sábado, 23 de novembro de 2013

John Banville (O Mar)

O escritor e crítico literário irlandês John Banville, 61 anos, é quase um desconhecido do público brasileiro. O que não chega a ser surpresa: ele também não goza lá de grande fama entre os leitores anglófonos. Considerado um autor “difícil” por sua prosa poeticamente trabalhada e pelo ritmo lento de suas narrativas, Banville nunca teve vendas além de uns poucos milhares de exemplares – tiragem de ficcionista brasileiro – até ganhar o Booker Prize de 2005, e com ele uma avalanche de manchetes, por este “O mar”. O romance é narrado de forma não linear por um crítico de arte de meia-idade que, tentando se recuperar da morte da mulher, retorna à cidadezinha praiana onde passava férias na infância e mergulha num mar de memórias dolorosas. A maior parte da crítica internacional saudou o livro como a obra-prima de Banville, e os elogios, embora eu ainda esteja no início da leitura, me parecem fundados.

A sinopse do livro nos conta o seguinte: "Neste romance, John Banville constrói uma narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. Em 'O mar', Banville conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante presença da morte."

Banville constrói sua narrativa com idas e vindas em seu passado, presente e por assim dizer a projeção do futuro. Narrativa entrecortada, mas que com as palavras certas, e um certo tom irônico e às vezes cômico, nos leva a participar da história, da sua dor, da construção da sua vida e dos momentos por vezes imaginário.

Lidar com perdas, com dor, não é tarefa simples, mas não o torna um livro pesado e arrastado, pelo contrário, apesar de ter deixado em mim algumas marcas, é uma narrativa que nos faz pensar em algumas coisas sim, acerca da vida e da morte.

Em alguns trechos do livro, nos identificamos, pois a linguagem simples e clara do autor, nos leva a essa imediata empatia.

A beleza hipnótica de sua prosa, conservada pela tradução, brilha no trecho abaixo, que abre o livro:

Os deuses partiram no dia daquela maré estranha. Durante toda a manhã, sob um céu leitoso, as águas da baía foram subindo, subindo, atingindo alturas inauditas, com pequenas ondas lambendo a areia ressecada que, por anos a fio, não soube o que era umidade, a não ser pela chuva, e chegando até a base das dunas. Os despojos enferrujados do velho navio encalhado lá na entrada da barra, e que, para qualquer um de nós, estavam naquele lugar desde sempre, devem ter achado que tinha chegado a hora de voltar a navegar. Depois daquele dia, nunca mais nadei. As aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente. Naquele dia, os pássaros estavam mais brancos, com uma cor nada natural. As ondas iam deixando uma faixa de espuma amarelada na areia. Nenhuma vela manchava a linha do horizonte. Não, não voltei a nadar depois desse dia. Nunca mais.

Acabou de passar alguém sobre o meu túmulo. Alguém.

A casa se chama Os Cedros, como antigamente. Um punhado eriçado dessas árvores, de um marrom cor-de-macaco, um cheiro rançoso de resina e os troncos assustadoramente retorcidos, ainda cresce à esquerda da casa, diante de um gramado maltratado que fica defronte da grande janela abaulada do cômodo que era a sala de visitas, mas que Miss Vavasour, como boa profissional do ramo, preferia chamar de saguão. A porta da frente fica do outro lado, dando para um pátio quadrado, recoberto de cascalho manchado de óleo, logo depois do portão ainda pintado de verde, embora a ferrugem tenha reduzido aquela pomposa grade a uma frágil filigrana. Fiquei impressionado ao ver como tudo mudou tão pouco nos mais de cinqüenta anos que se passaram desde que estive aqui pela última vez. Impressionado, e desapontado. Diria até horrorizado, por razões que não consigo descobrir; afinal, por que eu desejaria que as coisas houvessem mudado, logo eu, que voltei a viver em meio aos escombros do passado?

Não sei por que a casa foi construída desse jeito, de lado, com uma parede branca e sem janelas virada para a rua; talvez, em outros tempos, antes da construção da estrada de ferro, o traçado da rua também fosse diferente, passando bem diante da porta da frente. Tudo é possível… Miss V. é bastante vaga quanto a datas, mas acha que, de início, construíram ali uma casinha pequena, em princípios do século passado, quero dizer, do anterior, estou perdendo a noção dos milênios, e, depois, foram fazendo obras e aumentando a casa meio aleatoriamente ao longo dos anos. Isso explicaria o ar caótico daquela construção, com salinhas que dão passagem para outras salas maiores, janelas que se abrem para paredes cegas, e tetos baixos de ponta a ponta da casa. O assoalho de pinho dá um toque náutico ao local, assim como a minha cadeira de rodinhas, com encosto de ripas de madeira. Posso até imaginar um velho lobo-do-mar, cochilando ao pé da lareira, finalmente assentado em terra firme, e o vento do inverno fazendo as janelas baterem. Ah, ser esse marinheiro… Ter sido ele…

Quando estive aqui tantos anos atrás, no tempo dos deuses, Os Cedros era uma casa de veraneio, alugada por quinzena ou por mês. Todo ano, em junho, um médico rico e sua família estridente infestavam o lugar — não gostávamos dos seus filhos esganiçados, que riam de nós e ficavam nos atirando pedras, protegidos pela barreira impenetrável do portão. Depois deles, vinha um casal misterioso, de meia-idade, que não falava com ninguém e quase toda manhã levava, sempre de cara amarrada, o cachorro salsicha para passear, descendo a Station Road até a praia. Para nós, agosto era o mês mais interessante naquela casa. A cada ano, havia inquilinos diferentes, gente da Inglaterra ou do Continente; uns casais esquisitos em lua-de-mel, que ficávamos tentando espionar, e, certa vez, veio inclusive uma trupe de teatro ambulante que estava se apresentando na matinê do cinema do vilarejo, com o seu telhado de zinco. E, então, naquele ano, veio a família Grace.

"Há momentos em que o passado tem tanta força que parece que vamos ser aniquilados por ele.
" página 43

E mais um trecho que faz pensar bastante:

"Os últimos raios de luz do dia, que eu podia ver em parte pela metade superior da janela do bar que não era pintada, tinham aquela tonalidade raivosa de um marrom-arroxeado que acho comovente, mas, ao mesmo tempo, perturbadora, e que é a própria cor do inverno. Não que eu tenha algo contra o inverno; na verdade, é a minha estação favorita, juntamente com o outono; mas, este ano, esse brilho de novembro parecia o presságio de algo mais do que o inverno, e mergulhei num clima de amarga melancolia." página 212

Os livros nos escolhem e sempre nos impregnam com suas linhas e palavras, para mim é mágico, por vezes curativo, por vezes arrebatador e também serve de alerta.

Fontes:
Letícia Alves in  http://www.minhastempestades.com.br/2013/04/o-mar-john-banville.html
Sérgio Rodrigues in http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/primeira-mao/john-banville-o-mar/

Lídia Serras Pereira (Eterno elo)

Cada Natal que passa vem lembrar
outro Natal distante e venturoso
onde tudo era luz e riso e gozo
e a vida, um lindo sonho p’ra sonhar.

Se quanto recebemos vamos dar
p’ra um Natal melhor e mais ditoso,
tudo volta a ser luz e radioso
um sorriso feliz há-de aflorar.

Num presépio, Jesus todo nuzinho
mais um brinquedo a pôr no sapatinho,
no coração, a mais, uma saudade.

Natal do Deus Menino, como és belo,
porque és o grande, o doce, eterno elo,
a unir entre si, a Humanidade!

(Do livro “Sonetos”, de Lídia Serras Pereira - 1964

Fonte:
Boletim de Informação e Cultura da Câmara Municipal de Sardoal – Trimestral - Ano 14 - outubro a dezembro 2012. n. 72.

Lídia Serras Pereira

Elvira Lídia Valente Correia Serras Pereira, nasceu em Algôz, no Algarve, Portugal, em Janeiro de 1903. Está ligada ao Sardoal através do casamento com o prestigiado escritor e filósofo António Serras Pereira, natural desta vila. Casaram em 1931, após se terem conhecido num baile da faculdade. Tiveram uma única filha, Maria Helena, já falecida.

Lídia foi homenageada, a título  póstumo, pela Junta de Freguesia de Silves, pela sua actividade cultural, artística e de colaboradora em programas infantis em rádios nacionais. Enquanto residiu entre nós foi uma grande militante associativista, integrando os grupos cénicos que se constituíam para apresentação de récitas.

Em conjunto com Gregório Cascalheira foi autora de muitos textos e versos desses espectáculos.

De Lídia Serras Pereira existem as seguintes obras publicadas:

“Bicharada Endiabrada” (contos infantis em verso – 1941),
“O Pinto Pintalegrete” (contos infantis em prosa – 1944),
“A Bravata de D. Barata” (1945) e
“A Burrinha Toleirona” (1947),
todos da Clássica Editora, de Lisboa.

Quanto a outros géneros, escreveu o romance regional

“Como Nasce um Romance”, editado pela Empresa Literária Fluminense (1944).

Após o seu falecimento, a família publicou as duas obras a título póstumo, “Sonetos” (1964) e “Quadras Soltas” (1965).

“O Século”, um jornal diário já extinto, disse em 1964 que o volume “Sonetos”, de Lídia Serras Pereira reúne “uma admirável série de poesia”. Apesar do livro ser publicado alguns meses depois da morte da autora, precisamente em 1964, o periódico escreve: “a poetisa mostra-nos, em todos os seus versos, uma inspiração rica e uma delicada sensibilidade. Os sonetos são todos perfeitos, de uma fluência encantadora, e difícil se torna dizer qual é a composição melhor e a mais linda. As imagens são belas, e no classicismo de forma encontramos outro motivo para apontar o livro como uma das melhores obras poéticas publicadas nestes últimos tempos. Os modernismos, os versos sem rima, deformados e sem regras, não tocaram, felizmente, a autora.”

Fonte:
Boletim de Informação e Cultura da Câmara Municipal de Sardoal . Bimestral - N.º 58 - Ano 10 - Maio/Junho de 2009.

Herman Lima (Alma Bárbara)

A Leão de Vasconcelos

             Pois foi assim, meu amo. Nesse tempo, nós andávamos pelo sertão, a serviço do coronel Feitosa, do Icó, por via de uns negócios de política. O Pedro, o patrão deve estar lembrado dele. Negro famanaz, vivedor como trinta, baixo e grosso como um toro de aroeira, com uns beiços revirados, e umas ventas rombudas, como amassadas de murro. Contador de quantos casos de amor e de briga ouvi neste mundo, toda cabocla ele dizia que podia possuir, não achava homem que o fizesse voltar atrás. E, a propósito, deixe contar-lhe.

