivado, duma bondade proverbial, mas também duma timidez invencível. D. Lucinda, a gentil senhora que entra neste momento na sala, pudera apreciar as brilhantes qualidades de Frederico, ouvindo-o conversar desembaraçadamente em uma reunião íntima, onde o seu acanhamento não tivera motivo para se revelar. Deslumbrada por esse esplendido conjunto de predicados, Lucinda tentara fixar a atenção do gentil moço, e a coquete conseguira-o em breve, mas, quando se tratara de dar o passo decisivo, manifestara-se toda a timidez do espírito virginal de Frederico. Era o seu primeiro amor, e só os tolos conseguem atravessar afoitamente essas colunas d’Hercules. Lucinda, experimentada nessas questões, compreendera primeiramente o embaraço do mancebo, e, lisonjeando-se com isso, entendera também que o devia auxiliar. Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda mais, se me permutem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda fosse uma tímida menina, que corasse como ele corava, que tremesse como ele tremia, os olhos de ambos falariam tanto, as pálpebras mesmo, abaixando-se a um tempo, teriam uma linguagem tão eloqüente, que afinal os lábios ver-se-iam obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma. Porém, como podia suceder semelhante coisa, se o olhar ardente de Lucinda deslumbrava aquele em quem se fitava, se a sua tranqüila superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer a cada instante, com o receio de desempenhar o papel de criança ridícula diante dessa esplêndida mulher?!

O ridículo, que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que avançam como fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraqueza, assustando Frederico que temia vêlo diante de si, assaltava-o quando ele para lhe fugir retrogradava sem ter ânimo para obedecer ao fervido olhar, que lhe dizia: “Avante”. O pobre rapaz, vendo assim de súbito desfeitos em pó os seus planos estratégicos, preferiria um abismo abrindo-se-lhe debaixo dos pés a ouvir as palavras friamente zombeteiras de Lucinda.

Entretanto o baile findara, e os lisbonenses preparavam-se para atravessar o Tejo. Frederico e a família de Lucinda eram as únicas pessoas, que tinham de empreender essa excursão. Era pouco mais de uma hora quando Lucinda e sua mãe puseram as capas, e foram arrancar às delicias do whist o patriarca da tribo, que saiu furioso de ter de se embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez rob consecutivos. Frederico, depois da cena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a mãe de Lucinda, sabendo que era ele o único dos cavalheiros presentes que regressava a Lisboa, reclamou sem cerimônia o auxílio do seu braço para descer a íngreme calçada. Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar no chapéu, e a seguir, suportando o peso da sua volumosa braceira, o pai de Lucinda, que se apoderara desta para lhe explicar durante o caminho as infernais combinações que tinham dado em resultado a derrota memorável dessa noite, verdadeiro Waterloo nos seus anais de jogador de whist.

As circunstâncias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao cais de Cacilhas, notou-se que apenas um barco se balouçava nas águas negras, que batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se pelos barqueiros, que dormiam no fundo do bote, e, quando estes se levantaram, reconheceu-se que eram os remadores de Frederico. Os venerandos progenitores de Lucinda protestaram, em alta voz, contra a insolência dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao relento nas pedras úmidas do cais. Frederico ofereceu imediatamente o seu bote. Não era possível proceder de outro modo. Por infelicidade o barco era vasto bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se obrigado a entrar e a sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem ousava levantar os olhos. Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou silenciosamente à flor das águas.

Os dois velhos tinham-se sentado na popa do barco. O vento, sem ser forte, era suficiente para enfunar a vela e para dar ao bote um leve balanço, que foi suavemente acalentando os dois esposos. Estes principiaram a bocejar alternadamente; depois foram deixando pender as cabeças até que tocaram quase nos joelhos. Levantaram-se a um tempo, e olharam espantados. com os olhos meio abertos, para o céu azul. Depois os olhos fecharam-se de todo. e os cumprimentos recomeçaram. Pareciam dois mandarins d’étagére. Frederico e Lucinda a custo sofreavam o riso, e trocavam entre si olhares de inteligência, que pressagiavam uma reconciliação. Os dois velhos resmungavam palavras ininteligíveis, e recostavam a cabeça para trás, de forma que a cabeça, em vez de lhes descair de popa a proa, descaía-lhes de bombordo a estibordo, e de estibordo a bombordo, movimento bem combinado, que produziu um abalroamento, que os despertou a ambos.

-Senhor Azevedo, bradou a matrona indignada, não tem vergonha de vir a dormir no bote? Já me estragou as flores da cabeça.

- Senhora D. Leocádia, respondeu o velho com dignidade, veja se dorme com mais cautela para não amarrotar o chapéu das pessoas, que vão acordadas a cismar nos seus negócios. Estas apóstrofes promoveram a explosão das gargalhadas, já muito reprimidas, de Frederico e de Lucinda. O velho mirou-os com espanto, embrulhou-se mais na manta, encostou-se para trás e principiou a ressonar.

-Este Azevedo sempre foi assim, disse a velha esposa fazendo coro com os dois, dorme em toda a parte... Como ele ressona!

E dizendo isto, a boa senhora olhou com desprezo para seu marido, deixou descair a cabeça, e entrou no dueto ressonando igualmente.

A brisa refrescara, e, enfunando a vela, fazendo tombar o barco para um lado. Os marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de Lucinda.

Já vêem que o acaso continuava a fazer das suas.

Foram calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a sua plácida luz pelo céu azulado e pelas águas do rio. A face formosa da antiga Diana refletia-se no espelho vacilante das ondas encrespadas pela vibração. Ouvia-se o chapinhar das águas batendo no costado de uma fragata imóvel; um bote de remos passou rente do barco onde iam os nossos heróis. Os remos, sulcando a água, erguendo-se e recaindo de novo, pareciam arrancar do seio do rio as palhetas luminosas com que o matizava a lua, e que depois lhe devolviam numa chuva de alvas pérolas. Um marinheiro, recostado ou antes deitado à popa, com os olhos vagamente embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe vibrar nas cordas algumas dessas melancólicas toadas das nossas canções populares. Muito tempo a corda fremente da guitarra enviou de longe aos ouvidos de Frederico e de Lucinda, a sua melodia toda impregnada numa vaga tristeza, e expirou ao longe nuns quebros de indizível suavidade. Frederico suspirou.

