sexta-feira, 25 de abril de 2025

Irmãos Grimm (A bota de couro de búfalo)


Um soldado que nada teme, também não se importa com coisa alguma, certa vez foi dispensado e, como nunca aprendera outro ofício não conseguiu arranjar emprego. Assim saiu a correr o mundo, vivendo da esmola de pessoas bondosas. Levava  nos ombros uma capa velha e nos pés um par de botas de couro de búfalo; era o que lhe havia sobrado. 

Numa ocasião em que estava a vagar pelo campo, sem prestar atenção por onde andava, perdeu-se numa floresta. E viu um homem bem vestido, com um chapéu verde de caçador, sentado num toco de árvore. O soldado cumprimentou-o, sentou-se na relva a seu lado e espichou as pernas.

- Vejo que usas umas botas finas; tão limpas que chegam a reluzir, - disse para o caçador. - Se tivesses de andar pelo mundo como eu, não duraram muito. Olha para as minhas; são de couro de búfalo e já prestaram muito serviço andando por toda espécie de caminhos.

Passando algum tempo, levantou-se e disse;

- Não posso demorar muito, a fome me toca para a frente; mas dize-me uma coisa, amigo "Botalimpa", para onde vais?

- Eu mesmo não sei, - respondeu o outro - estou perdido na floresta.

- É o que me acontece - falou o soldado - e como igual com igual forma um bom par, continuemos juntos à procura do caminho.

O caçador sorriu e partiram juntos, andando sem parar até anoitecer.----

- Não conseguimos sair do mato, – disse o soldado - mas vejo uma luz brilhar lá longe. Acredito que ali conseguiremos algo para comer.

Chegaram a uma casa de pedra; bateram e uma velha lhes abriu a porta.

- Procuramos um abrigo para a noite - disse o soldado - e algo para encher o estômago. O meu está vazio que nem saco furado.

- Aqui não podes ficar, - respondeu a velha - esta é uma casa de bandidos. Farão bem em afastar-se o mais depressa possível, antes que chegue o bando; se os encontram aqui, vocês estão perdidos.

- A coisa não há de ser tão ruim assim, - retrucou o soldado - faz dois dias que não como e me é indiferente se dão cabo de mim aqui ou se morro de fome no mato. Eu vou entrar!

O caçador não queria acompanhá-lo, mas o outro puxou-o pela manga do casaco, dizendo-lhe:

- Vem comigo; não irão matar-nos em seguida.

A velha ficou com pena deles e sugeriu:

- Escondam-se atrás do fogão. Se sobrar comida depois que eles estiverem dormindo eu lhes darei algo.

Mal se haviam escondido, entraram doze bandidos fazendo uma algazarra dos diabos. Sentaram-se à mesa, que já estava posta, e exigiram ruidosamente a comida. A velha trouxe um assado bem grande e os ladrões comeram à vontade. Quando o cheiro bom dos pratos chegou às narinas do soldado, ele disse ao caçador:

- Não aguento mais, vou me sentar à mesa e comer com eles.

- Isto nos custaria a vida. - retrucou o outro, segurando-o pelo braço.

Mas o soldado pôs-se a tossir bem alto, de propósito. Ao ouvirem aquilo, os bandidos largaram facas e garfos, levantaram-se de um salto e descobriram os dois atrás do fogão.

- Vejam só! - gritaram. - Estão aí, hein? Que fazem nesse canto? Que pretendem? São espiões? Esperem um pouco que logo vão aprender a dançar num galho de árvore.

- Calma, calma! - disse o soldado. - Estou com fome. Deem-me algo para comer, depois façam comigo que bem entenderem.

Os bandidos se entreolharam surpresos e o chefe do bando falou:

- Vejo que és corajoso. Bem...terás comida à vontade, mas depois vais morrer..

- Isso veremos! - respondeu o soldado. Sentou-se à mesa e principiou a comer sofregamente. - Irmão Botalimpa, vem comer! - disse ele, de boca cheia, ao caçador. - Hás de estar com tanta fome quanto eu e um assado melhor não encontrarás nem em casa.

O caçador, porém, não quis comer. Os bandidos ficaram olhando, assombrados, para o soldado e comentaram:

- Esse sujeito não fez cerimônia!

Daí a pouco o soldado disse:

- A comida está boa; falta, agora, um bom traguinho.

O chefe, que estava de bom humor, permitiu ainda isso e ordenou à velha:

- Traz uma bebida do porão e que seja das melhores.

O soldado desarrolhou a garrafa e dirigindo-se, com ela, ao caçador, disse:

- Presta atenção, amigo. Irás assistir a uma coisa espetacular. Brindarei à saúde de todo o bando.

Ergueu a garrafa, agitou-a sobre as cabeças dos bandidos e gritou:

- Á saúde de todos vocês, mas ...de boca aberta e mão direita para alto!

Mal havia pronunciado essas palavras, o bando inteiro ficou imobilizado, como se fossem de pedra; tinham as bocas escancaradas e o braço direito erguido. O caçador disse ao soldado:

- Vejo que és cheio de truques! Mas agora vem, vamos sair daqui o quanto antes.

