Não tenho a mínima noção de onde me encontro. Pareço estar acordando de um sono pro fundo povoado de pesadelos.
Esfrego os olhos na vã tentativa de afastar essas incômodas imagens. Vozes misturavam-se, até que consegui desembaraçá-las, e pude identificar iradas frases que vinham de uma figura com toga preta nos ombros e que parecia dirigir essas ásperas palavras a mim.
Desligo-me momentaneamente desse inóspito ambiente e tento lembrar de meus momentos anteriores a esse cataclisma. Recordo, imediatamente, das carícias suaves da minha Tereza no leito do motel, em que íamos uma vez ao ano para reacender o relacionamento que já perdurava há uma década.
Ou seriam os deliciosos carinhos da proibida Raquel, amante há algum tempo?
Eu pensei naquele dia em dizer a Raquel que o motel que ela escolhera era o mesmo em que eu ia com Teresa, mas, prudente, calei-me.
Embaralhando meus pensamentos, já não os distinguia neste momento, ainda mais com aquela voz irritante do togado citando insistentemente meu nome.
Culpado, premeditado, má conduta, falsidade, encontrado com a faca nas mãos. Cruéis palavras que me torturavam, explodindo em meu confuso cérebro. Será que fechando novamente os olhos, trocaria esse pesadelo por um sonho mais leve?
Novamente, gritos acusando-me de estar dormindo em pleno julgamento. Essa palavra soou como um míssil tentando explodir minha cabeça.
Percebi, então, que algo grave estava acontecendo. Que estranho!. Deitado, eu dizia a Raquel para pararmos de beber, mas ela teimosamente pedia mais dois drinques.
De repente, uma estridente e raivosa voz adentra. Um barulho, um grito abafado e algo é colocado em minhas mãos.
Bêbado, deixei para ver depois o que era esse frio objeto.
Em seguida, sirenes, gritos e algo gelado prendendo meus punhos. Estranhamente, minha doce Raquel nada dizia nessa hora.
Abro os olhos e vejo aquelas sete pessoas e seus 14 olhos perscrutando minha alma.
Parecendo dissecar meus pensamentos e com desejos de arrancar meu coração. Seria aquilo um júri?
Eu só queria voltar a dormir nos braços de uma delas.
Aquela toga levanta-se e pronuncia algo que foi comemorado por uma multidão, que só agora vejo sentada atrás de mim.
Gritos, novos empurrões, algo gelado volta apertando os meus punhos e sirenes. Enfim, me levam ao sossego de um local acolhedor, longe daquela incômoda balbúrdia.
Muitos anos depois, alguém de visível má vontade, escancara aquela porta gradeada e finalmente me encontro na rua.
Agora posso voltar aos braços da proibida Raquel. Em vão, eu a procuro. Aquela voz que algo fez para separá-la de mim continua tonitruante em meus ouvidos.
Repentinamente, reconheço a voz raivosa daquele dia.
Era a de Tereza. Grito desesperado e tardiamente que não fui eu. E nessa hora, nem os paralelepípedos da rua me escutam.
Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor
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