-Pensa nos seus amores? perguntou Lucinda sorrindo.
-Amores, balbuciou ele, como, se os não tenho?
-Não os tem? Quem não tem amores aos vinte e dois anos?
-Eu que sou um deserdado da fortuna, eu para quem a natureza, mãe benéfica de todos, sempre se tem mostrado implacável madrasta, eu para quem as flores não tem aroma, nem luz brilhante o sol, nem suavidade melancólica o luar.

-Oh! meu Deus, exclamou Lucinda, quererá imitar esses Obermans da moda, que se declaram céticos, quando ainda não tiveram nem sequer uma ilusão, quanto mais as decepções que alardeiam?

-Não, minha senhora, tornou Frederico, tenho muitos ridículos, mas desse livrou-me Deus. Porém sou um destes entes malfadados, que nunca ousam levar aos lábios a taça que se lhes apresenta cheia a trasbordar; uma dessas abelhas, a quem as rosas mostram o cálice entre aberto, e que volteiam em torno delas, sem ousarem ir delibar o seu mel na redoma flagrante que se lhes apresenta. Sou como Rousseau, deitando as cerejas no avental de mademoiselle Galley, sem ousar ver os lábios mais vermelhos do que os frutos, convidando-o e atraindo-o. E o que fez mademoiselle Galley ao desastrado filósofo? Voltou-lhe as costas, e foi zombar dele com as suas companheiras, deixando esse Tântalo de amor a amaldiçoar a sua falta de audácia. Esse riso argentino, que Rousseau ouviu talvez trepado ainda na cerejeira, ouço-o eu a cada instante nos lábios, que poderiam matar com duas palavras meigas esta sede que me devora.

-E essas duas palavras ainda ninguém as proferiu?
-Ninguém, respondeu Frederico suspirando.
-E com tudo, tornou Lucinda, conheço eu uma pessoa em cujos lábios elas fremem.
-E quem é essa pessoa? perguntou ele ansioso.

Lucinda estacou. Decididamente o próprio selvagem Rousseau perceberia melhor.

-Alguém, cujo nome lhe não posso dizer.
-Oh! diga ao menos a primeira letra. Lucinda fez-se vermelha de cólera, e mordeu os lábios impaciente. Súbito uma idéia qualquer, travessa de certo, iluminou-lhe o espírito, porque os lábios, que mordera para ocultar o despeito, mordeu-os afinal para sufocar o riso. Depois respondeu com ar de misteriosa confidência:

-Diga-me; não passa freqüentes vezes pela rua de...?
-Por que? perguntou Frederico espantado
-E, levando os olhos baixos até ao meio do comprimento da rua, quando chega a este ponto não os levanta instintivamente, e não os crava numa varanda onde não há só flores nos vasos?

-Assevero-lhe, minha seu senhora... tornou Frederico estupefato a mais não poder ser.
-Oh! Eu sou discreta.
-Juro-lhe...
-Não jure, mas prometa-me apenas uma coisa.
-Qual é?
-Escolher-me para confidente dos seus primeiros amores.
-Mas, minha senhora... bradou Frederico, desesperado por ver fugir-lhe o momento que tanto ambicionara, e que julgara já tão próximo.

-Silêncio, respondeu Lucinda pondo-lhe a mão alva e tépida no braço, não vê que estamos em Lisboa?

Frederico não sabia se havia de beijar ou morder essa mão travessa, que lhe aproximava da boca a taça do filtro suave do amor, para lho furtar depois aos lábios calcinados. Afinal não fez nem uma nem outra cousa.

Mas efetivamente estavam em Lisboa. Nas águas negras do Tejo, aqui e ali ainda prateadas por um raio da lua, que se insinuava por entre a intrincada floresta dos mastros das embarcações, ondeava o reflexo trêmulo dos candeeiros do gás. Ao choque do barco parando de súbito, acordaram estremunhados os progenitores de Lucinda. Frederico ainda esperava ao menos poder sentir o doce peso da gentil menina, ajudando-a a saltar em terra. Mas a volumosa mamã ofereceu-lhe o braço, e em medos e tremores reteve-o tempo bastante, para que Lucinda, ligeira como uma gazela, saltasse para o cais, pousando apenas ao de leve os dedos finos e alvos no braço dum dos remeiros.

Frederico despediu-se pouco amavelmente dos seus companheiros de viagem, e teve vontade de mandar passear Lucinda, quando esta lhe disse ao ouvido:

-Não se esqueça do que prometeu.

É verdade que o pobre rapaz, voltando a cara com um gesto de amuo, não pode ver o longo olhar, apenas levemente malicioso, com que Lucinda o seguia.

Na véspera desse dia, em que se passara a cena que narramos recebera Lucinda duma sua amiga de colégio a seguinte carta:
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Minha querida amiga

Que saudades eu tenho do nosso tempo de colégio! daqueles bons serões que passávamos juntas, quando todas já estavam adormecidas, enquanto nós deixávamos divagar a nossa imaginação por todos os assuntos, por todos os sonhos, por todas as fantasias deste mundo! como eu tenho impressa na memória a tua palavra eloqüente e colorida, e a audácia com que tu, com a superioridade da tua inteligência, julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a assustares-me a mim, pobre criança, tímida e frágil, que não ousava seguir-te nos teus vôos, e que ficava, pálida, vendo-te pairar por esses espaços desconhecidos, e contemplando na chama da tua pupila um reflexo do fogo íntimo, que te devorava.

Creio que foi mesmo essa diferença de gênio, que tornou mais forte a nossa ligação. Tu consagraste à pobre órfã a amizade protetora das mães, eu tive por ti a veneração e os extremos de filha. Eras o roble e eu o vime, ou antes a hera que me enroscava a ti.

