sábado, 22 de maio de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 19: Chutando cacos

ANAXIMANDRO GOROROBA, logo cedo, mal tendo tempo de colocar os pés fora do portão, se encontra com seu vizinho de rua, e de casa, o Pelicano Empalhado. Antes de mandar um ‘bom dia,’ ou um ‘como vai’, opta por perguntar, ao amigo, pela filha dele, a linda e encantadora Juldrene Cata Piolhos.

— E ai, Pelicano Empalhado, como está a nossa menina Juldrene Cata Piolhos? Desculpe a curiosidade. Sei que estou sendo meio indiscreto. Soube, pela minha esposa Gasparina, que ela, finalmente, se livrou daquela mania estranha de querer namorar todos os rapazes aqui do nosso bairro. Procede?

— Verdade, meu caro Anaximandro. A pobrezinha, agora, está completamente liberta...

— Que ótimo. Folgo em saber... O que ela está fazendo? A Gasparina me falou também que voltou a trabalhar e a estudar?

— Sim. Havia trancado a matrícula mas orei por ela, pedi tanto, coloquei os joelhos no chão, umas oito vezes por dia. Deus ouviu as minhas preces. A preciosa voltou às funções de supervisora na fábrica de mordaças para bocas de fofoqueiros e retornou à faculdade de odontologia.

— Estou feliz em saber. De verdade. Percebo, olhando para seu rosto, que está feliz. Acertei?

— Sinceramente?

— Claro!

— Não, não estou...

— Posso saber o motivo?

— Ela parou, de fato, com aquela loucura de namorar a galera aqui da nossa rua, inclusive o seu querido filho garanhão, o Enantato Camomilo...

— Eu sei. Acredite, não é de hoje, venho dando conselhos à ele. Domingo tivemos uma conversa séria e fiz questão de deixar pontilhado o seguinte: Enantato, para com esta ideia. Tome vergonha, nesta sua fuça descarada. Não pode ver um rabo de saia... Fuja da Juldrene Cata Piolhos. Ela não é a moça certa para você construir uma família. Lembra, ela é uma...

Pelicano Empalhado muda as feições. Fecha o cenho. Está literalmente carrancudo e pê da vida.

— Continue, Anaximandro... Ela o quê?

— Nada, meu amigo. Esquece...

— Começou, termine. Ela o quê?

O pai de Enantato Camomilo, como se costuma dizer, se vê enfiado numa tremenda saia justa. Pelicano Empalhado, por seu turno, parece fora de si.

— Nada. Eu não disse nem pretendia falar coisa alguma.

— Seu mentiroso. Você ia vomitar algo a respeito da minha filha. Vamos, complete. Juldrene Cata Piolho é uma...? Vamos... desembucha... Seja macho igual a sua esposa Gasparina....

— Qué isto? Papo mais louco! Esquece. Deu branco. Não ia dizer nada. Estou feliz, repito, por saber que ela parou de pular de galho em galho. Mais hoje, mais amanhã, acabaria prenha, buchuda, em decorrência de uma gravidez indesejada. Ela é tão nova...

— Agora é meio tarde, Anaximandro. Ela engravidou. E não foi por falta de aviso, lhe asseguro. Eu cansei de falar: filha, pare com isto, você é nova, tem uma vida toda pela frente... Se quer namorar, arranje um rapaz direito e decente, trabalhador, não um bunda mole que vive surfando de domingo a domingo e às custas dos pais...

— Se fosse meu filho, juro que pegava o cabra de jeito e metia porrada. E diria: eu não lhe avisei, seu filho de uma égua? Está vendo? Tanto fez, tanto aprontou, que embarrigou aquela sirigaita mal acabada. Não se cuidou... Bem feito, agora pega aquela cadela sarnenta e suma da minha frente... Pelicano Empalhado, desculpe, me empolguei. Sabe ao menos, quem é o pai da cria?

— É evidente que sei.

— Dos males o pior. Corre atrás do infeliz e faça o miserável assumir a situação. Virou os olhinhos, balançou os esqueletos, fez o bolo, agora precisa ajudar a partir e comer...

— Seguirei seu conselho, Anaximandro. E farei isto ao pé da letra. O maldito comerá o bolo que ajudou a fazer... pedacinho por pedacinho...

— Assim é que se fala, meu amigo. Obrigue o desgraçado a reparar o erro.

— Farei isto, pode estar certo. E digo mais: se ele não me der ouvidos, poderá pedir para os pais irem encomendando o caixão...

— E você sabe, então, quem é o amaldiçoado, Pelicano Empalhado?

— Não só sei quem é o famigerado, como terei um papo de homem pra homem bem bacana com ele!

— Assim é que se fala, meu amigo. O negócio é botar ordem no galinheiro. Mas agora se abre. Quem é? Me fale que lhe ajudo a encostar o sujeito contra a parede. E, ainda, de contrapeso, lhe ajudo a meter o ferro nele. Ah... se um pilantra faz isto com uma filha minha...

— Você disse bem. Vou precisar, realmente, que me ajude. Assim, nem precisei pedir SOS...

— Sou seu amigo, Pelicano Empalhado. Você sabe melhor que ninguém. Nossa amizade não nasceu numa mesa de botequim. Vamos, meu velho, diz ai: quem emprenhou a pobrezinha da Juldrene Cata Piolhos?

Pelicano Empalhado, muito sério e, a ponto de pular no gogó do pai do miserável que desonrara a sua única herdeira, se segura, engolindo o ódio que sente:

— O vadio malandrino do Enantato Camomilo, seu filho...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Varal de Trovas 502

 


Rubem Braga (Sizenando, a vida é triste)

Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Esta frase não é minha, e desgraçadamente não consegui saber o nome de seu autor, pois acordei muito cedo, mas não bastante cedo; quando liguei o rádio às 6:10 a aula já tinha começado; ouvi o programa até o fim, mas não fiquei sabendo o nome do professor. “La verando estas vera jardeno, plena de floroi.” Nunca estudei esperanto, mas suponho que a varanda ou o verão está com muitas flores no jardim; de qualquer modo é uma boa notícia, algo de construtivo.