            Uma noite de lua, num forró de casamento, lá na Barreira Preta, no Aracati, quando ainda era, a bem dizer, meninote, o Pedro, encontrando a Ritinha da Venância, uma morena de papoco, falou pra cabeça dela, e foram os dois passear de bote, escondidos, no lagamar confronte. No princípio, o negro ainda se lembrou dos remos, e remou até o meio do rio. O rio estava uma prata. No brejal escuro das margens, berrava a saparia do inverno, assim, zôôôm... Só de longe em longe, um vulto de pescador aparecia, tarrafeando nos baixios. E a cabocla, na proa, olhando o lume do luar tremer nas águas, cantava como uma sereia encantada, dessas que tentam os marinheiros no alto mar. Depois, o negro pegou a se queixar dos braços, descansou os remos atravessados na beirada do barco, e foi sentar-se mais a moça. E tantas coisas fez e achou, meu amo, que quando sentiu foram as pancadas do mar no casco da canoa. Num pulo, deixando a morena quase desmaiada no fundo do bote, o Pedro atirou-se para os remos. Mas, qual. Logo que o barco entrou nas ondas, os remos tinham rolado na água. De forma que o preto botou as mãos na cabeça, assuntando, porque o caso estava mesmo feio. Mirando o céu, ele viu, pelo Cruzeiro grande, que havia de ser meia-noite, pelo menos. Nessa hora, naquelas alturas, só Deus com um gancho lhe podia valer. Assim, não assuntou muito tempo, e tratou de espertar a mulata. Mandou que ela se despisse e fizesse uma trouxa da roupa, que ele amarrou nas costas. E, tomando a pobre nos braços, atirou-se ao mar, nadou até a praia. Como a moça não podia voltar pro baile, por via da distância e das roupas ensopadas de água, o negro achou melhor levá-la pra casa de uma tia, que morava ali perto, no Fortim. No dia seguinte, toda a gente sabia do acontecido. O Pedro mesmo não negou o passeio. E a Ritinha, assim, caiu na boca do mundo. Mas, daí a uns tempos, como a mulata era mesmo um mimozinho deveras, não tardou em acender uma paixão de louco no coração de um cabra fornido, passador de gado nos sertões do Limoeiro, que andava há coisa de três semanas por ali. Quando o Pedro viu o cabra todo derretido pela Ritinha, tratou de ajudar-lhe o xodó, enquanto preparava a pobrezinha, dando de um tudo a ela. Até umas bichas de ouro, em forma de meia lua, ele deu.

            Mas, aí, como sempre, não faltou um malvado, que foi contar o passeio do rio ao boiadeiro. Mas o cabra, que estava mesmo de beiço pela morena, desprezou a conversa, ainda disse o diabo ao intrigante. Pra encurtar a história, o homem casou sempre com a Ritinha. Pois o Pedro, um dia, meteu na cabeça que devia contar-lhe tudo, e contou.

            – E ele?

            – Pra lhe falar verdade, meu amo, eu não acreditei muito no que o negro me disse a respeito. Mas ele jurou pela fé em Deus, fazendo cruz na boca, que o outro não fez coisíssima nenhuma. O certo é que uma feita, conversando muito distraído, o preto me falou numa sentença sofrida na cadeia do Aracati; e, num domingo, quando nos banhávamos no açude do João Lopes, na Fortaleza, descobri, lá nele, aqui, embaixo da pá, um risco de faca de dois palmos. Quando lhe mostrei aquilo, o Pedro fechou a cara, disse de mau modo que não era nada, tinha sido uma chifrada de marruá, no tempo dele menino. Deus me perdoe, patrão, mas só me parece que ali andava obra do cabra da Ritinha, e ninguém me tira da ideia que o Pedro tenha feito alguma a ele.

            Mas, bom. Como ia dizendo, o caso foi assim. Nós tínhamos chegado no Crato, numa quinta-feira, devendo voltar na outra semana. Quando foi no domingo, como não tivesse serviço, arreamos os cavalos de manhãzinha e nos atiramos no mundo, cada qual no seu rumo. Eu tombei pra venda do Zé Bacurau, onde fiquei até a boca da noite, mais uns freteiros de folga, numa partida de – vinte-e-um, que me limpou os cobres. Na volta, chegando em casa, já com a lua de fora, encontrei o Pedro estirado na tipoia, com uma ponta de mata-rato no queixo. Quando me viu, o preto fez ar de alegria, foi logo dizendo que tinha uma história pra contar. Aí, eu fui coar um gole de café com rapadura, e bebi pelo pires, soprando, danado, pra ouvir o negro. Porque o diabo do homem, patrão, sabia mesmo enrabichar a gente com as falas. Com pouco, eu estava outra vez junto dele, na minha rede, mascando minha felpa de mapinguim. E, metido na tipoia, com um pé no chão pra dar o balanço, o Pedro contou que tinha ido pras bandas do Salgado, chegando num ponto em que foi preciso romper o mato, pra alcançar o rio. A manhã estava bonita, não havia hora melhor para um banho. E já ele tinha desapeado, quando avistou, mais pra cima um pedaço, uma cabocla novinha, nuazinha, trepada numa pedra, mirando-se na água serena que passava. Vendo que a mulatinha não tinha dado por ele, o negro, muito de manso, prendeu o cavalo num buritizeiro, e foi rastejando, rastejando, pelo mato, num piso de sussuarana, até que topou com as roupas da moça escondidas numas moitas. O preto logo assentou um plano. Mais que depressa, agarrou nos vestidos e de repente apareceu à morena. A pobrezinha, como se tivesse visto o Maligno, soltou um grito tamanho, e mergulhou como pecapara assustada. O rio aí já era de nado. Com pouco mais, adiante, ela botou a cabecinha de fora, olhando muito agoniada, sem saber o que fazer. Enquanto o Pedro, muito bem sentado na ribanceira, mostrava-lhe as roupas, rindo para ela, e chamando-lhe quantos nomes de amor sabia. E disse que não tivesse medo, viesse buscar os paninhos, que ele não lhe fazia mal, queria só um beijo dela dado assim nua como estava. Isso ele dizia, meu amo, mas só dos dentes pra fora. Deus me perdoe. Pois alguém acredita que o negro não tivesse má tenção, armando aquele mundéu à coitadinha? No mais, o patrão faça de contas que era ele numa hora dessas, e veja lá se tinha coragem de resistir... Pois a verdade é que a mulatinha pareceu adivinhar os desejos do preto, e desatou a chorar, disposta a morrer, mais antes do que se apresentar despida a ele. Nessa ideia, fez o pelo-sinal, e se soltou no rio. Aí, o Pedro mediu toda a ruindade da ação que estava praticando, e sentiu os olhos cheios de água, com pena e dó da criança. Atirando as roupas no chão, despiu a camisa, e jogou-se na correnteza. A moça, nesse tempo, já ia longe, enrolada nos cabelos, arrastada pelo rio. O negro mergulhou, e nadando por baixo da água, como um peixe, foi tomar fôlego já nos calcanhares da cabocla. Com duas braçadas mais, emparelhou com ela, e, agarrando-a pela cintura, nadou com força pra terra, como tinha feito com a outra, lá no Aracati.

            Garanto, meu amo, que o negro, me contando isso, ficava ainda com os olhos afogados de pranto, como quem atravessa a fumaça de um incêndio... Coisas do coração, moço, mas não é? Pois, quando vinha trazendo a moça pro seco, apertando contra o peito aquele corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato, o preto me disse que só sentia uma bondade tão grande, uma pena tão esquisita, como se fosse Nossa Senhora que ele tivesse salvado das águas. Acredite se quiser, meu patrão, mas o negro botou a caboclinha na beira do rio, com o mesmo amor de uma mãe, deitando o filhinho na rede. Quando viu que ele não lhe fazia maldade, a mulata descruzou os braços que escondiam o peito tentador, e num jeito de onça enrolou-se toda nas roupas. Aí, o Pedro enfiou a camisa, e foi-s’embora, sem mesmo olhar pra trás.

            No fim da semana, estávamos de viagem. Tínhamos deixado o Crato de madrugada, no segundo canto do galo. Os cavalos eram bons, bralhadores famosos, de forma que às onze horas tínhamos tirado oito léguas. Aí, fizemos uma parada, pro almoço, na sombra de uma oiticica verde, que ficava mesmo cobrindo a picada. Os animais ali por perto babujavam o capinzinho da vereda. Acabando de comer meu bocado de paçoca e rapadura, fiz da carona travesseiro, e me deitei no chão, disposto a dormir um minutozinho. A mata, nessa hora, estava quieta, que nem capela vazia. Só se ouvia o chio-chio de uma cigarra cantadeira nas folhas e um ou outro sopro de venta dos cavalos cansados, roendo a erva. Ainda me lembro que estava dorme-não-dorme, quando o Pedro, que também tinha acabado de almoçar, levantou-se bocejando e se afastou pela estrada. Não sei dizer se tive tempo de dormir um cochilo, quando de repente um berro medonho encheu todo o mato. Num instante, me vi de pé, correndo como um doido, no rastro do negro, que fui achar pouco adiante, agarrado com um cabra moço e entroncado, como um mourão. Pelos modos, meu camarada tinha sido atacado de surpresa, nem teve tempo de se defender. E, antes de sair de meu assombro, o curiboca recuou num pulo, com os olhos relampeando, como uma onça acuada, e uma faca que era isto, encarnada de sangue, no punho. O Pedro se bambeou, com as mãos na barriga, como quem sofria uma grande dor. Aí, acudi com meu punhal desembainhado, e avistei uma coisa, patrão, que me tirou o sono muitas noites. O negro tinha levado uma estocada no vão do umbigo, que era mesmo uma barbaridade, as tripas tinham espocado, pois assim mesmo, quase de cócoras, procurando aguentar os bofes que escorriam para o chão, o preto arrancou a garrucha do quarto, e – ah! negro bom mesmo na hora! – levou um pé adiante, fazendo mira no assassino. Quando viu a arma alumiando, o cabra atirou-se pra cima dele, batendo o queixo que nem caititu furioso, mas já o tiro tinha estrondado por aquele sertão a fora. Aí, o homem deu um salto para o ar, como cabrito assustado, e caiu de bruços na estrada, sem bulir. Vendo-o derrubado, corri para o Pedro, que também tinha rolado na areia. Tomei a cabeça dele nas mãos, quis ver se ainda o levantava. Mas o pobre pegou a revirar os olhos, gemendo como doente de “puxado” no inverno. Só teve tempo de chegar a boca no meu ouvido, e disse, apontando o outro: – “É o irmão daquela diaba!”. – A cabeça pendeu pra trás, o corpo amoleceu nos meus braços. Estava morto, meu patrão!

            Por causa disto, tive de andar no mato, fugido como cangaceiro, dois anos e tanto. Hoje, ninguém fala mais no caso, posso estar por aqui, sem medo. Mas, pra acabar a história direito, voltando uma vez no Crato, todo barbado e diferente, pra não me conhecerem, soube que o assassino do Pedro era um irmão da mulatinha do rio. Um comboieiro tinha encontrado os dois corpos na estrada, galopou como um doido até a cidade, e tudo se descobriu.

            Já vê, meu amo, que não serviu de nada a boa ação do preto, não tocando num cabelo da morena. Se ele tivesse feito mal a ela, talvez que nem a descarada contasse o caso aos parentes. Como o pobre a tratou como uma santa do altar, achou bom vingar-se.

            Mulheres?!... Pode crer, patrão. Uma tira pelas outras. E é tudo uma pouca vergonha.

 (Herman Lima, Tigipió, 7ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Herman Lima

Herman de Castro Lima (Fortaleza, 1897 - Rio de janeiro, 1981) trabalhou como auxiliar da estrada de rodagem de Aracati a Morada Nova. De volta à capital do Estado, foi escriturário da Delegacia Fiscal, transferindo-se, em 1922, para repartição congênere em Salvador, Bahia, onde se diplomaria em Medicina. De 1933 a 37 foi auxiliar da Presidência da República, indo depois para a Delegacia do Tesouro em Londres. Autor de livro fundamental intitulado Variações sobre o conto (1952), publicou nesse gênero dois livros, Tigipió (1924) e A Mãe-da-Água (1928).