Mais velha do que eu, saíste primeiro do colégio, e deixaste a pobre criança, isolada no meio de companheiras com as quais sempre me ligara pouco. Ah! como o colégio então me pareceu triste e sombrio, como a regente me pareceu insuportável, como olhei com raiva e frenesi para os altos muros do jardim, e que ódio tive à hora do recreio, outrora tão alegre, porque eu, fugindo às brincadeiras das meninas mais novas, tu às frívolas conversações das da tua idade, procuravam-nos uma à outra, e passávamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e a explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite..

Depois, os meus dias de júbilo foram aqueles em que recebia as luas cartas: metia-as no seio, e esperava com impaciência a hora de descer ao jardim para as poder ler à vontade, longe do frívolo ruído dos jogos das educandas. Assim que ressoavam na pêndula as bem-aventuradas vibrações, aí descia eu toda jubilosa a escada, e ia esconder-me naquele caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto daquela fresta gradeada por onde às vezes espreitávamos os raros passeantes que atravessavam a nossa rua solitária, tu achando sempre no teu espírito fértil um epigrama para arrojares aos pobres homens que passavam sem suspeitarem a rápida análise a que num dado instante ficavam sujeitos, eu rindo, como uma louca, das tuas chistosas malícias.

Aí lia pois, as tuas cartas, daí te seguia nesse mundo que me pintavas tão belo, como o espaço imenso assusta a avezinha apenas emplumada, que lança a cabeça fora do ninho, e que segue em parte com inveja, em parte com receio os graciosos vôos que a mãe descreve nos ares, para a convidar a segui-la. Mas a fascinação do teu espírito vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta nas mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que voltejavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que ti, incorrigível coquete, te comprazias tanto em requeimar as asas.

Daí resultou que esperei ansiosa, bem que timidamente, a minha saída do colégio, e que os prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo cor de rosa, que está bem longe, devo confessá-lo, da realidade tal como ela se me tem mostrado nos quinze dias que já passei fora do ninho da nossa infância.

Efetivamente minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me para a sua companhia, muito contra vontade, segundo me parece. Não porque ela me não tenha afeto e pelo contrário; mas minha tia, ótima senhora no fundo, tem um terrível sestro; aos cinqüenta anos quer ainda inspirar amor, e combate, com uma energia desesperada, as asserções da sua certidão de batismo. Ora, uma sobrinha de dezenove anos, filha duma sua irmã mais nova, é um terrível documento, que protesta contra os cabelos dum ébano artificial, e contra a rebocada lisura do rosto de minha tia.

Ah! que vida vai ser a minha, se não acho jeito de diminuir a minha idade, e de usar de novo fato curto. Minha tia, que ainda aspira dançar com suficiente ligeireza, e que não deseja entrar no número das suplentes das contradanças, que só se convidam quando falta algum par para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes, porque são, diz ela, perigosos para as meninas da minha idade, até contigo mesma, perdoa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso razões frívolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco anos que não podem ficar bem à amiga de colégio duma menina tão nova como eu devo ser, segundo os meus cálculos.

Aqui vivo, pois, nesta da rua de... mais triste do que no colégio, depois da tua partida, sem chegar uma única vez à janela lendo, bordando, desenhando, ou conversando com o meu piano, enquanto minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos os cosméticos imagináveis, passa o tempo à janela, travando cem namoros por dia, e apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda se coloca de preferência, um rosto juvenil, que ilude um ou outro passeante ocioso, que anda procurando pelas janelas quem lhe aceite as homenagens.

O que me consola um pouco da minha vida insípida é um grande jardim, cheio de sombra e de mistério, de flores e de aromas, onde passo as tardes, e onde muitas vezes me esqueço e me esquecem à noite, ficando eu largas horas cismando ao luar, e deixando-me às vezes surpreender pelos primeiros clarões da alvorada.

Aí tens a vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho razão para me lembrar com saudades do colégio? Escreve-me tu ao menos, já que minha tia se obstina em me ter reclusa, e em não me permitir a doce consolação de te ver e de te abraçar; escreve-me, porque só as tuas cartas me ajudarão a suportar o fastio desta existência.

Tua boa amiga
Adelaide.
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Comparem os leitores o que nesta carta se diz com as indicações dadas a Frederico por Lucinda, e perceberão qual era a travessa idéia da maliciosa rapariga.

Renunciemos a descrever o despeito de Frederico, quando teve uma prova da completa indiferença de Lucinda no desprendimento com que ela se fazia intérprete dum outro amor. Depois folgou de ter encontrado um pretexto para desculpar consigo mesmo a sua desastrada timidez, e louvou-se de não ter avançado a ponto de se ver colocado numa posição ridícula com pessoa que a aproveitaria com tão boa vontade. A todos estes sentimentos, que primeiro lhe tumultuaram no cérebro, sucedeu o amor próprio ofendido. Pois que! dizia ele, é de mármore esta mulher? Está junto de mim naquela noite voluptuosa, toda impregnada de lânguidas emanações, de vagos murmúrios, de maviosíssimos fulgores, sente a minha respiração abrasada, crava os seus olhos nos meus, aperta as minhas mãos trementes, deixa-se embalar comigo, comigo como uma crioula na rede, pelo movimento lascivo das ondazinhas do Tejo, e nada disso a comove, e lhe faz perder por um instante ao menos, os seus hábitos de coquetterie? A própria Leonora Falconieri de Feuillet sentiria uma vaga impressão amorosa naquele bote que resvalava ao lume d’água, todo banhado de luar, abrindo no rio um sulco fosforescente e Lucinda, depois de me ter abrasado toda a noite com o fogo infernal das suas pupilas, acaba por me fazer friamente a confidência do amor duma das suas amigas? Oh! coquette.

Pois bem, continuava ele, hei de lhe fazer a vontade, hei de namorar essa mulher desconhecida, e será Lucinda a minha confidente? Oh! então, quando não tiver o receio do ridículo que acomete um pretendente desastrado, então serei audacioso, então falarei com eloqüência, então, far-lhe-ei sentir bem tudo o que ela perdeu, torturá-la-ei se não com os espinhos do ciúme, pelo menos com os da vaidade ferida, triunfarei... e talvez conseguirei dessa forma atraí-la e fasciná-la, como ela me fascinou a mim.”

