sábado, 12 de abril de 2025

Sílvio Romero (A onça e o bode)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ A ONÇA QUIS FAZER UMA CASA; foi a um lugar, roçou o mato para ali fazer a sua casa. O bode, que também andava com vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar, e, chegando no que a onça tinha roçado, disse: “Bravo! Que belo lugar para levantar a minha casa!” 

O bode cortou logo umas forquilhas e fincou naquele lugar, e foi-se embora. 

No dia seguinte a onça lá chegando, e vendo as forquilhas fincadas, disse: “Oh! Quem me está ajudando?! Bravo, é Deus que está me ajudando!”  Botou logo as travessas nas forquilhas, e a cumeeira, e foi-se. 

O bode, quando veio de novo, admirou-se e disse: “Oh! Quem está me ajudando?! É Deus que está me protegendo.” Botou logo os caibros na casa, e foi-se. 

Vindo a onça, ainda mais se espantou, e botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. O bode veio, e varou a casa e foi-se. A onça veio e a cobriu. O bode veio e tapou. 

Assim foram, cada um por sua vez, e aprontaram a casa. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e meteu-se dentro. 

Logo depois chegou o bode, e, vendo a outra, disse: “Não, amiga, esta casa é minha, porque fui eu quem finquei as forquilhas, botei os caibros, varei, e tapei.” 

— “Não, amigo”, respondeu a onça, “a casa é minha, porque fui eu que rocei o lugar, botei as travessas, a cumeeira, as ripas, os enchimentos, e o sapé.”

Depois de alguma questão, a onça, que estava com vontade de comer o bode, disse: “Mas não haja briga, amigo bode, nós dois podemos ficar morando na casa.” 

O bode aceitou, mas com muito medo. O bode armou a sua rede bem longe do jirau da onça. 

No outro dia a onça disse: “Amigo bode, quando você me vir frangir o couro da testa, eu estou com raiva, tome sentido!” 

— “Eu, amiga onça, quando você me vir balançar as minhas barbinhas ali nas goteiras e dar um espirro, você fuja, que eu não estou de caçoada.” 

Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de comer. Lá, por longe de casa, pegou um grande bode e, para fazer medo ao seu companheiro, matou-o, e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o no chão e disse: “Está, amigo bode, esfole e trate para nós comer.” 

O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo: “Quando este, que era tão grande, você matou, quanto mais a mim!” 

No outro dia ele disse à onça: “Agora, amiga onça, quem vai buscar de comer sou eu.” 

E largou-se. Chegando longe, avistou uma onça bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós no mato. A onça veio chegando, e, vendo aquilo, disse: “Amigo bode, para que tanto cipó?” 

— “Fum! Para quê?! O negócio é sério, trate de si... O mundo está para acabar, e é com dilúvio...” 

— “O que está dizendo, amigo bode?” 

— “É verdade; e você, se quiser escapar, venha se amarrar, que eu já me vou.” 

A onça foi, e escolheu um pau bem alto e grosso, e pediu ao bode para que a amarrasse. O bode enleou-a perfeitamente, e, quando a viu bem segura, meteu-lhe o cacete como terra, até matá-la. Depois arrastou-a; chegou em casa, largou-a no chão, dizendo: “Está; se quiser esfole e trate.”

A onça ficou espantada e com medo. Ambos dois temiam um ao outro.

Num dia o bode pôs-se junto das biqueiras, tomando fresco; olhou para a onça, e ela estava com o couro da testa frangido. Ele teve receio e abalou as barbas, e largou um espirro. A onça pulou do mundéu e largou na carreira, o bode também abriu o pano. Ainda hoje correm cada um para o seu lado.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Nenhum comentário: