domingo, 18 de agosto de 2024

O. Henry (Dois Cavalheiros no Dia de Ação de Graças)

Há um dia que é nosso. Há um dia em que todos nós, americanos que não nos fizemos por conta própria, voltamos ao antigo lar para comer biscoitos caseiros e nos admirar de que a velha bomba pareça estar muito mais perto do alpendre do que outrora. Bendito seja esse dia. O Presidente Roosevelt no-lo deu. Já ouvimos falar nos puritanos, mas não lembramos exatamente quem fossem. De qualquer modo, aposto que poderemos vencê-los se tentarem desembarcar de novo. Plymouth Rocks? Bem, isso soa mais familiar. Muitos de nós tivemos de voltar aos frangos depois que o Truste do Peru entrou em campo. Mas alguém em Washington está-lhe passando informações adiantadas acerca desses decretos do Dia de Ação de Graças.

A grande cidade a leste dos pauis de uvas silvestres fez do Dia de Ação de Graças uma instituição. A última quinta-feira de novembro é o único dia do ano em que ela reconhece a parte da América situada para além da estação de barcos. Sim, é um dia de celebração exclusivamente americano.

Vamos agora à história que irá provar-vos que temos, neste lado de oceano, tradições que estão envelhecendo muito mais rapidamente do que as da Inglaterra — graças à nossa diligência e iniciativa.

Stuffy Peter tomou o seu lugar no terceiro banco à direita de quem entre na Union Square pelo lado leste, no passeio oposto à fonte. Todo Dia de Ação de Graças, havia já nove anos, sentava-se ele nesse banco, pontualmente, à 1 hora. Pois todas as vezes em que o fizera haviam-lhe acontecido coisas — coisas à maneira de Charles Dickens, que lhe enfunavam o colete à altura do coração, e do lado oposto também.

Mas a última aparição de Stuffy Peter no local anual de encontro parecia ter sido mais resultado de um hábito do que de uma fome anual que, conforme o pensamento aparente dos filantropos, aflige os pobres a tão dilatados intervalos.

É certo que Peter não estava faminto. Vinha de uma festa que, de suas faculdades corporais, deixara-lhe apenas as de respiração e locomoção. Seus filhos semelhavam duas pálidas groselhas firmemente embutidas numa máscara de poteia inchada e suja de molho. A respiração saía-lhe em curtos ofegos; uma senatorial papada de tecido adiposo negava-lhe base apropriada para a gola erguida do casaco. Botões que lhe tinham sido costurados à roupa por piedosos dedos do Exército da Salvação, havia uma semana, saltavam como pipocas, juncando a terra em derredor. Estava maltrapilho, com o peitilho da camisa rasgado de alto a baixo. Entretanto, a brisa de novembro, saturada de minúsculos flocos de neve, só lhe trazia uma grata frescura. Pois Stuffy Peter estava abarrotado de calorias produzidas por um jantar ultracopioso, iniciado com ostras e terminado por pudim de passas, incluindo (segundo lhe parecia) todos os perus assados, e batatas cozidas, e saladas de frango, e bolos de abóbora, e sorvetes do mundo. Dado o que, ele sentou-se repleto e contemplou o mundo com o olhar de desprezo de quem acaba de jantar regiamente.

A refeição fora inesperada. Passara diante de uma mansão de tijolos vermelhos, perto do início da Quinta Avenida, na qual viviam duas velhas senhoras, de famílía antiga e cultuadoras da tradição. Elas negavam mesmo a existência de Nova Iorque e acreditavam que o Dia de Ação de Graças fora promulgado apenas para a Washington Square, Um de seus hábitos tradicionais era o de postar um criado no portão dos fundos, com ordem de admitir o primeiro transeunte faminto que por ali passasse depois de soar meio-dia, e banqueteá-lo à farta. Acontecera isso a Stuffy Peter, no seu trajeto para o parque, e os senescais o agarraram para cumprir com o costume do castelo.

Depois de ter contemplado o panorama à sua frente durante dez minutos, Stuffy Peter tornou-se cônscio de um desejo de campo de visão mais variado. Com um esforço tremendo, moveu a cabeça lentamente para a esquerda. E então seus olhos se esbugalharam apavorados; parou de respirar, e as cambaias extremidades de suas pernas curtas mexeram-se, raspando o cascalho.