E o modesto moço, acabando este longo monólogo, vestiu-se, alindou-se, e saiu com uns modos conquistadores, para passar pela rua de...

Logo no principio da rua ele ergueu a cabeça, e principiou a revistar as janelas; o coração pulsava-lhe com violência, mas animou-se com a idéia de que se não veria obrigado a dizer uma só palavra, e um olhar não era coisa que muito custasse à sua timidez rebelde.

Efetivamente no sitio designado estava uma senhora à janela. Frederico fitou os olhos nela, e achou-a linda, apesar da distância ou por causa dela; voltou a cabeça depois de passar; e encontrou de novo os olhos da galante menina, que logo os desviou o mais depressa que pode, mas sem que pudesse evitar o ter sido surpreendida em flagrante delito. Frederico afastou-se triunfantemente.

Uns poucos de dias se repetiu esta manobra, sem que Frederico ousasse passar dessas demonstrações visuais, mas continuando com intrepidez o seu passeio diário. Afinal chegou a ocasião de ir contar a Lucinda os seus novos amores. A Sra D. Leocádia d’Azevedo encontrou-o na rua, e convidou-o para jantar.

À tarde desceram todos ao jardim, que tinha muro para a rua, e um pequeno mirante cercado de madressilvas. Os convidados dispersaram-se em grupos, e Lucinda e Frederico acharam-se sós no mirante.

A vista que dali se gozava era linda; via se uma parte da cidade baixa, e do lado do Ocidente a vista estendia-se desassombrada sobre uma porção do rio, que se prolongava até ao extremo horizonte.

Era ao cair da tarde; o sol atufava-se nas águas, e iluminava com um resplendor de ouro e púrpura o horizonte, semeando de áureas palhetas o Tejo, rodeando com um nimbo luminoso o vulto distante da Ajuda, e mais além uma sombra tênue, uma espécie de vapor doirado, que, pela posição, devia ser vago perfil da torre de Belém.

A brisa fresca da tarde, ondeando os cabelos de Lucinda, e meneando brandamente os ramos e as folhas da madressilva, enchia os ares de perfumes. Frederico cismava.

-Esqueceu-se da sua promessa? perguntou Lucinda.
-Ainda se lembra dela? tornou Frederico amargamente.

Um relâmpago de alegria iluminou os olhos da gentil senhora.

-Se lembro, tornou ela, sou uma credora inflexível.
-Pois bem, respondeu Frederico, corando muito, e fazendo um esforço sobre si mesmo deixe-me agradecer-lhe o ter feito a felicidade da minha existência.
-Sim? tornou ela ironicamente. Então ama-a loucamente?
-Se a amo! tornou ele cravando os olhos ardentes na formosa menina que tinha diante de si, tanto que nem eu supunha que se podia amar assim. Oh! mas é que também é uma criatura celestial, tão bela que os anjos a invejam.

Lucinda mal podia sofrear o riso.

-E essa beleza, é provavelmente como a de Marília, tornou ela, para a pintarem não bastam as tintas da terra, são necessárias as do céu. Por conseguinte nem ouso pedir-lhe que ma
descreva.

-Por que? Não a conhece! perguntou Frederico espantado. Lucinda embaraçou-se, mas prontamente recuperou o sangue-frio.

-Somos amigas íntimas, como sabe; contudo não desgostaria de poder apreciar o seu talento de pintor.

Frederico fitou os olhos nos dela, como se tentasse prescrutar o seu pensamento. Lucinda desviou os seus.

Uma idéia, que ele julgou louca, passou pela mente de Frederico.

- Vou tentar, disse o tímido rapaz, com mais animação do que a que lhe era habitual, e cravando pela primeira vez com firmeza e ardor os seus olhos no rosto de Lucinda; e para me ser mais fácil a tarefa, permita-me que lhe narre como e onde me senti verdadeiramente deslumbrado pela sua rara beleza, e como ousei dizer-lhe com os meus olhos o amor imenso que me enchia a alma. Era à hora do sol posto; ela estava com a face encostada à mão e como V. Exa. neste momento. Nos seus olhos negros parecia flutuar a vaga tristeza do crepúsculo; os cabelos, arfando suavemente com a brisa, enquadravam-lhe uma fronte alva e límpida, tão límpida, que de vez em quando parecia que nessa testa inundada de luz se via passar a vaga sombra do pensamento. Rodeava-se de flores, que formavam ao seu doce vulto uma profunda moldura. Ao vê-la assim, melancólica como o anjo da tarde, suave e meiga, como a anjo dos celestes amores, pensei que a ventura suprema seria viver a seus pés, e enviando-lhe a minha alma num olhar, votei-lhe um afeto, profundo e ardente como os seus negros olhos. Lucinda ouvia-o arrebatada; fora isso mesmo o que ela desejara, fora isso mesmo o que ela tivera em vista acenando-lhe com essa miragem de amor da velha tia, amor nada perigoso, porque, da mesma forma que a miragem, de longe podia fascinar, mas de perto conhecia-se o areal... dos cinqüenta anos.

Se Frederico se deixasse arrastar pelo demônio da inspiração, e levantasse um pouco mais o véu de gaze com que encobrira a sua declaração, Lucinda poderia auxiliá-lo, confessando-lhe o seu ardil, e quebrando dessa forma o gelo. Mas infelizmente a maliciosa rapariga, um instante docemente perturbada pela eloqüência de Frederico, pensou de súbito, quando ele findou o seu trecho, na fictícia inspiradora desse memorável discurso, e deu aos seus lábios uma expressão de riso reprimido, que bastou para que o espírito sensitivo de Frederico logo se retraísse, e tremesse de ter avançado tanto.

Lucinda percebeu o erro, e quis remediá-lo. Já era tarde. Frederico retirou-se desgostoso. Ela, vendo-o partir, bateu o pé com despeito. A coquete ia-se enleando nas suas próprias redes.

