sábado, 28 de outubro de 2023

Trova ao Vento – 002

Criação JFeldman com Microsoft Bing
 

Mensagem na garrafa – 21 -

 
Criação JFeldman com Microsoft Bing

David M. Romano
(Harris County/Texas/EUA)

QUANDO O AMANHÃ COMEÇAR SEM MIM

Quando o amanhã começar sem mim,
E eu não estiver lá para ver,
Se o sol nascer e encontrar seus olhos
Cheios de lágrimas por mim,
Eu gostaria que você não chorasse
Da maneira que chorou hoje,
Enquanto pensava nas muitas coisas
... Que deixamos de dizer.
Sei quanto você me ama,
E quanto amo você,
E cada vez que você pensa em mim,
Sei que sente a minha falta.

Mas quando o amanhã começar sem mim,
Por favor, tente entender
Que um anjo veio e chamou meu nome,
Tomou-me pela mão
E disse que meu lugar estava pronto
Nas moradas celestiais
E que eu tinha de deixar para trás
Todos os que eu tanto amava.

Mas quando me virei para ir embora
Uma lágrima escorreu-me pela face
Por toda vida eu pensei
Que não queria morrer.
Eu tinha tanto para viver,
E pareceu quase impossível
Que eu estivesse ido sem você.
Pensei em nossos dias passados,
Nos dias bons e nos dias ruins,
Em todo amor que vivemos,
Em toda alegria que tivemos.
Se eu pudesse reviver o ontem
Ainda que só por um instante,
Eu diria adeus e lhe daria um beijo
E talvez visse você sorrir.

Só então descobri
Que isso não aconteceria,
Pois o vazio e as lembranças
Ocupariam meu lugar.
Quando pensei nas coisas deste mundo
Vi que posso não voltar amanhã,
Então pensei em você
E meu coração se encheu de dor.

Mas quando cruzei os portões do céu
Eu me senti em casa
Quando Deus olhou para mim e sorriu
De seu grande trono dourado,
Ele disse: “Isto é a eternidade
E tudo que lhe prometi.
Agora sua vida na Terra é passado
Mas aqui uma nova vida começa.
Eu prometo que não haverá amanhã,
Mas que o hoje durará para sempre.
E como todos os dias serão iguais,
Não haverá saudades do passado.

Você foi tão fiel
Tão confiável e verdadeiro,
Embora tivesse feito coisas
Que sabia que não deveria.
Mas você foi perdoado
E agora finalmente está livre.
Então que tal me dar a mão
E compartilhar da minha vida?”

Logo, quando o amanhã começar sem mim,
Não pense que estamos separados,
Pois todas as vezes que pensar em mim,
Eu estarei dentro do seu coração.

Carolina Ramos (O meu Sanhaço)

Outro momento emblemático a ser lembrado, foi aquele do encontro com o "Meu sanhaço". Fato descrito no texto que se segue, publicado, sob o mesmo título, no jornal santista - "A Tribuna",

O MEU SANHAÇO

Vez ou outra, até que é bom fechar os olhos ao panorama atual, com suas crises e cataclismos que nos puxam para baixo, e abrir o cofre das lembranças, deixando aflorar aquilo que vier de mais leve.

Desta vez, foi um sanhaço que saiu voando do baú, em forma de crônica escrita há algum tempo, em apoio à surpreendente repercussão alcançada por outra, publicada, e na qual o autor falava de um sanhaço em sua vida. Crônica que acabou por levar-me à tentação de também dizer algo a respeito daquele que eu costumo chamar de o "meu sanhaço".

O interesse demonstrado pela publicação, a enfocar essa avezinha silvestre, veio provar que a sensibilidade humana, mesmo embotada pelas calamidades divulgadas todos os dias, ainda não está de todo morta, admitindo algumas fugas pelas janelas da alma.