Confesso que a certa altura mudei de estação; sou um espírito inquieto. A estação logo à direita dava telegramas de Argel, crise na França; fui mais adiante, sintonizei um bolero; tentei ainda outra, dizia anúncios; voltei para o meu jardim florido em esperanto.

O professor estava agora respondendo cartas de ouvintes. O Sr. Sizenando Mendes Ferreira, de Iporá, Goiás, escrevera dizendo que achara suas aulas muito interessantes e queria se inscrever entre seus alunos.

Sou um homem do interior, tenho uma certa emoção do interior, às vezes penso que eu merecia ser goiano. A manhã estava escura e chuvosa em Ipanema; e me comoveu saber que naquele instante mesmo, a um mundo de remotas léguas, no interior de Goiás, havia um Sizenando, brasileiro como eu, aprendendo que o jardeno está plena de floroi — e talvez escrevendo isso em um caderno.

Não importa que neste momento haja milhões de brasileiros dormindo insensatamente, enquanto outros milhões tomam café ou banho de chuveiro ou já marchem para o trabalho, ou que minha amada Joana esteja neste minuto saindo do Sacha’s e entrando no carro daquele stompanato de Botafogo. Eu e Sizenando cultivamos o jardim da cultura, plena de floroi; nós somos, de certo modo, a elite do Brasil; amanhecemos em flor.

Então o professor, talvez estimulado pela atenção do ouvinte goiano, fez uma pequena dissertação sobre a utilidade do esperanto e também sobre a vantagem de acordar cedo. Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Não será uma frase muito sutil, mas é tão pura e bem-intencionada que poderia figurar no decálogo do escoteiro. No fundo deve haver alguma ligação entre o escotismo, o esperanto e o acordar cedo. Eis uma falha de minha vida; nunca fui escoteiro; agora é tarde para quebrar coco na ladeira, mas talvez ainda seja tempo de aprender um pouco de esperanto; eu e Sizenando.

“Tenho um amigo” — dizia o professor — “que me confessou que nunca ouvira o meu programa, pois dorme até tarde. Pois bem. Ele ontem acordou cedo e ouviu o meu programa. Disse-me que passou o dia inteiro com uma excelente disposição, achou o dia maior e mais útil, ficou realmente satisfeito.”

O próprio professor estava satisfeito com a declaração de seu amigo; sentia-se isso em sua voz. Murmurei para mim mesmo que o golpe é este: todo dia acordar cedo, ouvir minha aula de esperanto e depois se houver alguma aula de ginástica pelas imediações topar também, mens sana in corpore sano; no fim de um mês os amigos vão ficar espantados, como o Braga está bem! Este pensamento me reconfortou; estendi a mão para pegar um cigarro na mesinha de cabeceira, mas fumei com um certo remorso. No fundo o esperanto deve ser contra o tabagismo, assim como é favorável ao escotismo.

Mi estas brunas.” Isto quer dizer: eu sou moreno. Mi estas brunas, ó filhas de Jerusalém, dizia a Sulamita. A esta hora Joana deve estar no carro daquele palhaço, toda aconchegada a ele, meio tonta de uísque, vai para o apartamento dele — um imbecil que não sabe uma só palavra de esperanto! A vida é triste, Sizenando.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Goulart Gomes (Poetrix) III

AGNOSTRIX


os deuses partiram
disse o mestre
mas os mortais não precisam saber
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CORDA BAMBA

anti-herói risível
vivo apenas
a perspectiva do possível
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ENCEGAR

não nasceu cego
a névoa foi se instalando
devagar
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ETERNO RETORNO

uma hora a gente cansa
deixa de ser velho
e volta a ser criança
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GREVE DOS PALHAÇOS

todos de caras pintadas
saíram em passeata
pelo aumento da graça
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(IN)FERNANDO

como Pessoa
arrumo meus versos
também sei que estou morrendo
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MINI-ORAÇÃO MATINAL

Nossa Senhora dos Desvalidos
livrai-nos de todo o Mal:
hospital, delegacia e tribunal
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POEIRA

uns, pretos
outros, brancos
até virarmos cinzas
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POR ESSES TEMPOS


a vida tem sido breve
seja leve
se não vai lhe ferir, releve
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PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

passa o carrinho
sejam doces ou salgadas
pipocam saudades
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RETRATO DO POETA QUE CLAMA NO DESERTO

lanço garrafas
lanço palavras
se não há mares, in vento
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SONÂMBULO

dois períodos de sono
entre eles
sonho
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SURDO, MUDO E CEGO
 
sem dar ouvidos aos alertas
minha voz não se cala
poeta e cego, feito homero
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TEMOR E TREMOR
 
nada que é conhecido me assusta
cruzo os dedos
para outros medos

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 18: Coice de mula

O GAROTO CHEGA NA SALA, se vira para o pai que está com os olhos grudados na televisão assistindo a decisão do campeonato de seu time preferido. Sem se importar com a impaciência do torcedor inveterado — que parece à beira de um ataque de nervos — o inocente manda a pergunta:

— Pai, ô pai, por que o pato não fica molhado quando nada?

Para se livrar do filho pentelho o homem responde ligeiro com a primeira ideia descabida que lhe acode à cabeça:

— Porque usa toalha.

Mas o moleque quer mais. Insiste:

— Iguais as que mamãe põe no banheiro quando o senhor entra para tomar banho?

— Sim. Agora vá brincar lá fora, filho. Cadê seus coleguinhas, o Ricardo e o Amauri?

O pirralho não atenta para esse fato de ir lá fora brincar com os amiguinhos. Na verdade, parece insatisfeito. De fato, está:

— Pai, ô pai, elas são de algodão ou de linho?

— O quê?  Cai fora, imbecil, dá um tempo!...

— Eu só queria saber se elas são de algodão ou de linho para falar para os meus amigos...

— Tá bom, porcaria. São de algodão.

— É por isso, então, que todos os patos são brancos? Por que são de algodão?

