quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Carlos Heitor Cony (Cronica: Mila)

Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.

Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?
Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu "fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.

No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim.

Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.

Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade.

Fonte: jornal "Folha de São Paulo" , edição de 04-06-1995, e livro "Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha", Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 318, organização de Arthur Nestrowski. http://www.releituras.com/i_neves_cony.asp

Carlos Heitor Cony (Cronica: O Suor e a Lágrima)

Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.

Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.

O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.

Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.

Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.

E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.

Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias.

Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.

Fonte: jornal “Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização
http://www.releituras.com/i_neves_cony.asp

FC, evolução genética e o cinema (André Carneiro)

A tecnologia evolui em progressão geométrica. A aceitação ou adaptação do ser humano às comodidades cibernéticas etc., ocorre pacificamente, quase sem surpresas. Há pouco tempo atrás, “falar sozinho” significava alguém desesperado ou psicótico. O aumento repentino de pessoas nas ruas aparentemente “falando sozinhas” é surpreendente. No Brasil são agora milhões, colidem umas com as outras, com celulares nos ouvidos. .

A maioria confunde o contínuo melhoramento de nosso cenário com a nossa evolução genética, estacionária, pelo menos há trinta mil anos, quando inteligentes “primatas” desenhavam nas paredes de suas cavernas, sem banheiros, cozinhas e portas.

Mesmo entre universitários, alguns duvidam, quase ofendidos, quando se afirma: um bebê daquela época, se pudesse ser transportado para hoje, se desenvolveria em igualdade de condições mentais e físicas, semelhantes a um bebê das nossas maternidades. Um bebê de hoje, fosse criado em uma caverna daquele tempo, não se distinguiria dos outros. Alguns cientistas ousam a hipótese perturbadora: o gênero humano está em decadência, enxerga, ouve e sente menos odores do os nossos ancestrais. Não somos mais fortes, nem mais inteligentes, honestos e bondosos do que eles foram. Nossa violência, até parece ter crescido, se observarmos as manchetes diárias.

É interessante analisar a discrepância entre o valor das obras de Arte e o nosso contínuo aperfeiçoamento instrumental. Uma criação destinada a nos dar mais comodidade ou possibilidades, como qualquer parafernália industrial, tem uma vida eficiente muito curta. Objetos funcionais são logo ultrapassados e substituídos por outros mais aperfeiçoados. Isso não ocorre nas criações artísticas, de qualidades subjetivas, emocionais. Um retrospecto sobre as artes plásticas, música, literatura, mostra como elas mantêm suas qualidades através do tempo. As chamadas obras primas continuam emocionando e atraindo a admiração através dos anos. Citamos o desenho das cavernas. Até hoje seus traços sintéticos, seu valor artístico continuam no mesmo nível dos melhores desenhos contemporâneos.

Bosh, Bach, Leonardo, Picasso, atravessam os séculos, são os chamados clássicos, se mantêm na escala mais alta, sempre. Sade, Shakespeare, Kafka, tratam os temas essenciais e permanentes da humanidade, que permanecem os mesmos.

É dispensável citar outros exemplos. A razão das obras “eternas” serem assim chamadas é simples. O ser humano não evoluiu geneticamente. Com pedras, espadas ou metralhadoras nas mãos, somos os mesmos. A única diferença é que a espada primitiva matava um de cada vez, e as novas armas liquidam dezenas, ou milhares.

O Cinema, inventado dentro da revolução industrial, é a primeira arte nascida como um fruto da moderna ciência tecnológica. Ela manobra uma ilusão ótica para um resultado dinâmico que originou uma nova linguagem de grande poder comunicativo. É bom não olvidar que o ser humano é um animal racional tecnológico. Pinceis, telas para a pintura, caneta, livros na literatura, são instrumentos ou suportes tecnológicos.

O que torna o Cinema um típico filho da máquina é que ele fixa as suas imagens com um aparelho (tradicional ou digital) e necessita de outro aparelho para a obra ser visualizada.

Uma realidade estatística pouco conhecida é que a temática da ficção científica, não por mera coincidência, teve um destaque quantitativo surpreendente desde os primeiros anos da arte cinematográfica. Nos Estados Unidos, de 1897 até 1910 produziram mais de 50 filmes de ficção científica, projeções futuras do ser humano manobrando novas tecnologias. “Metrópolis”, “Frankenstein”, Solaris”, 2001”, as vezes são citados como predecessores, esquecidas as centenas que os precederam. Qualquer obra criativa artística, mesmo as de menor valor estético, refletem uma vivência humana, suas características e ideologias, sejam as chamadas reais, do nosso tempo ou as utópicas, que pretendam adivinhar um mundo futuro. A impropriamente chamada ficção científica, embora possa ser encontrada na poesia, dramaturgia e em outras artes, ocupa na literatura e na produção cinematográfica uma grande porcentagem temática.

O “leit-motiv” principal do cinema de FC é a violência do “homem” ou de um imaginado alienígena. Alguns termos, como “judiar”, provocam justas campanhas, neste caso, da comunidade judaica, por óbvias razões. A palavra “homem” é geralmente usada como sinônimo de “ser humano”. Ignoro se já se fez uma pesquisa ou tese sobre esse fato, analisando um evidente preconceito contra o sexo feminino, embora seja comum mulheres, até eruditas, usarem o Homem como sinônimo de Humanidade. Quando se fala na violência do homem, será que as mulheres estão ou não incluídas? Talvez a sub liminar desimportância das mulheres tenha se acentuado com os filósofos gregos, amplamente citados até hoje e que deixavam as mulheres completamente fora das elocubrações do Homem.

Para não ser dubitativo, posso afirmar que a violência do ser humano até este começo do terceiro milênio, é uma verdade incontestável. Esse fato é até defendido, argumenta-se que a violência, o egoísmo, a ganância movimentam as disputas, as guerras tem sido provocadoras do progresso, e até a tecnologia criada para a fabricação das bombas definitivas tem ajudado o desenvolvimento... do “homem”. As religiões pregam o amor, à solidariedade e outras qualidades adicionais.
Estatisticamente, não parece causar nenhum efeito, protestantes e católicos se assassinam na Irlanda e na Terra Santa, a mortalidade causada pelas crenças é terrível. Não é preciso buscar o velho Freud para explicar inutilmente a violência do ser humano. Vivemos nos esgueirando dentro dessa realidade. Também nós todos sabemos que o ser humano se deleita com a notícia, a descrição sangrenta dos crimes diários. Os protestos furiosos contra os crimes hediondos, não convencem os legisladores a elaborar leis mais eficientes. Assim como uma grande porcentagem dos que bradam contra as drogas ou contra o jogo, são usuários ou freqüentadores das casas lotéricas, lentamente se transformando em bancos ou repartições publicas, pois aceitam pagamentos de impostos etc. Tudo isso, costuma-se dizer, é feito pelo homem. Se a Academia Brasileira de Letras resolvesse oficializar também o termo “mulher” como sinônimo de humanidade, o que aconteceria?

A violência do ser humano poderá ser controlada, haverá meios de convencer homens e mulheres que não basta freqüentar igrejas, ouvir padres ou pastores pregarem o que ninguém segue, século adiante de século?

A resposta (não a solução) é muito fácil.

É preciso que haja mutação genética para o ser humano se transformar em coisa melhor. Baseando-se na ciência, a mutação natural, fruto do ambiente ou de alguma inexplicável reação, pode demorar séculos, ou milênios. Os relógios cósmicos são desanimadores. Nossa galáxia leva 250 milhões de anos para dar uma só volta. Por isso é razoável admitir que a violência ainda vá se repetir com trinetos dos trinetos dos trinetos em anos luz.

Há outra solução? Sim, já se começa a discuti-la, e a possibilidade está provocando um movimento internacional contrário. A ciência, desbravando o DNA, já é capaz de provocar mutações artificiais, embora ainda não consiga fazê-las com um receituário somente favorável. Os religiosos não admitem que se toque ou se manipule embriões humanos, ou se empregue órgãos dos falecidos em experiências laboratoriais, nem querem uma gestação fora do útero. Talvez temam qual seria a reação dos demônios quando o ser humano, geneticamente honesto, não mais ligasse para as tentações.
Se as normas éticas cristãs forem todas naturalmente obedecidas por um ser humano “modificado” cientificamente, as igrejas e intermediários entre Deus e os seres humanos seriam dispensáveis. O que é difícil de prever é qual seria a moral sexual desse (ou dessa) admirável “homem” ou “mulher” nova sem pecado.