Assim sendo, permitam que eu diga que também existiu um sanhaço em minha vida. Azul como um retalho de céu! Foi meu, por espaço mínimo, mas valeu a pena... Como, também, valerá a pena contar o porquê:

Era amplo, o quintal da casa de meus pais. Coisa rara em nossos dias. Casa com pomar, no qual não faltavam galhos acolhedores a permitir escalada. Casa com galinheiro - mais raro ainda! Portanto, com direito a clarinadas de galo pela manhã e pintinhos a bicar o ovo pelo lado de dentro - o milagre da vida!

Coisas que poucas crianças têm hoje o privilégio de testemunhar, fora da área rural. A tal clarinada dos galos talvez que ainda possa ser ouvida nas vizinhanças, vinda de uma dessas casas velhas que paulatinamente cedem espaço aos espigões de concreto, vítimas das pressões financeiras que levam as famílias a se empoleirarem em prédios espigados - alguns tortos, como os da orla santista.

Naquela tarde distante, em que o irrequieto sanhaço entra nesta história, eu chegava ao amplo quintal de minha antiga casa, a meia quadra da praia, onde agora um prédio moderno exibe o garbo. Levava almoço para dois gatos, cujos miados festivos me aguardavam, quando, a meus pés, abate-se um punhado de penas azuis e asas agitadas a despertar pronto interesse dos bichanos ronronantes.

O sanhaço debatia-se em desespero, bico aberto, garganta trancada por um grão de milho, a exigir ação imediata.

Voei atrás de uma pinça! Com a ajuda de Deus, foi extraído o grão assassino que, sem matar a fome, quase matara o faminto.

Bem grande seria aquela fome, uma vez que sanhaços, (frugívoros), alimentam-se de frutas, não de grãos.

Segundos depois, asas ligeiras arrebatariam de mim aquele pássaro renascido, devolvendo-o ao espaço, tão azul quanto ele, num maravilhoso voo de redenção!

Por ter resgatado da asfixia a avezinha indefesa e por tê-la livrado das garras ávidas dos gatos, prontos para saboreá-la como sobremesa, guardo dupla e gratificante sensação de ter salvado, não só uma, mas por duas vezes, aquela preciosa joia emplumada.

Assim sendo, embora nunca mais o tenha visto ou reconhecido, creio ter todo direito de chamar o pequenino herói desta crônica, muito afetivamente, de: - O "Meu sanhaço".

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Sílvia Araújo Motta (Sonetos Sáficos-Heroicos) – 2 -


A ILUSÃO do [TER]

Desapegar dos bens é ter noção:
fugacidade desta trilha humana,
sintetizada em meta, ser lição,
cuja ascensão demonstra o Bem que emana.

Quanta ilusão faz parte da aflição,
na delação de alguém que sempre engana,
fraude comprova após rever moção,
a difusão trinômia em nada ufana.

Quando morremos, nem levamos nada:
reclamações, riquezas... tudo lançam
aos confins livres; têm real jornada!

Refletir não existe mal algum;
fraternidade, paz, justiça alcançam...
Humanidade quer o bem comum.
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ÁRVORES VELHAS 

(Á)rvores são amigas, desde cedo;
c(R)iança, idoso, jovens dão sinal,
di(V)idem flores, frutos, negam medo:
cert(O)s abrigos causam riso igual.

Nos arvo(R)edos, ninhos têm segredo;
a gestação (E)ncanta o ser total...
trinar dos bicos(S) não traduz arredo.
(V)elhas raízes; força ganha aval.

D(E)smatamento ou fogo põe terror...
Sim! (L)ute lá na mata contra a serra,
que o (H)omem traz ao mundo, dor, pavor. 

Todos os di(A)s usem voz serena.
Saudemos velha(S) plantas desta terra.
... Árvores dão lições de vida plena
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ESTAÇÕES DA VIDA

(E)m ciclo humano trevas vão surgir,
via(S) diversas, luzes, sol, aquecem,
incer(T)as brisas fazem corpo rir;
não h(Á) surpresa, todos já conhecem.

Bonan(Ç)a passa, sonho quer luzir.
Plano p(Õ)e regras, lutas não iludem,
delas ningu(E)m escapa é só seguir:
contraditória(S) forças: mal ou bem.