Porque o Velho Cavalheiro atravessava a Quarta Avenida em demanda do seu banco.

Todos os Dias de Ação de Graças, nos últimos nove anos, o Velho Cavalheiro aparecera e encontrara Stuffy Peter no seu banco. Era um encontro que o Velho Cavalheiro estava tentando converter em tradição. Todos os Dias de Ação de Graças, havia nove anos, ele encontrara Stuffy Peter ali, levara-o a um restaurante, e ficara a vê-lo comer um lauto jantar. Faziam tais coisas na Inglaterra inconscientemente. Mas este é um país jovem, e nove anos não são tão pouco. O velho Cavalheiro era um fervoroso patriota americano, e considerava-se pioneiro no tocante às tradições americanas. Para nos tornarmos pitorescos, cumpre-nos dizer a mesma coisa durante longo tempo, sem desfalecimentos. Coisas assim como colecionar folhetos semanais sobre segurança industrial. Ou limpar as ruas.

O Velho Cavalheiro encaminhou-se, teso e solene, para a Instituição que estava apadrinhando. É bem verdade que o sentimento anual de Stuffy Peter não tinha nenhum caráter nacional, como o têm, na Inglaterra, a Magna Carta ou o presunto do desjejum. Mas era um passo. Era quase feudal. Mostrava, pelo menos, que um Costume não era impossível em Nova lor...hm, quero dizer... na América.

O Velho Cavalheiro era magro, alto e sexagenário. Estava todo vestido de preto, e usava óculos de modelo antiquado, daqueles que vivem a escorregar do nariz. Seu cabelo mostrava-se mais alvo e mais ralo do que no ano anterior, e ele parecia apoiar-se mais na sua longa bengala retorcida, de grande castão nodoso.

À medida que seu benfeitor oficial avançava, Stuffy arquejava e tremia como o obeso cãozinho fraldeiro de uma senhora quando um vira-lata rosna para ele. Teria voado dali, mas nem toda a habilidade de Santos Dumont o conseguiria arrancar do banco. Os fâmulos das duas velhas damas haviam feito um bom trabalho.

— Bom dia — disse o Velho Cavalheiro. — Estou contente de ver que as vicissitudes de outro ano o pouparam, permitindo-lhe que se movimentasse, em perfeita saúde, por este belo mundo. Por tal bênção o Dia de Ação de Graças se faz bem anunciar a nós ambos. Se vier comigo, meu bom homem, eu lhe propiciarei um jantar que fará com que o seu ser físico se harmonize com o mental.

Todas as vezes o Velho Cavalheiro dizia as mesmas palavras. Todos os Dias de Ação de Graças, durante nove anos. As próprias palavras quase se constituíam numa instituição. Nada se lhes podia comparar, salvo a Declaração da Independência. Nas ocasiões anteriores, tinham sido música para os ouvidos de Stuffy. Mas agora ele olhava para o rosto do velho Cavalheiro com expressão de lancinante agonia. A neve fina quase chiava quando lhe tocava a fronte suada. Mas o Velho Cavalheiro teve um ligeiro tremor e voltou as costas ao vento.

Stuffy sempre conjecturara por que razão o Velho Cavalheiro recitava a sua fala em tom tristonho. Não sabia que era porque desejava, todas as vezes, que um filho o sucedesse. Um filho que ali viesse depois que ele se fosse; um filho que se postasse, orgulhoso e forte, diante de algum futuro Stuffy e lhe dissesse: "Em memória do meu pai". Então sim, a coisa seria uma Instituição.

Mas o Velho Cavalheiro não tinha parentes. Vivia em quartos alugados, numa velha e decadente mansão familiar de grés pardo, situada numa das ruas tranquilas a leste do parque. No inverno, plantava fucsias numa pequena estufa do tamanho de uma claraboia de navio. Na primavera, desfilava na parada de Páscoa. No verão, vivia numa casa de fazenda, nas colinas de New Jersey, e, sentado numa poltrona de vime, falava de uma borboleta, a ornithoptera amphrisíus, que esperava encontrar algum dia. No outono, patrocinava um jantar para Stuffy. Essas eram as ocupações do Velho Cavalheiro.