            Depois de Gustavo Barroso, o nome mais importante da história curta cearense no início do século XX é o de Herman Lima, que se teria iniciado na elaboração desse tipo de prosa “por influência” da ficção do primeiro, na opinião de Sânzio de Azevedo, que o chama de “mestre incontestável, na teoria e na prática, autor que seria de contos e livros sobre a técnica do conto”. Noticia Sânzio que a partir da terceira edição (1932) o primeiro livro sofreu alterações: teve incluídos o inédito “O Arrieiro” e três peças do segundo livro (“Os Caboclos”, “As Mulheres” e “A Mãe-dágua”). Na mesma nota, no final do livro, Herman Lima esclarece que não pretende “reeditar esse último, por ser um livro sem homogeneidade, composto de contos e crônicas”. O contista publicou também o romance Garimpos e obras de pesquisa, Rui e a Caricatura e História da Caricatura no Brasil, tido como sua principal obra e com a qual se tornou o maior conhecedor do assunto no país. Tornou-se, ainda, um dos grandes teóricos da história curta e escreveu Variações Sobre o Conto, com que mereceu os melhores elogios.

No mesmo ano de sua publicação, Tigipió recebeu prêmio da Academia Brasileira de Letras, apesar de impresso na Bahia e às expensas do autor. Quase todos os críticos brasileiros de então teceram grandes loas a Tigipió. Humberto de Campos escreveu: “O Sr. Herman Lima não é, entretanto, apenas um admirável fixador das coisas do sertão de que é filho. As suas qualidades de marinhista são, igualmente, consideráveis”. Carlos Drummond de Andrade também se rendeu aos encantos dos livros de Herman: “Há em Tigipió, como em Garimpos, uma identificação com a terra, uma visão amorosa e fiel de paisagens e seres, um sentido dramático das situações que tornam admiráveis muitos de seus contos e cenas do romance”. A composição de Herman estudada por F. S. Nascimento intitula-se “O Arrieiro” e, curiosamente, teve como primeiro título “O Camarada”, traduzido para o francês como “Le Muletier”, em 1935. Na lição de Nascimento, “aliando o senso de observação ao jogo impressionista das cores tropicais, Herman Lima se firmaria como um extraordinário paisagista, retratando com absoluta fidelidade as praias e os sertões do Ceará.”

Sânzio ensina: “narrativas como ‘Tigipió’, ‘Alma Bárbara’, ‘Os Sertanejos’, ‘O Arrieiro’, ‘Ventura Alheia’ e outros garantem a Herman Lima lugar do maior destaque no panorama do conto cearense, ele que na verdade já figura no panorama do conto brasileiro”. Em “Relendo Herman Lima”, de Dez Ensaios, o citado estudioso assegura: “Alguns contos de Tigipió são páginas soberbas, dignas de qualquer antologia do gênero: seja no clima fantástico de ‘Sereias’, no anedótico de ‘As Guabirabas’, ou no trágico de ‘Alma Bárbara’; em todas as narrativas sentimos o pulso do verdadeiro ficcionista”.

Nas 14 narrativas de Tigipió o leitor encontra um narrador voltado para a geografia que vai do litoral ao sertão cearense. Os dramas se desenrolam quase sempre em lugares abertos, amplos, devastados por secas. Aqui e ali aparece uma sala, um quarto. No mais das vezes, o leitor se vê diante de imensos espaços rurais, estradas, caminhos e praias. Os personagens são sertanejos endurecidos pela vida áspera, mulheres lindas, sensuais, sedutoras, pescadores igualmente embrutecidos. Vivem intrigas violentas, envoltas em amores frustrados, mistérios, vinganças, loucuras, traições, que terminam em tragédias pessoais ou familiares.

No entanto, a linguagem das narrativas é pomposa, recheada de vocábulos em desuso, mesmo na literatura escrita do século XX. Alguns não se encontram em dicionários: “Bandos de urubus, de vinte a trinta, frufrulejam (grifo nosso) as asas” (...). É até possível imaginar-se Herman Lima jovem diante dos livros de Coelho Neto, atento, maravilhado, a anotar esta e aquela frase: “O rancho negro desenvolveu-se em hemiciclo com os músicos ao centro zangarreando, as mulheres aos guinchos” (Coelho Neto, Rei Negro, p. 110, apud Novo Dicionário Aurélio). “E, aos primeiros compassos de um baião fogoso e estonteador zangarreado pelo vaqueiro” (...) (Herman Lima, “Sereias”). Entretanto, numa história em primeira pessoa, “Coração”, cujo narrador é um caboclo, João, a linguagem é naturalmente simples. O uso de vocábulos como “sufragante”, “maginando”, pass’os (pássaros) e relamp’os (relâmpagos) não tornam ininteligível a leitura.

Permeiam as narrações, quase sempre espichadas, longos períodos de descrições de ambientes e aspectos físicos de personagens. Assim, muitas vezes os personagens desaparecem para dar lugar ao ambiente, isto é, o leitor se vê diante de largos murais, pinturas do espaço onde vivem os personagens.

No conto “Tigipió”, o mais longo do livro, há referências a diversas cidades e localidades do Ceará, em tempo de seca, “uma só terra devastada e morta, savanas nuas, ermos escalvos”. Os personagens principais são o velho Cesário, sua filha Matilde e Heitor. Viviam os dois primeiros do “fabrico de chapéus de palha”, numa casinha de “tacaniça sem reboco”, no sertão, proximidades do Rio Jaguaribe. O cenário sertanejo reaparece em “Choça Vazia”, embora a narrativa se aproxime mais do gênero crônica: “À margem da estrada, entre a mata reinante, fica, num claro, vazia e silente, uma choça antiga.” Em “Ventura Alheia” vê-se um “tabuleiro ermo”, onde os personagens “viviam do cultivo das terras, lindas vazantes que se estendiam ao fundo das casas, à beira do riacho de Russas.” Um dos contos mais famosos de Herman Lima é “O Arrieiro”. O narrador, o engenheiro Norberto Sales, conta uma história vivida durante a seca de 1919, entre Aracati e Quixadá. Narra uma viagem do sertão a Fortaleza, assim como a volta. “Léguas e léguas sem fim,” (...) “o calor da fogueira universal esbraseando a paisagem de redor, o horizonte refervendo, e o céu e a terra, tudo envolto no mesmo turbilhão de labaredas invisíveis.” Como o título indica, em “Sertanejos” o drama se desenvolve também no sertão: a “várzea larga”, a “mata quieta”, estradas, veredas, cavalos, cangaceiros. No sertão de Quixeramobim vivia Juventina, de “Coração”. Que termina seus dias em Fortaleza, a mendigar. O início de “Os Caboclos” é uma descrição longa de um pedaço do sertão: várzeas imensas, cortadas de carnaubais. A última história do livro, “A Mãe-d’água”, quase tão longa quanto a primeira, encerra esse ciclo sertanejo. Hugo, o protagonista, viaja de Fortaleza para Aracati e, em seguida, para o sertão, nas proximidades de Limoeiro, para viver uma história de amor.

O espaço praiano e marinho do Ceará está presente nos demais contos de Tigipió. O primeiro deles é “Sereias”, como não poderia deixar de ser. O drama se inicia na praia de Meireles, em Fortaleza. O pescador Bento Caiçara vai ao mar, para pescar. Termina diante de sereias: “O pobre alçou-se em desvario, bracejou, ofegante, exausto, os membros chumbados, impotentes, os ouvidos zoando, ele todo numa luta surda e titânica, a reagir contra o assombro.” Em “Alma Bárbara” o drama se inicia num lugarejo praiano, próximo à cidade de Aracati, num “lagamar confronte”, e termina no mar. Em outra ação, no rio Salgado. Em “As Guabirabas” veem-se dunas, coqueirais, a praia e “ondas abrindo mansamente, em leque, esfroladas de espumas, morros alvíssimos, onde passavam pescadores, mais ao fim o farol” (...). Fortaleza reaparece em “As Mulheres”. O velho Rufino, lenhador e camaroeiro, vivia “à margem do rio Cocó”. Em “Gata Borralheira” a protagonista Genoveva vivia com uma tia viúva e suas duas filhas, sempre a correr a praia, “sozinha, à cata de mariscos”. Mais tarde, já mocinha, enamorou-se de um desconhecido, com quem se encontrava “sob as árvores”, “entre os cajueiros”. Mais adiante se dá o afogamento do namorado. A moça enlouquece: “Quando era noite de lua, a louquinha abalava para a praia, e ficava sobre um penedo rasteiro às vagas, atenta ao marulhar constante da onda.” E finalmente, ao “avistar” o iate branco do seu príncipe, nada em busca dele. “A onda erguia-a, repuxava-a, trepava-lhe pelos ombros.” No desfecho, a moça “ainda pôde jogar-lhe um beijo, antes de afundar.” Outra tragédia marinha se mostra em “Ressaca”. O velho pescador Manuel Lucas vivia, com a filha Rosa, “num casebre abandonado, além de Mucuripe, quase ao pé do farol.” Certo dia, ao voltar para casa, não encontra a moça. Desesperado, sai em busca da filha, pela praia. “Mas, de repente, um vagalhão estupendo, alto e negro como a muralha de um forte, ergueu-se-lhe em frente, a poucos passos.” E dá-se a tragédia.

Os personagens dos contos de Herman Lima são sertanejos embrutecidos pela seca e pela violência, pescadores afeitos à solidão do mar, às vezes aventureiros fora de seu habitat. As personagens são mulheres lindas, voltadas exclusivamente para o amor. O sertanejo Cesário, de “Tigipió”, se vinga da vida, ao provocar a própria morte, assim como a da filha e seu namorado Heitor. Matilde, a filha de Cesário, era “uma cabocla linda e viva, de tentadores encantos”. O desfecho de “Alma Bárbara” é outra tragédia. Pedro e o irmão da “mulatinha” que o primeiro tentara possuir num rio se matam, a golpes de faca. Ritinha, da mesma narrativa, “era mesmo um mimozinho deveras”. A outra, a mulatinha, apresentava um “corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato”. O engenheiro de “O Arrieiro” não é um sertanejo e vive momentos de angústia, ao se imaginar refém de perigoso assassino, Mariano, “feitor lombrosiano”. Viúvo, Rufino, de “As mulheres”, propõe casamento a Joana. Casados, conhece a mulher outro homem, João Vicente, o “paroara”. Inicia-se, então, a trama propriamente dita. Após uma briga, Vicente decide eliminar o rival e o mata. A mulher, no entanto, foge de casa só. Genoveva, de “Gata Borralheira”, ao se fazer púbere, é “trigueirinha e linda a valer”. Justino, de “Sertanejos”, é vingativo. Quando “rapazelho tímido”, a serviço do tio Zé Balaio, sofre deste duro castigo, ao “permitir” que uma égua se alarmasse “frente a um garrancho negro” e disso resultasse um rasgão num saco de farinha. Feito homem, se transforma em bandoleiro e ataca a tropa do tio. Juventina, de “Coração”, é pintada como a mais linda das mulheres: “Os olhos dela brilhavam, que nem duas estrelas Papaceia”. (...) “Os beiços eram duas fatias da fruta do mandacaru. E o colo – ah! Peitinho da minha paixão! – era empinado que nem peito de nambu, e macio como travesseiro de pêlo de croatá.” 