— Os patos não são de algodão.

— O senhor acabou de falar...

— Eu me referia às toalhas... não aos bichos em si.

O menino fica um tempo pensativo e logo a seguir volta à carga. Desembucha:

— Pai, ô pai, o pato é um bicho ou uma ave?

— O quê? Quem é bicho?!

— Perguntei se o pato...

— Depois, filho. Vá brincar. Deixa o jogo acabar. Tá quase no final do segundo tempo...

—  Mas eu...

— Tá. É ave.

O moleque sai correndo em direção à porta da rua. O sujeito respira, aliviado. Menos de dois segundos, contudo, retorna. E prossegue, curioso:

— Pai, ô pai...

O pai, entretanto, está pisando em ovos, pê da vida. É até capaz de estrangular alguém. Roe as unhas, em atitude desesperada.

— Vai, Ronaldinho —, grita gesticulando as mãos —, seu...   seu desgraçado, não perde essa... que filho de uma égua, chuta essa bola...

— Pai, ô pai...

Colérico, soltando fogo pelas ventas, o cidadão se volta para o pequeno. Seus olhos se cruzam por um instante apenas.

— Vai brincar... vai brincar.

— Eu estou brincando...

— E então? O que foi agora? Por que diabo não me deixa em paz?

— Eu queria saber se...

— Depois, depois. Agora não... Vai ver se estou na esquina...

— Mas, ô pai...

— Tá. Fala rápido, infeliz: o que é desta vez?

— Peixe bebe água?

Ronaldinho chuta para gol. O goleiro, atento, pula no ar. Por instantes voa, voa como se tivesse asas. Se a bola entrar, o time ganha, do contrário, vai para as cucuias. Além de perder o campeonato ainda por cima será rebaixado.

— Entra, entra, entra...

Por azar, a bola é agarrada na hora agá. O goleiro se abraça a ela, e, ao fazê-lo cai para o chão e se estrebucha no gramado em piruetas grotescas como se ensaiasse uma dança esquisita.

— Pai, ô pai...

A fúria do perdedor é tanta, mas tanta, que até esquece que é o pai. Desesperado e suando em bicas, pior que moringa nova, gira, então, sobre o próprio corpo e, envia um tabefe tão grande e forte que pega, em cheio, no rosto do filho. O coitadinho, igualmente ao goleiro, é atirado de cara contra os ladrilhos da sala. O sangue jorra de sua boca, com abundância, diante da força vigorosa, como se tivesse sido atropelado por um caminhão desgovernado em alta velocidade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (Canaã, de Graça Aranha)

José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís do Maranhão a 21/06/1848, tendo sido juiz e diplomata. Uma influência intelectual decisiva em sua obra é a de Tobias Barreto, que conheceu em 1882 enquanto cursava Direito no Recife. Formou-se em direito seis anos depois e mais quatro anos após exerceu o caso de juiz em Porto do Cachoeiro/ES, onde tomou conhecimento dos fatos que inspiraram Canaã. Seu primeiro trabalho foi o prefácio de um livro em 1894, quando já morava no Rio de Janeiro. Dois anos depois, em 1896, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, mesmo nunca tendo publicado nenhuma obra literária; tal fato só foi possível porque seu amigo Joaquim Nabuco lhe foi 'fiador literário' até 1902, ano da publicação de Canaã. Partiu em 1899 com o mesmo Nabuco para Europa como diplomata. Em 1911 sua peça Malazarte foi encenada com sucesso em Paris. Aposentou-se da diplomacia em 1921, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e abandonou a ABL em 1924. Não é considerado modernista porque sua única obra 'modernista', A viagem maravilhosa, de 1939, é feita em um estilo extremamente artificial. Morreu logo antes de publicar sua autobiografia, “O meu próprio romance”, em 1931. Sua única obra de significado verdadeiro é Canaã.

RESUMO:

Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado.

O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos, desde fazenda até instrumentos agrícolas.

É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.

Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.

À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.

Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.

Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo vestuário, a época de cada imigração.

Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Muller.

Ouvem música e veem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil.

Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Muller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica.

Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa.

A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.

Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiverem na mesma situação de Franz.

O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera.

Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira.

Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.

Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão.

Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.

Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal, começa a sentir as dores do parto.

Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.

A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens.

Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado.

Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria.

Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.

A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor.

Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.

Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia.

ANÁLISE DA OBRA

Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX (Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década do século XX.

O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e Lentz.

O personagem Milkau

Milkau representa o otimismo, a confiança no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe, revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da liberdade.

Milkau não se limita à defesa de ideias abstratas. Seu humanismo desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.

Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma competição de ódios mas uma conquista de amor.

Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.

O personagem Lentz

Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à dominação por parte de raças superiores. Lentz profetiza a vitória dos arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas ideias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo de Darwin.

Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja, imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.

A lei do amor x A lei da força

Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).

Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e antecipou a tomada de consciência dos modernistas.

Na verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos mais tarde em A Estética da Vida, de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação de consciência e universo.

Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao patriotismo superficial.

A estrutura romanesca e a linguagem

Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em discutir ideias (Canaã é, na verdade, um romance de ideias) prejudicou a composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A dimensão realista do livro é incompatível com a sua dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional. Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente ideias, e não pessoas), a desvalorização do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais. Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.

Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil, Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata, entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um naturalismo científico de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente, homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam.

A descrição de Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos, representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores, aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade.

 Assim, Canaã revela-se uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade. Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam no desenvolvimento da ideia de Milkau e na exaltação do Brasil.

terça-feira, 18 de maio de 2021

João Líbero (O Infinito)

O Número PI [π] é o resultado da divisão do perímetro de um circulo pelo seu diâmetro, o que resulta em uma dizima infinita não periódica que é 3,14159265358979323846… “ad infinitum!”  Dizem os matemáticos que ele contém todos os números de documentos de todas as pessoas do mundo, pois ele contém todas as combinações possíveis e imagináveis de sequência numérica, pois suas combinações são “ad infinitum”, isto é infinitas! Bom, disse tudo isso para ilustrar o que é o infinito, ok?

