TATIANA SEMPRE amou a música. De paixão. Era a sua vida, o seu objetivo, o seu agora, e, igualmente, o seu porvir. Desde pequena, ainda na faixa dos cinco para seis anos, as notas de um piano ou a melodia suave de um órgão nas missas dominicais do padre Daniel a encantavam e acalmavam o seu espírito inquieto, notadamente quando se deparava com as partituras (ainda que de uma simples melopeia.) Sua paixão avassaladora pelos hinos, e pelas canções românticas se fazia como um trilho paralelo. Uma disposição anímica, um escape no meio do cotidiano efervescente, e uma forma direta de comunicação, tipo assim, como algo soberbo que se estendia além, muito aquém das palavras. No entanto, com o passar dos anos, algo que deveria ser uma fonte de alegria e esperança, se tornou um tremendo campo de batalha emocional, como uma arena imensa onde a frustração e o ressentimento se assarapantaram juntamente com as obras que costumava executar.
O pai de Tatiana, o Chico Marreta, sempre foi um homem de grandes expectativas. Para ele não havia limites. Com o sucesso profissional açambarcado pela sua eterna criança, ele transferiu as todas as suas edacidades (avidez) para ela, esperando que a jovem musicista fosse uma ensancha (oportunidade) sôfrega de seus próprios devaneios e conquistas. Em razão disso, uma tara esfaimada e gulosa, quase as raias do pantagruélico em ver a Tatiana nos píncaros das estrelas, se consubstanciava numa única essência, como um reflexo do desejo de brilhar e superar a si próprio, ou qualquer coisa que ele mesmo trazia escondido a sete chaves dentro de si. Contudo, na busca galopante por realizações pessoais, ele se descuidou, ou seja, deixou de lado algo que deveria ser primordial: o respeito, a consideração, a deferência e a cortesia pela vontade e pelos sentimentos de sua única descendente. Tatiana, no início, tentou corresponder às expectativas do pai.
De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Ela se dedicou, de corpo e alma e com profundo afinco, ao treino incansável, buscando em cada aula, em cada audição, a aprovação que sabia ser a chave para o coração de Chico Marreta. Mas o que começou como uma busca por amor e aceitação, logo se transformou em um peso traiçoeiro e esmagador. As sinfonias, que antes representavam seu refúgio, a sua vida, seus sonhos e aspirações, passaram a ser uma fonte constante de pressão e dor à farta. Sendo assim, cada concerto, cada ensaio, cada encontro, se tornava uma espécie catastrófica de obrigação e não mais uma alegria inebriante. O ponto de ruptura culminou. Aconteceu exatamente durante um recital importante no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. Chico Marreta, como de costume, se fazia pomposo na plateia lotada, observando atentamente e com os olhos arregalados, não de um pai carinhoso e dócil, de um crítico intransigente.
No entanto, a verossimilhança de um desempenho impecável não se alinhava com a realidade daquela noite. Tatiana estava nervosa e, em meio à performance, cometeu alguns erros que, para ela, foram profundamente dolorosos. Ao final, quando os aplausos da plateia ainda ecoavam, Chico Marreta se aproximou e, ao invés de oferecer palavras de consolo, de ternura e compreensão, acertou literalmente falando, uma tremenda marretada no âmago da sua garotinha, ou seja, mergulhou afogueado numa crítica dura, perversa, ácida e severa se enveredando, sem nenhuma cortesia e polidez, por desvãos de passos meândricos (tortuosos), no tocante a falta de (segundo ele) a total despreparação de sua única herdeira de vínculo biológico. A ferida imensurável que se abriu naquele momento amargo, se fez deveras profunda. Como um desfiladeiro que lembrava aquela ponte para o céu nas montanhas de Neman, na China. Tatiana, com os olhos baços e marejados, sentiu um peso que nunca antes experimentara.
A sensação de inadequação e decepção se tornou quase insuportável. Em vez de orgulho, se sentia como se estivesse falhando não só como artista, mas também como filha. Naquele instante, a relação que antes parecia sólida começou a esfriar, ou melhor dito, a rachar, e o que restou logo depois, apenas e tão somente o eco de um silêncio frio e ensurdecedor. O diálogo entre pai e filha se tornou, no mesmo lado da moeda, numa espécie de recesso dentro de um solo minado, se distanciando cada vez de forma mais longínqua, em vista de uma enormidade de ressentimentos não ditos e feridas abertas sem esperanças de serem cicatrizadas. Cada tentativa de Tatiana de expressar a sua insatisfação, culminava respondida com uma mistura amarga de desdém e confusão. Chico Marreta, incapaz de compreender a profundidade do sofrimento da filha, continuava a insistir em suas expectativas, acreditando que agia da melhor forma possível. Ledo engano!
O tempo passou e, como tudo na vida, o sofrimento ímpar e penoso começou a se perpetuar em rostos serenos de compreensão. Tatiana, aos poucos percebeu e não só isso, passou a ver que o seu valor não se fazia atrelado às expectativas do autor de seus dias, e sim à sua própria essência trazida de berço, e obviamente aos seus acalantados sonhos imorredouros de adolescente. Embora a relação com o pai ainda fosse ofuscada, marcada por uma certa distância, ela aprendeu a tocar as suas músicas com um novo simulacro (arremedo). Canções de simetrias sublimes e de autoconhecimento, e, sobretudo, de majestosa libertação pessoal. O caminho para a sua cura foi longo, penoso, cheio de altos e baixos. Difícil, repleto de tropeços aqui e acolá. Muitas vezes, a menina dos olhos cor de mel se via solitária. Porém, “não há mal que sempre ature, nem bem que nunca se acabe.” De repente, do nada, como uma luz que se acende inesperadamente, em meio de um breu tremendo, Tatiana compreendeu que, às vezes, é necessário dar alguns passos para trás.
Sopesar contras e prós, se afastar para encontrar a própria personalidade, e nela, de contrapeso, o valor indubitável da sua. Chico Marreta, por seu lado desprovido, ausente e distanciado da filha, começou a perceber, igualmente, a importância de ouvir, de escutar, em vez de apenas impor ordens e condições. A reconstrução da confiança e do entendimento mútuo é uma jornada contínua. À poucos passos, pai e filha estavam e não só isso, careciam e se faziam abertos e dispostos a trilharem por essas veredas cheias de curvas e dissabores, com a probabilidade de que, um dia, as notas de suas relações encontrariam um acorde de adesão entrelaçado a um engajamento de indestrutível expectativa. Dessa forma, mesmo com as repetições intransigentes do silêncio obscuro ainda ressoando em seus “eus escondidos", pai e filha, filha e pai, aprenderam a tocar as suas próprias cantatas. Na verdade, se coadunaram com a convicção de que, eventualmente, as suas estradas e veredas se entrelaçariam, e, obviamente, se cruzariam novamente num ponto ainda que afastado. Agora não mais como um campo minado aberto publicamente. Em oposto, entrelaçado como uma entonação de eurritmia (harmonia) onde a compreensão e o amor incondicionalmente se faziam renovados.
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Nota: entre parênteses significado das palavras não usuais, obtido no Dicionário Online de Português, pesquisa realizada pelo editor do blog.
Fonte: Texto enviado pelo autor
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