Analisando a enorme criação cinematográfica dentro da FC. pode-se observar, praticamente, uma ausência de historias onde humanos ou alienígenas sejam pacíficos. Ou somos atacados e brilhantemente reagimos, como demonstra patrioticamente o cinema americano, ou...a violência dos nossos micróbios resolve a luta.
Se daqui a 50, 500 ou 5.000 anos, planetas civilizados desta galáxia confessarem ter desprezado ou sabotado contatos conosco, baseados na análise dos filmes aqui produzidos, bem... teremos de concordar com essa prudência. Não se pode confiar no homem. E a mulher? Gostaria de saber o que elas pensam.

Fonte:
artigo enviado por e-mail por André Carneiro

A Novela - Fotonovela - Telenovela - Radionovela

NOVELA

Novela em português é uma narração em prosa de menor extensão do que o romance. Se bem que a distinção entre novela e romance não seja clara, pode-se dizer que a novela apresenta, por um lado, uma maior economia de recursos narrativos do que o romance e, por outro, um maior desenvolvimento de enredo e personagens do que o conto, com diversos personagens e linhas narrativas. Etimologicamente, folhetins televisivos de longa duração deveriam ser chamados em português de telerromances, mas o termo origem espanhola já está consagrado: telenovelas. No Brasil, os termos novela e telenovela são sinônimos, mas o primeiro é muito mais usado.

A novela literária

Os estudos de gênero da literatura em língua portuguesa classificam uma narrativa, grosso modo, em Romance, Novela ou Conto. É comum dividirmos romance, novela e conto pelo número de páginas. Em média, a novela tem entre 50 e 100 páginas, ou seja 20 mil a 40 mil palavras. Entretanto, o romance tem diferenças estruturais importantes em relação à novela e ao conto, estes sim gêneros sem diferenciação em determinados países. Os equivalentes de novela em inglês e francês são novella e nouvelle, respectivamente, enquanto romance se diz novel em inglês e roman em francês.

Para Carlos Reis (2003), enquanto no conto a ação manifesta-se como uma ação singular e concentrada, no romance há um paralelo de várias ações e, na novela, uma concatenação de ações individualizadas.

Eikhenbaum, formalista russo, define a diferença entre um e outro em artigo de 1925. Para ele "o romance é sincrético, provém da história, do relato de viagem, enquanto novela é fundamental, provém do conto (Poe) e da anedota (Mark Twain). A novela baseia-se num conflito e tudo mais tende para a conclusão."

Primórdios da novela

As origens da novela enquanto gênero literário remontam aos primórdios do Renascimento, designadamente a Giovanni Boccaccio (1313-1375) e a sua grande obra, o Decameron, ou Decamerão, que rompe com a tradição literária medieval, nomeadamente pelo seu carisma realista. Trata-se de uma compilação de cem novelas contadas por dez pessoas, refugiadas numa casa de campo para escaparem aos horrores da Peste Negra, a qual é objeto de uma vívida descrição no preâmbulo da obra. Ao longo de dez dias (de onde decameron, do grego deca, dez), as sete moças e os três jovens, para ocuparem as longas horas de ócio do seu auto-imposto isolamento, combinam que todos os dias cada um conta uma estória, geralmente subordinada a um tema designado por um deles. Refira-se ainda outra obra, escrita em francês, com o mesmo tipo de estruturação: o Heptameron, da autoria de Margarida de Navarra (1492-1549), rainha consorte de Henrique II de Navarra. Aqui, são dez viajantes que se abrigam de uma violenta tempestade numa abadia. Impossibilitados de comunicarem com o exterior, todos os dias cada um conta uma estória, real ou inventada. Em jeito de epílogo, cada uma é concluída com comentários dos participantes, em ameno diálogo. Era intenção da autora que, à semelhança do Decameron, a obra compreendesse cem estórias, porém a morte impediu-a de realizar o seu intento, não indo além da segunda estória do oitavo dia, num total de 72 relatos. Será também a morte prematura que poderá explicar uma certa pobreza de estilo, contrabalançada porém por uma grande perspicácia psicológica.

Instituição da novela enquanto estilo literário

Mas será apenas nos séculos XVIII e XIX que os escritores fundam a novela enquanto estilo literário, regido por normas e preceitos. Os alemães foram então os mais prolíficos criadores de novelas (em alemão: "Novelle"; plural: "Novellen"). Para estes, a novela é uma narrativa de dimensões indeterminadas – desde algumas páginas até às centenas – que se desenrola em torno de um único evento ou situação, conduzindo a um inesperado momento de transição (Wendepunkt) que tem como corolário um desfecho simultaneamente lógico e surpreendente.

Grandes novelas da literatura mundial
1759: Cândido, ou o otimismo, de Voltaire
1882: O Alienista, de Machado de Assis
1886: A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói
1887: Um estudo em vermelho, de Sir Arthur Conan Doyle
1891: Billy Budd, Herman Melville
1898: A volta do parafuso, de Henry James
1903: Tufão, de Joseph Conrad
1915: Metamorfose, de Kafka
1952: O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway
1959: Adeus, Columbus, de Philip Roth
1962: Aura, de Carlos Fuentes
1973: O Exército de um homem só, Moacyr Scliar

FOTONOVELA

Uma fotonovela é uma espécie de novela em formato de história em quadrinhos onde o tipo das imagens predominantes são fotos em vez de desenhos.

É uma forma de arte seqüencial que conjuga texto e imagens com o objetivo de narrar histórias dos mais variados gêneros e estilos. São, em geral, publicadas no formato de revistas, livretos ou de pequenos trechos editados em jornais e revistas.

Assim como as telenovelas, algumas fotonovelas são divididas em capítulos que geralmente tem um desfecho próprio, para dar a sensação de suspense e curiosidade ao leitor que certamente ficará tentado a comprar a continuação.

História da Fotonovela

Considerada um subgênero da literatura, a fotonovela é uma narrativa mais ou menos longa que conjuga texto verbal e fotografia. A história é narrada numa seqüência de quadradinhos (como a banda desenhada) e a cada quadradinho corresponde uma fotografia acompanhada por uma mensagem textual.

A fotonovela teve início na década de 40 em Itália e a sua origem foi motivada pela crescente popularização do cinema e a fama dos atores. A estabilização e o aperfeiçoamento técnico da fotografia, o acesso mais ou menos difícil de um público geral ao cinema e a inexistência ou limitada difusão da televisão são também fatores importantes para o surgimento e sucesso da fotonovela . O neo-realismo em voga na Itália determinou as descrições quotidianas e a temática urbana e realista presente nas fotonovelas. Os iniciadores da fotonovela em Itália foram Stefano Reda e Damiano Damiani que começaram por publicar em revistas adaptações de filmes de sucesso (o chamado cine-romance que adaptou obras como O Conde de Monte Cristo, O Monte dos Vendavais, Ana Karennina, e A Dama das Camélias). Essas primeiras fotonovelas eram protagonizadas por atores populares e as revistas tentavam realçar um determinado tipo de imagem do ator em questão.

Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas intrigas sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que sonha com um amor cheio de obstáculos e dificuldades, mas no final consegue o seu objetivo), as personagens não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e são sempre estereotipadas (os bons são sempre bons e os maus arrependem-se no final ou sofrem as conseqüências), predomina o imaginário exótico, e, mais tarde o “suspense” e o sexo, os temas variam entre problemas afetivos, sociais, a procura de sucesso numa carreira, a justiça na sociedade, a ascensão social, a marginalidade, etc.

O público da fotonovela é um público majoritariamente feminino e culturalmente pouco exigente, com pouca formação e com um baixo poder econômico. As revistas de fotonovela têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos, morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ideologia dominante através da integração da mulher na sociedade urbana.

Em França a primeira fotonovela data de 1949 e a sua expansão para Luxemburgo e Bélgica acontece logo depois. Em Espanha, a fotonovela surge nos finais dos anos 60 e conta com um público bastante extenso. Mais tarde a fotonovela chega à América latina e África do norte (a maior parte das revistas são traduções dos originais italianos). A fotonovela é um fenômeno que não tem ocorrência no mundo anglo-saxônico. É um produto de literatura de massas tipicamente latino.