O apreço pelos naturalistas se pode perceber numa referência a Aluísio Azevedo no conto “Tigipió”. Como eles, Herman Lima também cultua a descrição de traços fisionômicos, físicos e psicológicos dos personagens. Justino, de “Ventura Alheia”, “era um caboclo airoso e vivo, muito fornido de corpo, de cara bonita e franca, de uma alegria sem par.” Damião, “pequenino, raquítico, o tronco abaulado, os ombros para cima, só tinha em proporção a cabeça, uma cabeçorra horrível, de olhos esbugalhados, vítreos e mansos, como olhos de peixe ou de sapo.” A beleza física estaria relacionada à beleza espiritual, assim como a feiúra corporal à deformação do caráter, da personalidade. Mariano, de “O Arrieiro”, tem “cara fosca e modos torvos, olhos injetados, trunfa caída sobre a testa, a dentuça vasta à mostra no prognatismo feroz, o corpanzil ereto e longo, com a musculatura enxuta do mestiço do Norte” (...).

Herman Lima não é apenas um dos melhores contistas cearenses do início do século XX. É também um dos mais autênticos narradores/descritores da paisagem e do homem cearenses.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Zé Lucas (Caderno de Trovas)

A ciência, sem suspeita,
será no mundo aplaudida
se a clonagem só for feita
em benefício da vida.

A esmola às vezes se "enfeita"
com tinturas de vaidade,
mas a caridade é feita
de amor e fraternidade.

A liberdade é um tesouro
da mais alta qualidade...
Nem por gaiola de ouro
há quem troque a liberdade!

A menina seminua,
presa, disse ao detetive:
– eu não me queixo da rua,
mas do lar que nunca tive!

A mulher, rasgando os passos,
caminha alegre, vai cedo...
Quem leva um filho nos braços
enfrenta o mundo sem medo.

A multidão me põe louco
entre empurrões e zoada...
Sozinho, sou muito pouco;
na multidão, não sou nada!

Antes de sair de cena,
peço tempo aos céus risonhos,
pois acho a vida pequena
para a vida de meus sonhos.

Ao voltar, com muito amor,
ao campo que já foi meu,
bebi no cálix da flor
o mel que a abelha esqueceu.

A poesia se ilumina
e em trono de amor repousa,
pela pureza divina
dos versos de Auta de Souza.

A preguiça dos ponteiros
de meu velho carrilhão
mostra os minutos ronceiros
das noites de solidão!

Aquele singelo enredo
de amor, ensaiado a sós,
foi o mais belo segredo
que a vida pôs entre nós!

Auta pôs, com mãos de fada,
em versos de encanto e dor,
toda a pureza filtrada
na luz eterna do amor.

Carcará desce do pico,
pega a vítima e condena,
pois, sendo de pena e bico,
bica e mata sem ter pena.

Chove no Sertão, e o rio
desce da serra distante;
devolve a vida ao baixio
e o sorriso ao retirante!

Com devotamento ao lar,
onde o amor finca raízes,
a noite é para sonhar
e os dias são mais felizes.

Como é belo ver a planta
que abre flores nos caminhos,
nas horas em que Deus canta
pela voz dos passarinhos!

Como os demais trovadores,
tenho ilusões,toda hora...
São lindas, parecem flores,
mas, num sopro, vão embora!

Corre o viver tão bonito,
nesta paz de vento brando,
que eu vejo e não acredito
que a velhice está chegando!

Crianças em doce anelo,
fitando, além, o horizonte,
sonham que um dia mais belo
vai nascer por trás do monte!

De alguém que há pouco passou,
deixando a porta entreaberta,
alguma coisa ficou:
talvez a lembrança incerta!

Deus, que viagem florida,
em campos tão sedutores!
Como é bom trilhar, na vida,
pelo caminho das flores!

Duas taças num banquinho,
sem ninguém, têm a igualdade
do cheiro do mesmo vinho,
da dor da mesma saudade!

Em louco e brutal delírio
pra devastar o que resta,
a motosserra é um martírio
no calvário da floresta!

Em manhã chuvosa, a vida
canta no seio da mata
e há notas de água caída
no piano da cascata.

Em minha infancia inocente,
teu afeto, mãe querida,
desenhou-me fielmente
o lado belo da vida!

Em momentos mais risonhos,
sei que já fiz trova linda,
mas a trova dos meus sonhos
não pude fazer ainda!

Em muitas ocasiões,
só somos bons elementos
porque certas intenções
não passam de pensamentos.

Enquanto a emoção se alteia
sobre as dunas, a rolar,
a vida brinca na areia
ouvindo a canção do mar.

Entre o cãozinho e a criança
há tão lindo entendimento,
que na estrada da esperança
há, para os dois, um assento!

Esta fé que nos norteia
para a "terra prometida",
mesmo sendo um grão de areia,
faz o alicerce da vida!

Estas cenas nos comovem,
como, na rua, alguém disse:
- Juntas, a energia jovem
e a lentidão da velhice!

Eu sou mais poeta quando,
no jogo de altas marés,
fico na praia esperando
que as ondas lavem meus pés.

Existem palavras mudas
que têm o peso da cruz,
e foi sem falar que Judas,
num beijo, entregou Jesus.

Feitas de sonhos e flores,
as nossas trovas são ninhos,
onde os vates trovadores
trinam como passarinhos.

Felicidade é o lugar
indicado pelo amor...
Lá, quem consegue chegar
é, por certo, um sonhador!

Há tempo sem teus afagos,
deixa-me lavar as dores
nos dois pequeninos lagos
de teus olhos sedutores!

João Maria, em nenhum canto
deixava um mendigo ao léu...
Na terra já era um santo;
foi ser mais santo no céu.

João Maria morreu quando
fazia um trabalho lindo.
Sua alma subiu cantando;
Deus o recebeu sorrindo!

Mais vale da vida o espelho
que muitos sermões no templo...
Em vez de nos dar conselho,
seu padre, nos dê o exemplo!

Mesmo enfermo, João Maria,
cumprindo a santa missão,
a própria dor esquecia
pra sanar a dor do irmão!

Mesmo que eu mude de estilo,
não mudarei, nem de leve,
uma vírgula daquilo
que a mão do destino escreve.

Mesmo que eu renove as trilhas,
desviando a caminhada,
não escapo às armadilhas
que o destino põe na estrada

Meu querido Rio Grande,
na beleza de teus vales,
desfeito em trovas se expande
o amor do “Trio Canalles”.

Meu rancho, no campo em flor,
longe de intriga e maldade,
era o meu ninho de amor,
hoje é o ninho da saudade!

Minha mulher reza tanto
aos pés de Nosso Senhor,
que eu vou precisar ser santo
pra merecer seu amor.

Musas divinas!... Ao vê-las,
no sonho que me seduz,
subo ao ninho das estrelas,
seguindo os rastros da luz!

Não há coisa mais bonita
neste mundo de pecado,
do que a fé que ressuscita
um sonho já sepultado!

Não me fizeste justiça
ao negar-me o teu carinho,
e hoje a saudade aterrissa,
como sombra, em meu caminho!

Não temo a longevidade
por esta simples razão:
a flor da felicidade
brota em qualquer estação.

Na paz da boa atitude
não há passada perdida,
e a moeda da virtude
paga o pedágio da vida.

Na paz de um lago deserto,
longe da luz da cidade,
foi quando estive mais perto
da luz da felicidade

No doce embalo da rede,
um sono bom me enfeitiça
e o relógio de parede
me acompanha na preguiça.

No instante em que o sol se enfada,
de tanto aquecer a Terra,
deita a cabeça dourada
no travesseiro da serra...

No meu rancho, pobre teto,
o chão era a cama e a mesa,
mas fui tão rico de afeto,
que nem falava em pobreza.

No trabalho, meus irmãos
não buscam prêmio nem glória,
e os calos de suas mãos
enobrecem nossa História.

Numa devoção de monge,
o Potengi, sem parar,
traz água doce de longe
e entrega de graça ao mar.

Numa fonte de águas claras,
Onde as musas cantam hinos,
Bebo as imagens mais raras
De meus versos peregrinos.

O alpinismo é dura prova
que não ficou para mim,
mas, no alpinismo da trova,
escalo alturas sem fim.

O amor e o sonho, querida,
são graças que Deus nos deu...
Quem não ama não tem vida,
quem não sonha já morreu.

O beijo, em qualquer instante,
estimula o amor e a vida,
e, sendo um beijo dançante,
faz tudo além da medida.

O cego, com dedos certos,
tange a sanfona dorida,
e eu, com dois olhos abertos,
erro nas teclas da vida.

O céu azul de meus sonhos
e as flores da mocidade
lembram-me dias risonhos
na aquarela da saudade!

O destino abre-me os braços
mas tem seu lado mesquinho:
guia-me todos os passos
mas não me ensina o caminho.

– Oh! Que demora sem fim
para tua decisão!
Chegou tão tarde o teu sim,
que já parecia um não!

Olhando o primor da teia,
eu fico aos céus inquirindo:
como é que a aranha, tão feia,
traça um desenho tão lindo!

Olho o céu de eterno azul,
e como fico feliz,
vendo o Cruzeiro do Sul,
emblema de meu país!

O perdão é que é o sinal
de perfeita lucidez...
Quem se vinga faz o mal
do jeito que alguém lhe fez.

O Potengi deita a luz
no seu leito sedutor
e, ao tê-la formosa e nua,
mergulha em sonhos de amor.

Os anos trazem cansaços;
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice, até o fim!

O trabalho é luta santa
que não vislumbra medalha,
e um país só se levanta
pelas mãos de quem trabalha.

O trabalho me norteia
e dele eu não me despeço,
pois quero meu grão de areia
a construção do progresso.

Para abraçar-te, menina,
meu anseio é tão profundo,
que a distância de uma esquina
parece uma volta ao mundo.

Pobre casal foi multado
sem defesa, na avenida,
por beijo estacionado
numa faixa proibida!

Por mais que a vida me açoite
com refinada ironia,
depois da prece da noite,
esqueço as mágoas do dia!

Potengi, corrente amiga
que alimenta o manguezal,
artéria grossa que irriga
o coração de Natal.

Qual a fonte de energia
Da luz de tantas estrelas?
Se não for Deus, quem teria
Um facho para acendê-las?

Quando a jangada flutua
sobre as águas, ao luar,
é uma lágrima da lua
nos olhos verdes do mar.

Quando a Lua se retrata
com seu encanto invulgar,
traça um caminho de prata
sobre a esmeralda do mar.

Quando estou em meu terraço,
olhando os astros risonhos,
a Lua atravessa o espaço,
puxando o carro dos sonhos!

Quando eu vejo a morte acesa
na fúria de uma queimada,
sinto a dor da natureza,
impunemente afrontada!

Quando o tempo se levanta
no sertão, e a seca vem,
não morre somente a planta,
morre a esperança também!

Quanta labuta perdida
para a clonagem de gente,
quando o amor que traz a vida
jorra de infinda vertente!

Queimada!... A terra ferida
clama por um povo forte
que faça brotar a vida
onde o fogo impôs a morte!

Quem fere, seja onde for,
uma simples borboleta,
mata um sonho multicor
que sobrevoa o planeta!

Se a lua beija as areias
destas praias de Poti,
cantam todas as sereias
das noites do Potengi.

Se aos pintores falta tinta
que eternize a juventude,
feliz quem, na vida, pinta
um retrato da virtude!

Sei que deste mundo lindo
vou sair, só não sei quando,
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando.

Se já não restam viventes
sobre a terra calcinada,
plantemos novas sementes
na cicatriz da queimada!

Se meu Potengi não fosse
perene, iria esgotar
de despejar água doce
no fundo amargo do mar.

Sem ter o clone a beleza
do amor que embala os casais,
torce as leis da natureza
e engendra seres sem pais!

Sem ter da mulher o afeto,
não tenho felicidade.
Homem nenhum é completo
quando lhe falta a metade.

Senti o ardor da poesia
nos meus primeiros amores,
quando a vida parecia
uma cascata de flores!

