Há três ou quatro anos, quando se cuidou, no Rio, da fundação da Casa do Médico, destinada a recolher, na velhice, os numerosos náufragos da profissão, Paulo Araújo e Belmiro Valverde definiram, em interessante memorial, o que é, em verdade, a vida de um apóstolo da Medicina.
Não há, realmente, na terra, profissão economicamente mais ingrata do que a de médico. O indivíduo que entra na loja de um comerciante seu amigo, paga pelo preço comum, ou com pequeno abatimento, a mercadoria de que faz aquisição. O barbeiro não faz a barba gratuitamente a ninguém. O advogado não defende causas sem remuneração, nem o ferreiro conserta de graça a ferramenta dos operários que lhe são íntimos. Ao médico, entretanto, não se faz a mesma justiça. Pelo fato de ser o seu trabalho relativamente leve, e consistir, apenas, em pôr algumas palavras sobre uma folha de papel, acham os clientes que lhes não devem pagar por tão pouco, esquecendo-se que essas palavras, isto é, essa receita, constitui o fruto de vários anos de estudo, de esforço, de experiência, em que foram consumidas diversas dezenas de contos. Porque o médico não gasta aos olhos do cliente, senão um pouco de tinta e uma tira em branco, é o seu trabalho depreciado, especialmente pelos camaradas, pelos amigos, pelos íntimos, que não fariam, jamais, o mesmo, se se tratasse de um engenheiro ou, em esfera mais baixa, de um simples engraxate. E daí o número relativamente grande de médicos que envelhecem na pobreza, e que entram, afinal, no carro escuro da Morte, pela porta de ferro da miséria.
Tomando em consideração esse abuso é que aparecem, de vez em quando, por toda a parte, as reações justas, enérgicas, inteligentes. É conhecida, por exemplo, a história daquela senhora que, pretendendo arranjar uma receita de certo médico ilustre, indagou, ao encontrá-lo:
- Doutor, que é que o senhor faz quando tem tosse?
O médico percebeu o plano e respondeu, grave:
- Tusso, minha senhora!
A reação mais pitoresca e eficaz de que há noticia foi, porém, a de que tomou a iniciativa, há dias, o notável mestre Sr. Dr. Miguel Couto. Certa senhora de fortuna, habituada a tratar-se com o ilustre clínico brasileiro por meio de receitas obtidas de surpresa, resolveu, da última vez, fazer o mesmo cercando-o em plena avenida:
- Ó doutor, como está?
- Bem, D. Veneranda; e a senhora, como tem passado?
- Eu? - acudiu a matrona atingindo o ponto a que pretendia chegar. - Eu não estou passando bem, não, doutor.
E logo, em seguida:
- Tenho sentido uma dor aqui, no peito, que responde aqui, no fígado, causando-me uma aflição enorme, que me não deixa dormir. Que é que o doutor acha que seja?
O Dr. Miguel Couto olhou para um lado e para outro na Avenida fervilhante de gente, e ordenou:
- Vamos ver isso, D. Veneranda. Dispa-se!
- Como? - estranhou a velha, recuando.
- Dispa-se, para fazer-lhe um exame, tornou o médico.
A matrona arregalou os olhos, escandalizada, e protestou:
- O senhor pensa que eu sou maluca?
E o Dr. Miguel, no mesmo tom:
- E a senhora não acha que eu tenho o meu consultório no meio da rua?
A velha eclipsou-se.
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.
Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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