A articulação narrativa da fotonovela é semelhante à da banda desenhada: um fotograma que apresenta um plano da ação acompanhado do texto verbal que reproduz o discurso das personagens, funcionando também como legenda ou resumo. O encadeamento da ação é lógico e cronológico, utilizando-se muitas vezes o recurso à elipse. A ação é, muitas das vezes, arrastada ao longo de vários números de uma revista o que aproxima a fotonovela do romance-folhetim do séc. XIX e do folhetim radiofônico. O narrador desempenha um papel importante na fotonovela uma vez que, para além de elucidar o leitor sobre a ação, enuncia também juízos de valor, ilações de teor moral, justificações sobre o comportamento das personagens e controla a ação, retardando-a e alongando-a. A linguagem utilizada nas fotonovelas é, normalmente redundante e expositiva para evitar a possibilidade de dúvidas ou conflito.

Relativamente à fotografia nem sempre as fotonovelas possuem grande qualidade uma vez que a preocupação do consumo rápido e imediato das revistas e a preocupação do lucro fácil sobrepõem-se a uma maior noção artística. Os planos e os enquadramentos utilizados nas fotografias são quase sempre retirados do cinema.

TELENOVELA

Uma telenovela é um folhetim televisivo de longa duração, diferentemente da minissérie, que é de curta duração. A telenovela caracteriza-se por explorar enredos de fácil aceitação pelo público, como histórias de amor e conflitos familiares e sociais. Diferencia-se do teatro e do cinema basicamente por ser um produto cultural rapidamente descartável, além de funcionar como uma espécie de obra aberta, cujo desenvolvimento e desfecho podem ser alterados a qualquer momento, de acordo, principalmente, com os índices de audiência (Ibope), ou seja, segundo o interesse imediato do público na história.

História da telenovela no Brasil

Em 1950 surge a televisão e logo depois, em 1951, a primeira telenovela é transmitida na TV Tupi, Sua vida me pertence. Este novo tipo de narrativa era uma aquisição recente, e não se sabia ainda como explorá-lo, então o passado radiofônico foi usado como apoio. Durante praticamente toda a década de 50, a telenovela evoluiu no interior de uma TV pautada pela improvisação técnica, organizacional e empresarial. Este quadro que irá se transformar na década de 60. A implantação de uma indústria cultural modifica o padrão de relacionamento com a cultura, uma vez que definitivamente ela passa a ser concebida como um investimento comercial, e transforma a mentalidade na forma de gerir o patrimônio.

O advento da telenovela diária está estreitamente ligado a este quadro mais amplo de transformações. Com o surgimento do videoteipe, a primeira telenovela diária, 2-5499 ocupado, do argentino Alberto Migré, é levada ao ar em julho de 1963 pela Excelsior. Ela surge como uma narrativa apropriada para ampliar o público das emissoras e dá certo, embora no início o público tenha tido ainda algumas dificuldades para se acostumar à sua seqüência diária. Ela entrou no cotidiano e já em 1964, tornou-se mania nacional, com o grande sucesso O Direito de Nascer. Entre 1963 e 1969 são levadas ao ar 195 novelas, número superior ao do período de 1951 a 1963, com uma diferença significativa, trata-se agora de estórias diárias, que preenchem a programação durante toda semana.

Programação obrigatória das emissoras, elemento fundamental na distribuição dos horários e dos custos, a telenovela é também responsável pela elevação dos índices de audiência das emissoras e alteração na distribuição da programação. O horário entre 19h e 20h30, antes preenchido prioritariamente com filmes e telejornalismo, passa a ser ocupado quase que inteiramente pelas novelas. Somente em 1965 foram produzidos 48 textos diários. Isto significa, por um lado, o fortalecimento do gênero, mas por outro, demonstra ainda a ausência de um modelo de produção que racionalize a relação entre duração e custo operacional, e permita determinar com alguma precisão qual o número de capítulos que uma estória deve ter para ser rentável.

Uma periodização histórica, de 1963-66, nos permite ter uma idéia do tipo de novelas que marcam os anos 60. O que caracteriza o período é a presença do melodrama. Mas se é verdade que o melodrama era homogêneo, é importante levarmos em consideração que a década de 60 não se caracteriza exclusivamente pela sua presença. Existiram algumas tentativas que buscaram reformular as temáticas e os referenciais de linguagem circunscritos até então ao modelo folhetinesco, como Beto Rockefeller que aparece como um marco no gênero. A contradição que existia entre teleteatro e telenovela nos anos 50, enquanto elemento de distinção entre dois gêneros dramático, se repõe no interior da própria novela.

A partir da virada dos anos 60/70, a telenovela se encontra imersa num processo cultural cada vez mais atravessado pelos influxos modernizadores da sociedade. A época será de busca de padrões de excelência no campo empresarial, de estabilização da programação, e também de qualificação da ficção televisiva. A TV Globo emerge, então, como emissora exemplar e as telenovela passam a enfatizar o uso de linguagem coloquial, cenários urbanos contemporâneos e referências compartilhadas pelos brasileiros. Hoje, a telenovela é responsável pela sustentação econômica e pela maior parte dos lucros das emissoras de televisão. A atração do público pelo universo ficcional e a rentabilidade que ela gera são os principais componentes para o sucesso desse gênero.

Influência da Telenovela na Sociedade Brasileira

A televisão tem uma capacidade peculiar de captar, expressar e atualizar representações através da construção de uma comunidade nacional imaginária. Ela fornece um repertório, anteriormente da alçada privilegiada de certas instituições tradicionais como a escola e a família por meio do qual as pessoas de classes sociais, gerações, sexo e religiões diferentes se posicionam, sendo emblemática do surgimento de um novo espaço público. Ironicamente esse espaço surge sob a égide da vida privada. Não por coincidência, o panorama de maior popularidade e lucratividade da televisão brasileira é a telenovela.

A telenovela exerce um papel de fundamental importância na representação da sociedade brasileira no meio televisivo. A representação é, de uma maneira geral, o ato de tornar algo presente, através de imagens abstratas ou concretas, de conteúdos mentais, de discursos e de outros meios, sem que a ausência material seja superada. No caso da telenovela, a representação diz respeito à capacidade artística de tornar presente, através de formas e figuras, um mundo real ou possível, da experiência direta e concreta ou da fantasia, do delírio ou da intimidade mais idiossincrática.

Abordando temáticas fortes e contundentes, a telenovela se firmou como um dos mais importantes e amplos espaços de problematização do Brasil, das intimidades privadas às políticas públicas. Seus textos sintetizam o público e o privado, o político e o doméstico, a notícia e a ficção, convenções formais do documentário e do melodrama. São vários os exemplos de telenovelas que trataram de forma incisiva temas do âmbito público através da representação da ficção: Verão Vermelho (1960) e Rei do Gado (1996) com a reforma agrária; Gabriela (1975), Saramandaia (1976), O Bem Amado (1973) e Roque Santeiro (1985) com o coronelismo direta ou indiretamente; Vale Tudo (1988), Que rei sou eu (1989), Deus nos Acuda (1992) e Porto dos Milagres (2001) com a corrupção política.

Esse gênero é capaz de propiciar a expansão de dramas privados em termos públicos e de dramas públicos em termos privados. Os modelos de homem e mulher, de relacionamentos, de organização familiar e social são amplamente divulgados e constantemente atualizados pela telenovela para todo o território nacional. Ela estabelece padrões com os quais os telespectadores não necessariamente concordam mas que servem como referência legítima para que eles se posicionem e dá visibilidade a certos assuntos, comportamentos, produtos e não a outros. O vestuário, a decoração, as gírias e as músicas que cada telenovela lança transmitem uma certa noção do que é ser contemporâneo. Personagens usam telefones sem fio, celulares, faxes, computadores, trens, helicópteros, aviões, meios de comunicação e de transporte que atualizam de modo recorrente os padrões vigentes na sociedade.

Nota lingüística

A palavra telenovela é uma palavra que surgiu inicialmente na língua castelhana, baseada nas palavras televisión (televisão) e novela. Novela, ou melhor, novel tem em língua inglesa que predomina uma linguagem mundial o sentido de história longa e enredo complexo, ou seja romance, e é esse o sentido que se lhe dá em telenovela. Em português, as novelas passaram a ser transmitidas em outros países da América Latina, no entanto, novela significa história curta, ou seja, aproximadamente 7 meses, (O equivalente inglês é novelette.) Folhetins de longa duração deveriam ser chamados em português tele-romances. Essa palavra foi usada em Portugal com a telenovela Chuva na Areia de Luís de Stau Monteiro, mas o termo não criou uso. No Brasil, o gênero é chamado simplesmente "novela" (como abreviação da palavra telenovela).