Invernos ... (D)obram frios, mui penosos;
possíveis perd(A)s deixam marcas fúteis,
com frustração (V)erões, cruéis, maldosos...

A natureza... ex(I)ge dor e ações.
Felicidade é meta em (D)ados úteis;
na primavera eterna há est(A)ções.
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GRATIDÃO (2)

A gratidão liberta, cura a dor,
a depressão, tristeza, insônia e traz
transformação do Ser, sorriso em cor,
pois a partilha torna o olhar capaz...

Qual brisa mansa vê canteiro em flor
na vida breve, todo mal desfaz;
tempero na alma dá o melhor sabor,
tesouro raro brilha tem cartaz.

É lamentável ver difícil volta
de quem recebe o bem, sem ter razão...
A ingratidão esfria, fio solta.

Se receber favor de rico ou pobre;
não perca tempo, faça seu brasão:
– Agradecer demonstra gesto nobre.
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HOMEM DE BEM

Se a humanidade planta a má semente,
o livre-arbítrio mostra a causa e efeito;
o ser (H)umano deve ter em mente
valor do am(O)r, justiça sem defeito.

A caridade pede (M)ais, mormente
defende o fraco, ped(E) paz, respeito,
promete ao pobre, ter poder, não (M)ente:
agir em prol (D)o bem comum, somente.

Iluminados Mestr(E)s dão melhor
exemplo a quem tam(B)ém a Luz procura,
na caridade cumprem L(E)i Maior.                                          

Perdão ao outro dá lição nor(M)al:
entre esmeraldas raras, a alma é pura.
Homens de Bem espantam todo mal.

Geraldo Pereira (Cartas de Amor)

Comprou um livro com designação e com destinação mais que específicas, a tirar pelo título da obra, quase um opúsculo, na verdade: Cartas de Amor. Leu o todo do texto com o arrebatamento dos apaixonados e o releu depois, com a calma dos amantes saciados, passando folha por folha, grifando aqui e ali palavras incompreensíveis em seu vocabulário, contanto que pudesse escolher uma daquelas missivas para a eleita de seu coração e fez a cópia manuscrita da que considerou a melhor.

Ora, afinal, os flertes dos últimos meses, correspondidos sempre, davam-lhe a impressão, nítida e forte, de um namoro à vista, materializado até, em furtivos encontros pras bandas da Sorveteria Xaxá, na qual se reuniam rapazes e moças daquelas cercanias, da rua Gervásio Pires, sobretudo. Meninos e meninas que cresceram e viraram gente!

Mas, não esperava que as tias da casadoura moçoila decretassem o veto cruel aos afetos que guardava e aos afagos que nunca ensaiara! A proibição veio de logo, assim que descobriram as saídas mal explicadas e as idas desnecessárias ao Colégio Coração Eucarístico de Jesus, onde estudava à tarde, no Curso Pedagógico. E por isso, não deveria aproveitar as folgas que havia no serviço dos Fuzileiros Navais para sair em plena manhã e se encontrar com o soldado de cujo número ninguém mais se lembra! Passou a andar de guarda-costas, com uma ou duas de suas parentes, irmãs do pai, pois que mãe não tinha, vigiando-lhe os passos. A rua inteira se apresentou em solidariedade ao amigo destroçado, que chorava as lágrimas dos impedimentos amorosos ou o pranto das separações impostas.

De nada serviram essas manifestações de apoio e desvelo, o homem não se cansava de repetir as palavras do Cristo: “Tudo está consumado!” 

Varou madrugadas em confissões intermináveis aos garçons da velha Cabana, no Parque 13 de Maio e salvou sonhos, sem querer antecipar do poeta a expressão do sentimento maior, a do espírito, que embala a alma: “Quem salva sonhos! Salva vidas!” 

Ficava horas a fio defronte à casa, moradia de sua musa encantada, encastelada agora, sob as sete chaves desses rigores dos antanhos, aproveitando-se de uma ou de outra aparição na janela ou das ocasiões em que vestida com o encarnado forte da saia e com a pureza virginal do branco de sua blusa, dirigia-se à escola, uma tia à frente e outra tia atrás! Apreciava-lhe a face, de uma porcelana lúdica quase, como aquela das bonecas que ela própria tivera nos anos da infância.

