Quando o senador Bastos voltou de Poços de Caldas, onde esteve a espiar a maré dos acontecimentos e a ler pela décima segunda vez As democracias da América, de García Calderón — o evangelho da ditadura militar — e chegou à Cascadura, esperou que os seus amigos o fossem buscar acompanhados da banda de música da linha de tiro 69.
Tal, porém, não aconteceu e só o foi buscar o seu amado discípulo Anófeles que estudava com Sua Excelência, direito constitucional e a criação de galos de briga.
O senador disfarçou o aborrecimento e continuou a viagem olhando os subúrbios sem encanto, que a locomotiva atravessava.
Em dado momento, Anófeles, dirigiu a palavra ao mentor:
— Vossa Excelência certamente imaginava que outros admiradores o viessem buscar, não é verdade?
O discípulo sagaz dissera isto para realçar bem a sua dedicação ao antigo chefe poderoso.
Bastos empertigou-se melhor no banco e respondeu com aquela sua voz sacerdotal:
— Menino, quem é coerente com os princípios republicanos não se admira de levar coices.
Ele gostava muito dessas coisas de cavalos e sempre que podia fazia comparações e metáforas com os fatos que lhes dizem respeito.
— Como devemos entender esses princípios republicanos?
Bastos tossiu, acendeu o cigarro de palha mais uma vez e explicou:
— Primeiro: devemos entendê-los como sendo eu chefe absoluto do país, tal e qual o czar da Rússia; segundo: considerando que somos no Brasil um único povo, um estado tem o direito de reter cereais de que não precisa, para esfomear os outros; terceiro: para favorecer a liberdade, temos a obrigação de decretar um estado de sítio permanente; quarto (e este é o mais importante dos itens): as eleições ou a escolha dos representantes da nação não devem ser feitas pelo povo, mas por uma camarilha que vela como muezins na catedral gótica da República. Podia dizer mais; creio, porém, que isto basta.
O trem chegava à gare da Central e Bastos foi ultimar a sua toalete de desembarque. Quando voltou e olhou pela portinhola, viu que só o esperavam duas dúzias de correligionários.
Pode ainda dizer a Anófeles:
— Antes fosse como em Cartago, meu caro Anófeles. Lá, ao menos, se enforcavam os generais derrotados.
E não pôde olhar o céu, porque a abóbada de zinco da estação escondia-o dos seus olhos.
Fonte: Lima Barreto. Marginália. Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.
Nenhum comentário:
Postar um comentário