Diz a lenda que os matemáticos, no principio do mundo, decidiram fazer um concurso entre os números para escolher qual seria o símbolo do infinito. Quando os matemáticos apresentaram a dízima do Pi, que não acabava nunca, o número oito desmaiou!  Um dos jurados, na plateia, achou legal e escolheu o número oito deitado como símbolo do infinito. E foi seguido pelos demais, para desgosto do zero, que pensou que ele seria o escolhido, pela lógica! A lógica dele era: “zero é nada, nada é infinito!”. Ele se revoltou, mas, não adiantou. O oito deitado foi o escolhido! E até hoje ele é o símbolo do infinito!

Então infinito é aquilo que não tem fim, certo? Errado! Alguns “infinitos” tem fim sim!  O apaixonado diz à sua amada: -“Vou te amar até o infinito”! Daí no mês seguinte ele se apaixona por outra e o infinito da primeira foi pro espaço [ops]. Há coerência aí, pois, não dizem que o espaço é infinito? Também está errado! A lei diz, o teu espaço termina onde começa o espaço do outro! Então o espaço tem fim! Ah!. Mas, tem uma coisa que é infinita mesmo! O Tempo!

É relativo, pois no futebol o tempo acaba e, fim de jogo! “Quem ganhou, ganhou, quem não ganhou não ganha mais”, já dizia o locutor Fiori Gigliotti! O engenheiro constrói uma casa sólida e diz: - “Essa vai durar até o fim dos tempos”! Na semana seguinte a casa cai! Tá aí, o tempo tem fim! A casa caiu por que acabou o tempo, e fim de papo!

E como você explica que o verbo é infinitivo? Ei, espera um pouco, infinitivo não é infinito, ok? O infinitivo não está relacionado com nenhum tempo ou modo verbal. É uma das formas nominais dos verbos, juntamente com o gerúndio e o particípio!  Mas, isso eu vou estar podendo explicar em outro texto, ok? Agora estamos no infinito, ops, falando do infinito!

O céu é o limite, para quem luta por seus sonhos e ideais e tem objetivos a alcançar. Mas então o limite não é do céu. O céu é infinito. Finito é onde se quer chegar. O espaço é a última fronteira?  Então o espaço é finito... a última fronteira a ser explorada. Que coisa!

Mas e o que tem depois da última fronteira? Tem o saber! E o saber não ocupa espaço. O saber é infinito, e o espaço onde ele cabe também é, já que não ocupa lugar. Eita! Então o espaço é infinito? Agora danou! Vamos viver uma vida inteira e não vamos aprender tudo. Então o conhecimento é infinito. Finita é nossa vida aqui, já que não vamos viver para aprender tudo.

Spinoza dizia que é uma ideia errada considerar o infinito como aquilo que inclui todas as coisas em si. Infinito é diferente de Indeterminado. O Infinito é a ideia mais determinada de todas, onde todas as possibilidades são realizadas. Por exemplo: caí uma placa de propaganda, você me pergunta:

- “Quem derrubou? Eu digo:

- “Foi um sujeito aí!”

- “Mas, que sujeito? De onde veio?

- “Sei lá, indeterminado!”

- “Quem é indeterminado?”

- “Um sujeito aí”

Ou, a mesma pergunta com outra resposta:-

- “Quem derrubou a placa”?

- “O vento!”

- “Vento? De onde veio?”

- “Ah! Veio do infinito”!

- “Quem é infinito”?

- “O vento é infinito”!

No primeiro caso, quem derrubou foi um homem [sujeito determinado], desconhecido [“um sujeito aí”- indeterminado]. No segundo foi o vento [sujeito indeterminado] de onde veio? [sei lá, veio do infinito!]

Sinto muito se você não entendeu a alegoria da placa derrubada, talvez sua inteligência não seja igual ao número Pi, azar seu, mas, também não precisa se preocupar com tudo isso, pois você é determinado e finito, diferentemente do Pi que é indeterminado e infinito!  O que? Não, cara, alegoria não é enfeite de carro alegórico, é outra coisa, que explico outra hora, ok? Porquê? Por que minha paciência não é infinita, ok? Então depois de toda essa patacoada, chegamos à definição real e verdadeira do infinito:

INFINITO É TUDO AQUILO QUE NÃO TEM FIM, LIMITE, FRONTEIRA E QUE NÃO PODE SER MEDIDO POR UM PADRÃO FINITO.

Esta crônica foi feita com a colaboração da amiga Rita Ferreira Rocha de Paula, uma parceira!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 6

ACONCHEGO

Imóveis
A pena
E a asa da borboleta
Sonham
Com o vento…
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ASAS DE MADEIRA

Esculpido em mogno
O dragão, aos poucos desperta
E, suavemente, move suas asas
À  espera do vento…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CHUVA DE SAUDADE

O barulhinho da chuva,
Deslizando no telhado
Deságua em versos
Tece um poema de amor,
Saudade que cintila,
Quando a lágrima
Escapa e deixa
A janela entreaberta...
Apaga-se o incenso.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

COLAR DE PÉROLAS...

Com as pérolas do colar
Desenhei um coração
E num piscar de olhos
Senti teu coração  bater
Juntinho a mim…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

JANELA DE SONHOS...

A janela entreaberta
Ainda à espera
Dos sons da tua volta...
Há tanto silêncio
Em tua ausência,
Que inquieta  a alma...
Busco teu olhar, tuas mãos
E não as encontro,
Encontro à saudade
Que se despe
Das rendas tecidas de poesias
E deságua
Em lágrimas…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O TOQUE DO TEU VENTO

Os sons dos sinos- de- vento
Embalam a solidão
Que fragmenta a ampulheta,
E refugia-se no vitral
Da janela antiga,
Trincada com o toque
Do  teu vento,
As cores voam,
E pousam na taça de cristal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PANDORA

Do escuro da caixa
Voam lágrimas...
Diáfana solidão,
Silencia-se
A Esperança.
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ROTINA DE UMA ÁRVORE

Terra, água
E luz gestam vidas
Num contínuo renascer,
O ciclo da vida impresso
Nas folhas encanta,
E surpreende,
Desabrochando em versos
Em uma manhã azul
De Primavera.
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SEMENTES DE CEREJAS

Hoje, no fim de tarde,
Acariciei  a terra
E à sombra do teu sorriso
Plantei com amor,
As sementes de cerejas,
Cerejas que colhi para você…

Contos e Lendas do Mundo (A Ratoeira)

Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali.

Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado.

Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa!

A galinha, disse:

- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.

O rato foi até o porco e lhe disse:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira!

- Desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranquilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.

O rato dirigiu-se então à vaca. Ela lhe disse:

- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não!

Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pego.

No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher...

O fazendeiro levou-a imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre.

Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá-los o fazendeiro matou o porco.

A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.

Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que, quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco. O problema de um é problema de todos.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Adega de Versos 22: Gilson Faustino Maia

 


Sammis Reachers (Rivaldo e o tour infernal no Morro do Céu)

Toda empresa de ônibus que tenha uma quantidade boa de linhas, tem aquela(s) linha(s) em que quase ninguém quer trabalhar. A Ingá não foge à regra.

Talvez a pior das linhas, na opinião de uma maioria de rodoviários, seja a linha 26-A (Morro do Céu x Terminal). É a linha do "castigo". Embora não admitam, quando querem castigar algum profissional que tem vacilado bastante, eles o enviam para lá, seja como efetivo, seja para trabalhar apenas um dia. Os motivos de a linha ser detestada por muitos? Basicamente há dois principais: Primeiro porque a carona rola solta. Isso mesmo, praticamente ninguém paga passagem lá dentro do bairro. Mas há também o outro problema: a bandidagem. O bairro {ou "complexo") do Caramujo (e em especial o sub-bairro do Morro do Céu) é simplesmente o maior reduto do Comando Vermelho em Niterói, e um dos maiores do estado do Rio. Depara-se com homens e até crianças armadas a todo momento por lá. E encontrar-se em meio a um tiroteio entre policiais e bandidos não é coisa rara.

E é aqui que entra o nosso Rivaldo. Funcionário antigo, fala mansa e gente fina, curtidor de um bom pagode e bom mulherengo, a história de vida de Rivaldo já daria por si só um livro: Mesmo ainda jovem, sobreviveu a um infarto que o deixou literalmente entre a vida e a morte; após cirurgia de ponte de safena, voltou à ativa, e alguns anos depois envolveu-se num trágico e grave acidente, ao chocar-se o ônibus que dirigia contra uma das pilastras de sustentação da Ponte Rio-Niterói, na altura do Moinho Atlântico. E mais uma vez, embora tenha ficado preso nas ferragens, Rivaldo sobreviveu.

Em seu início na Ingá, Rivaldo passou diversos anos como cobrador, até que resolveu partir para a direção. Após o período regulamentar na escolinha, Rivaldo foi finalmente promovido. Mas sua carreira em inícios foi sofrida: Rivaldo pegava sempre os piores horários. Com o passar do tempo, isso foi gerando uma revolta natural no coração do amigo. E essa revolta o levou a dar alguns "vacilos" propositais com a chefia da empresa, de tão aborrecido que Rivaldo estava.

Pois bem: em mais um belo dia (e o leitor já percebeu como este livro é cheio de "belos dias"), a chance que certo despachante queria para castigar o bom Rivaldo surgiu.

Ele iria tirar um carro no turno da manhã, e o despachante lhe empurrou para dirigir um micro-ônibus, justamente no malfadado Morro do Céu. Briga daqui, regateia dali, e sem ter outra opção e precisando trabalhar, lá vai o nosso Rivaldo, ainda de madrugada, em direção ao Morrão.

Chegando ao local, na área conhecida como lixão, onde ele aprendera, no tempo de cobrador, ser o ponto final daquela linha, o cidadão Rivaldo, cabreiro com a escuridão do lugar, deu meia-volta e, tranquilamente, se pôs a manobrar o veículo em direção à descida do morro.

De repente, aquela freada. Saído de lugar nenhum, um marginal brotara em frente ao ônibus, com um detalhe: um fuzil apontado para a cara de Rivaldo! O malandro parecia que ia pra uma guerra, além do fuzil nas mãos, tinha uma pistola e uma granada penduradas na cintura.

- Ei! Ei! Tem que ir lá dentro! - Berrou o marginal.

Rivaldo, assustado, gaguejou:

- Lá dentro? Lá dentro aonde? Aqui á o ponto final, estou descendo para fazer linha.

- Descendo o caramba! Tem que ir lá dentro, lá na "balança". Pode dar a volta e ir lá que lá tem passageiro te esperando.

Ao perceber a confusão de Rivaldo, o malandro aliviou e perguntou;

- É a sua primeira vez aqui? Se é, fica sabendo que tem ponto lá no final - e apontou para mais acima no morro.

Assim, após manobrar lá se foi Rivaldo morro acima, numa direção em que ele imaginava que nem casas havia. Chegando a certa altura, ele percebeu que realmente haviam passageiros por lá: oito pessoas esperavam aquele que era o primeiro carro do dia.

Mas todo castigo pra rebelde é pouco, já diziam os opressores do trabalhador, e os perrengues de Rivaldo estavam só começando. Somente após o embarque dos passageiros foi que ele percebeu que o espaço para manobrar o ônibus e voltar para baixo era absurdamente pequeno. E, um tantinho além do pequeno espaço de manobra, havia nada mais nada menos que um despenhadeiro, uma encosta altíssima. Um erro do motorista e o veículo poderia cair lá embaixo.

Rivaldo, assustado, disse aos passageiros que não teria como manobrar ali, num espaço mínimo, no escuro e ainda por cima numa área que ele não conhecia. Mas os passageiros insistiram que todos os motoristas da linha manobravam ali, e um deles se prontificou a descer do veículo para ajudar Rivaldo a manobrar. Assim, depois de muito sufoco, mudanças de marchas à frente e à ré, nosso amigo conseguiu manobrar o veículo.