RADIONOVELA

Radionovela é uma novela exibida em rádio. O lugar que atualmente cabe à televisão no entretenimento doméstico era ocupado pelo rádio, incluindo a exibição de novelas. Jerônimo, o Herói do Sertão, é talvez a radionovela nacional mais famosa do Brasil. A versão de O direito de nascer também fez sucesso.

Jerônimo foi adaptada pela TV Tupi como Telenovela, protagonizada pelo ator Francisco Di Franco ao lado de Eva Christian (Aninha),Canarinho (Moleque Saci), Toni Tornado (João Corisco) e Ítalo Rossi (Coronel Saturnino de Bragança, avô de Aninha). A versão televisiva teve três episódios: Laços de Sangue (que contava a origem do herói), Fronteiras do Mal e Sendas do Crime.

História da Radionovela no Brasil

A pequena Rádio São Paulo dá abrigo a Oduvaldo Vianna , que retornando de uma temporada como correspondente do jornal A Noite em Buenos Aires, trazia como grande novidade o enorme sucesso das novelas transmitidas pela Radio El Mundo. Entusiasmado Oduvaldo escreveu algumas novelas e, inutilmente , procurou patrocinadores . Convidado a dirigir a Rádio São Paulo aceitou o cargo e aproveitou para levar ao ar sua radionovela : A predestinada.

O sucesso foi tão rápido e consistente que em poucos meses a emissora situava-se como líder de audiência em São Paulo. Qual a receita deste inesperado sucesso? A radionovela resgatava, de alguma forma, o imaginário popular reproduzindo através dos contos e casos do cotidiano simples e sofrido da brasileira típica da época : a dona de casa. Em se tratando do universo feminino , numa época em que predominava o comportamento submisso , fruto de uma cultura historicamente machista e autoritária , a radionovela - bem como sua irmã mais próxima : a fotonovela - priorizava temáticas próximas ao papel possível em uma sociedade em transição do rural para o urbano , do arcaico para o moderno.

Voltada para um público onde a subserviência e alienação ditam o modo de agir, a radionovela exerceu papel importante ao reforçar os papéis femininos desejáveis, fortemente enraizados nos quatro mitos da cultura cristã - ocidental em relação à mulher: o amor, a paixão, o incesto e a pureza. Estes elementos, fortemente presentes na cultura latina foram assimilados, codificados e transformados de modo a constituir um produto rentável e facilmente palatável, seja para o ouvinte quanto aos interesses financeiros de mercado . Assim , formatado como um produto direcionado à mulher, os temas desenvolvidos priorizavam as questões ligadas à busca do casamento (objetivo final de toda mulher de família) ; mulheres traídas e/ou abandonadas (decorrência do casamento frustrado) ; mães solteiras (casamento não consolidado) rejeitadas pela família e pela sociedade; adultério (casamento em crise pela incapacidade da mulher em completar os anseios do marido) ; preservação da pureza feminina (condição necessária para concretizar o casamento ) e pecados carnais e luxuriosos (o sexo extra-casamento, novamente causado pela incapacidade feminina e reservado exclusivamente ao homem).

Os títulos das novelas , bem como das fotonovelas, filmes mexicanos , argentinos e italianos exibidos em grande quantidade nos anos quarenta e cinqüenta , deixam claro o tom melodramático e a necessidade de fazer chorar e sofrer : Almas desencontradas; Prisioneira do Passado; Sonhos Desfeitos; Mais forte que o amor; Perdida ; Mulher sem alma e - a maior de todas - O Direito de nascer do cubano Félix Cagnet , cujo enredo tinha início com a frase bombástica de Maria Helena (futura mãe de Albertinho Limonta) :

-"Doutor , não posso ter este filho que vai nascer."

Primeiramente na voz de Walter Foster na Rádio Tupi de São Paulo e de Paulo Gracindo na Nacional do Rio de Janeiro o personagem de Albertinho Limonta , pela primeira vez na história da comunicação brasileira , levou a população a um estado de comoção. O mesmo sucederia nas diversa vezes em que foi exibida pela televisão. Registra Ismael Fernandes em Telenovela Brasileira: Memória que o último capítulo em 13 de agosto de 1965 foi seguido de uma festa no Ginásio do Ibirapuera¸ totalmente lotado e numa espécie de neurose coletiva o povo gritava os nomes dos personagens e chorava por Mamãe Dolores, Maria Helena e Albertinho.

Nas emissoras do ABC o gênero consolidou-se na forma de rádio teatro como o Grande Teatro de Emoções apresentado na Rádio Independência de São Bernardo do Campo e que levava ao ar , no final da década de 50, peças produzidas por Guido Fidélis e Oswaldo Russi . A mesma dupla escreveu para a Rádio São Paulo em 1958 a novela Remorso . Pelas ondas da ZYR - 82 , Rádio Emissora ABC , ia ao ar aos sábados o Grande Teatro Philips com textos de Alves Cabral e Edson Lazari.

Segundo Silvia Borelli e Maria Celeste Mira a partir dos anos 60 a radionovela perde espaço para a telenovela , até desaparecer em 1973. Segundo estas pesquisadoras: com a consolidação da telenovela, risos, lágrimas , medos e ansiedades passam a ser visualizados.(...) O melodrama ocupou novos territórios; construiu sua hegemonia original e passou gradativamente a conviver com aventuras , comédias, policiais, até a plena explosão da diversidade ficcional na televisão , a partir dos anos 70 .

FONTES:
http://www.facom.ufba.br/artcult/brasiltelenovela/
http://br.geocities.com/memorialdatv/radio.htm
http://pt.wikipedia.com/
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/
http://www.rainhadapaz.g12.br/projetos/portugues/generos_textuais/mitos/fotonovela.htm