Desesperou-se e correu à livraria, percorreu a rua da Imperatriz todinha, parou no estabelecimento que levava o nome daquela via pública de um comércio que se foi, encantado no tempo deste Recife dos pretéritos vividos e adquiriu o desejado exemplar de suas vontades. Selecionou a epístola mais bonita que achou e rabiscou no alvo do papel: “A perspicácia que te caracteriza, dá margens a que o meu amor por ti se concretize...”. E não houve quem lembrasse de mais nada da sequência daquelas declarações de amor, que aqui recordo, tomou duas páginas do pergaminho tupiniquim, do melhor que existia, adquirido por lá mesmo, na seção de papelaria da loja de livros do judeu, Berestein por sobrenome. Escrevera, mas não entendera o sentido das frases e dos parágrafos, confessou, pedindo-me que lhe esclarecesse os pensamentos e até os sentimentos. Eu, também, não sabia!

E os anos se passaram, um pra lá e outro pra cá, casaram-se com gente diferente e tiveram filhos, plantaram árvores e colheram os frutos. Livros não escreveram, que os saiba, pelo menos, pra contar que sequer a perspicácia serviu para selar o amor que supera a dor. A meninada, da mesma forma, foi se aninhando em braços femininos! Alguns - poucos, todavia –, com as moças do lugar. Distantes, agora, nessa roda viva do existir humano, de quando em vez se encontram no efêmero das conversas, pois que a intimidade do antes foi perdida já, como defende Luiz Fernando Veríssimo e remontam cenas desses outroras, mas se vão, novamente, cada qual pra seu lugar, onde não há espaço para lembranças de passagens assim, simplórias, mas carregadas de sentimentos! E os amores se esvaíram com o peso dos anos!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Estante De Livros (Alceste, de Eurípides)


Esta é a mais antiga das obras conservadas de Eurípides. Admeto está condenado a morrer cedo, mas o deus Apolo convence as Parcas a permitirem que ele se livre da morte no dia marcado pelo destino, desde que encontre alguém disposto a morrer em seu lugar. Os velhos pais do rei se recusam a salvar o filho, e somente sua mulher, Alceste, prontifica-se ao sacrifício e deve morrer naquele mesmo dia. Hércules, grande herói trágico que se hospeda nesse mesmo dia na casa de Admeto se oferece para salvar Alceste das garras da Morte.

Conhecem-se diferentes versões do fim da estória de Alceste. Ora os deuses apiedam-se e permitem à rainha retornar à vida, ora o herói Héracles desce aos infernos e a resgata.

O poeta retrata Alceste como uma figura de grande virtude, esposa, mãe e rainha piedosa. a morte de Alceste é, em Eurípides, uma escolha motivada pelo amor, uma decisão que não lhe era obrigatória e que ela, como os pais de Admeto, poderia ter recusado

A Alceste, além do final feliz, apresenta alguns aspectos que a aproximam do drama satírico; é uma tragédia leve, considerada precursora do gênero melodrama.

A figura de Alceste foi vista, durante toda a Antiguidade, como um exemplo maior da virtude feminina. Platão afirma que os deuses mesmos a admiravam e Juvenal, cujas opiniões sobre o sexo oposto não eram menos que misoginia, menciona-a como um paradigma de decência ao qual as mulheres romanas, adúlteras e criminosas, não se podiam igualar. Em um epigrama funerário grego, uma mulher declara-se uma “nova Alceste”, porque morreu por seu marido, o único homem que amou. A partir da época romana, a imagem de Alceste, com a cabeça e os ombros cobertos em sinal de modéstia, era um dos motivos preferidos da decoração sepulcral.