- É necessário que esta comédia acabe, murmurou ela com as lágrimas nos olhos, ainda que eu tenha de me lançar nos seus braços, como uma doida; porque sinto agora essa comoção desconhecida, de que tanto me falavam, e de que eu tanto zombava. Amo. Não conhecem os leitores o caráter de Lucinda, se supuseram que ela se importasse um instante só com o desejo que a tia de Adelaide manifestara de não se relacionar com a amiga de colégio de sua sobrinha. Foi ela mesma que tomou a iniciativa; apresentou-se em casa da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza da dona da casa, lisonjeou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto e bom som que Adelaide era no colégio uma criancinha, de que ela fora não a companheira, mas a protetora, a segunda mãe. Esteve quase dizendo que a sua amiguinha entrara para o colégio ainda de mama. Estas asserções iluminaram num momento o rosto da tia, dissiparam como por encanto a sua frieza, e deram a Lucinda o lugar de amiga intima. Esta, afetava sempre tratar D. Mariana com familiaridade, fazia-lhe confidencias imagináveis, e pedia-lhe igual franqueza. A boa senhora caiu no laço, e, corando pudicamente, principiou a narrar aventuras não menos supostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre à luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinela à porta da casa, via a dois passos de distância os encantos que o haviam fascinado da altura dum segundo andar.

D. Mariana devia ter sido formosíssima; e dessa formosura extinta conservava olhos, onde ainda se não apagara de todo o sacro fogo. Eram eles o núcleo em torno do qual se agrupavam os feitiços artificiais. Notava, contudo, Lucinda, uma extraordinária tristeza em Adelaide. Preocupada e melancólica, a loira criança, em vez de procurar a companhia da sua amiga de colégio, evitava-a pelo contrário, e parecia estar cada vez mais afeiçoada à solidão do seu jardim. Debalde Lucinda tentava penetrar o segredo desta preocupação. Adelaide era impenetrável. Lucinda, devemos confessá-lo, não insistiu muito, e, pensando unicamente no meio de deslindar a comédia, cuja teia imprudentemente urdira, depois de cismar alguns instantes na extraordinária melancolia da sua amiga, não fez mais esforços para penetrar o mistério.

Os seus amores é que progrediam maravilhosamente. Frederico falava-lhe do seu amor tão fervidamente, acompanhava as suas confidências com tão ardentes olhares, que não se podia duvidar que, apesar de toda a sua timidez, um levíssimo impulso bastava para quebrar os cordões da máscara, e transformar numa declaração franca e discreta, as confissões que se trocavam enigmaticamente, por meio dessas bem aventuradas confidências e que se comentavam e explicavam pelo fogo das pupilas.

Contudo o momento decisivo aproximava-se, estava já por tal forma retesada a corda do arco, que por muito que Frederico hesitasse em despedir a flecha inflamada, ela partiria espontaneamente, num instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda julgara que esse momento cobiçado era chegado enfim, vinte vezes vira Frederico apertar-lhe a mão convulso, e mover os lábios como se fosse a proferir a palavra que rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte vezes a mão lhe descaíra gélida, e vinte vezes os lábios se tinham cerrado sem balbuciarem um som. E contudo não era a timidez de Frederico o obstáculo; nesses instantes estava ele nesse estado de ebriedade doida, em que se não pensa, em que os sentidos, o espírito, a imaginação, tudo se acha exaltado a tal ponto que o mais tímido se arroja a audácias que depois o fazem estremecer. E como esse instante rápido, em que nas batalhas o fumo da pólvora, o troar da artilharia, os gritos de vitória, o clangor das trombetas exaltam os próprios covardes e os arrojam, momentaneamente intrépidos, ao centro das fileiras inimigas. Lucinda estava também demasiadamente comovida para que pudesse gelar esse entusiasmo fervente com um sorriso irônico, uma palavra mordaz. Mas parecia que uma voz desconhecida, uma sombra fatal vinha murmurar ao ouvido de Frederico algumas palavras sinistras, e, remorso ou receio, Frederico ficava melancólico e sombrio, como os convivas de Lucrecia Bórgia, ouvindo no meio dos seus cantos bachicos ressoarem as notas fúnebres do coro dos monges.

Lucinda não percebia esta hesitação de nova espécie, e receando vagamente um novo perigo, resolvera dar à comédia o seu desenlace.

Duas palavras de Frederico decidiram-na de todo.

Um dia, depois de terem feito mil floreados sobre o amor a propósito ou antes a despropósito de intangível, da vaporosa Laura daquele Petrarca inconstante, Frederico deixou pender a fronte melancólica, e murmurou:

-Pobre criança!

Lucinda ia desatando a rir; a frase “pobre criança” aplicada à qüinquagenária tia era dum efeito
cômico, ainda realçado pelo tom sentimental do romântico mancebo.

Mas, mesmo tempo, Lucinda sentiu um inexprimível júbilo. Essa frase queria dizer “Pobre vítima, que julgas ser o alvo dos meus pensamentos, e que não és mais do que o escudo, que me serve para conquistar, com mais resguardo, o amor da mulher a quem adoro”. Assim, essas suas palavras eram uma confissão explicita do que se passava na sua alma; encerravam em si a chave do enigma.

Porém, Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse indefinidamente no
peito de Frederico Nunes; julgara que apesar da distância, o seu namorado chegasse a tomar a
sério o amor de D. Mariana. A pretensiosa ia podia parecer uma galante senhora, bem
conservada nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre julgara Frederico cúmplice do seu
amoroso artifício. Vira que ele precisava dum meio, por mais tênue que fosse, para falar sem
receio, proporcionar-lhe a ocasião de o obter. Se ele a aceitasse, é porque realmente a amava.
Assim sucedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de ser inútil, era
também prejudicial, tratou de o dilacerar.

Para isso dirigiu-se a D. Mariana, e disse-lhe que um mancebo elegante que nutria por dia a
mais violenta paixão, que se julgava correspondido, se podia acreditar nos ternos olhares com
que da janela o favorecera, sabendo a amizade que as ligava, e sendo da intimidade de
Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua amiga uma entrevista, em que lhe pudesse
declarar o seu afeto e o desejo que alimentava de o ver coroado por um feliz himeneu. D.
Mariana caiu das nuvens. Tinha distribuído os seus olhares ternos com tanta prodigalidade que
não sabia qual dos felizes mortais contemplados na distribuição, queria dar ao crepúsculo da
sua vida uma ventura raras vezes reservada para essa idade, a dum casamento por amor.