As viagens seguiram-se naquele mesmo ritmo, caronas, bandidos e sustos. Lá pelo meio dos trabalhos, estando no morro do Céu, um elemento grita:

- Ôòôuuu, espera aí motô!!!

Rivaldo para, e ao olhar para a direção de onde gritara o "passageiro", vê que era de dentro de um bar, uma birosca de beira de estrada. Assim que o veículo parou, o cidadão do grito apanhou dois engradados de cerveja, de cascos vazios, e entrou no ônibus. Ao colocá-los no corredor do pequeno veículo, disse simplesmente:

- Espera aí que tem mais.

E assim foi trazendo, de dois em dois, até somar oito engradados. Após colocar tudo no corredor, desceu.

- Tem mais ainda? - perguntou Rivaldo.

- Não, é só isso. Pode ir. Ah, um cara está te esperando lá embaixo, na pracinha, e vai pegar as caixas.

Após dizer isso, o elemento simplesmente virou as costas e entrou tranquilamente no bar. Rivaldo, entre confuso e irritado com o abuso do cidadão, que além de não ir levar a própria mercadoria, nem pediu o favor e nem sequer agradeceu, desceu com a frágil carga que se apertava entre os passageiros.

O caminho de descida é tortuoso, o famoso "só vai um", e lá desceu Rivaldo, tendo que ir relativamente rápido pois precisava fazer o horário, mas preocupado com aquela carga balançando devido aos solavancos que o veículo dava, sendo segurada pelos passageiros.

Lá    embaixo    realmente    um    indivíduo    esperava. Apanhou as caixas e tudo que disse foi um "Valeu". Nem um beijinho, nem um Guaravita nosso Rivaldo recebeu...

Já lá pelas doze horas, finalmente Rivaldo esperava que iria largar. Ufa! Que dia! Ao chegar no Terminal Rodoviário, ele falou para o despachante;

– Essa é a 'boa' (a última viagem), finalmente! Não aguentava mais!

– Ué, a boa? Não te avisaram na garagem não?

– Avisaram o quê?

– Esse carro dá uma viagem extra, amiguinho. Sua largada deve ser lá pelas 13h20...

Fulo da vida, lá foi Rivaldo de volta ao Morro do Céu, sabendo que teria uma outra viagem. Foi vendo os outros carros que pegaram num horário depois do dele largando, e ele ainda tendo que dar mais uma volta - e isso o fez ferver ainda mais de raiva. Do Morro do Céu ele desceu novamente em direção ao Terminal, e, agora sim, na volta sabia que iria largar.

Mas todo bolo que se preze, precisa ter uma cereja em cima. E a cereja do bolo estava esperando por Rivaldo, rechonchudinha, num dos acessos ao Caramujo, ali perto do Morro do Bumba (sim, aquele mesmo da tragédia dos deslizamentos em 2010).

Um cidadão com pinta de matuto de roça, as roupas bastante sujas e segurando um saco enorme, desses de farinha de trigo, deu sinal. Rivaldo foi encostando e já logo abrindo a porta do meio, pois ali já era área das caronas, e com um saco imenso daqueles o indivíduo não iria conseguir passar na roleta mesmo. Mas somente quando o Jeca Tatu entrou foi que Rivaldo percebeu do que se tratava a "carga": Naquele saco enorme, muito mal acondicionado, o camarada estava levando um enorme e fedorento porco, e vivo! Assim que ele entrou o porco começou a gritar e a se debater, e o cheiro rapidamente dominou todo o veículo.

– Isso aí é um porco?!!!!

– É sim, mas tá seguro.

– Pô, meu amigo, mas ele está fedendo e cheio de lama...

– Não esquenta não, lá em cima eu jogo uma água no ônibus.

E assim Rivaldo completou os trabalhos do dia, ouvindo  os altos grunhidos e sentindo aquela catinga de porco insuportável.

Quanto ao dono do suíno, ah: ao chegar no Morrão, já perto do Morro do Céu, ele desceu sem nem fazer menção de jogar água em nada...

Rivaldo manobrou no Morrão, desceu e largou o ônibus no ponto final do Caramujo. Saiu sem falar nada com ninguém e avoado, aliviado por passar aquela pesada cruz para outro sofredor!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Nossa “Casa”)

Três homens inteligentes,
tão semelhantes na idade,
porém, muito diferentes,
de verem a eternidade...

Pobre, abastado e mediano,
entre si, bem conhecidos,
deixando o campo mundano
por Deus foram recebidos...

O pobre, Deus acolheu,    
Disse: – Entra! A mansão é tua.    
Pois o que o mundo te deu,    
foi dormir em plena rua.    

Por isso ouvi tuas preces
de total resignação,
soubeste amar e mereces
te apossar desta mansão.

Quando o mediano partiu
também contas foi prestar
e igual mensagem ouviu:
- Entra e toma o teu lugar!

Na terra pouco tiveste,
foste morno e não mudaste
e o material que me deste
foi restos do que sobraste.

Apesar das provações
procuraste algo plantar
e o fruto das plantações
acabas de conquistar.

Simples casa em regalias:
eis teu prêmio merecido....
Outra, bem melhor terias,
se me tivesses ouvido.

Chegando o mais abastado
consigo pôs-se a julgar:
– Com o que tenho juntado
um castelo vou ganhar!

Tal premissa concebida
dela, distante ficou,
tendo já gozado em vida,
no céu pouco lhe restou.

Dei-te a vida e tu me deste
uns restos do que sobraste,
nem com tua rica veste
melhor lugar conquistaste.

Tens procurado a vaidade
sem te abraçar na virtude,
vais passar a eternidade
com este casebre rude...

Tantos bens acumulados
nem à lápide os levaste,
logo serão disputados
porque nunca os lapidaste.

Vendo a grande diferença
naqueles recém chegados,
o Poder marcou presença
sendo assim sentenciados.