O sacrifício voluntário de Alceste nunca cessou de inspirar poetas e artistas, dos quais só damos poucos exemplos. Christoph Wilibald Gluck fez da estória uma das mais belas óperas do período clássico (Alceste, 1767). Rainer Maria Rilke cantou a o amor incorruptível e devoção da mulher que permite ao homem um vislumbre do transcendental (Alkestis, 1907).
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RESUMO

Alceste era a mais bela das filhas do rei Pélias. Por isso foi pedida em casamento por vários reis e príncipes. Mas para não arriscar sua posição política recusando alguns desses reis e príncipes, o rei Pélias declarou que àquele que conseguisse atrelar um javali e um leão em um mesmo carro de corrida e o dirigisse em torno do estádio, seria concedida a mão de Alceste.

Ao ter conhecimento disso, Admeto, rei de Feras, invocou o deus Apolo e rogou-lhe que o ajudasse a cumprir as exigências do rei Pélias para obter a mão de Alceste. E tendo-lhe atendido o deus, conseguiu Admeto, com uma mãozinha de Héracles, atrelar os animais e dirigir o carro puxado por esses ao redor do estádio.

Tendo sucesso na empreita, Admeto fez um sacrifício à deusa Artêmis antes de se casar com Alceste. Mas não se sabe por qual razão ele omitiu esse sacrifício, o que deixou a deusa furiosa, querendo rapidamente puni-lo. Na noite de núpcias do rei, não havia uma linda esposa esperando-o, mas um gigantesco nó de serpentes.

Recorrendo novamente ao deus Apolo, Admeto conseguiu que esse interviesse com a deusa, o que acabou acontecendo, pois ele ofereceu o sacrifício esquecido. Porém, para obter sua amada de volta o rei deveria, quando chegasse a hora, sacrificar sua vida, a não ser que algum membro da família o substituísse por amor a ele, sacrifício em nome do amor.

O dia inesperado da morte de Admeto chegou mais cedo que o imaginado. Hermes (deus mensageiro) entrou em seu palácio certa noite e o intimou ao Tártaro (lugar para onde vão os mortos). 

Admeto não se preocupa muito com essa condição pensando em todos seus servos que lhe deviam favores e que gostavam muito dele e fica muito alegre com a nova esperança. No momento de sua morte, porém, ninguém se habilita, nem seus velhos pais; apenas Alceste oferece-se como substituta. Admeto tinha muito amor à vida, mas não desejava mantê-la a tal custo. Porém a condição das Parcas fora satisfeita e enquanto Admeto ia recuperando as forças, Alceste adoecia. Mas o trágico e também mágico é que, por amor, Alceste tomou veneno e se sacrificou por seu amado, indo para o Tártaro em seu lugar e cumprindo a promessa feita à deusa Artêmis. Hércules, que passava por lá ouve o lamento dos servos que não queriam perder uma querida senhora e tão dedicada esposa, espera na porta do quarto de Alceste a chegada da Morte. Quando esta chega Hércules a agarra e obriga-a a desistir de seu intento de roubar a vida de Alceste. Assim ela vai se recuperando e pôde continuar a viver ao lado de seu amado marido.

Portanto, quem se sacrifica por alguém, acaba sendo recompensado, pois o amor sempre se identifica no outro que nos completa. E Alceste completou Admeto que a tinha trazido de volta.

Fontes:
– João Francisco Pereira Cabral. in "Admeto e Alceste". Brasil Escola. 
– Gabriel Nocchi Macedo, in Alceste ou a morte em troca da vida (Excertos). Estadão 26/08/2017. 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 37: Pagador de pecados

 

Mensagem na garrafa - 20 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

 António Feijó
Ponte de Lima/Portugal (1859 - 1917) Estocolmo/Suécia

A CIDADE DO SONHO

Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho...
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajeto é florido e risonho.

Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…

Vistos dessa eminência, o mundo e as suas sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.

Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir...
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe..

Coelho Neto (Lavradores)

Encontraram-se em caminho e, como o sol abrasava, acolheram-se os dois à sombra da mesma árvore, cuja ramagem frondosa formava verde cúpula sobre a serena fonte. Velhinhos, ambos levavam ferros de lavoura e, sentando-se na alfombra, ficaram ouvindo o suave murmúrio d'água e o chilro dos passarinhos que voavam de ramo a ramo. E disse um deles:

— Bom vai o tempo para a sementeira. A terra está úmida e sente-se-lhe a seiva. O arado desliza fácil e, nos sucos que deixa, medra com vigor a semente. Vamos ter a compensação da miséria do ano passado, ano estéril de fome e de tristeza. Levo a taleiga (saco pequeno e largo) cheia e o que vai ao meu ombro, em fardo quase insensível, voltará do campo carregando com excesso os carros.