Sinal da antiga aliança
de Deus com a humanidade,
o arco-íris nos traz bonança
de paz e felicidade.

Toda a natureza é um plano
de vida farta e beleza,
mas o lucro desumano
põe no bolso a natureza!

Tomara que os trovadores
batam do verso a poeira,
e a trova, assim como as flores,
enfeite as bancas da feira.

Tua voz, terna e macia,
sob o calor dos lençóis,
tinha a doce melodia
de um canto de rouxinóis.

Viram cinza os verdes braços
de árvores tão bem formadas
e a terra morre aos pedaços
por onde vão as queimadas!

Volta aos sonhos de criança,
em teu recanto singelo,
mas nutre a flor da esperança
que torna o mundo mais belo!

Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas!

Zarpei ao romper do dia,
no meu barco, a velejar,
para “pescar” a poesia
que a Lua escondeu no mar.

PANTUM DA ECLOSÃO DO AMOR

Trova-tema:

Eu vi o amor eclodindo
na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni)


Na mensagem de um chamado,
vinha um toque de magia:
o Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.

Zé Lucas (Outros Versos)

Pintura de Salvador Dali
MEL NA POESIA

No trabalho das colmeias
me inspiro em meu dia-a-dia,
eu e a abelha laboramos
numa intensa parceria:
ela tira o mel das flores
e eu ponho em minha poesia.

AS GARÇAS

Voam longe as garças brancas
formando bonito véu,
como um lençol de morim
que o vento sacode ao léu...
Será que a paz criou asas
e está voando no céu?

A VIAGEM

-Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora.
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

MEU JEITO DE OLHAR A VIDA

Sou menino do campo, sem vaidade;
vivi longe das sedas e dos linhos;
em vez das fantasias da cidade,
me entreguei à aventura dos caminhos.

Fui ao céu, imitando os passarinhos...
Nas asas do meu sonho, a imensidade
ficou pequena, e na canção dos ninhos
embalei toda a minha mocidade.

Minha alma se elevou no azul dos montes,
onde volto a beber, nas mesmas fontes,
a água doce da infância cristalina.

Deus não me nega paz nem agasalho:
se nos bosques da noite me atrapalho,
logo mais vem a aurora e me ilumina!

HUMILDE NAVEGANTE

Meu amigo, não peça o que não tenho
nem me dê o que eu sei que não mereço;
Não precisa ampliar o meu desenho,
basta que não me vire pelo avesso!

Não é para ser grande que me empenho,
mas para ser tratado com apreço.
Sou fraco, mas, o peso do meu lenho,
carrego sem negar meu endereço.

Quero só navegar no mar da vida
sem me tornar um navegante louco
pra deixar minha vela preferida

abandonada na ilusão do cais.
Sabe Deus que mereço muito pouco,
mas é tão bom que até me dá demais!

“AS ESTRELAS SÃO NÍTIDOS FARÓIS”

As estrelas são nítidos faróis
quando o céu anoitece mais bonito;
para nós, os poetas sonhadores,
a beleza da Lua é quase um mito
na distância da cósmica jornada
em que a voz de um trovão é quase nada
e o silêncio de Deus corta o infinito.

MENINICE

Cada dia, mais distância,
cada instante, mais saudade...
Como ficou longe a infância!

Amigos da mocidade,
agora não mais os vejo
em nossa velha cidade!

Meu coração sertanejo
bate ao compasso do sino
das festas do lugarejo.

Se eu fosse outra vez menino,
mesmo assim pouco faria
pra reverter o destino.

Pra meus pais, mais alegria
pediria, com certeza,
a Deus e à Virgem Maria,

e um grande alívio à pobreza
que os perseguiu duramente.
Quanto a mim, não é surpresa

afirmar, de boa mente,
que quase tive o que quis,
no meio de minha gente.

Botando os pontos nos is,
fui moleque bom de estrada,
fui menino, fui feliz!

Assim, digo a minha fada:
pode manter meu destino!
Não precisa mudar nada.

Basta, na vida futura,
que não me falte a ternura
de um coração de menino!

VAQUEIRO

Há registros em prosa e poesia,
Aqui pelo Nordeste brasileiro,
Mas ninguém descreveu, como devia,
A grandeza da saga do vaqueiro.

Quando um touro se torna barbatão,
Escondido na mata de espinheiro,
Não há nada que o enfrente no sertão,
A não ser a coragem do vaqueiro.

Cavaleiro de tanta valentia,
Esquecido por esses pés de serra,
Nosso herói nordestino merecia
Uma estátua de bronze em sua terra!

O DIA DAS MULHERES

Hoje cumpro o mais justo dos misteres,
Como poeta e amigo da beleza:
Dou parabéns a todas as mulheres,
Vendo nelas, do amor, a realeza!

Às rainhas do lar e deste mundo,
Que, sem elas, pra nada serviria,
Eu desejo, com o apreço mais profundo,
Um reinado de paz e de alegria!

Que haja flores na rota da existência
De toda mãe, que é nosso amor primeiro,
E nunca mais a mão da violência
Baixe sobre a mulher, no mundo inteiro!

O TEMPO

Quando menino, eu queria
Ser homem com rapidez,
Depois, contabilizando
Tudo que o tempo me fez,
Hoje morro de vontade
De ser menino outra vez.

EXCERTOS DA PELEJA EM MARTELO AGALOPADA
um diálogo entre Zé Lucas e Prof. Garcia

Pra o poeta encontrar a poesia,
basta o canto febril de um rouxinol,
ou os raios de ouro do arrebol,
registrando o nascer de um novo dia;
um olhar nas belezas que Deus cria
também deixa um poeta motivado;
uma grata lembrança do passado
tanto acorda a saudade como inspira;
mais o som peregrino de uma lira,
e está pronto o martelo agalopado!
(…)
No remanso tranquilo da gamboa,
cai no rio e se anima o pescador,
na esperança de um peixe lutador
que, na linha do anzol, puxe a canoa;
remo solto, segura-se na proa,
porque sabe os segredos de seu rio
e não foge jamais ao desafio,
visto que água no chão é mão na luva...
Essas cenas ocorrem quando a chuva
cai na terra do sol e espanta o estio.

(…)
Vi a cana espremida na moenda,
vi os bois sonolentos na almanjarra,
na qual já trabalhavam quando a barra
da manhã lourejava na fazenda;
e o engenho, que há muito virou lenda,
tinha cheiro de mel e rapadura,
mas o tempo mudou... Já não se apura
uma simples batida, ou alfenim.
No sertão, isso tudo levou fim,
mas a dor da saudade ninguém cura!

(…)
Não me esqueço do som da cantoria
nos alpendres de antigos casarões,
com sextilhas, martelos e mourões
recheados de nítida magia;
era um mundo encantado de poesia
que abracei desde minha tenra idade,
tradição nordestina de verdade
que não pode morrer nem fraquejar
porque é muito querida e popular,
mas mudou-se do campo pra cidade!

(…)
Quem trabalha precisa de repouso
pra suprir os efeitos do cansaço,
pois o esforço medido a cada passo
nunca pode tornar-se tão penoso;
nosso tempo é tesouro precioso,
como o próprio bom senso nos revela...
Desperdício das horas, sem cautela,
leva a perdas e danos sem medida
e ao desgaste das dádivas da vida,
desta vida que é curta, mas é bela.

(…)
No sertão, uma linda fiandeira
foi Maria Isabel, minha vovó,
que viveu no calor do Seridó
comandando uma roca de madeira;
punha os pés pequeninos numa esteira
fabricada com arte e paciência;
sempre estava na pobre residência
dando a bênção a adultos e guris...
Viveu quase cem anos, tão feliz,
com o novelo dos fios da existência!

(…)
No Nordeste, o mais duro cangaceiro,
Virgulino Ferreira, o Lampião,
assombrou todo o povo do sertão
com seu rifle temível e certeiro;
tinha fama de bravo bandoleiro,
pois, de fato, era intrépido e valente,
açoitava e matava cruelmente,
mas entrou pelo cano em Mossoró:
correu tanto, que as pernas davam nó;
mesmo assim, é um herói pra muita gente!

SETILHAS DIVERSAS

Aqui, se instala o verão
quando as nuvens vão embora;
inverno, prá nós, é chuva
que veste de verde a flora.
Quase todo o tempo é quente,
e o frio é como um presente,
mas, quando vem, não demora.
* * * * * * * *

Com a derradeira missa,
partimos pra eternidade,
depois das dores da morte,
eis a dura realidade!
Morrer é nosso destino,
mas, com gripe de suíno,
meu Deus, que infelicidade!
**************

Bom poeta vende os frutos
Na feira da honestidade;
No entanto sabemos de um
Que tem medo da verdade,
Porque, em vez de bons decretos,
Assinou “atos secretos”
Com tinta de improbidade.
******************

Quem mata um pezinho de erva
que prometia uma flor,
suja o rio ou cala a voz
de um canário cantador,
pratica um ato covarde
e algum dia, cedo ou tarde,
paga, seja como for!
********************

Existe uma estrela acesa,
sempre linda e radiante,
inspirando nossos versos
que descem do céu distante,
para que o mundo tristonho,
órfão de poesia e sonho,
um dia se alegre e cante.
********************

Minha vida em Pirangi
é fazer verso e sonhar,
conversar com as estrelas,
tomar banho de luar
e colher, durante o dia,
os retalhos de poesia
que a Lua deixa no mar.

Zé Lucas (1939)

José Lucas de Barros nasceu no município de Condado, na Paraíba, em 12 de março de 1939, mas registrou-se civilmente em Serra Negra-RN, terra de seus pais.

    Trabalhou no campo, no comércio, no Banco do Brasil e,  finalmente, exerce a advocacia, tem atividades literárias, sociais e religiosas.

    É advogado, poeta, trovador e pesquisador de literatura popular.

    José Lucas escreveu seus primeiros versos na adolescência e é, hoje, nome conhecido e admirado no mundo trovista. Escreve poesia em suas variadas modalidades, destacando-se em trovas e cordel. Suas criações primam pela inspiração e criatividade.

    Publicou em 1973, um livro de trovas, intitulado ”Cantigas do meu Destino”.

    Em 1985, o livro “Caminhada” com lindos conjuntos de trovas, sonetos, glosas e poemas de forma livre.

    Foi professor de Português e Literatura por dez anos.

    Participa em “O TROVADOR”, Órgão Oficial da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte, com a coluna: “Questões Simples de Linguagem”.

    Entidades a que pertence:
Academia de Trovas do Rio Grande do Norte
Associação Estadual de Poetas Populares – RN
Academia Curraisnovence de Letras
União Brasileira de Trovadores, seção de Natal/RN,
Instituto Cultural do Oeste Potiguar,
Membro da Academia Parnaminense de Letras.

Obras Publicadas:
 1 – Cantigas do meu Destino (Trovas),
 2 – Repentes e Desafios (Pesquisa de Literatura Popular), .
 3 – Caminhada (Poesias),
 4 – Diálogo em Trovas I (parceria com Delcy Canalles).
 5 – Diálogo em Trovas II (idem),
 6 – iálogo em Trovas III (Idem).
 7 – Quando Dois Rios se Encontram (Diálogo em sextilhas c/Delcy Canalles),
 8 – Do Potengi ao Guaíba (Diálogo em Setilhas c/Delcy Canalles).
 9 – Dois Poetas em Setilhas (Diálogo em Setilhas c/Ademar Macedo),
10 – Um Rojão em Sextilha Agalopada (com Ademar Macedo e Francisco Garcia de Araújo),
11 – Distâncias Que Se Aproximam (sextilhas e trovas em parceria com Delcy Canalles,
12 – Sexteto em Sextilhas (com A.A. de Assis, Ademar Macedo, Delcy Canalles, Francisco Garcia de Araújo e Gislaine Canales),
13 – No Balanço da Canoa (Trovas e Sonetilhos).
14 – Peleja em Martelo Agalopada (com Prof. Garcia)
Os diálogos poéticos foram feitos todos pela Internet. Há mais quatro em andamento e outros planejados.
15 – Resumo Biográfico do Mons. Lucas Batista (Cordel).