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Curiosidades Literárias

  1. O escritor Wolfgang von Goethe escrevia em pé. Ele mantinha em sua casa uma escrivaninha alta.
  2. O escritor Pedro Nova parafusava os móveis de sua casa a fim que ninguém o tirasse do lugar.
  3. Gilberto Freyre nunca manuseou aparelhos eletrônicos. Não sabia ligar sequer uma televisão. Todas as obras foram escritas a bico-de-pena, como o mais extenso de seus livros, Ordem e Progresso, de 703 páginas.
  4. Euclides da Cunha, Superintendente de Obras Públicas de São Paulo, foi engenheiro responsável pela construção de uma ponte em São José do Rio Pardo (SP). A obra demorou três anos para ficar pronta e, alguns meses depois de inaugurada, a ponte simplesmente ruiu. Ele não se deu por vencido e a reconstruiu. Mas, por via das dúvidas, abandonou a carreira de engenheiro.
  5. Machado de Assis, nosso grande escritor, ultrapassou tanto as barreiras sociais bem como físicas. Machado teve uma infância sofrida pela pobreza e ainda era míope, gago e sofria de epilepsia. Enquanto escrevia Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado foi acometido por uma de suas piores crises intestinais, com complicações para sua frágil visão. Os médicos recomendaram três meses de descanso em Petrópolis. Sem poder ler nem redigir, ditou grande parte do romance para a esposa, Carolina.
  6. Graciliano Ramos era ateu convicto, mas tinha uma Bíblia na cabeceira só para apreciar os ensinamentos e os elementos de retórica. Por insistência da sogra, casou na igreja com Maria Augusta, católica fervorosa, mas exigiu que a cerimônia ficasse restrita aos pais do casal. No segundo casamento, com Heloísa, evitou transtornos: casou logo no religioso.
  7. Aluísio de Azevedo tinha o hábito de, antes de escrever seus romances, desenhar e pintar, sobre papelão, as personagens principais mantendo-as em sua mesa de trabalho, enquanto escrevia.
  8. José Lins do Rego era fanático por futebol. Foi diretor do Flamengo, do Rio, e chegou a chefiar a delegação brasileira no Campeonato Sul-Americano, em 1953.
  9. Aos dezessete anos, Carlos Drummond de Andrade foi expulso do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), depois de um desentendimento com o professor de português. Imitava com perfeição a assinatura dos outros. Falsificou a do chefe durante anos para lhe poupar trabalho. Ninguém notou. Tinha a mania de picotar papel e tecidos. "Se não fizer isso, saio matando gente pela rua". Estraçalhou uma camisa nova em folha do neto. "Experimentei, ficou apertada, achei que tinha comprado o número errado. Mas não se impressione, amanhã lhe dou outra igualzinha."
  10. Numa das viagens a Portugal, Cecília Meireles marcou um encontro com o poeta Fernando Pessoa no café A Brasileira, em Lisboa. Sentou-se ao meio-dia e esperou em vão até as duas horas da tarde. Decepcionada, voltou para o hotel, onde recebeu um livro autografado pelo autor lusitano. Junto com o exemplar, a explicação para o "furo": Fernando Pessoa tinha lido seu horóscopo pela manhã e concluído que não era um bom dia para o encontro.
  11. Érico Veríssimo era quase tão taciturno quanto o filho Luís Fernando, também escritor. Numa viagem de trem a Cruz Alta, Érico fez uma pergunta que o filho respondeu quatro horas depois, quando chegavam à estação final.
  12. Clarice Lispector era solitária e tinha crises de insônia. Ligava para os amigos e dizia coisas perturbadoras. Imprevisível, era comum ser convidada para jantar e ir embora antes de a comida ser servida.
  13. Monteiro Lobato adorava café com farinha de milho, rapadura e içá torrado (a bolinha traseira da formiga tanajura), além de Biotônico Fontoura. "Para ele, era licor", diverte-se Joyce, a neta do escritor. Também tinha mania de consertar tudo. "Mas para arrumar uma coisa, sempre quebrava outra."
  14. Manuel Bandeira sempre se gabou de um encontro com Machado de Assis, aos dez anos, numa viagem de trem. Puxou conversa: "O senhor gosta de Camões?" Bandeira recitou uma oitava de Os Lusíadas que o mestre não lembrava. Na velhice, confessou: era mentira. Tinha inventado a história para impressionar os amigos.
  15. Fernando Sabino foi escoteiro dos nove aos treze anos. Nadador do Minas Tênis Clube, ganhou o título de campeão mineiro em 1939, no estilo costas.
  16. Guimarães Rosa, médico recém-formado, trabalhou em lugarejos que não constavam no mapa. Cavalgava a noite inteira para atender a pacientes que viviam em longínquas fazendas. As consultas eram pagas com bolo, pudim, galinha e ovos. Sentia-se culpado quando os pacientes morriam. Acabou abandonando a profissão. "Não tinha vocação. Quase desmaiava ao ver sangue", conta Agnes, a filha mais nova.
  17. Mário de Andrade provocava ciúmes no antropólogo Lévi-Strauss porque era muito amigo da mulher dele, Dina. Só depois da morte de Mário, o francês descobriu que se preocupava em vão. O escritor era homossexual.
  18. Vinicius de Moraes, casado com Lila Bosco, no início dos anos 50, morava num minúsculo apartamento em Copacabana. Não tinha geladeira. Para agüentar o calor, chupava uma bala de hortelã e, em seguida, bebia um copo de água para ter sensação refrescante na boca.
  19. José Lins do Rego foi o primeiro a quebrar as regras na ABL, em 1955. Em vez de elogiar o antecessor, como de costume, disse que Ataulfo de Paiva não poderia ter ocupado a cadeira por faltar-lhe vocação.
  20. Rodaram o videoteipe para confirmar a validade de um lance contra o seu Fluminense. Foi unanimidade: pênalti claro. Nelson Rodrigues gritou: "Câmera em mim! Se o videoteipe diz que foi pênalti, pior para ele. O videoteipe é burro! E é só o que tenho a dizer."
  21. Para agradar ao poeta, Chico Buarque "escalou" um jogador do Náutico na Seleção Brasileira, de brincadeirinha. João Cabral de Melo Neto agradeceu a homenagem, com uma ressalva: "Meu time é o América do Recife".
  22. Castro Alves morreu com apenas 24 anos, nasceu em 1847 vindo a falecer em 1871.
  23. J.K Roling (Escritora de Harry Potter) começou a escrever seu primeiro livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, em guardanapos em um bar que freqüentava, e ao terminar o livro ficou com uma terrível dúvida: escolher se comprar leite para sua filha ou mandava seu livro pra editora, hoje ela é milionária !
  24. Jorge Amado para autorizar a adaptação de Gabriela para a tevê, impôs que o papel principal fosse dado a Sônia Braga. "Por quê?", perguntavam os jornalistas, Jorge respondeu: "O motivo é simples: nós somos amantes." Ficou todo mundo de boca aberta. O clima ficou mais pesado quando Sônia apareceu. Mas ele se levantou e, muito formal disse: "Muito prazer, encantado." Era piada. Os dois nem se conheciam até então.)

    Fonte: http://www.aliteratura.kit.net/resumo/curiosidades.html

Lygia Fagundes Telles (Conto: O Moço do Saxofone)

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?
— É o moço do saxofone.

Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.
— E o quarto dele fica aqui em cima?

James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.
— Aqui em cima.

Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.
— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...

Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.
— Chifre dói.

Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.
—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...

Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?

Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.

— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!

Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.

James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo...

Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar...

Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?

— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.

— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.

O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.

— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.

— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.

— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.

Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.

FONTE:
O texto acima foi publicado no livro "Antes do Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro, 1979, e relacionado entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.

Disponível em http://www.releituras.com/lftelles_menu.asp

Incidente em Antares (Érico Veríssimo)

Pelo professor Teotônio Marques Filho

Introdução
Gaúcho de Cruz Alta, onde nasceu em 1905, Érico Veríssimo é, sem dúvida, um dos grandes nomes da Literatura Brasileira de todos os tempos, embora, na sua modéstia, se revelo o contrário, como aparece numa passagem de Incidente em Antares (Ed. Globo, 29ª edição, p. 178), pela boca de D. Quitéria. Aí a rigorosa leitora acusa-o de “não conhecer direito a vida campeira” do Rio Grande do Sul: “é bicho da cidade” – dizia o Zózimo, marido de D. Quitéria.
Aristocrata e de família tradicional e conservadora, D. Quita faz restrições também à linguagem de Érico Veríssimo: “Quem vê cara séria desse homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele bota nos livros dele” (id. Ib.). Por outro lado, usando uma expressão do Prof. Libindo (outra personagem do livro), D. Quita classifica-o, em matéria de política, como “um inocente útil”.
É claro que não de pode levar a sério esse julgamento de D. Quita, mesmo porque quem realmente está fazendo essa avaliação é o próprio Érico Veríssimo. Além do mais, personagem de Incidente de Antares, que morre antes do fim do romance, D. Quita não chegou a ler esse livro. Se o fizesse, o julgamento do seu conterrâneo ilustre seria mais favorável, dadas as qualidades insofismáveis do referido romance.
Para o Prof. Délson Gonçalves Ferreira, amigo e estudioso de Érico Veríssimo, a obra desse romancista gaúcho pode ser dividida em três grupos:
1) Romances urbanos, em que o autor focaliza problemas de classe média numa cidade grande: Clarissa, Música ao longe, Caminhos cruzados, Um lugar ao sol e Saga;
2) romances épicos, entre os quais se destaca o monumental romance O tempo e o vento, em que o escritor narra a história de sua terra e de sua gente, (Ana Terra é um episódio desse romance);
3) romances universais, em que se discutem os grandes problemas do homem na sua dimensão universal e temporal: O senhor embaixador, O prisioneiro e o nosso Incidente em Antares.
Publicado em 1971, Incidente em Antares é o último romance de Érico Veríssimo. De sentido claramente político, este romance tece, de um lado, o panorama sócio-político do Brasil contemporâneo; de outro, faz um fantástico julgamento dos vivos alguns mortos insepultos, numa Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: FIM DO ESTADO NOVO E GOLPE MILITAR DE 64

O Fim do Estado Novo
Em 1942, o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com as potências do Eixo e entrou na guerra ao lado dos EUA. Isso demonstrou a grande contradição do governo Vargas, que internamente, tinha uma postura tipicamente fascista.
Em 1944, Getúlio Vargas tomou uma série de medidas para aproximar-se das massas populares. O atendimento a algumas necessidades do grande proletariado urbano, então em nascimento, convencionou-se chamar de populismo.
O queremismo, campanha dos partidários de Vargas para que ele permanecesse no, ou pelo menos se candidatasse, levou os militares, sob a liderança do General Gois Monteiro a depor Getúlio Vargas, em 29/10/45.
A Constituição de 1946 reflete bem as aspirações democráticas do pós-guerra; liberal e presidencialista, o texto constitucional pouco avança quanto à legislação social.
O governo Dutra, envolvido cada vez mais nas tramas da guerra fria e submetido à hegemonia americana no continente, restringiu as liberdades sindicais e fechou o PCB.
A volta de Getúlio, em 1951, foi uma vitória do racionalismo e do trabalhismo; sua morte, em 1954, representou a derrota do populismo getulista diante de poderosas forças políticas conservadoras, aliadas ao imperialismo norte-americano.
O nacionalismo foi a grande marca da política econômica de Getúlio Vargas, e a campanha de mobilização popular em defesa do monopólio estatal do petróleo foi uma das mais fortes campanhas nacionalistas do último governo de Vargas.