- Pois bem, amigo! Isso seria bater em retirada cedo demais. Vencemos o inimigo e temos de nos ocupar da presa. Estão aí sentados, de boca aberta, e não se poderão mover até que eu permita. Vem, come e bebe.

A velha teve de trazer mais uma das melhores garrafas de vinho e o soldado não se levantou da mesa antes de ter comido por três dias. Finalmente, quando amanheceu, ele disse:

- Agora sim, chegou a hora de partirmos; e para não precisarmos andar muito, a velha nos mostrará o caminho mais próximo para a cidade.

Quando lá chegaram, o soldado foi procurar seus velhos companheiros e lhes contou:

- Encontrei lá fora, no mato, um ninho de pássaros para a forca. Venham comigo. Vamos apanhá-los:

Pôs-se à frente do grupo e disse ao caçador:

- Acompanha-me e verás como esvoaçam quando os pegarmos pelos pés.

Colocou os seus homens ao redor dos bandidos, apanhou a garrafa, tomou um gole e, agitando-a no ar, gritou:

- Vivam todos!

Instantaneamente  recobraram seus movimentos, mas logo foram derrubados ao chão e atados pelas mãos e pés. A seguir, o soldado mandou jogá-los no carro, como se fossem sacos e ordenou:

- Levem-nos diretamente para a prisão.

Enquanto isso, o caçador chamou um dos soldados à parte e lhe deu uma incumbência.

- Irmão Botalimpa, - disse o soldado - vencemos, felizmente, o inimigo e nos alimentamos muito bem. Agora marcharemos atrás do grupo com toda a calma.

Quando se aproximaram da cidade, o soldado viu que um número grande de pessoas vinha a seu encontro, dando gritos de alegria e agitando ramos verdes no ar. Viu, também, que toda a guarda real se aproximava deles.

- Que significa isso? - perguntou admirado.

- Não sabes - respondeu o caçador - que o rei esteve ausente muito tempo? Está voltando hoje e por isso todos vem a seu encontro.

- Mas onde está o rei? - indagou o soldado. - Não o vejo .

- Aqui. - respondeu o caçador. - Eu sou o rei e mandei anunciar minha chegada.

Abriu o casaco e embaixo apareceram suas vestes reais. O soldado assustou-se; caiu de joelhos e pediu perdão por tê-lo tratado, em sua ignorância, como a um igual e, ainda, por lhe ter dado um apelido. O rei, porém, estendeu-lhe a mão e disse:

- És um bravo soldado e me salvaste a vida. Não passarás necessidade novamente, pois cuidarei de ti. E se algum dia quiseres comer um bom assado, tão bom quanto aquele da casa dos bandidos, vem à cozinha do palácio. Mas, se quiseres fazer um brinde, terás de me consultar primeiro.
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Folcloristas e escritores de contos infantis, Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, no Grão-ducado de Hesse, na Alemanha. Receberam formação religiosa na Igreja Calvinista Reformada. Das nove crianças da família só seis chegaram à idade adulta. Os Irmãos Grimm passaram a infância na aldeia de Steinau, onde o pai era funcionário de justiça e Administração do conde de Hessen. Em 1796, com a morte repentina do pai, a família passou por dificuldades financeiras. Em 1798, Jacob e Wilhelm, os filhos mais velhos, foram levados para a casa de uma tia materna na cidade de Hassel, onde foram matriculados numa escola. Depois de concluído o ensino médio, os irmãos ingressaram na Universidade de Marburg. Estudiosos e interessados nas pesquisas de manuscritos e documentos históricos, receberam o apoio de um professor, que colocou sua biblioteca particular à disposição dos irmãos, onde tiveram acesso às obras do Romantismo e às cantigas de amor medievais. Depois de formados, os Irmãos Grimm se fixaram em Kassel e ambos ocuparam o cargo de bibliotecário. Em 1807, com o avanço do exército francês pelos territórios alemães, a cidade de Kassel passou a ser governada por Jérome Bonaparte, irmão mais novo de Napoleão, que a tornou capital do reino recém-instalado, Reino da Vestfália. Essa situação despertou o espírito nacionalista do romantismo alemão. A busca das raízes populares da germanidade estava em voga. Os irmãos reivindicaram a origem alemã para histórias conhecidas também em outros países europeus – como Chapeuzinho Vermelho, registrada pelo francês Charles Perrault bem antes do século XVII. No final de 1812, os irmãos apresentaram 86 contos coletados da tradição oral da região alemã do Hesse em um volume intitulado “Kinder-und Hausmärchen”, Contos de Fadas para o Lar e as Crianças. Em 1815 lançaram o segundo volume, Lendas Alemãs, no qual reuniram mais de setenta contos. Em 1840 os irmãos mudaram-se para Berlim onde iniciaram seu trabalho mais ambicioso: Dicionário Alemão. A obra, cujo primeiro fascículo apareceu em 1852, mas não pode ser terminada por eles. Faleceram em Berlim Wilhelm em 1859 e Jacob em 1863.

Fontes:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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