— Que levas para semeadura? 

— Linho e pão. E tu? – O outro sorriu sem responder. – Que terras lavras?

— Eu? terras eternas em que rebenta a flor, quer o sol seja ardente, quer as chuvas alaguem, nunca uma só das minhas sementes deixou de vir a jorros. Sou um homem feliz, as minhas terras são bentas.

— Quanto colhes no outono?

— Tenho abegão para tal serviço. Não sei quanto produzem as sementeiras que planto. Afirmo, porém, que são sempre fartas as colheitas do meu campo. A ti falta, às vezes, o sol; outras vezes é a chuva que não vem e ora vês o talhão esturrado, ora o encontras em alagadiço. Para os meus há sempre luz e há sempre rega: chamas de círios e fios de lágrimas. Os meus canteiros são lindos e a flor que deles sobe é a mais bela que Deus criou, nem há outras no Paraíso.

— E dá fruto?

— Sim, dá fruto.

Nesse tempo ouviu-se o rinchar do um carro e o velho, que falava da fertilidade da terra, soergueu-se dizendo:

— É o carro da minha herdade. São meus filhos que vão para a lavoura.

E disse o outro:

— Eu semeio e não me preocupo com o que fica na terra. A flor sobe e sobe tanto que é lá em cima, no céu, que exala o perfume. Deus colhe-a, extrai-lhe a essência e espalha-a pelo mundo.

— E o fruto?

— O fruto é o alimento melhor dos homens.

— Melhor que o pão?

— Melhor que o pão, porque é eterno. O trigo dá a farinha e morre; o fruto da minha sementeira não o devoram vermes, não o bicam passarinhos, as chuvas não o apodrecem, não o engelham os sóis. A flor chama-se Bondade; o fruto chama-se Exemplo. Olha em volta de ti e hás de ver a flor e o fruto das minhas plantações.

O velho relanceou o olhar em torno. Mas um rumor que se aproximava levou-lhe a atenção para a estrada: Era um grupo de crianças, de branco, que passava conduzindo um pequenino esquife coberto de rosas.

— Um enterro.

— Enterro!

— Sim, enterro de um anjo.

— Ainda bem, é a minha sementeira que passa. A sombra está deliciosa e a voz dos passarinhos mais afinada que nunca, mas a obrigação reclama-me. Eu sabia que tinha hoje uma roseira a plantar, deixei a cova pronta e lá vou ao serviço.

— Uma roseira?

— E que são crianças mortas senão plantas de flor? A roseira não dá mais que a rosa; a criança é apenas inocência. Os frutos são próprios das árvores de vida longa, são os benefícios de que gozamos nós outros: o linho tecido em pano, a farinha amassada em pão, o forno que cose a broa, a casa que nos abriga, o carro que vai ao campo, a azenha, a nora, o jugo, o ferro do arado, que é tudo isso? frutos da minha lavoura. Outros vieram depois, mais perfeitos, com a enxertia das raças, com o amanho mais cuidadoso do progresso e são as ciências que multiplicam os bens humanos. Tu és lavrador...

— E tu?

— Coveiro, lavrador também. Meu campo chama-se Eternidade, o meu outono é a Vida. Vai-te ao trigo e ao unho, eu vou ao enterro. O cemitério é a minha leira. 

Uma voz desferiu no bosque vizinho:
O amor é um bem que tortura
É o espinho d'uma flor;
Quem ama só tem ventura.
Quando sofre pelo amor.

Olharam-se os dois velhos e o lavrador de trigo e linho perguntou:

— Quem cantará?