Escusamos de dizer que, depois da resistência pudica e indispensável, D. Mariana consentiu na
entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque D. Mariana, alegando a maledicência das
vizinhas, mas na realidade para não ter que afrontar senão a luz mentirosa das velas, exigiu
obstinadamente que fosse a essa hora. Convencionou-se que Lucinda daria a chave do jardim
ao aventuroso namorado, e que passaria aquela noite em sua casa para entreter Adelaide, e
velar assim para que não fosse perturbada a amorosa entrevista.

Combinado por este lado o plano estratégico, Lucinda dirigiu-se a Frederico. Disse-lhe que a
sua amiga desejava ardentemente falar-lhe, que o encarregava de lhe dizer que era tão urgente
a necessidade duma entrevista que a obrigava a por de parte a modéstia feminina, e a dirigir-se
a ele, fiando-se na sua honra de cavalheiro. Demais uma senhora respeitável assistirá à
entrevista. Concluiu dizendo-lhe que era na seguinte noite que devia realizar-se a entrevista,
ensinando-lhe a topografia da casa e dando-lhe a chave do jardim.

Lucinda dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde tentasse reprimir os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser esse o instante supremo. Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o susto que teria, ele o tímido moço, de ter uma entrevista com uma mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse caso a coragem do medo.

Efetivamente era esse o caminho que ia tomando as coisas. No primeiro ímpeto Frederico ia arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para longe de si a chave do jardim. Mas a reflexão sobreveio, e o estranho rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela testa, disse com voz firme:

-Irei. É um dever de honra.

Lucinda amaldiçoou os escrúpulos do seu namorado. O destino obstinava-se; a comédia tinha de se representar até ao fim.

Chegou finalmente o dia marcado e esperado com impaciência por D. Mariana. Lucinda andava perturbada, e tanto que nem deu por um redobramento de tristeza que se tornava bem visível no rosto da sua amiga Adelaide, de quem ela se esquecia tanto. Adelaide primeiro fugira a escolhe-la para confidente, porque bem conhecia a sua índole sarcástica, e não queria expor os pobres passarinhos dos seus sonhos a terem a asa magoada por algum epigrama de Lucinda.

Mas pouco a pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por ver que à sua boa amiga era tão completamente indiferente o estado do seu espírito. Adelaide, vendo isto, julgou-se a pessoa mais infeliz deste mundo; tinha na vida, negro o presente, o passado, e o futuro; o presente ensombrava-lho a ciosa preocupação da sua vida, o passado, onde ela se engolfava com júbilo quando a realidade da existência a torturava, enegrecera também com a indiferença de Lucinda, o futuro, esse devaneara-o ela bem dourado, e bem cheio de luz, um sonho rápido e fragrante atravessara-lhe, e perfumara-lhe o viver... mas esvaíra-se bem ligeiro como sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais espessas as trevas, que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.

A amizade, que votava à sua companheira de colégio, e a profunda tristeza que a salteara, venceriam a resolução em que estava de conservar secreto tudo o que se passava no seu espírito, e o receio que tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a indiferença desta não a ferisse mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda andava preocupada, Lucinda nem reparava na palidez da sua amiga. Vir ela passar um dia a sua casa, prometer ficar à noite; e não lhe dirigir durante esse tempo todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma coisa que a pobre Adelaidezinha não podia perceber, e ainda menos, a intimidade súbita que se estabelecera entre sua tia e a sua amiga.

Nesse dia andou aquela toda azafamada a enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabelo, a dispor coquetemente a sala de visitas; Lucinda ajudava-a neste trabalho, e trocava com ela em voz baixa palavras misteriosas. Perguntou Adelaide, espantada de ver tantos preparativos, se esperava alguém nessa noite, recebeu uma resposta seca das duas senhoras e a pobre menina, sufocada em soluços, e não podendo conter as lágrimas, refugiou-se, levando um livro, no seu caramanchão favorito. Aí desafogou, derramou prantos copiosos, nomeou-se, por decreto próprio, a mais infeliz de todas as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que, órfã desde a infância, era destino seu caminhar solitária no mundo.

Entretanto, descia a noite, e dia não pensava em voltar para casa. Lucinda, vagamente inquieta, não se tirava da janela. Apesar das palavras que Frederico dissera, ao receber a chave do jardim, Lucinda conhecia bastante a sua timidez orgânica (se assim podemos dizer) para supor que ele não ousaria nunca transpor o limiar da porta. Embebida nesses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide, e do encargo que recebera de a entreter, enquanto durasse a entrevista. D. Mariana, enebriada por aquela inesperada aventura, colocava as velas de modo, que se conservasse na sala a tíbia luz, aconselhada por Garrett, a penumbra tão útil aos amantes, e duplamente útil, a quem só dispõe desse recurso para combater, com mais ou menos vantagem, os inconvenientes duma certidão de batismo, que já podia entrar na classe honrosa dos documentos históricos.

Lucinda, encostada à janela do seu quarto, cravava os olhos na escuridão, procurando distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez em quando ia espreitar à porta da sala e ria-se. D. Mariana, sentada no canapé, vestida com o fato mais fresco e juvenil, esperava majestosamente a visita daquele a quem os seus encantos tinham rendido. Afinal, Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto numa capa escura, para a porta do jardim. As pulsações febris do seu coração indicaram-lhe, mais depressa do que a vista que era esse o vulto de Frederico.

A noite estava negra; mas um candeeiro de gás, iluminando em cheio a porta do jardim, permitia a Lucinda seguir todos os movimentos de Frederico. Viu-o hesitar, meter a chave na fechadura, tirá-la e afastar-se. Lucinda sorriu-se.

-Deita-a por cima do muro, e foge, murmurou ela.

Mas enganava-se: Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva, tornou rapidamente a meter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou no jardim.

-Está predestinado, murmurou Lucinda afastando-se da janela. Os seus tolos escrúpulos obrigam-no a enterrar-se até à cintura no tremedal do ridículo. E depois quem sabe? Talvez depois de reconhecer a qüinquagenária formosura da Calipso que vai abandonar, o punge mais os remorsos.

