terça-feira, 29 de abril de 2025

Coelho Netto (Perna de Pau)


Já grisalho, alto e magro, olhos miúdos e negros, mas de um brilho estranho, viam-no todas as manhãs passar à porta do colégio com uma grossa e nodosa bengala.

Conheciam-no pelo toc-toc da perna de pau, e logo chamando-se uns aos outros, corriam todos os meninos às grades, e, quando o inválido passava, rompiam em assuada: — Oh, perneta!

Ele sorria docemente; os seus olhos bravios, de uma expressão feroz, ameigavam-se e, longe de agastar-se, tirava o seu grande chapéu de abas largas e fazia uma barretada, não sei se para brincar com os pequenos, se para lhes mostrar os cabelos brancos.

Um dia o diretor chamou-o para lhe fazer presente de umas roupas, de sorte que, à hora do recreio, quando os meninos saíram para o pátio, viram com surpresa o Perna de Pau sentado tranquilamente em um dos bancos.

Receosos murmuraram: — Vem dar parte! Vem queixar-se ao diretor! — mas o bom homem sorria com tanta meiguice, que um dos pequenos ousou acudir o seu chamado.

— Venha cá, meu menino! Tem medo de mim?

— Não! — disse com orgulho o pequeno.

— Então venha até cá... eu gosto muito de crianças.

O menino adiantou-se, e os outros, vendo a bondade do inválido, acercaram-se dele, e o bom homem ficou numa roda de crianças, feliz, sorrindo. Um dos pequenos, curioso, perguntou-lhe então ingenuamente:

— Que é da tua perna, homem?

— A minha perna, meu menino? A minha perna um bicho mau levou!

A estas palavras a curiosidade dilatou todas as pupilas, e os meninos, esquecendo o recreio, chegaram-se mais ao homem, perguntando:

— Que bicho? Como foi? Conta...

— “Ah! Meus meninos... eu era um rapaz robusto; vivia na minha terra descansadamente, quando correu a notícia de uma fera, que deitava fogo pela boca, queimando as cabanas e as plantações dos pobres, andava se arrastando pela vizinhança da nossa terra.

“Diziam que ela matava velhos e crianças. Muitos moços da minha idade partiram para combater a fera que lhes ameaçava a casa e a vida dos velhos pais. Eu também tinha minha mãe, uma velhinha, e quando me disseram que o animal podia matá-la, não pensei mais, meus meninos, tomei de uma arma e parti num bando.

“Todos quantos nos viam passar abençoavam-nos: um, porque nós íamos defender a sua casa; a mãe, porque íamos evitar que a fera lhe viesse arrancar o filho dos braços; o enfermo, porque não consentiríamos que fosse maltratado. Os velhos mostravam-nos os cabelos brancos, as donzelas atiravam-nos flores, e nós seguíamos, levando todas essas lembranças num registro, que um dos nossos conduzia, para que sempre lembrássemos do que viríamos e ouviríamos.

“E chegamos ao sítio em que a fera errava. Ah! Meus meninos! Quanto mal ela já havia feito! Quanta criancinha órfã, quanta cabana reduzida a cinzas, quantos campos devastados! Felizmente, encontramo-la e o combate travou-se.

“Muitos dos meus companheiros lá ficaram, devorados pelo dragão terrível; eu, mais feliz, apenas perdi uma perna, e não me arrependo, nem lastimo a dor que sofri, porque, de volta à casa, encontrei minha mãe fiando, e vi minha terra tranquila e farta, todas as mães contentes, e os velhos respeitados.

“Que seria de vossa mães, meus meninos? Talvez tivessem sido vítimas como outras foram...”

— E que bicho era? Perguntou o pequeno curioso.

— A guerra, meu menino! — disse o inválido — Foi na guerra que deixei a minha perna, e não me arrependo: fiz o meu dever, defendendo a minha Pátria, e, quando voltei com peito coberto de medalhas, ainda achei minha velha mãe que me abençoou. Hoje estou velho e doente, e os meninos riem-se de mim...

— Não riremos mais! — disse um pequeno com os olhos rasos d’água, e atirando-se ao pescoço do velho soldado, pôs-se a dizer, comovido: —“Não riremos mais! Não riremos mais!” 

E o Perna de Pau, no meio das crianças que procuravam abraçá-lo, rindo, mas com duas lágrimas nos olhos, dizia: —Ah! Meus meninos, assim dão cabo de mim! — e todos festejavam o inválido, prometiam-lhe presentes, abraçavam-no.

Felizmente pôs termo ao assalto de ternura a sineta, chamando para a aula…

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HENRIQUE MAXIMIANO COELHO NETTO nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Netto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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