Abri a porta da varanda e não vislumbrei ninguém. Estava quase voltando, quando ouvi.
– Sou a Chuva, velho amigo.
– Opa! Fazia tempo que não nos víamos. Há muito tempo eu queria conversar com você.
Ela respondeu imediatamente.
– Sim, mas tenho uma séria reclamação a fazer.
– Então, faça, minha amiga.
– Minha mágoa é você ter colocado em seus três livros anteriores todos os fenômenos naturais, menos eu.
Eu sorri, e disse, cuidando para não magoá-la.
– Amiga, querida, é que todas as vezes em que eu a procurei para conversar, eu fiquei molhado demais.
Ela gargalhou depois de ouvir a minha tolice.
Com o ambiente entre nós dois já mais “desanuviado”, prosseguimos.
Ela, zombando, disse.
– Fique aí embaixo do telhado da varanda, para não se molhar e pegar uma pneumonia, coisa muito comum e perigosa em idosos.
Tive que rir da brincadeira e devolvi.
– Estou reparando que os cientistas têm razão em afirmar que as chuvas atuais são muito ácidas.
Rimos muito e decidimos começar a tratar de assuntos mais relevantes.
– Amigo, você tem acompanhado o massacre que tenho sofrido da mídia?
– Realmente, eles têm sido bem contundentes quando se referem a você.
– Em minha defesa, vamos lá, por etapas.
E prosseguiu, já um pouco irritada.
– Os humanos aquecem desenfreadamente o planeta, causando o degelo nos polos, ou seja, aumentam o meu volume. Impermeabilizam o solo com asfaltamento. Quando eu me precipito, não há muita área de absorção, e eu corro atrás de um leito. Nesse caminho acontecem as fatalidades.
Eu complementei.
– Sim, os transbordamentos, inundações e desmoronamentos.
– Inevitáveis, velho amigo, e eu só tentando encontrar meu curso natural.
– O interessante, minha amiga, é que, quando você não aparece, todos reclamam da seca, com a consequente perda na agricultura e pecuária.
– E as “moças do tempo” nos canais de televisão, me culpando pela baixa umidade do ar!
Sorri para suavizar o ambiente e brinquei.
– Você virou a inimiga número 1 do planeta.
Também sorrindo, completou.
– E não consigo lavar essa mancha na minha reputação.
Rimos, e ela prosseguiu.
– Espero que você não coloque em seu livro o que vou lhe contar.
– Não vou lhe prometer, afinal, sou fiel aos leitores, e se for de relevância, seguirei minha conduta.
– Eu já imaginava, mas contarei assim mesmo.
– É um relato, para você ver como é difícil ser chuva nos dias atuais. Eu vinha, sossegadamente, por uma enxurrada, quando tropecei em uma lata, deixada na rua por algum imbecil, dei uma cambalhota e mergulhei dentro do bueiro, do qual alguém, sem escrúpulos, retirara a tampa. E enfiei meu rosto em um monte de fezes humanas acumuladas lá no fundo. “Eu me sujei, e eu lavei a mim mesma, com minhas próprias mãos”, por muito tempo, até desaparecer aquele cheiro horroroso.
Rimos por bastante tempo, até podermos reatar nossa conversa.
– Velho amigo, já que você vai narrar essa minha cômica desventura, deixe-me contar aos seus leitores algo que aconteceu com você e comigo há tempos.
Sem condições de contrariá-la, concordei.
– Na década de 70, um rapaz dirigiu de Campinas ao Rio de Janeiro, para passar a noite de réveillon com amigos. Durante a comemoração, ele tomou algumas taças de vinho a mais, levado pela emoção da data festiva.
Continuou.
– Esse rapaz precisava sair mais cedo da festa, para ir à casa de outros amigos na Tijuca. Após dirigir por algum tempo, achou mais prudente dormir no carro por uns minutos, para amenizar o efeito etílico e deixar passar a intensa chuva. Acordou e percebeu que seu carro não estava no lugar, mas encostado em uma árvore, no meio de uma enxurrada.
Nessa hora interrompi sua fala.
– Minha amiga, foi uma das piores sensações que tive, sem saber onde estava e como o meu fusca teria ido parar ali.
Chuva deu uma sonora gargalhada e completou o relato.
– Pois é, meu amigo, eu estava em ação, na madrugada da Cidade Maravilhosa, quando deparei-me com um carro aparentemente sem motorista, sendo levado na direção de um rio. Ao observar mais detalhadamente, vi uma pessoa dentro do veículo. Rapidamente, desviei a correnteza em direção a uma grande árvore para evitar uma provável tragédia.
Atônito com o relato da história, eu disse.
– Ah! Alguns integrantes do Corpo de Bombeiros, que vieram ver se eu estava bem, me falaram que eu tive sorte porque o carro estava indo em direção ao rio Maracanã e provavelmente teria problemas para sair de dentro dele.
Em um tom afetuoso, ela prosseguiu.
– Viu, meu caro, foi assim que eu conheci você, embora nunca tenha lhe contado isso.
– Devo-lhe muita gratidão, minha amiga. Mas você poderia explicar como conhecia os detalhes do cansaço da minha viagem ao Rio de Janeiro e a quantidade exagerada de taças de vinho que tomei na festa?
Riu durante um bom tempo e disse.
– Insondáveis mistérios, meu querido amigo. Aliás, um sugestivo título para este seu novo livro.
Afirmando que precisava atuar em outras paragens, deu-me um demorado e molhado abraço, e rindo, prometeu retornar em breve.
Totalmente encharcado, corri para registrar nosso encontro, pensando em como a Chuva ficou sabendo que este meu livro se intitularia “Insondáveis!”.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.
Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024.
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