— Que importa a pessoa? é o Amor. Essa voz que nos chega penetra a terra, chega às covas, acorda a vida no seio da morte, como o calor do sol atravessa a superfície do solo e faz estalar a semente que espalhas, tirando dela o renovo que se faz árvore. O que chamamos Amor chama-se, lá em cima, Fecundidade — é o apelo eterno à Vida. Como entendes de lavouras eu entendo de cemitérios e assim como falas, de colheitas fartas, eu posso falar da Eternidade. 

E adeus, vai ao teu trigo e ao teu linho, que eu vou agasalhar na terra a roseirinha mimosa.

Sementes e cadáveres... tudo germes. Coveiros somos ambos.

Adeus!

Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 5 -


O livro confere a chave
que abre a porta da Ciência.
É um sábio, sereno e grave,
que nos amolda a existência.
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Quem um livro tem à mão
guarda a chave do futuro.
É semente em gestação,
que dará fruto maduro.
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A mãe não exige paga.
É sempre luz que desponta.
E apenas quando se apaga
dela a gente se dá conta.
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Se tem pouco para dar,
a mãe é por certo quem,
para ao filho não faltar,
acaba ficando sem.
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As estrelas infinitas
que o céu misterioso encerra,
são olhos de mães aflitas,
velando os filhos na terra.
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Há quem fale de mulher
com menosprezo profundo,
sem mesmo pensar, sequer,
em quem o trouxe a este mundo...
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O pai é presença forte,
que mal nenhum intimida.
Defende o filho na morte,
como o defende na vida!
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Um erro não se acoberta;
quando a virtude periga,
há só ternura encoberta
na mão que ao filho castiga.
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É pequeno e vale tanto
para quem o trouxe ao mundo!
Um filho - sorriso e pranto -
é feito de amor profundo.
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O choro de uma criança
à luz do primeiro dia
é uma canção de esperança,
é a mais linda melodia!
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Não há ninguém neste mundo
que confesse a insegurança,
mas cada qual, bem no fundo,
é sempre a eterna criança!
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Num lugar do coração
habita sempre o menino
que faz bolhas de sabão
para iludir seu destino...
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A prisão é desconforto, 
ainda que em doce lar...
Se a família é mesmo um porto,
que ponha os barcos ao mar!
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Nos bons tempos de menina,
pula-se corda a valer.
Mais tarde - que triste sina! -
a corda nos vem bater.
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O mar inquieto é um menino.
Tempestuoso, é um rapaz.
Calmo, reflete o destino
do velho que encontra a paz.
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Vem o mar jogar-se aos pés
da penedia arrogante;
ela desdenha as marés
e namora o céu distante.
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Na vida, nem todos temos
lenitivo para o estresse...
É como um barco sem remos
em rio que avança e cresce!
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Estendendo os longos braços,
joga-se n'água o salgueiro.
Ela foge de seus laços.
Ele amarga o cativeiro.
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No mundo, certas pessoas,
para sua expiação,
por não serem mesmo boas,
basta ser mesmo o que são.
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A surpresa nos assusta;
o novo nos intimida.
No entanto, o que tanto custa
pode ser um bem na vida.
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Palavras não dizem muito;
atitudes dizem mais,
pois quem tem um bom intuito
mostra em seus atos leais.
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Por não lhe chegar à altura,
nem ter autoafirmação,
há sempre alguém que procura
jogar o próximo ao chão.
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Neste mundo, em que a disputa
é o que à vida dá sentido,
tem valor quem vence a luta,
mas sem pisar o vencido.
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Quem bate às costas da gente
procura, às vezes, lugar
para o punhal, simplesmente,
com mais firmeza enterrar...
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Inversos e tão diversos
são os destinos na vida...
Uns conquistam universos;
outros param na subida.

Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Virgínia Woolf (A dama no espelho: reflexo e reflexão)

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia–se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas, deitam para observar os animais mais tímidos - texugos, lontras, martins-pescadores — e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a sala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento, pétalas caindo - coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver olhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira de pedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro, estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho, pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicos alusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantes flamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões rajados de prata. E havia também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo por dois segundos juntos.

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho - aqui tudo mudando, e lá tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro.  Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transeuntes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

Meia hora antes a dona da casa, Isabella Tyson, tinha descido pela trilha de grama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pela moldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, como parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante folhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que se enroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxas e brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumado áster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam como lâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco se sabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquer mulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomada realmente por ramalhete ou gavinha. 

Tais comparações não são apenas vãs e superficiais - pior que isso, chegam até a ser cruéis por virem a se interpor tremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver uma verdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-a depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella; frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. No tocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; que comprara essa casa e com as próprias mãos juntara - não raro nos cantos mais remotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais — os tapetes, as cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dos olhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela do que a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos com tanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitas gavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maços amarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa. Pois outro fato - se eram fatos que se queria - é que Isabella conhecera muitas pessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abrir uma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitações sem conta, de compromissos a manter, de exprobrações para não ter feito, longas cartas de intimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavras finais de despedida - pois nenhum daqueles encontros e combinações de encontros levara a nada - ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pela indiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo de experiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores são trombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella, sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros, as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.

De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foram violentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra que eclipsou todo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas de mármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo. No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado. Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém, depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seu respeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las ao âmbito da experiência comum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinha trazido o correio.

Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípio pingando luz e cor, náo digeridas nem assimiladas. E era estranho então ver como se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte do quadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziam investidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de mais peso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, quer isso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente um punhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna — sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella, sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea, as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabella viria para os apanhar um a um, bem devagar, abri-los para ler com atenção, palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, como se ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos, amarrar as cartas juntas e fechar à chave a gaveta do armário, em sua determinação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.

Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida - mas não conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto e ocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeira ferramenta de que se dispunha - a imaginação. Nesse exato momento, era preciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava. Recusar-se a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasião produzia - por jantares e visitas e conversas polidas.

Era preciso pôr-se em sua pele, saber onde lhe apertava o sapato.  A se tomar literalmente a frase, seria fácil ver os sapatos nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento. Eram muito estreitos e compridos e à moda - feitos do mais macio e flexível couro. Como tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar na ponta dos pés, sob a alta cerca viva na parte mais baixa do jardim, erguendo a tesoura que trazia presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que crescera demais. O sol lhe bateria em cheio no rosto, nos olhos; mas não, no momento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressão de seus olhos - seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podia-se ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olhar para o céu. Ela estava pensando, talvez, que tinha de encomendar uma nova proteção para os morangueiros: que tinha de mandar flores à viúva de Johnson; que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesleys em sua nova casa. Dessas coisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava no jantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar e converter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para o corpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. A menção dessas palavras se tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinha muitos amigos; viajava - comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia. Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podar ramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.

Então, com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete de clematite, que caiu no chão. Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luz também, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura e remorso enchiam-lhe a essa altura o espírito... Podar um ramo que crescera demais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim e, ao mesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, que tudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrando-se a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinha tratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra e suavemente apodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficou pensando. Sem formular qualquer ideia precisa — porque era uma dessas pessoas cujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio -, via-se repleta de ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam e retrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas e abrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala, pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, e ela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seus armários. Falar de "abri-la à força", como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhe qualquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seria absurdo e ímpio. Era preciso imaginar ei-la que aparecia no espelho. E isso causava um sobressalto.

A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez. Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando um cravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-se maior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cuja mente só tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a examinava - ajustando as características que havia descoberto naquele corpo visível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta e algo que cintilava em seu pescoço.

Tão devagar ela vinha que nem parecia desarranjar a própria imagem no espelho, mas tão só lhe acrescentar algum elemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como se lhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e a mesa e a trilha de grama e os girassóis, que já se achavam à espera no espelho, apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá estava ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parou sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz que a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial e dispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de si caía - nuvens, vestido, cesta, diamante —, tudo que se havia chamado de trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos, Não se importava com ninguém. Quanto às suas cartas, não eram todas senão contas. Via-se, nisso que ela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e velada, com seu nariz empinado e estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.

Fonte: Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948. Disponível em Domínio Público.