O que vede aqui são frutos,
Deus, de novo acrescentou:
– Construímos com produtos
que cada qual nos mandou.

Tendes o que mereceis    
e não vos entristeçais,
fizestes as próprias leis
esquecendo os tribunais.

As casas têm as medidas
que foram encomendadas,
com matérias escolhidas:
nobres, brutas, estragadas.

Difícil é ser cortês
aonde o bom-senso se anula,
porque o coração, talvez,
tão só CIFRÕE$ acumula.

Fonte:
Luiz Damo. Celebrando com trovas. Caxias do Sul/RS: L.D., 2018.
Livro enviado pelo autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Escoteiro

Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil e bem comportado.

Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.

O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.

Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.

Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.

Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.

Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.

Pai! Palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.

Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.

Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.

Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum, da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.

Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.

Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no irônico destino dos inventores.

O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.

Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.

Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espírito, o hermetismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.

Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?

Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.

O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.

O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de self control e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.

Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo antisséptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!

Essa, a marcha inevitável de todas as altas ideias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.

Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.

Fonte:
Amadeu Amaral. Memorial de um passageiro de bonde. 1927.

domingo, 16 de maio de 2021

Varal de Trovas 501

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Felizardo, um homem feliz

Faz um bom tempo escrevi um micropoema que dizia assim: “Quem nada / tem tudo. / Somente os peixes, / para salvar-se, / puderam dispensar a Arca”. Mas na verdade houve um coautor: Felizardo Meneguetti. Entusiasta da natação (seu esporte predileto durante a vida inteira), foi ele quem me chamou a atenção para este detalhe deveras interessante: no dilúvio Noé colocou na Arca animais de todas as espécies. Só ficaram de fora os peixes – os únicos que não correriam o risco de morrer afogados. “Quem nada... tem tudo”, dizia ele brincando.

Homem de inteligência acima da média, Felizardo era useiro em tiradas como essa. Cada conversa com ele era uma aula de cultura geral. Num certo dia, creio que em 1982 ou 1983, encontrei-o na Avenida Getúlio Vargas, na porta do edifício Três Marias, onde ele tinha um escritório. Pegou no meu braço e intimou: “Vamos dar uma subidinha, que eu quero lhe mostrar uma coisa”. Era um livrão de 500 páginas – “A terceira onda”, best-seller mundial do célebre futurista norte-americano Alvin Toffler.

Felizardo estava encantado com a obra, que acabara de ler. “Você precisa ler também, aliás todo mundo deveria ler”, disse ele, e acrescentou: “Leve este; depois compro outro”.

Toffler recordava a história do progresso, dividindo-a em três ondas: a primeira foi a “revolução agrícola”; a segunda foi a “revolução industrial”; a terceira, que estava começando, seria a “era da Informática”. Porém já previa a quarta onda, que viria logo no comecinho do século 21: a “era da sustentabilidade”, ou seja, da preservação do ambiente.

Claro que não vou comentar aqui o conteúdo inteiro do livro. Citei apenas para dar aos que não tiveram o privilégio de conviver com Felizardo Meneguetti uma ligeira ideia de quem foi esse extraordinário empreendedor e de sua importância para a história de Maringá. Um homem atento a todos os passos da ciência e da tecnologia e que assim conseguia estar sempre bem avançado no tempo em relação aos mortais comuns.

Paulista de Quatá, onde nasceu no dia 4 de março de 1925, Felizardo chegou aqui em 1946 e foi um dos megapioneiros presentes na grande festa promovida pela Companhia Melhoramentos no dia 10 de maio de 1947 para a inauguração oficial da cidade.

Instalados no distrito de Iguatemi, os Meneguetti começaram como agricultores, depois montaram um alambique para fabricação de aguardente e alguns anos após fundaram a Usina de Açúcar Santa Terezinha, da qual por longos anos Felizardo foi diretor presidente.

Hoje, produzindo açúcar e etanol, a Usina Santa Terezinha é a maior exportadora de açúcar com sede na região Sul e está presente em 12 municípios do Paraná e Mato Grosso do Sul, empregando mais de 8 mil colaboradores.

Felizardo Meneguetti, patriarca de uma das mais bonitas famílias de Maringá, cidadão benemérito do município, integrante ilustre do Lions Clube e de várias outras entidades, conselheiro de quase todos os nossos líderes políticos, faleceu no dia 19-5-2016, com 91 anos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 18-3-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 6 –

46.
Quem não lembra de já ter, em sua infância, se deliciado apreciando nuvens brancas a deslizar pelo céu como um bando de carneirinhos?

Esta associação de ideias é muitas vezes aproveitada literariamente, sempre mantendo toda sua simplicidade e inocência.
 
Observem, na singeleza da trova a seguir, como o trovador enriqueceu ainda mais esta ideia,  acrescentando--lhe lindas metáforas em que o “Vento” é transformado num “pastor”, e as nuvens, que formam um “alvo rebanho”, nada mais são que os carneirinhos do nosso antigo imaginário infantil.  

O vento, pastor estranho,
tangendo nuvens ao léu,
conduz seu alvo rebanho
pelas campinas do céu!
Joubert de Araújo Silva


47.
Já se disse que os Jogos Florais de Nova Friburgo representam para a TROVA o mesmo que o “Oscar” para o cinema.  Qualquer premiado com aquela estatueta sempre irá carregar esta marca como um símbolo de que atingiu a glória máxima mundo cinematográfico. Daí a expectativa de atores, diretores e cineastas quando são indicados para o prêmio.

Guardadas as proporções, todo trovador também sonha com uma premiação no mais tradicional concurso de trovas do Brasil.  

Vejamos como JOÃO COSTA registrou numa bela trova esta expectativa, primeiro “angustiada”, mas logo seguida do prazeroso sentimento de realização que o prêmio conquistado pode trazer.  

