– Esse meu irmão é o gênio da publicidade.
Os três, ao mesmo tempo, agarramos os copos e, no engolir a bebida, perdi as palavras iniciais de Fernando.
– Jornalista frustrado, rabiscador de frases de encomenda, assessor da burguesia.
O primeiro soluço morreu nos corredores mal-assombrados do esôfago, tal o meu susto. Ora, para mim Fernando só podia estar feliz, por voltar ao trabalho e ao exercício da comunicação. Além do mais, pagavam-no relativamente bem.
– Não seja ingrato.
Pela calçada, os primeiros habitantes da noite engatinhavam, ainda farsantes, medrosos, macios.
– Olha que pernas!
Fernando não deu ouvidos ao irmão, nem desviou os olhos dos meus. Também neles não havia nenhuma cólera. Porém, me fulminaram suas palavras de agradecimento por ter-lhe tirado a barriga da miséria, tê-lo livrado da futura companhia dos mendigos e devolvido ao convívio dos comunicadores.
– Nunca vou me esquecer disso, nem de você.
Airton continuava a farejar o rabo da noite, venta metida no copo, e eu pedia a Deus que a língua dele inventasse obscenidades e fizesse Fernando olhar e cheirar e desejar tudo, menos relembrar o passado.
– Apesar disso, eu quero mesmo é voltar ao jornal.
A quarta cerveja chegou menina pelas mãos do garçom e se dividiu pura para nós três. Nem ela, porém, fez menos amargo Fernando.
– Você não pode nem pensar nisso. Eles são capazes de acabar com a imprensa para impedir uma coisa dessas.
Do outro lado da calçada, letras vermelhas pintavam no muro palavras que os carros não me deixavam ler. E eu olhava por cima dos ombros de Fernando, como se suas orelhas me interessassem. Ele as alisava de vez em quando, irredutível em suas opiniões.
– Lá eu me sentia bem, coerente comigo mesmo, apesar das porradas.
As luzes dos bares e lupanares atraíam as mariposas para o festim de todas as noites. E Airton se debatia dentro do copo, incapaz de voar.
– Onde está a incoerência da publicidade?
Fiz um último esforço para ler o mural que a noite apagava. Um automóvel engoliu-o, antes de se meter nos labirintos do ouvido de Fernando.
– Cuidado!!!
Os irmãos se assustaram e rimos.
– Eu queria acordar o Airton.
O garçom trouxe outra cerveja, ofereceu tira-gosto, insistiu até perder a paciência.
– O publicitário é um propagandista do supérfluo, um camelô do capital. Quer dizer, o leal conselheiro do rei, filósofo-bobo da corte, espécie vulgar de Maquiavel.
Pedi outra cerveja e a opinião de Airton, embora nenhuma das duas pudesse fazer Fernando se acalmar. Pelo contrário, quanto mais bêbado, mais se tornava amargo, e quanto mais enaltecido, mais se auto-criticava.
Airton voltou a chamá-lo de inteligente, a ponto de pensar pelos burgueses. Talvez ironizasse, talvez só falasse besteiras.
Fernando sorriu. Sim, era mais um dos fílósofos da burguesia. Apenas não escrevia ensaios.
Irritei-me, e de nada serviu minha irritação. Acusou-se de crápula. Aliás, não sabia a diferença entre ser e estar sendo. Tão sutil a diferença que outros podiam apenas estar sendo, enquanto ele podia ser o próprio.
Não, nem ele era nem estava sendo crápula. Éramos apenas empregados da burguesia.
Feriu-me. Eu ia terminar advogado de torturadores. Não entendi de imediato a frase. Explicou-me: sendo o publicitário e o torturador ambos meros trabalhadores, não são responsáveis por seus atos, porque mandados. E não podem se recusar a cumprir suas tarefas, sob pena de demissão.
Chamei-o de simplista. O torturador era um criminoso pago pelo Estado ou por grupos do Poder, enquanto o publicitário um intelectual pago por agências de publicidade.
Concordou comigo. Apenas não abria mão de chamá-los de assessores do Poder. Ou instrumentos.
Fernando fazia questão de se torturar, de se proclamar um lacaio do capitalismo. Tive vontade de mandá-lo plantar batata ou virar guerrilheiro. Mas seria encerrar o assunto e eu queria ajudá-lo. E meti o jornalista no meio. O profissional que se sujeitava a trabalhar na imprensa burguesa. Sem falar, é claro, do que comunga com as ideias do dono do jornal. Era ou não um assessor do Poder?
Atingi-lhe o calcanhar. Perguntou se suas reportagens serviam ao Poder. Claro que não. Do contrário, não teria sido mandado para a rua. Logo, tornava-se impossível a coerência do jornalista consigo mesmo na imprensa burguesa.