E Lucinda desatou a rir. Mas a reflexão veio, e uma sombra de melancolia se lhe espalhou no semblante.

-Esta minha índole zombeteira, murmurou ela, há de ser sempre um obstáculo à minha felicidade. Devo fazer penitência. O ridículo, a que expus os dois atores da cena que se vai passar na sala, é enorme. Eu não o perdoava. Perdoá-lo-á Frederico? Perdoa de certo, perdoa e com que júbilo, em sabendo o motivo que me guiou! Mas não devo deixar passar uma noite sobre o seu ressentimento. Agora mesmo, agora ando esse D. Quixote de donzelas cinqüentonas estar mal-ferido da sua justa cortês, farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino para lhe dizer “Amo-te” e para o consolar com essa palavra só do encantamento da nova Dulcinéia.

E a travessa rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao jardim.

Não havia ainda luar como dissemos, porém, enquanto não surgia a rainha da noite no seu carro triunfal de madre-pérola, as estrelas cintilavam com vivíssima luz no céu azul, e insinuavam os seus raios d’ouro pálido por entre a folhagem das árvores, que a brisa meneava.

Lucinda esteve alguns instantes cismando tristemente. A coquette lamentava talvez o ter-se enleado, para conseguir o seu fim, nesse tão complicado enredo, que afinal a nada remediara, porque se via obrigada a dar o primeiro passo, exatamente como se não tivesse ideado tantas combinações maquiavélicas para obrigar esse tímido César, que podia chegar, ver e vencer, a passar o Rubicão.

Nisto um vulto de homem apareceu, vindo do lado da habitação, cosendo-se com os troncos d'árvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser Frederico.

Lucinda avançou para ele, com o coração a pulsar-lhe violentamente.

-Frederico! balbuciou ela.

O homem parou.

Sou eu, sou Lucinda, continuou a ousada menina nesse momento mais tímida do que ele, eu que venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a confissão que me absolve. Sim di-lo-ei, sem temer que me acusem de imodesta: “Amo-o”.

E as suas mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notável, ou mãos deste se lhe esquivavam, ou D. Mariana, arranjando uma variante à mulher de Putifar, em vez de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.

Mas quando Lucinda passava do espanto à cólera, recebeu um impulso violento que a fez ir, cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro, e ouviu uma voz grosseira e avinhada, que lhe dizia;

-Você, além de ser descarada, é ladra também? Dize-me ternuras, minha Filis, mas larga os tímidos voláteis.

Lucinda soltou um grito terrível, e fugiu como louca na direção de casa. A esse grito somaram-se passos precipitados, que vinham do fundo do jardim. Um outro homem lançou-se às goelas do interlocutor de Lucinda, e uma outra voz juvenil de senhora começou a bradar por socorro.

A este barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim inundou-se de luz. D. Mariana apareceu com esplendida toilette à porta de casa, o causador deste tumulto fugiu por cima do muro, deixando os seus despojos nas mãos do seu contendor, e Lucinda, que ficara ofegante à sombra de uma alta figueira que se aferrava ao muro, pode ver, com doloroso espanto, a seguinte cena.

Frederico vitorioso, mas vermelho de cólera e vergonha, tinha nas mãos, como troféus da sua glória, duas galinhas. A pouca distância estava Adelaide escondendo o rosto nas mãos. D. Mariana ficara como que petrificada, os criados riam e segredavam.

Voltemos agora ao instante em que vimos Frederico desaparecer no jardim.

Os cálculos de Lucinda pecavam pela base. A autora deste enredo não podia acostumar-se a considerar Adelaide,que tinha menos seis anos do que ela, como uma mulher capaz de amar e de ser amada, não suspeitara que por baixo da varanda do segundo andar, onde estava Mariana, havia uma janela de peitos, que nessa janela, por maior que fosse a reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns instantes, que seria exatamente numa dessas ocasiões que Frederico passaria, e que o vulto elegante e nobre deste moço não produziria menos impressão na criança de dezenove anos, do que produzira na mulher de vinte e cinco.

Frederico amava realmente Lucinda, e aproveitara com avidez a ocasião que se lhe oferecia de vencer a sua timidez, e da ter com a esplendida coquette essas longas conversações de amor, que nunca ousaria encetar se esse pretexto se lhe não proporcionasse. Mas a suave figura de Adelaide não deixara de lhe fazer impressão, e a tristeza que principiava a ver na fisionomia dela, à medida que os dias iam correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados, causara-lhe um vago remorso.

Parecia-lhe que essa formosa menina merecia mais do que servir de pretexto à poesia, de que era outra o objeto verdadeiro; parecia-lhe que ele cometia um crime, povoando de sonhos de ouro aquela juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a massa brutal do desdém.

Portanto aceitara a entrevista, como se aceita o cálice da amargura, que um dever nobre e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria falar com Adelaide, confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza tal, humilhar-se tanto, que, senão lhe pudesse amortecer a dor, lhe lisonjeasse pelo menos o amor próprio e o impedisse de se ferir no doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra haste dessa namorada flor da fantasia. No mesmo dia da entrevista (era um domingo) entrava ele numa igreja. Acabava a missa, e no templo solitário estavam apenas duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida numa prece fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciência visível de se retirar.

Finalmente a devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os olhos de Frederico, que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o perseguia como um remorso. Estava pálida, os olhos azuis lânguidos e tristes denunciavam lágrimas enxutas de pouco. Fitou um longo olhar em Frederico; este pálido e trêmulo curvou-se respeitosamente levando a mão ao coração, como se uma dor súbita o ferisse, e desviando os olhos dela, afastou-se rapidamente.

Nessa noite, como vimos, estava ele à porta do jardim. Entrou, e, apenas dera dez passos numa pequena alameda, encontrou um vulto feminino, que se dirigia vagarosamente para casa. À luz do candeeiro de gás, que iluminava uma pequena porção da alameda, os dois reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, soltou um pequeno grito.

- O senhor aqui! bradou ela com voz que debalde procurava tornar firme e austera. Ah! percebo, continuou ela como que ferida por uma idéia, e desatando a chorar, julga talvez que sou uma dessas mulheres levianas, com as quais basta empregar a audácia...