O governo JK (1956-1961)
O período de governo de Juscelino (1956-1961), politicamente foi bastante calmo. Aconteceram duas pequenas sublevações militares, logo contornadas. A ênfase do novo governo foi o Plano de Metas, voltado para a industrialização, a partir da utilização maciça de capitais estrangeiros, num flagrante contraste com a política econômica desenvolvida no último período de Vargas. Usando o Slogan “50 anos em 5”, característico das idéias desenvolvimentistas, JK privilegiou as indústrias de bens de consumo, principalmente a automobilística.
Os anos JK foram, realmente, um período de euforia social e crescimento econômico. A implantação da indústria automobilística, a construção de Brasília, o respeito às liberdades democráticas, além da notável habilidade do presidente em lidar com as crises políticas e as pressões sociais – tudo isso alimentou um clima de liberdade e progresso.

Governo Jânio Quadros (1961)
Utilizando uma campanha moralista, que usava uma vassoura como símbolo da limpeza que seria feita no país, Jânio Quadros elegeu-se presidente para o período 1961-1965. Ficou apenas 7 meses no poder, tendo renunciado em agosto de 1961. Jânio quadros fora apoiado pela UDN, derrotando o Marechal Lott, do PSD, por ampla margem de votos.
O curto período de governo de Jânio Quadros deixou a população um tanto perplexa: medidas absolutamente impensáveis como a proibição de brigas de galos, de corridas de jóquei-clube, restrições ao uso de roupas de banho nos desfiles de Miss - Brasil, eram tomadas, lado a lado com a tentativa de implantar uma política externa independente (reatamento com a URSS, com a China, condecoração de Che Guevara), deixavam entrever um estilo de governo inusitado. Em agosto de 1961, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, denunciou à imprensa que um golpe de estado estava sendo planejado, visando transformar o presidente em ditador. No dia seguinte, Jânio renunciou. Tentativa de golpe? Atitude impensada? Essas questões ainda não foram suficientemente esclarecidas.

Governo João Goulart (1961-1964)
O Vice-presidente João Goulart (PTB) estava fora do país, em missão comercial na China. Deveria retornar para assumir o governo e completar o período presidencial, mas os ministros militares opuseram-se ao seu retorno, gerando uma nova crise. O país esteve à beira de uma guerra civil, pois o III Exército, no Rio Grande do Sul, exigia o respeito à Constituição e a posse de Goulart. Finalmente chegou-se a uma solução de compromisso, com a adoção de um Ato Adicional que estabeleceu o Parlamentarismo no país. Goulart assumiu e, até 1963, vigorou o novo sistema, porém de maneira precária. Um plebiscito o aboliu, retornando ao presidencialismo.
De 1963 a março de 1964, assiste-se a uma radicalização dos setores da direta e da esquerda. Os empresários, ligados aos militares, e com plena aprovação da embaixada norte-americana, reunidos no IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) tramavam a derrubada de Goulart. Setores da imprensa, da classe média, devidamente assustados com o “perigo comunista”, pregações da Igreja Católica (rezar o terço para afastar o espectro comunista), serviriam de respaldo para o golpe que se articulava.
A esquerda pressionava Goulart para colocar em prática as “reformas de base”, considerando-as uma necessidade para o desenvolvimento do país. Propunha-se a reforma agrária. No comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, Goulart chegou a assinar vários decretos que iniciariam a aplicação dessas reformas. Mas o congresso reagiu, uma vez que isso seria prerrogativa sua. Os setores militares tornaram-se agudamente descontentes com o apoio do presidente às revoltas dos sargentos e dos marinheiros (estes últimos incentivados pelo “Cabo Anselmo” que, como se acusou depois, seria um agente da CIA, objetivando desestabilizar o governo).
Assim, em 31 de março, teve início o levante militar, que, no dia seguinte, conseguia a vitória: Goulart fugira para o Uruguai, acompanhado do ex-governador Leonel Brizola, seu cunhado. Era o colapso da época populista no Brasil.
A queda do governo João Goulart representou o encerramento da experiência da democracia populista, cujas raízes estão na Revolução de 1930 e na era de Vargas. Uma experiência que, mesmo progressista, especialmente sua última fase, não conseguiu institucionalizar a participação popular. Mas, seus avanços sociais e políticos, nos limites da ordem constitucional vigente, foram suficientemente amplos para incomodar as classes dominantes que não vacilaram em encerrá-la.
Em síntese, o período que se estende de 1945 a 1964 é tradicionalmente conhecido como o período do Populismo. Como já se observou, o populismo na América Lativa teve como característica básica uma intensa manipulação de massas, num momento de transição entre a economia agro-exportadora e a economia mais moderna, que começa a se instalar após a crise de 1929. Lideranças mais ou menos carismáticas disputaram o poder junto a essa massa, ora fazendo concessões (as leis trabalhistas de Vargas são um bom exemplo), ora utilizando o povo como elemento de ataque às antigas oligarquias.