Não havia salvação.
O assunto se esgotou aí e logo mais nos despedimos.
Encontramo-nos de novo, passado quase um mês. Parecia outro. Abraçou-me com euforia, mostrava-se alegre, otimista, satisfeito com o trabalho. Andava às voltas com a criação da melhor campanha de sua vida. Coisa de deixar qualquer gênio da propaganda com inveja.
De início, mantive-me reservado, embora procurasse retribuir a euforia. Supus estivesse me provocando. Não se tratava disso, porém. Nem uma só palavra sua soou falsa. Falava de dentro mesmo.
Interessei-me pelo título da campanha, pelos textos, por tudo, e ele me encheu de informações. Tratava-se de uma campanha patrocinada pelo Sindicato dos Produtores de Massas. A população ia trocar a carne, o arroz, o feijão, o leite pelo macarrão. Eu ia ver o povo gordo.
Não toquei na discussão passada, atento às suas palavras, feliz com sua felicidade, olhos mirados nele, quase sempre, ou nas muitas folhas de papel que carregava. Nelas, trazia anotadas frases, textos, poemas, tudo relacionado ao novo trabalho.
Convidou-me a acompanhá-lo, sem dizer para onde ia, e fomos. Apenas a caminhar pelas ruas, feito dois vagabundos. E falava sem parar, como se toda a fala do mundo desaguasse de sua boca. Até aí, porém, nada de imaginar isso ou aquilo. Se me ocorreu alguma ideia foi a de sempre – que cérebro aquele!
Ao avistar um conhecido, chamou-o. O rapaz assustou-se, escondeu-se e só não se perdeu de vista devido ao faro de Fernando. Talvez não fossem tão íntimos para uma cena daquelas. Além do mais, meu amigo havia se tornado mais conhecido por sua prisão, embora assinasse reportagens polêmicas. Estranhei a cara de espanto do outro e mais ainda os modos de Fernando. Pois, sem qualquer preâmbulo, pôs-se a repetir aos brados os motivos de sua alegria, a reler os manuscritos da campanha do macarrão. Para livrar o sujeito do embaraço, apresentei-me, dizendo-me amigo “desse grande Fernando Darque”. O malandro se aquietou. Logo, porém, alegou estar com pressa e se retirou.
Por um instante pensei em perguntar a Fernando se não achava ridículo chamar alguém aos gritos no meio da rua e, sobretudo, ler aquilo.
Nem bem arranjava palavras para a sabatina e lá apareceu outro conhecido. O mesmo vexame, a mesma lengalenga, macarrão aqui, macarrão ali, e o sujeito a se aborrecer, pedir licença para se retirar.
A essas alturas, não me restava nenhuma dúvida mais sobre o destino de Fernando. E, para fortalecer minha convicção, convidou-me a comer macarronada, embora tivéssemos almoçado fazia coisa de uma hora e fôssemos ambos avessos a massas. Procurei-lhe no rosto qualquer sinal de brincadeira e só alcancei a insistência para o convite. Se eu recusasse, não contasse mais com sua companhia e muito menos com sua amizade. E procuramos um restaurante e o encontramos e fiz das tripas coração para nem sonhar com uma indigestão.
Mal começou a comer, chamou o garçom, gabou-o, quis saber do nome do mestre-cuca, dos cozinheiros, deixou a mesa e correu à cozinha a enaltecer os empregados. Saí em seu auxílio, temeroso de mal-entendidos e, a piscar o olho para o pessoal, conduzi-o de volta ao salão. Nisso, o proprietário se apresentou. Para quê? Fernando se encheu de mais falas, fez o elogio da casa, da comida italiana, das massas alimentícias, do trigo, das fábricas de macarrão, sob os olhares espantados dos clientes famintos e do gordo dono do restaurante.
Só me restava pedir a conta, pagá-la, acrescida de boa gorjeta, inventar um compromisso urgente e conduzi-lo à rua.
Nunca deixei de me preocupar com Fernando, apesar de não o ter visto mais com vida. Andei ainda a procurá-lo na agência onde trabalhava, nos jornais, por toda a cidade. A correria do dia-a-dia, porém, logo ocupou meu espírito de outras preocupações. Quando parei, já não me restava fazer nada, a não ser lamentar a desgraça. E talvez não o salvasse, por mais que o seguisse, guiasse, guardasse. A loucura já o dominava. Pois não está louco quem armazena macarrão, por temor de sua escassez no mercado? E mil vezes insensato quem se joga a um panelão cheio de água fervente e deixa o bilhete: “Sirvam-se, que estou bem cozido”?
Fonte: Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.
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