Não pôde dizer mais. Os soluços sufocaram-na. Audácia! Era a primeira vez que Frederico ouvia uma mulher dirigir-lhe semelhante acusação.

-Oh! juro-lhe que se engana; exclamou ele caindo-lhe aos pés e não reparando até no incompreensível espanto dessa mulher, que, segundo ele julgava, fosse a primeira a conceder-lhe um rendez-vous, a ninguém neste mundo merece mais respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou resgatar corri a minha franqueza extrema e sem limites.

Adelaide não o ouvia; pendia-lhe desfalecida nos braços; não ousamos dizer que fosse completamente involuntário esse desfalecimento.

Frederico, consternado, olhou em torno de si, e viu um banco ao fundo da alameda. Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando para esse lado.

Adelaide caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.

Frederico ficou silencioso junto dela. Sentia dele uma desconhecida perturbação. Aquele encontro inesperado, a solidão e a noite, o perfume das flores, combinado com essas vagas e voluptuosas emanações das noites de estio, esse vulto flexível e airoso de mulher que lhe pendera nos braços, tudo isso, sobrevindo dum modo tão imprevisto, o enebriava e entontecia.

Vendo aquela mulher tão linda, com o rosto banhado de lágrimas, o ânimo desfaleceu-lhe; como havia ele de dizer a essa criatura do céu, quando estava ele mesmo sujeito ao indizível magnetismo, à fascinação do seu olhar, como havia ele de lhe dizer: “Iludi-a, sacrifiquei-a a uma coquette, fiz do seu vulto gracioso e angélico, anteparo, que me resguardasse do fogo duns olhos audazes, que me fascinavam e me queimavam?”

Impossível! Completamente impossível!

Por isso Frederico pôde apenas balbuciar:

-Perdoa-me?...

Ela abaixou para ele os olhos, em que através das lágrimas transparecia um amor imenso, e com voz suave, tremente, doce e suavíssima, como vibração longínqua d'harpa eólia, murmurou:

- Perdoar-lhe! Como lhe não hei de perdoar, se por este momento ansiava, se o meu desejo era vê-lo ali onde está, e ouvir a sua voz? Oh! Meu Deus bem sei que me vai julgar mal, bem sei que o devia repelir, que devia estranhar o seu proceder? Que quer? Não tenho ânimo. Há tanto tempo que a ventura me foge, que não posso fugir-lhe agora que ela me surge de súbito! Depois eu sei que é cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu olhar, e esse livro misterioso para nós outras mulheres não tem segredos. Confio na sua honra, e sequiosa há tanto desta suprema felicidade, ouso dizer-lhe: “Obrigada por ter vindo, obrigada por ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas minhas faces pálidas, nos meus olhos amortecidos a ansiedade que me devorava, por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o orvalho, como a árvore a que falta o sol.”

Frederico, arrastado por esta eloqüência ardente, fascinadora, auxiliada por uma indescritível melodia de voz, pelos murmúrios dulcíssimos do jardim, sentia abrasar-se-lhe a imaginação, e o vulto de Lucinda, que por momentos flutuava diante dele, esvaía-se ao longe como um sonho ao romper da alvorada, e as palavras dela, que primeiro se haviam interposto ao seu ouvido, e à voz d'Adelaide, pareciam-lhe agora tão frias e descoradas, comparando-as com essas frases veementes, que lhe iam ferir o coração, porque do coração partiam!...

-Minha senhora... balbuciou ele.
- Oh! chame-me Adelaide, tornou ela, apertando-lhe as mãos com ímpeto febril, e diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo venham repetir à noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.
-Adelaide, que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.
-O seu nome, o seu nome!
-Frederico! murmurou ele e tão próximo dela, que os lábios de Adelaide pareceram aspirar essa palavra, assim que saiu da boca do seu amado, como se temesse que a surpreendesse a brisa. As árvores meneavam as suas folhudas copas impelidas pelo sopro da viração; a luz das estrelas tremia no céu azul, e os seus pálidos raios, coando-se por entre os ramos, iluminavam frouxamente a alva fronte de Adelaide.

Súbito soou um grito de mulher ansioso e dilacerante. Frederico levantou-se dum ímpeto, e correu para o sitio donde partia o brado; na escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos a aferrou-se-lhe ao pescoço.

O resto sabem-no os leitores.
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D. Mariana, que, sentada no sofá, vestida, enfeitada, e colocada na sombra, debalde esperava a prometida visita, correu ao jardim, ouvindo o grito, e já lá encontrou os criados. Viu então o ladrão das galinhas fugir por cima do muro, deixando os seus despojos no campo de batalha, Frederico empunhando os voláteis, e junto dele Adelaide.

A tia ficou fula de cólera, notando que sua sobrinha estava num rendez-vous, enquanto ela esperava debalde o seu. Era possível mesmo que os dois não fizessem senão um.

-O que é isto? bradou ela. A menina com um homem no quintal!
-Minha senhora, disse Frederico abandonando as galinhas, confesso que fomos culpados ocultando a V. Exa os nossos amores, mas estamos a tempo de reparar essa culpa, porque tenho a honra de pedir a V. Exa a mão de sua sobrinha.

-O lugar é impróprio bastante, respondeu secamente D. Mariana, queira portanto sair. E a menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.

Debalde a pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa declarou-lhe que nada percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.

Daí a quinze dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem supor, ignorava tudo o que se passara.

A carta dizia o seguinte:

Minha boa amiga.
Caso-me daqui a um mês. Não podes imaginar como sou feliz. Quero falar contigo muito, muito e muito
.”

Lucinda rasgou a carta, e pisou-a aos pés com lágrimas de raiva. Ao outro dia tanto instou com seu pai, tão doente disse que estava que o resolveu, apesar da extrema repugnância da Sra D. Leocádia em deixar Lisboa, a irem passar o resto do verão numa quinta que possuíam no Ribatejo.

Fontes:
Revista CD Rom 156. Biblioteca Eletrônica.
Ceramica = http://www.oficinaceramica.com