Stuffy Peter contemplou-o durante meio minuto, apoquentado e inerme na sua comiseração por si mesmo. Os olhos do Velho Cavalheiro reluziam do prazer de dar. Sua face se ia tornando mais enrugada a cada ano,  mas o laço de sua gravatinha negra continuava elegante como sempre, sua camisa era alva e bonita, e seu bigode encanecido tinha as pontas airosamente reviradas. Stuffy produziu um ruído semelhante ao de ervilhas borborejando numa panela. Estava tentando falar. Como o Velho Cavalheiro ouvira os sons nove vezes antes, imediatamente interpretou-os como a velha fórmula de aceitação de Stuffy:

— Muito obrigado, patrão, Vou sim, e muito obrigado. Estou com muita fome, patrão.

O coma da repleção (saturação) não impedira que penetrasse a mente de Stuffy a convicção de que era a base de uma instituição. Seu apetite do Dia de Ação de Graças não lhe pertencia; pertencia, por todos os sagrados direitos do costume estabelecido, se não pelo atual Estado de Prescrições, àquele bondoso ancião, que o obtivera por direito de precedência. Na verdade, a América é livre, mas para findar a tradição alguém tem de ser estribilho — uma decimal periódica. Os heróis não são todos de aço e ouro. Eis aqui um que empunha apenas armas de ferro, tenuemente niqueladas, e de latão. 

O Velho Cavalheiro levou o seu protegido anual ao restaurante, até a mesa onde o festim sempre ocorrera. Foram reconhecidos.

— Aí vem o velhote — disse um garçom — que paga um almoço para o mesmo vagabundo, todo Dia de Ação de Graças.

O Velho Cavalheiro sentou-se à mesa, fulgindo como uma pérola esfumaçada na sua pedra fundamental de futura antiga Tradição. Os garçons abarrotaram a mesa de comida dominical — e Stuffy, com um suspiro que foi erroneamente tomado como expressão de fome, ergueu faca e garfo e conquistou para si uma coroa de imperecível louro.

Nenhum herói jamais abriu caminho tão denodadamente por entre as fileiras inimigas. Peru, postas de carne, sopas, legumes, bolos desapareceram tão depressa quanto lhe foram servidos. Repleto até os gorgomilos quando adentrara o restaurante, o odor de comida quase o fizera perder sua honra de cavalheiro, mas ele se reanimara, como bravo cavaleiro que era. Viu a expressão de felicidade beneficente no rosto do Velho Cavalheiro (uma expressão mais feliz do que a que as fücsias e aornithoptera amphrisius jamais lhe poderiam trazer) e não tivera coragem de vê-la empalidecer.

Ao cabo de uma hora, Stuffy recostou-se na cadeira com a batalha ganha.

— Muitíssimo obrigado, patrão — bufou, como um cano de vapor furado —, muitíssimo obrigado pelo ótimo almoço.

Ergueu-se então pesadamente, com os olhos vidrados, e dirigiu-se para a cozinha. Um garçom fê-lo girar como pião, e o pôs a caminho da porta. O Velho Cavalheiro contou cuidadosamente um dólar e trinta em moedas de prata, deixando três níqueis de gorjeta para o garçom.

Separaram-se, como todos os anos, à porta: o Velho Cavalheiro foi para baixo, Stuffy para cima.

Stuffy virou a primeira esquina e ficou imóvel durante um instante. Depois, pareceu enfunar seus trapos como uma coruja enfuna as penas, e desabou na calçada como um cavalo atacado de insolação.

Quando veio a ambulância, o jovem cirurgião e o condutor praguejaram em voz baixa diante do seu peso. Não havia cheiro de uísque que justificasse a transferência para o carro de presos, dado o que Stuffy e seus dois almoços foram para o hospital. Ali o estenderam numa cama e começaram a fazer-lhes exames em busca de doenças fora do comum, na esperança de poderem usar o bisturi para a solução de algum problema.

E, ai! Uma hora mais tarde outra ambulância trouxe o Velho Cavalheiro. Deitaram-no noutra cama e começaram a falar de apendicite, pois o paciente parecia estar em condições de pagar a conta da operação.

Mas logo depois um dos jovens doutores encontrou-se com uma das jovens enfermeiras de cujos olhos gostava, e deteve-se para prosear com ela sobre os casos.

— Aquele simpático e idoso cavalheiro ali, está vendo? — disse. Imaginaria você que é um caso de inanição, quase? Família antiga e orgulhosa, acho. Contou-me que não comia nada há mais de três dias.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.

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