    Além de outros trabalhos inéditos.

    É também letrista em cerca de 20 músicas, com vários parceiros.

    Zé Lucas,como é conhecido, em seu livro Repentes e Desafios conta que o falecido Belarmino de França foi contratado para uma cantoria no município de Pombal (Triângulo), com a garantia do transporte de volta. Na hora da viagem o dono de casa ofereceu-lhe a garupa de um jumento. Diante da situação desanimadora, alguém gritou: "Jumento não tem garupa". Belarmino, instigado pelos presentes, improvisou:

Segundo o que está escrito,
Jumento por garantia,
Levou Jesus e Maria
De Belém para o Egito;
Não é um animal bonito,
Mas, no trabalho, se ocupa;
Se ele der uma upa,
Bota o sujeito no chão...
E eu não sei por qual razão
Jumento não tem garupa.


Fontes:
http://www.avspe.eti.br/biografia2010/JoseLucasDeBarros.htm
http://uniaocultural.blogspot.com/2011/01/no-universo-da-trova-delcy-canalles.html

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Clevane Pessoa (em pequenos frascos)

Fonte:
http://www.mgpoetasdelmundoempoesia.blogspot.com

Nilto Maciel (Hora de Despertar)

Filho desnaturado – disseram vizinhos de Bartira.

Num domingo de muita luz, Oliveiros beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora o espectro do sono flutuará na penumbra da sala.” Pareceu-lhe ouvir o chamado da doente e voltou. Os olhos dela o fitaram como se o fitassem há tempos, desde o princípio de tudo. “A qualquer hora seremos amputados pelo alfanje do vento.” Ele a beijou de novo e arrastou para mais próximo dela a mesinha com as fitas e o gravador. Quando quisesse ouvir outra fita, bastaria esticar o braço. E garantiu voltar logo.

Presa à cama e à cadeira de rodas, Bartira quase não falava mais e pouco enxergava. Urgia arranjarem acompanhante, enfermeira ou dedicada moça. Anunciaram nos jornais. Apareceram meninotas espantadas. Mocinhas loquazes. Senhoras de fala grossa. Porém, Bartira só se impressionou com uma e em razão de seu nome – Oriana. “Não precisa dormir aqui.”

Oliveiros passava o dia fora de casa, vendendo armas e munições numa loja. E aos domingos substituía Oriana nos cuidados a sua mãe.

Bartira sonhou desde menina uma vida de palcos, plateias e famas. Quis ser dançarina, mas seu pai cortou-lhe os passos pela raiz. Quis ser cantora, porém seu pai apertou-lhe a garganta com promessas de morte. Quis ser atriz e seu pai a chamou de meretriz. Quis ser, então, poetisa bem taciturna, olhos fundos, mãos trêmulas, envolta na névoa dos versos. Noturna, quase invisível. E pôs-se a compor elegias, enquanto lia poetas. O tempo, no entanto, se encarregou de amarelar seus versos. E uma súbita paixão os queimou. O vento levou-lhe as cinzas. O pai feriu-lhe as faces, chamou-a de perdida. Fosse criar o fruto amargo de seu pecado às custas da caridade pública. Entanto, Bartira não caiu, antes subiu aos palcos. Representou heroínas de todos os matizes. Viajou muito, conheceu heróis e vilões, enquanto via crescer o pequeno Oliveiros.

No meio do caminho, porém, aconteceu a catástrofe. Um acidente paralisou-lhe parte do corpo. E Bartira voltou aos versos. “Meu filho, leia para mim um pouco de Florbela.” O rapazinho lia sem jeito, como se lesse prospectos. “Leia aquele poema que começa assim: ‘Sou um ser, o outro é a metade que não sei de onde veio’. Oliveiros não sabia onde encontrar o poema. Dissesse o título do poema ou do livro. Ela se punha a pensar. Finalmente lembrava um nome: “Francisco Carvalho. Sim, tenho certeza, é dele.” O rapaz ainda não se satisfazia. Como encontrar um poema no meio de tantos livros? Se ao menos o poeta tivesse um só livro. E ainda nem havia falado de si mesmo, o cotidiano, o trabalho, as armas e munições. “Mãe, vendi uma pistola a um padre.” Ela se lembrava de armas e barões assinalados, de memórias gloriosas. “Estou cansado.” E iam dormir.

Aos poucos, mãe e filho foram aprendendo a conviver com a paralisia e a leitura. Ele não precisava catar poemas nos livros. Lesse tudo. E Oliveiros leu Anacreonte, Bilac, Camões. Foi lendo todos os livros da biblioteca de casa. Quando Bartira dormia, ele fechava o livro e ia também deitar-se.

Chegada a vez de Zorrilla, sentia-se Oliveiros cansadíssimo. E, no entanto, sua mãe queria ouvir tudo de novo. Para fazer a seleção do melhor. Assim, quando quisesse ouvi-los outra vez, saberia onde localizá-los. “Por que não tivemos antes essa ideia?”

Outra ideia encantadora chamava-se Oriana. Limpava a casa, preparava as refeições, cuidava de Bartira e lia versos em voz alta: “há muito te procuro na ladeira das tardes em declínio.”

Hemorragia no céu, melancolia nos olhos. “Já vou, Bartira.” E Oriana punha uma fita no gravador. “O vento que veio dentro da mansarda era um azul como os devaneios da tarde.”

A ideia de gravar poemas em fitas caiu do céu. A voz de Oriana era macia; a de Oliveiros, serena. Um pouco de cada poeta.

Então o rapaz sentiu-se mais livre para voar nos ventos de sua juventude. E num domingo de muita luz beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora crepitará a chama da presença.”

Demorou-se Oliveiros nos braços da noite. A madrugada o beijou mil vezes, e o afagou e o deslumbrou.

De manhã Oriana encontrou rija a patroa. Chamou vizinhos, gritou, desesperou-se. Onde andava o filho, aquele ingrato? Talvez um crime tivesse acontecido. Solicitaram a polícia. Acionaram o gravador. “A qualquer hora seremos impelidos para o terrível despertar”.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
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Milton Hatoum (Relato de um Certo Oriente)

A obra de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente, nasceu em 1989, quando o autor apresentou à então editora da Companhia das Letras, Maria Emília Bender, o manuscrito de seu livro. Aprovado por Luiz Schwarcz, proprietário da Cia das Letras, o romance foi finalmente publicado, depois de um longo percurso de escrita, iniciado em 1982, na capital francesa.

 Busca mostrar as dificuldades presentes na convivência diária de familiares e amigos entre si, com seus diferentes segredos e comportamentos, faz deste um grande enredo.

O romance mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua própria história, quase que incomunicável com outro mundo que não seja o dele.

A memória, a identidade e a reconstituição de lembranças são os temas principais deste romance. A personagem protagonista consegue, por meio da rememoração de seu passado e com a ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida, dar sentido e valor à sua origem.

A (re)construção do passado é interessante, pois a narradora utiliza de diferentes recursos para reanimá-lo, seja por um odor, seja por uma voz, seja por um lugar. Esses e outros recursos são utilizados como meios de recuperar a memória perdida.

O enredo do romance é uma tessitura de retalhos narrativos que se alinham em oito capítulos. São várias histórias que se entrelaçam e se completam, lembrando assim o estilo da narrativa oral. Estas várias narrações, que em muito lembram a estrutura das Mil e Uma Noites, se desenrolam em um cenário que lembra constantemente as estruturas de passagem que compõem a existência humana.

A trama se passa numa cidade marcada pelo hibridismo cultural e atravessada pelas ideias de fronteira e trânsito: Manaus, uma capital que se separa da floresta pelas águas fluviais e se situa num estado que faz divisa com três outros países. Ela também é a cidade natal do escritor. No livro também estão presentes a diversidade de costumes, línguas, e a convivência entre indivíduos de diferentes nacionalidades.

Nesta busca incansável da personagem principal por sua identidade e suas origens, em uma Manaus que é mais margem do que propriamente uma metrópole, apesar de ser a capital amazonense, o leitor vai desvelando junto com a protagonista um passado repleto de segredos e revelações inimagináveis, relembrando e descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.

Retornando a Manaus, após estar internada em uma clínica de repouso em São Paulo, a narradora chega na noite que precede o dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva.

Inicia-se, então, o trabalho de recuperar Emelie através da memória, não apenas a sua, mas também a de outros personagens que entrelaçaram seu percurso de forma significativa ao daquela família: o filho mais velho, o único a aprender o árabe e que também irá se distanciar de todos, ao mudar-se para o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo; o marido de Emelie, recuperado, mesmo depois de morto, através da memória de Dorner, e Hindié Conceição, amiga sempre presente, a partilhar com a conterrânea a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosaico, nem sempre ordenado, nem sempre claro naquilo que revela, mas sobretudo rico em pequenos detalhes de extrema significação.

No intuito de enviar uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona, a fim de lhe revelar a morte de Emilie, escreve um relato com depoimento de membros da família e de amigos, conforme o irmão lhe pedira na última correspondência que lhe enviara. Esses testemunhos proporcionam uma verdadeira viagem à memória, com regresso à infância e aos fatos marcantes da vida familiar.

No primeiro capítulo, a narradora descreve uma parte da casa na qual acabara de acordar, em Manaus. A descrição das duas salas contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando uma representação estilizada desse local: tapete de Isfahan, elefante indiano e reproduções de ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos ocidentais, tomados como símbolos, que estão presentes nos cômodos.

No romance as histórias falam das possibilidades e das dificuldades do trabalho com a memória, das tensões e da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos diferentes das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na narrativa do Relato, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e são vividas cotidianamente.

O que mantêm a tensão no romance é a narrativa centrada em incidentes – o atropelamento de Soraya Ângela, o afogamento de Emir.

A obra, em sua estrutura e estratégia de composição, parece oscilar entre a narração – em que a figura do narrador é extremamente importante e o relato é feito principalmente com base nas tradições orais, como uma tentativa de rememorar as experiências coletivas do passado – e o romance, que surgiria como um gênero literário devido as transformações da sociedade capitalista, que destrói cada vez mais a possibilidade de que a experiência comum viva e se revele no relato dos narradores.

Este mosaico narrativo é também influenciado por outro retrato memorialístico, tecido pelo francês Marcel Proust no seu clássico Em Busca do Tempo Perdido. Para Hatoum a memória é uma peça fundamental, sem a qual não se tece a verdadeira literatura. E esta obra é, sem dúvida, uma das maiores apologias ao seu poder.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/relato_de_um_certo_oriente
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/relato-de-um-certo-oriente/

Gustavo Barroso (Emboscada)

A Mello Morais Filho

 Mais tarde, regressava com sua força, ao lado duma moriçaba, quando ao enfrentar uma moita, no lugar Mangabeira, meia légua distante de Lavras, uma bala, partida do mato, o derrubou do cavalo, instantaneamente morto!
      J. Brígido: O Ceará.


                 Apesar dos seus melhores amigos o haverem prevenido com provas cabais que o Inácio de Albuquerque pusera assassinos de tocaia no percurso que tinha que fazer de Umari ao Iguatu, o Estevão de Matos não recuou da resolução que tomara. Ir àquela cidade sertaneja a cavalo, varando o sertão inóspito, representava para ele um compromisso de honra. Havia prometido à firma Ricarte Irmãos saldar as suas dívidas no dia 30 do mês. Os seus negócios de gado em Pedras de Fogo tinham dado lucro suficiente. Possuía o dinheiro necessário ao pagamento das letras que os Ricartes guardavam. Eles lhe haviam emprestado aquelas somas para salvá-lo duma situação aflitiva nos seus negócios. Pusera-os em dia, só lhe restava agora desobrigar-se da promessa. Não haveria forças humanas capazes de o demover. Nem mesmo aceitava o alvitre de mandar pagar por outro. Iria em pessoa, para mostrar à firma que era homem de palavra e para mostrar ao Inácio que não lhe temia os cabras traiçoeiros e a vingança mesquinha.

                A mulher, em lágrimas, rojou-se-lhe aos pés; os filhos pequenos suplicaram-lhe em vão. Marcou o dia da partida. Deu ordens severas para milhar bem o cavalo ruço e preparar um mocó de sustância. Destemeroso, honesto e franco não se arreceava de outro homem. É verdade que dum tiro certeiro de espera ninguém se livrava. Mas ele “sabia onde moravam os mocós”. Era vaqueiro velho, cheio de mocambos, conhecedor de negaças. Andara uns tempos atrás de cangaceiros, guiando destacamentos. Tinha plena confiança em si.

                No dia marcado seguiu viagem. Partiu de manhã, mas não se embrenhou logo nas catingas. Algum esculca o havia de ter espiado e logo corrido a levar a nova aos assalariados das emboscadas. Parou fora da vila, em casa de Matias Florindo, escondeu o ruço na casa de farinha e ali se ficou a parolar com o amigo até a boca da noite. Com o escuro foi embora, levando o animal devagar, a clavina de repetição passada sobre o arção do ginete. Deixou a estrada e meteu-se pelo mato, guiando-se pelas estrelas faiscantes, que avistava por entre a ramaria rala dos paus-brancos. Tinha medo da lua. Nessa noite ela ainda se levantava tarde. Mas ao outro dia nasceria mais cedo e ao outro mais cedo ainda.

                Quando ela clareou o matagal, madrugava já. Distanciou-se mais da estrada que seguia paralelamente, avistando-a, às vezes, por entre os troncos lisos. Num fechado de rompe-gibão, mandacarus e umburanas, onde o pasto verde e suculento cobria o chão, tirou os arreios do cavalo e amarrou-o pelo cabresto a um tronco. Depois, fazendo da carona manta e da sela travesseiro, adormeceu ao pé das árvores.

                O sol nascia.

                Assim viajou mais uma noite e dormiu mais um dia. Na terceira noite de viagem, a lua veio muito cedo. Aquilo contrariava-lhe os planos. Além disso, a catinga naqueles lugares era tão espessa, tão eivada de espinhais, tão acidentado o terreno, de barrocas, pedras e fojos naturais, que só teve um remédio, depois de experimentar o trânsito do mato em várias direções, que foi ganhar a estrada larga e seguir por ela, lento, de ouvido à escuta e olhos à espreita.

                O luar claro escorria pelos troncos alvos e fazia das resinas transparentes lágrimas de luz. Altas, imóveis, as frondes das árvores destacavam-se na claridade do céu. Mães-da-lua gargalhavam ao longe, muito ao longe.

                Os olhos argutos do Estevão notaram que numa gameleira grande, entre dois grossos ramos em forquilha, as folhas eram tão chegadas que por entre elas não se coava o luar. Parou o cavalo e apontou a clavina para aquele escuro da folhagem, na desconfiança instintiva em que vinha de homens atocaiando-o nas moitas e das copas das árvores. O tiro partiu, ecoando nos pedregais. E um vulto de homem tombou mole, lá do alto, a escabujar na estrada branca.

                Do alto de outra árvore mais adiante veio uma voz de homem, dura e cortante no silêncio daquela solidão.

                – Mataste, Chico?

                O Estevão estremeceu. A emboscada era de dois. Que havia de fazer? Se falasse, o salafrário conhecer-lhe-ia a voz e fugiria a prevenir o amo vil da morte do companheiro. Se não falasse, o miserável desconfiaria, havia de tentar espiar o que se passara e iria dar o alarma à chusma acanalhada dos bandidos do Inácio, ou do seu esconderijo talvez o prostrasse com um tiro bem dado. Essa hesitação durou um instante. A sua grande calma ante os perigos salvou-o, ajudada da fertilidade do seu espírito aguçado e todo sutilezas. Soltou um assobio arrastado e discreto, chamando o outro:

                – Fô – fi – i – i – ô – ô – ô...

                Ligeiro, apeou-se do ruço e ficou de pé, de clavina aperrada, no meio do caminho iluminado, ante o corpo do cangaceiro. O outro veio, cauteloso. Ao avistá-lo na claridade do luar, levou a arma à cara. O tiro partiu e o bandido caiu de joelhos, com um grito. Depois tombou de frente no barro, estorceu-se alguns segundos. Aquietou-se por fim.

                Ao seu grito, só o eco respondeu. Nem uma voz soou nas espessuras das moitas ou baixou da ramada das umarizeiras. Pesou um grande silêncio no sertão enluarado. O Estêvão montou o ruço. Acendeu o cachimbo e largou veloz pela estrada em fora...

 (Gustavo Barroso, Praias e Várzeas; Alma Sertaneja, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, Coleção Dolor Barreira, págs. 60/62)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Início do Século XX – Gustavo Barroso

Ao analisar os anos de 1909 e 1910, Dolor Barreira assim se manifesta: “O conto, de sua parte, adormecera desde os buliçosos e entusiásticos tempos da Padaria Espiritual e do Centro Literário, com José Carvalho, Eduardo Saboia, Artur Teófilo, Viana de Carvalho, Soares Bulcão, Aníbal Teófilo, Pedro Moniz, Frota Pessoa, Marcolino Fagundes, Joaquim Fabrício e outros”.

Além desses, muitos outros contistas surgiram nos primeiros anos do Século XX, quase todos dedicados muito mais à poesia do que ao conto: Alf. Castro (Alfredo de Miranda Castro, nascido em Pernambuco), Antônio Furtado (autor de Ideia Fixa, contos, 1931), Atahualpa Barbosa Lima, Bezerra Filho, Carlos de Vasconcelos (Granja, 1881 - Rio de Janeiro, 1923, publicou os contos de Os Deserdados, 1921), Carlyle Martins (além dos inúmeros volumes de poemas, deixou Alma Rude, contos, 1960), Clovis Monteiro, Cruz Filho (poeta e historiador, publicou tardiamente Histórias de Trancoso, 1971), Daniel Lopes, Domingos Bonifácio, Edigar de Alencar (Fortaleza, 1901. Jornalista, cronista e poeta. Na orelha do livro de poemas Galé Fugido, de 1957, há referência a Volta da Jurema, título geral de seus contos, nunca publicados), Ernesto Paula Sena, Estevam Mosca, Francisco Matos, Genuíno de Castro, Gil Amora, Gustavo Frota Braga, João da Maia, José Luís de Castro, José Potyguara ou Potiguara, Maria Stela Barros Nascimento, Martins Capistrano (Canindé, 1905, editou Turbilhão, contos), Melo Sidney, Ocelo Sobreira, Pancrácio Júnior, Pontes Vieira, R. Magalhães Júnior (Ubajara, 1907-1981, poeta, biógrafo, contista, autor de Impróprio para Menores (1934) e Fuga e Outros Contos (1936), ambos de narrativas curtas), Saboia Ribeiro (Jaguaribe, 1898, contista, romancista, poeta e ensaísta, imprimiu em 1933 os conjuntos de histórias curtas Rincões dos Frutos de Ouro, premiado pela Academia Brasileira de Letras, e Contos do Cacau, em 1966) e Santino Gomes de Matos.

Braga Montenegro afirma que “o conto cearense só adquiriu substância e qualidade artísticas após ou simultaneamente à guerra, com novos nomes e novas intenções estéticas”.

Desse período dois nomes merecem destaque: Gustavo Barroso e Herman Lima.

Gustavo Barroso

Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza, 1888 - Rio de Janeiro, 1959) exerceu o jornalismo em sua terra natal, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito, iniciado em Fortaleza. Voltou ao Ceará como Secretário do Interior e Justiça, em 1914, exercendo depois mandato de deputado federal pelo Ceará. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi dela presidente por duas vezes. Sua vastíssima bibliografia, que chega a quase cem títulos, versa os temas mais diversos. Cultivou a História, a sociologia e o folclore. De contos, publicou: Praias e várzeas (1915), Mula sem cabeça (1922), Livro dos milagres (1924), O Bracelete de safiras (1931).

Sânzio de Azevedo informa que “se trata de um dos maiores vultos do conto realista e regionalista do Ceará”. E acrescenta à lista de suas coleções de histórias O Livro dos Enforcados (1939), sobre o qual diz o seguinte: “tão esquecido de quantos enumeram os contos de Gustavo Barroso, e que, não obstante seja baseado em acontecimentos históricos, retirados da crônica criminal do Ceará, reúne algumas narrativas do mais autêntico sabor ficcional”. Numa análise de várias páginas do ensaio citado linhas atrás, assegura o crítico: “Não é difícil perceber a segurança com que Gustavo Barroso trabalha o conto, não o alongando excessivamente, e demorando-se em descrições apenas o estritamente necessário à pintura do ambiente e à preparação do clímax da fabulação”.   

Otacílio Colares, no ensaio “Gustavo Barroso e o Regionalismo”, introdução à edição de 1979, da Livraria José Olympio Editora, de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja, num só volume, reabre a questão: estes escritos são contos ou apenas estórias populares adaptadas? “Num como noutro destes livros daquela prosa que diríamos ser ainda alencarina, pela musicalidade, mas, já em parte, pessoal, pelo cunho de realismo regional, quase – diríamos – tendente ao documental, num como noutro, o leitor preocupado com definições rígidas esbarra com o dilema: são contos o que está em ambos os volumes reunidos, ou apenas o são no que a palavra conto significa invenção e a palavra raconto é entendida como repetição (podendo ser modificada) de velhas narrativas.”

Braga Montenegro vê nele o ponto culminante da narrativa curta no Ceará nos primeiros anos do século XX. Entretanto, vamos nos ater aqui apenas a dois de seus livros de histórias curtas: Praias e Várzeas, de 1915, e Alma Sertaneja, de 1923. Para Otacílio Colares os episódios do primeiro livro seriam “racontos de estórias passadas de pais para filhos.” E acrescenta: “Como se pode facilmente verificar, há todo um contexto informativo a par do conteúdo, vamos dizer, ficcionístico ou literário. E, acima disto, a preocupação de empregar toda uma terminologia regional praiana” (...). Na verdade, o que mais chama a atenção do leitor nestes dois livros de Gustavo Barroso é a estruturação das narrativas nos moldes dos contos populares ou das histórias orais. A manipulação da linguagem erudita e popular se faz tanto no discurso direto como na descrição de ambientes e personagens e na narração propriamente dita. A par disso vem o núcleo básico de cada episódio, sempre envolto em tragédia. Outra característica destes contos é a fiel retratação dos ambientes praianos, varzianos e sertanejos do Ceará. Quanto aos narradores e personagens, verifica-se a presença quase que constante de dois narradores: um narrador-testemunha, que se confunde com o próprio escritor e inicia a estória, e um protagonista-narrador, que conta o episódio principal, quase sempre em diálogo com o primeiro ou instigado por este. Em quase todos os contos o narrador-escritor inicia a narração e, em seguida, a “entrega” ao narrrador-testemunha ou protagonista. Apesar disso, a oralidade sertaneja ou praiana não descamba para a linguagem puramente regional e popular. O escritor conduz a fala do outro narrador, sem prejuízo do uso de vocábulos (substantivos e verbos) e expressões regionais.