SÍNTESE DO INCIDENTE EM ANTARES

Primeira parte: Antares
A bem dizer, Antares é uma cidadezinha perdida no mapa do Rio Grande do Sul, às margens do rio Uruguai, “na fronteira do Brasil com a Argentina”. Essa cidadezinha será palco, em 1963, numa sexta-feira, de “um drama talvez inédito nos anais da espécie humana” (p. 3).
A origem de Antares remonta há muitos anos atrás, conforme reza um relato do naturalista francês Gaston Gontran, em seu livro Voyage Pittoresque au Sud du Brésil (1830-1831). Deslumbrado com a beleza do lugar, o naturalista mostra a seu hospedeiro, Francisco Vacariano a estrela Antares. “É um bonito nome para um povoado” (p. 6). E em 1853, quando o povoado é elevado à categoria de vila, Antares substituirá o nome primitivo “Povinho da Caveira”. Para muitos, entretanto, Antares significava “lugar das antas” (p.9).
Senhor absoluto da cidadezinha até então, Chico Vacariano é ameaçado no seu reinado por Anacleto Campolargo, “criador de gado e homem de posses” (p.10), que passa a disputar com o pioneiro (Chico Vacariano) o domínio daquele feudo. Há lutas de mortes e o ódio se estabelece entre os dois clãs por gerações sucessivas, com atos de violência e atrocidades inimagináveis. A rivalidade entre as duas dinastias durou “quase sete decênios, com períodos de maior ou menos intensidade” (p. 11).
A década de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto na ordem material como intelectual (p. 29), e a cidade até então um município exclusivamente agropastoril, começava auspiciosamente a industrializar-se. O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rádio – contribuíram decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa (p. 29).
A rivalidade, contudo, entre os dois clãs (Vacariano X Campolargo) domina a cidade a política local. Após um período de turbulência e atrocidades engendradas por Xisto Vacariano e Benjamin Campolargo, chega à cidade de Antares, com a missão de estabelecer a paz entre as duas famílias beligerantes, “um membro da prestigiosa família Vargas, de São Borja” (p. 33): era Getúlio Vargas, a essa época, deputado federal. Usando de artimanhas, Getúlio consegue aproximar os dois chefes políticos, ponderando: “Os amigos hão de concordar em que os tempos estão mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos serão um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí...” (p. 35).
Os dois velhos próceres, agora apaziguados serão substituídos por Zózimo Campolargo, casado com D. Quitéria (D. Quita) e Tibério Vacariano, casado com D. Briolanja (D. Lanja). De boa paz e meio indolente, Zózimo “era um homem sem nenhuma vocação para liderança” (p. 38). Dessa forma, a chefia política da cidade acaba sendo assumida por Tibério e D. Quita, “criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até duma certa astúcia política” (p. 38). D. Quita, pois, diante da indolência do marido, acaba-se tornando a “eminência parda, o poder por trás do trono”. Com o “tratado de paz” entre as duas famílias, engendrado por Getúlio, uma grande amizade é cultivava entre os dois casais.
Com a ascensão política de Getúlio Vargas, que inaugura o Estado Novo no Brasil, Tibério se estabelece no Rio de Janeiro e vai-se enriquecendo através de negociatas e atividades escusas. “Além de advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transações imobiliárias e ocasionalmente no câmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negócios, uns lícitos, outros ilícitos. Habituara-se a viver a sócios, e para si mesmo. E, como tanto de seus pares já possuía, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dólares” (p. 48).
Com o fim do Estado Novo e a que da de Getúlio Vargas, incompatibiliza-se com ele e volta para Antares, aonde vai consolidando o seu império: atrai para a região uma empresa de óleos comestíveis de Mr. Chang Ling, a qual se alimentava da soja de sua produção: era a “Cia. De Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério Vacariano possuía 500 ações que não lhe aviam custado um vintém” (p. 65). Por outro lado, dando vazão aos seus instintos de garanhão constitui outra família, envolvendo-se com a exuberante Cleo, que passa a ser sua “teúda e manteúda”.
Após as marchas e contramarchas da política nacional, em que tem lugar o governo do Presidente Dutra, Getúlio Vargas retorna triunfante, em 1951, agora “nos braços do povo”. É um período de turbulência política, em que a UDN de Carlos Lacerda combate tenazmente “o pai dos pobres”. O atentado a Lacerda, em 1954, ao que tudo indica comandado por Gregório Fortunato (escudeiro do Presidente) precipita a queda de Getúlio, que tenta resistir: “Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte” (p. 80).
O suicídio, a forma honrosa encontrada pelo Presidente para “sair da vida e entrar na História”, desperta no país profunda comoção popular. Pressionado e abandonado, ao morrer, Getúlio escreveu: “À sanha de meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo aquilo que desejava”. A sua carta-testamento, redigida em estilo grandiloqüente, confere grandeza à sua morte: “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo na caminhada da eternidade e saio da vida para entrar na História” (p. 90).
Os acontecimentos políticos são acompanhadas com atenção em Antares: cada vez que a sirena de “A Verdade” (o jornal da cidade, de Lucas Faia) tocava, lá vinha notícia urgente e em primeira mão. Assim é que o povo de Antares vai acompanhando e discutindo (sobretudo a turma da Farmácia Imaculada Conceição) os acontecimentos políticos do cenário nacional: a eleição de JK e a posse tumultuada, o seu governo de prosperidade e progresso (cinqüenta anos em cinco), a construção de Brasília, a industrialização do país. É por essa ocasião que morre Zózimo, no Rio, onde fora transportado em busca de cura.
Candidato da UDN e a parte do PSD dissidente, Jânio Quadros, o candidato de Tibério Vacariano, vence as eleições e renuncia poucos meses depois, levado por “forças terríveis”. Uma decepção para Tibério. A renúncia de Jânio mergulhou o país no caos e na incerteza, pois o Jango, o vice-presidente, de tendência socialista, não era bem visto pelos militares e as forças conservadoras. Tudo foi contornado com o artifício do parlamentarismo, que teria, contudo, vida curta.
Mergulhado na incerteza, com greves e agitações, com Brizola, fazendo barulho, o governo de João Goulart era um convite ao golpe, - o que não demorou a acontecer: era março de 1964.
Enquanto isso, Antares era objeto de uma radiografia: o Prof. Martim Francisco Terra e sua equipe escolheram exatamente Antares para realizar a sua “anatomia duma cidade gaúcha de fronteira”. O objetivo da pesquisa como expõe o professor, era “saber que tipo de cidade é Antares, como vive a sul população, qual seu nível econômico, cultural e social, os seus hábitos, gostos, opiniões políticas, crenças religiosas” etc. (p. 128). Publicado em livro, o resultado da pesquisa revelou-se desastroso para a imagem da cidade, que esperava exatamente o contrário: Antares era uma cidade prosaica, com gente desconfiada e preconceituosa, com vícios de alimentação e um enorme problema social ao seu redor – a favela Babilônia, “um arraial de miséria e desesperança” (p. 138)
Incompatibilizando com a cidade, taxado de comunista, o Prof. Martim passa a ser “persona non grata” na cidade. Mais tarde, será perseguido pela Revolução de 1964 e tem que se exilar do país.
Ao lado da “anatomia” de Antares, realizada pelos pesquisadores do Prof. Martim (inclusive Xisto, neto do coronel Tibério), as personagens gradas do livro são apresentadas através do diário do professor: o coronel Tibério, dono da cidade; D. Quitéria, matriarca dos Campolargos; Vivaldino Brazão, prefeito da cidade; Dr. Quintiliano do Vale, o meritíssimo juiz, o delegado truculento Inocêncio Pigarço; os médicos Dr. Lázaro (da família Vacariano) e Dr. Falkenburg (dos Campolargos); o jornalista Lucas Faia, de “A Verdade”, com o cronista social Scorpio; Pe. Gerôncio, de linha tradicional, e o Pe. Pedro-Paulo, moderno, de linha socialista, taxado de comunista; o promotor Dr. Mirabeau; o fotógrafo de origem checa Yaroslav; o paranóico teuto-brasileiro Egon Sturm, neonazista; o maestro solitário Menandro de Olinda; o Prof. Libindo Olivares, com a sua fama de grande latinista, helenista, matemático e filósofo.

