A NOSSA VIDA cotidiana, com a sua tendência de desenhar o futuro com as cores as mais variadas, de um passado, muitas vezes um ‘ontem’ ainda recente, nos presenteia com lembranças que se entrelaçam no tempo. Em meio a uma dessas alfombras, destacaria um par de memórias que persistem até hoje, como marcas de um amor bonito, que se foi para sempre. A primeira, dá conta de um passeio pelas areias da praia da Avenida Atlântica, em Copacabana, ao tempo em que um final de tarde se engrandecia de cores as mais variadas. O sol, em seu derradeiro ato de esplendor, mergulhava, lá longe, no horizonte, como um artista que se despede de seu público. Tudo tingia o céu em tons inesquecíveis. Caminhávamos, eu e o meu amor, lado a lado, os pés na areia fria e molhada, enquanto o vento brincava com nossos cabelos.
Conversávamos sobre sonhos e medos, e um futuro incerto que, naqueles momentos, parecia repleto de possibilidades. As ondas, suaves e ritmadas, se faziam testemunhas silenciosas da nossa cumplicidade. A sensação de estar imerso naquele instante, nada mais que a plenitude, como se o tempo (o nosso tempo) tivesse decidido estancar para nos deixar aproveitar a perfeição de cada segundo. A outra lembrança, me remonta para uma noite enfeitada por um manto de estrelas que iluminava o firmamento claro e profundo. Estávamos deitados na rede da minha varanda enorme, encolhidos embaixo de um cobertor que cheirava a vinho gelado e uma porção de queijos fatiados. O Cristo do Corcovado, iluminado, parecia nos abraçar. A Borges de Medeiros gritava socorro para a Lagoa Rodrigo de Freitas, em vista dos carros que passavam buzinado num alarido incontrolável.
Conversávamos em sussurros, nosso calor corporal se misturando ao calor do ambiente. Havia uma espécie de serenidade naquele momento, tipo uma intimidade que parecia transcender as palavras. As conversas se tornavam confissões, sonhos e esperanças sussurradas aos calcanhares de nossos escutadores de novelas. O mundo exterior desaparecia, e o espaço entre nós se tornava um refúgio acolhedor e seguro. O amor, assim como essas lembranças, é efêmero e, muitas vezes não, ou seja, difícil de manter. O passeio à beira-mar e à noite, na varanda do meu "apê", apenas capítulos de uma história de amor (de amor?!), que inevitavelmente nem aconteceu e, da mesma forma, se encerraria num minuto de segundo que marquei como ‘estranho.’
Mas, mesmo após a partida dessa pessoa, esses mimos permaneceram como marcas indeléveis na minha memória. Eles são como pequenas âncoras no tempo, nos permitindo, nos revisitando num ‘ontem passado,’ onde o amor parecia eterno e incontestável. Amor? Não foi! Hoje, essas ‘quimeras', de vez em quando surgem como ecos suaves, em momentos de solitude —, ou melhor dito —, de uma completude, nos moldes de uma tapeçaria de emoções que nos lembra, em segundos de fraquezas, que apesar da transitoriedade do amor, ele deixou um rastro de beleza, mas sem nenhum significado para ser auspiciado ‘para depois.’ E assim, mesmo, após a figura se ter ido embora (eu disse amor no sentido figurado, bem entendido) essas memórias permaneceram imutáveis como testemunhas de algo verdadeiro e profundo (não —, não foi verdadeiro e menos ainda profundo).
Euzinha diria, sem medo de bater com a cabeça nos teclados do meu piano, nada além de um lembrete que, por mais breve que tenha sido o amor, ou algo parecido com ele, deixou dentro de mim... não —, não deixou porcaria nenhuma. Esse encontro foi muito rápido e rasteiro, sem banho, sem cama, sem calcinha jogada no chão, sem roupa cheirando a suor... não rolou nada na precipitação de dois ou três copos de vinho e minúsculos pedacinhos de queijos fatiados. Em seguida, nenhum telefonema, nenhum vídeo com a gravação de um ‘olá’ ao vivo, no WhatsApp. De tudo, restou por aqui a bela figura grandiosa do Cristo iluminado, a Borges de Medeiros ensurdecendo os meus tímpanos com buzinadas chatas de algum idiota e, para variar, um casal, no andar de baixo, trocando efusivos palavrões e se estapeando —, um atirando pratos e talheres no outro.
Motivo? Muitos! Vou trazer à baila, apenas o essencial. O menininho deles, um sapeca de três anos, aos cuidados de uma cadeira irresponsável e irrequieta, quase deixou que o guri se aventurasse a dar uma de Ícaro. O engraçadinho piá, ao invés de voar em direção ao Corcovado, tentava se projetar dela, se esgueirando acima do peitoril, para o precipício distanciado da calçada fria deitada ao longo da via, lá no térreo, essa via, coitada, os sentidos a mil por hora, porém, emudecida, sem ação, a língua presa, o coração a quase duzentos (calçada também tem coração) sem poder, sequer, avisar ou interfonar para os irresponsáveis pais do pestinha, o perigo iminente —, a grosso modo —, voar na jugular do seu Moacir (o nosso porteiro do turno da noite). Graças a Deus, o molequinho foi resgatado, a mãe do menino entrou no hospital da Lagoa, cheia de hematomas. A cadeira, no lixo, sem direito a reclamar seu salário e o pai, ainda no calor da contenda, aos berros, espinafrando ele mesmo e as paredes.
Fonte: enviado por Aparecido R. de Souza
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