Em “Velas Brancas” o protagonista é Matias Jurema, “velho pescador do Meireles”, em Fortaleza. A referência aos objetos de uso em pescaria é minuciosa: samburás, tarrafas, poitas, jangadas, tauaçus, quimangas. O narrador não participa da história, é o próprio escritor. E o conflito do velho pescador com a vida e o mar se faz em silêncio e solidão.

A descrição do ambiente praiano em “Finados” é soberba: coqueiros frondosos, praia branca, jangadas e suas velas abertas, no povoado de Mundaú. E a história remete a uma das crendices do povo da praia: “Quem vai pescar dia de finados sujeita-se a não voltar e morrer de assombração no mar” (...). Lucas, no entanto, quer afrontar a morte e sai ao mar. No dia seguinte “os jangadeiros encontraram restos de uma jangada e no meio deles, espetado em pontas finas de rochas lodentas, o cadáver de Lucas.

Em “Naufrágio” “o mar tinha uma calma aparente”, um iate navegava com quatro tripulantes. E a história, “vista” do mar, vai adquirindo ares de tragédia. Primeiro “lufadas imprevistas”, depois outra rajada, a neblina, a chuva. “E o iate virava de bordo no espumejar da vaga.” Os ventos se tornam fortes, terríveis, “a crescer numa espantosa velocidade.” Finalmente “houve uma grande pancada”. Dois homens, “cuspidos n’água, debatiam-se em desespero.” O barco “foi-se afundando, afundando.” De manhã “boiavam cadáveres e fragmentos de tábuas ao sabor das ondulações.”

Em “O Pescador”, como em outros contos do livro, há logo no início uma descrição: as ondas, a praia, coqueirais, dunas, rochedos, um farol. Paisagem pintada com exuberância, para que nela os personagens se movimentem. No terceiro parágrafo surge um personagem. Antes dele, porém, mais um pedaço do ambiente: uma choupana pobre. Pedro Jojó se move: “pôs o uru a tiracolo, enrodilhou a tarrafa no braço, segurou ao cinto a quicé afiada e dispôs-se a partir para a pescaria”. Outra crendice do povo da praia: a do “pescador encantado”, mau e governante das águas e dos peixes do rio. Pedro se diz incrédulo, a despeito dos pedidos de sua mulher. Metido nas águas da barra do Pacoti, o pescador vê erguer-se “um vulto que saía das águas.” No dia seguinte pescadores depararam o cadáver de Pedro.

A destoar das narrativas anteriores, “Santa” é narrada na primeira pessoa: testemunha ou o próprio escritor. Além disso, trata-se de episódio do sertão, em tempo de “seca brava”. Otacílio Colares o chama de “narrativa de cunho regional”. O narrador, sem nome explícito, cavalga um cavalo na serra do Pereiro. A paisagem seca é descrita aqui e ali. Uma personagem aparece na segunda página: “uma cabocla forte e esperta”. Em seguida se apresenta o marido dela, “um caboclo ossudo, alto”. Já quase no final da narrativa o segundo personagem se faz narrador para contar a história da santa do título. Dois personagens participam da trama: “o velho Chico de Paula” e sua mulher, a santa. E as duas tramas se cruzam, como se personagens reais passassem a conviver com personagens fictícios. A segunda mulher, a santa, já envelhecida, se mostra no cenário onde se encontram o narrador inicial, a cabocla e seu marido, o narrador do conto da santa.

Outra história de cenário sertanejo é “Espectro”: “A paisagem tinha a tristeza dos ermos” (...). Na paisagem, uma fazenda, a capela senhorial, com seu sino de cobre, a residência feudal do padre Ferreira, “um dos homens mais ricos e poderosos do sertão”, o protagonista. O ponto de vista onisciente conduz o leitor ao passado (ao tempo da escravidão, quando “estralejavam os chicotes dos capatazes”), à vida do personagem, a esbanjar riqueza, em meio à pobreza de seus servos, açoitados por qualquer motivo, até a morte, quando o cavalo em que viajava espantou-se e o levou ao chão. E mais uma vez a crendice: o corpo do padre desapareceu, levado pelo diabo. Na tarde do enterro viram “um negro todo encourado surgir na casa da fazenda”. (...) “Era Satanás em pessoa” (...).

O narrador de “A Luíza do Seleiro” é um viajante do sertão, uma testemunha ou o próprio escritor. O ambiente é o vale do Aracoiaba, nas proximidades das “serras do Baturité e do Acarape”. O narrador descreve a mata verde, as flores selvagens, as árvores, as águas mansas. Na terceira página se mostra o segundo narrador, o da narrativa do título. A personagem é descrita: “olhos rasgados e negros”, “pele macia e aveludada”, “grumos vermelhos dos seus lábios”. Mais adiante se revela outro personagem, Estevão Nunes, “filho de um fazendeiro rico”, estudante na cidade do Forte (Fortaleza). Um dos contos mais longos dos dois livros.

O protagonista de “O Patuá” é Chico de Paula, um saco de pancadas ou “armazém de pancadas”, seu apelido. O episódio transcorre na vila do Riachão, “ribeira sertaneja”. Tudo gira em torno de um patuá, um amuleto que faz do personagem um valentão, capaz de enfrentar cangaceiros.

Um dos contos ambientado em várzea é “Absalão”, nome de personagem bíblico. “A catinga acabava ali” (...) “e para diante várzeas estendiam-se planas”. O protagonista (pode-se dizer assim) é um velho touro chamado Orelhudo. A última refrega do animal com homem é o desfecho: a morte do vaqueiro, em primorosa narração.

História de violência, vingança e morte é “O Filho do Gurari” (gurari é “nome dum pau duro e espinhoso”), cuja ação decorre cem anos atrás, segundo Otacílio Colares, isto é, por volta de 1880. Grupos familiares em luta: de um lado, descendentes diretos de europeus, sobretudo holandeses, os Cavalcantis; de outro, netos de portugueses com índios Paiacus. De uma matança escapa um bebê, que é levado pelo grupo vencedor e criado como filho do chefe. Feito rapaz, é morto a mando do pai adotivo, por medo deste de que o jovem tome ciência da história da chacina.

Tema parecido com este é o de “Emboscada”, cuja ação se desenrola entre Umari e Iguatu. No entanto, o feitiço vira contra o feiticeiro: o emboscado acaba se dando bem, matando os dois homens encarregados de o matarem.

O segundo livro, Alma Sertaneja, tem como subtítulo “contos trágicos e sentimentais do sertão”. Na verdade algumas narrativas do primeiro também se adaptam a este modelo. A maioria das histórias sertanejas segue o mesmo esquema narrativo: um narrador não identificado ou sem nome explícito inicia a narrativa e apresenta o segundo narrador-personagem ou testemunha. Os animais do sertão mais uma vez estão presentes como personagens. É o caso do touro Azulão, de “Marialva Sertanejo”. O heroísmo, a valentia, a coragem do sertanejo, ao lado da miséria, da fome, da seca, são assuntos desses contos. Em “O Come-Gente” Gustavo Barroso atinge o clímax do realismo, com o personagem Luiz Zambeta, “que ficou maluco de fome” e se tornou “estropófogo” (antropófago). Em “O Drama do Guriú” a fome é dos tubarões (história praiana), que devoram toda uma família, à exceção do chefe. “Os infelizes debatiam-se nas águas movediças e os tubarões, virando-se de dorso para baixo, vinham furiosamente, os papos amarelos à mostra, atacar os prisioneiros do oceano.” Em “A Alma do Turco” não há um segundo narrador, mas diversos. Os personagens-narradores se acham numa barranca do rio Quixeramobim. Teodósia conta o último episódio, o do título. O protagonista é um animal, um cachorro grande, o Turco. Tanto o narrador-escritor como a narradora-testemunha fazem questão de dar alma ao animal ou de humanizá-lo. Acusado de furtar queijo e espantar e matar galinhas, o cão é escorraçado de casa diversas vezes. Ao final, se deixa morrer ou morre de tristeza, ao perceber a aproximação do dia em que será levado por um paroara para muito longe, um seringal no rio Xingu, no Amazonas. Em “A Moça da Sapiranga” o primeiro narrador se acha, com outros personagens, ao pé da serra da Tucunduba, após atravessar o rio Ceará. O segundo narrador, Maneco, conta história ocorrida em Orós, a da moça com sapiranga nos olhos. Em “Os Noruegueses do Sabiaguaba” o primeiro narrador se revela um pouco, ao anunciar ao leitor: “E era isso o que a minha curiosidade de escritor ia procurar na casa vetusta do Curió.” A narrativa acontece em Sabiaguaba, “um recanto de praia e bem bonito, por sinal, entre a barra do Rio Cocó e a do Pacoti.” Em “Chifre de Cabra” o narrador-protagonista é João Gameleira, o pajem do narrador-escritor. O episódio se dá na cidade de Quixeramobim. Mulher trai marido, João Gameleira, e é por ele assassinada, juntamente com o outro. Também história de seca é “A louca”, a lembrar “Come-Gente”. Nela o ponto de vista onisciente não deixa entrever um narrador-personagem ou testemunha. O protagonista é Domingos Lopes. Acossado pela seca, vaga pelos sertões. Depara uma casinhola no meio do sertão. Na entrada vê “o cadáver dum cachorro magro”. Dentro da casa, “os corpos apodrecidos de três pequenas crianças”. A seguir, depara a mãe, a louca do título. Na serra de Baturité acontece o episódio de “O Poço das Piranhas”, a lembrar velhas narrativas de horror. Outra história de seca é “Os Filhos do Capitão João Pedro”, ambientada em Fortaleza. Um dos poucos contos em que a capital cearense, ou o seu litoral, é retratada. “Mano Francisco” se inicia com “Sertão inóspito!” É o sertão de Mombaça. O protagonista é Francisco, irmão do narrador-testemunha, “uma coisa medonha”, “um monstro em forma humana”. O tema é a loucura. O homem “ficou doido varrido”, matou um irmão com a mão-de-pilão e “está convencido que virou leão!” O ponto de vista onisciente é retomado em “O Perdão das Trevas”, no qual mais uma vez a seca é tema. Em “O Lobisomem” o contista “engana” o leitor, desde o título e a primeira frase: “Estórias de lobisomens!” Na verdade, se trata de história de um falso lobisomem, o vaqueiro Geraldo, “que tinha fama de homem honesto”, porém mais interessado num pacote de dinheiro do que em sangue humano. A história transcorre em 1899, na ribeira do Banabuiú. A última narrativa, “Como eu Matei a Maçaroca”, também se localiza no sertão, ao tempo dos cangaceiros e de onças, as maçarocas. São diversos pequenos episódios. O narrador onisciente dá voz ao narrador-personagem, o anspeçada Xico Linheiro, o matador da onça.

A matéria-prima dos contos de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja é, pois, a natureza em toda a sua pujança e o homem como ser biológico e como ser cultural, este integrado àquela não apenas na paisagem, mas na própria vida (ação), o que faz de Gustavo Barroso um contista (um escritor) pinturesco e, ao mesmo tempo, dramático (drama, conflito) da terra e da gente cearenses.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.