Dos anos de espera expurgo
toda angústia e toda dor:
classifiquei-me em Friburgo,
agora sou trovador!
João Costa


Pela primeira vez, depois de 61 anos consecutivos, não se realizaram em 2020 os Jogos Florais de Nova Friburgo, em virtude da pandemia da COVID-19. Vai, então, este comentário em homenagem a todos os trovadores que, por esta época, enchiam de poesia os ares desta cidade tão querida e, em especial, ao saudoso JOÃO COSTA, de Saquarema, um dos maiores entusiastas do evento. (Renato Alves)

48.
A língua portuguesa é rica em vocábulos que, às vezes, têm a mesma forma física, (falada ou escrita), mas que apresentam cargas semântica diferentes, isto é, palavras idênticas ou iguais na forma, mas de sentidos diferentes. São os famosos homônimos.

Uma hábil utilização de homônimos na trova pode constituir um achado precioso para valorizar a composição.  Vejamos dois exemplos do uso bem sucedido deste recurso:


1. Uso do substantivo “V” (letra)  e “Vê” (flexão do verbo ver)

Muito embora não se esgote
todo assunto que é você,
pelo V do seu decote
quanta coisa a gente !
Carlos Guimarães
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2. Uso do verbo “ligar” com dois sentidos: “telefonar”  e “dar importância”

Tu dizes: “Depois eu ligo!”
E eu vigio o celular...
Tu não ligas e eu nem ligo,
e continuo a esperar.
Elisabeth Souza Cruz

49.

Às vezes, o aproveitamento inteligente do significado múltiplo de um vocábulo, na mesma trova, pode constituir um recurso eficiente, um jogo de palavras que valoriza o seu achado. Nas trovas humorísticas, reforça o efeito a que se destinam: fazer rir.
 
Na trova ao lado, o trovador faz uso bem sucedido da versatilidade semântica e gramatical da palavra VERÃO: ela abre a trova como um substantivo, significando a estação do ano, e a fecha como uma flexão do verbo “ver”.

No verão ela anuncia
que o nudismo é a sensação,
e o que só o marido via
agora todos verão!
Arlindo Tadeu Hagen


50.
Às vezes, certos acontecimentos em nossa infância ficam marcados para sempre no adulto e, não raro, servem de  tema para trovas e poemas.

Feliz da criança que teve uma experiência especial com seu pai, sua mãe ou outro parente que tenha deixado marcas de ternura por toda a vida!  Eu, por exemplo, me lembro que, para poder assistir melhor ao desfile dos blocos e escolas de samba na Avenida Rio Branco, no Rio, meu pai, com grande esforço, me punha sobre os ombros. Aquilo representava para mim um supremo deleite!...

Agora, observem, na trova ao lado, como a sensibilidade do trovador Moacyr Sacramento, o MOA, de Conservatória/RJ, conseguiu captar e traduzir numa bela trova esta mesma sensação tão gostosa!

Pra ver o mundo de cima
da lembrança não me sai:
torre alguma se aproxima
do cangote do meu pai!
Moa


Fonte:
Renato Alves. Comentando trovas.
Enviado pelo trovador.

Rachel de Queiroz (O Cometa)

Anuncia-se a aparição de um cometa nos céus do nosso mundo; durante dez dias, no espaço de tempo compreendido entre 10 e 20 de janeiro de 1974, passará mais perto de nós o astro vagabundo, cujo nome estranho é o do astrônomo tcheco que o descobriu — Kohoutec — e cuja luz é cinco vezes mais forte que a da estrela Sírius, a mais brilhante do nosso firmamento.

Mas aqui, na América do Sul, o cometa Kohoutec se exibirá desde antes. E justamente na véspera do Natal, quando já será perfeitamente visível em céus sul-americanos, a sua aparição vai coincidir com um eclipse do Sol, previsto para o mesmo dia. Imagino como não será lindo, lindo de matar, o espetáculo celeste; o Sol escondido, mostrando apenas a sua corona de fogo e, no céu diurno mas em crepúsculo, o astro singular com a sua imensa cauda luminosa.

Vai haver muito medo. Dizem que na aparição do cometa de Halley, em 1910, a gente humilde se ajoelhava pelos terreiros, pedindo demência a Deus e a todos os santos. Pois cometas são o sinal de epidemias e calamidades; a peste, a fome, a guerra e a morte, os quatro cavaleiros do Apocalipse, são tidos como acompanhantes da cauda de um cometa. Faz mal olhar para ele com a cabeça descoberta; nem se deve fitá-lo muito tempo sem baixar a vista: o resultado pode ser a gota serena.

Se os meninos nascidos sob a luz de um cometa serão fortes, astutos e violentos, as crianças geradas no tempo da sua aparição serão movidas, de ossos fracos, com tendência à loucura e à melancolia. O melhor portanto é evitar a prática do amor nessa fase perigosa Também quem já foi mordido de cachorro doído, cuidado — pode sair uivando feito lobisomem e ai de quem cruzar o seu caminho. Igualmente quem já foi picado de cobra venenosa: a peçonha que já estava cristalizada em algum recanto do corpo, forma bolsa debaixo da língua, vaza na saliva e pode matar o próprio paciente ou qualquer outra pessoa que o padecente morder, arranhar — ou beijar.

As ninhadas de ovos goram nos ninhos; passarinho de voo noturno permanece escondido e não se arrisca a sair, pois sabe que ficaria encandeado com a luz estranha e cairia no chão como ferido de bala.

Por falar em bala, quem costuma andar armado é melhor deixar a faca em casa, se acaso sair em noite de cometa. Porque o aço é atraído pela força do astro e parece até que salta da mão do portador. Já nas cargas dos cartuchos, o chumbo, sendo metal venenoso, não sofre influência e, nesse caso, o que acontece é não se acertar um tiro.

Mas tudo isso tem um parecer contrário. Porque muita gente opina que o cometa aparecendo a 24 de dezembro, é astro propício; quem sabe até não é a mesma estrela caminhante que guiou os reis magos à gruta de Belém. Então, dela só se devem esperar benefícios e bons eflúvios; em vez dos temidos malefícios, sobre nós irão cair as graças e prazeres que a vinda do Menino Deus significa para o mundo.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.