D. Elisabeth Saldanha era apontada no Rio de janeiro como a senhora de vida mais acentuadamente elegante entre quantas, até hoje, possuiu a cidade. Honesta por educação e por temperamento, ninguém lhe apontou, jamais, um deslize, uma falha, uma simples leviandade de conduta. Em uma terra em que a maledicência enche as bochechas a cada canto da rua, ela fizera o milagre de conservar sempre limpo, sem a menor mancha do hálito da calunia, o espelho de cristal da sua reputação
Os seus hábitos mundanos não eram, entretanto, propícios à conservação desse conceito. Adorando o marido e sendo idolatrada por ele, havia uma vaidade que ela colocava acima de tudo na terra; e esta eram o teatro, os chás, os jantares, as conferências literárias, os concertos, e, sobretudo, a visita às amigas, num desperdício de tempo, de frases e de vestidos que lhe parecia verdadeiramente encantador.
Certo dia, porém, ao sair do Municipal, D. Elisabeth descuidou-se um pouco do mantô bordado de dragões de ouro e cegonhas de seda, e apanhou uma pneumonia. A ciência médica da cidade foi, toda ela, mobilizada em uma noite. E tal é o prestigio da medicina diante da morte, que, dois dias depois, o Dr. Alfredo Saldanha penetrava o portão do cemitério de São João Batista, segurando, sem tirar o lenço dos olhos, uma das alças do caixão funerário da sua querida Elisabeth.
Enquanto se dava isso aqui na terra, uma alma, imponderável como o ar e mais alva, talvez, que um floco de neve, batia, suave, à porta do Paraíso.
- Seu nome? - perguntou S. Pedro, abrindo a portinhola, encantado com tanta candura.
- Elisabeth Saldanha, meu santo.
O apostolo fitou-a com simpatia, e continuou no interrogatório:
- E que fizeste na tua vida, minha filha? – A recém-chegada franziu a testa morena e perfeita, como se consultasse a si mesma.
- Não ouviste, filha? Que é que fizeste na tua vida?
Elisabeth ia, pela primeira vez, se atrapalhando, mas, recobrando a serenidade, indagou:
- Eu?
E, com um sorriso, que lhe abotoava a boca num beijo:
- Eu fiz... muitas visitas!
São Pedro sorriu, bondoso, e a grande chave rangeu, faiscando estrelas, na enorme fechadura dourada.
Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
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