Segunda Parte: o incidente
Comandada por Geminiano Ramos, uma greve geral paralisa todas as atividades em Antares: reivindicando melhoria salarial, cruzam os braços os operários do Frigorífico Pan-Americano (de Mr. Jefferson Monroe III), da Cia. Franco Brasileira de Lãs (de M. Jean François Duplessis), da Cia. De Óleos Comestíveis Sol do Pampa (de Mr. Chang Ling) e também os encarregados da Usina Termoelétrica Municipal, deixando a cidade às escuras. Era o dia 11 de dezembro de 1963, uma quarta-feira.
Por outro lado, nesse mesmo dia, vem a falecer a veneranda matriarca D. Quitéria (enfarte do miocárdio) e mais seis outras pessoas: Dr. Cícero Branco (derrame cerebral), advogado das falcatruas do Cel. Tibério e do Prefeito Vivaldino; o anarco-sindicalista José Ruiz, vulgo Barcelona; o “subversivo” João Paz, torturado pelo delegado Inocêncio; o maestro Menandro, que suicidou, cortando os punhos; o bêbado Pudim de Cachaça, envenenado pela mulher; e a prostituta Erotildes, que morreu vitimada pela tuberculose, na ala dos indigentes do Hospital “Salvator Mundi”, do Dr. Lázaro.
Irredutíveis na sua greve, os operários, com a solidariedade dos coveiros, interditam o cemitério e impedem o enterro, ficando insepultos os sete defuntos. E é aí que acontece o fantástico: os defuntos se erguem dos seus caixões e, após as apresentações, comandados pelo Dr. Cícero, arquitetam um plano, exigindo das autoridades o sepultamento a que tinham direito: “ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético... e moral, naturalmente” (p. 250).
Dispostos em ordem hierárquica, os defuntos descem até o centro da cidade, provocando pânico e horror por onde passavam, e estabelecem o caos em Antares. Como ficara combinado, cada um poderia dispor do tempo como quisesse até ao meio-dia em ponto-horário do ultimato ao Prefeito.
D. Quitéria, numa visita aos genros e filhas, já exalando o mau cheiro do corpo em decomposição, assiste à discussão e brigas pelo seu espólio; o Dr. Cícero surpreende a esposa em flagrante adultério com um rapazinho louro, e depois se dirige à casa do prefeito; Barcelona afugenta os policiais e dá uma lição no delegado Inocêncio Pigarço; Menandro toca enfim a “Apassionata” de Beethoven; Erotildes visita a amiga Rosinha que a recebe, na sua humilde, sem nenhum medo (certamente porque não tinha nada a temer...); Pudim de Cachaça vai ao encontro do velho amigo de bebida Alambique, que o recebe também sem medo (é comovente o amor que demonstra pela esposa que o envenenara); Joãozinho Paz inicialmente conversa com o Pe. Pedro-Paulo, na praça, e depois tem um encontro comovente com a esposa grávida (Ritinha).
Por outro lado, reunido com seus pares, o prefeito busca uma solução para o problema. Até mesmo o Pe. Pedro-Paulo é ouvido na reunião; depois se retira. Após muitas falações, em que o “sábio Prof. Libindo tenta explicar o fenômeno como um caso de ‘alucinação coletiva’ “, as opiniões se divergem: o delegado Inocêncio e o Cel. Tibério propõem uma solução violenta, pela força; os outros tendem para a parlamentação com os mortos – proposta que sai vitoriosa.
O encontro entre vivos e mortos se dá exatamente ao meio-dia, com a praça apinhada de gente, sob um sol escaldante. Tem lugar, então, um autêntico julgamento dos vivos, em que os mortos, através do seu advogado constituído, expõem os podres sobretudo das pessoas gradas da cidade: as falcatruas do Cel. Tibério e do Prefeito; a truculência do delegado Inocêncio; a pederastia e vaidade do Prof. Libindo; a caridade falsa do Dr. Lázaro; a magnanimidade hipócrita do Dr. Quintiliano. AO expor essas mazelas da fina sociedade antarense, o Dr. Cícero arrancava aplausos, sobretudo dos estudantes que estavam pendurados nas árvores. Tomando a palavra, Barcelona, sem papas na língua, revela casos de adultério de damas insuspeitas e honradas de Antares. O mau cheiro (dos cadáveres em decomposição e, sobretudo, daquela sociedade podre) atrai urubus e, depois, Antares é invadida por ratos que empestam ainda mais a cidade.
Esse “fenômeno” provoca em Antares uma verdadeira revolução: Dr. Lázaro procura o Pe. Pedro-Paulo para fazer confidências; o Maj. Vivaldino tem que dar explicação à mulher; Dr. Mirabeau se preocupa por ter sido chamado de “fresco” e quer provar o contrário (por sinal, não consegue...); Dr. Quintiliano não consegue dominar mais Valentina, sua esposa, que se revela “pantera acoimada”; o delegado Inocêncio briga com o filho (Mauro), que se manda da cidade; Pe. Gerôncio balança a cabeça, perplexo. Enfim, a cidade de Antares foi sacudida nas suas entranhas com a presença dos mortos que apodreciam no coreto.
Conforme prometera a Joãozinho, o Pe. Pedro-Paulo transporta Ritinha para o outro lado do rio Uruguai (Argentina), onde estaria a salvo da truculência do delegado. É nessa oportunidade que fica sabendo do amor do Mendes, secretário subserviente do Prefeito, pela mulher de Joãozinho
Atacados a pedradas e garrafadas pelos “embuçados da alvorada” (bando de Tranqüilino Almeida), os defuntos se rendem e voltam para os seus esquifes. Por outro lado, comandada por Germiniano, uma assembléia encerra a greve e os mortos são, enfim, enterrados.
Sepultados os mortos, um vento forte sobra sobre Antares e carrega o mau cheiro que empestava a cidade: aos poucos tudo vai voltado à normalidade e as pessoas vão retomando as suas máscaras. Dessa forma, quando o pessoal da imprensa de Porto Alegre chega a Antares para documentar o fenômeno, o prefeito nega tudo e inventa outra estória: tudo fora um artifício para promover a cidade. Em vão os jornalistas tentam entrevistar outras pessoas. Procurado, o Pe. Pedro-Paulo mostra-lhes a favela miserável da Babilônia.
Numa reunião convocada pelo Prefeito, o Prof. Libindo propõe a “operação borracha”, para desespero do Lucas Faia que escrevera um artigo brilhante sobre o “fenômeno”. Coroada de êxito, a “operação borracha” se encerra com um grande banquete em que a sociedade antarense, apaziguada pelo tempo, repõe as suas velhas máscaras.
Retornando à cidade com Xisto, o Prof. Martim Francisco é ameaçado e aconselhado pelo velho Cel. Tibério e pelo Prefeito a sair da cidade. Na despedida, acompanhado pelos seus amigos Xisto e Pe. Pedro-Paulo, ele antevê a chegada da revolução de 64 que está na iminência de acontecer.
Enfim chega março de 1964 e a revolução se instala para ficar e reafirmar os valores da sociedade capitalista, empurrando para longe os anseios socialistas. Cada um vai seguindo o seu destino ou o destino que lhe foi imposto; uns morrem (Cel. Tibério, Pe. Gerôncio); alguns são promovidos (Delegado Inocêncio, o juiz Dr. Quintiliano); o Prefeito Maj. Vivaldino Brazão “entrou num período de hibernação política” e foi cuidar de suas orquídeas; outros foram perseguidos, pelo novo governo (Geminiano, Pe. Pedro-Paulo, Prof. Martim).
Em suma, a julgar pelas aparências, “Antares é hoje em dia uma comunidade próspera e feliz” (p. 484). Entretanto, uma criança que estava começando a aprender a ler, soletra uma palavra perigosa, pichada no muro: “LIBER--- Não terminou: em pânico, o pai arrasta-o e silencia-o com um safanão”.

ORGANIZAÇÃO – ESTRUTURA – PERSONAGENS
1) Como se viu, Incidente em Antares vem dividido em duas partes. Na primeira (“Antares”). “o leitor fica conhecendo a história dessa localidade, bem como as das duas oligarquias rivais que a dominaram política e economicamente por mais de cem anos. Trata-se, em suma, de uma espécie de apresentação do palco, do cenário, bem como das personagens principais e da numerosa comparsaria que, através de seus descendentes, serão envolvidos no dramático ‘incidente’ da sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.” (contracapa).
“A segunda parte, cuja duração é muito menor em tempo de calendário, embora ocupem ais espaço tipográfico, mostra o incidente propriamente dito e suas conseqüências” (contracapa). Utilizando-se do fantástico como forma de expressão (a animização dos mortos insepultos), Érico Veríssimo revela, a decomposição social e moral da sociedade humana através do microcosmo enfocado (a cidade de Antares).
2) Os fatos são narrados em terceira pessoa por um narrado onisciente e onipresente.
Esses narrados, contudo, ao longo da narrativa, vai simulando transcrições de pseudo-autores, como o relato do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville (p. 3); a carta do Pe. Juan Bautista Otero (p. 7); os diários do Pe. Pedro-Paulo e do Prof. Martim Francisco Terra (na apresentação das personagens, por exemplo); os artigos de Lucas Faia no jornal “A Verdade”; e excertos do livro Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira,, organizado pelo Prof. Martim e sua equipe.
O autor, pois, utiliza-se de todos esses recursos para organizar a sua narrativa, dando, dessa forma, a impressão de que tudo aconteceu e é verdade.
3) Visto globalmente, Incidente em Antares é, sem dúvida, um romance.
A primeira parte, contudo, dada sua linearidade e sucessividade episódica, lembra a espécie literária que chamamos de novela: cerca de um século de história fui cronologicamente, antes de o autor se deter na sua análise, em profundidade, da sociedade antarense.

PERSONAGENS
As personagens de Incidente em Antares podem ser agrupadas de acordo com as suas convicções políticas e a sua condição social.
1) Representando a ordem social tradicional, marcadamente conservadora e aristocrática, os dois clãs rivais (Vacarianos e Campolargos) dominam a cidade. É em torno dessa aristocracia, em que predomina o sistema patriarcal, que se organizam as pessoas gradas de Antares, as quais forma e revelam-se podres e em adiantado estado de decomposição moral, exalando um mau cheiro pior que o dos mortos do coreto na praça nobre da cidade. Ao levantar a tampa do “caixão”, retirando a máscara que envolvia cada um desses honrados cidadãos, Érico Veríssimo revela a podridão daquela sociedade carcomida nas suas entranhas. Como se viu pela síntese que fizemos, a verdade não convinha a esses aristocratas, e a solução foi lacrar os caixões e enterrar a verdade com os sete mortos.
2) As personagens femininas, com exceção de D. Quitéria, a matriarca dos Campolargos, vivem à sombra dos seus maridos, submissas e alienadas, aceitando passivamente a ordem estabelecida. Uma exceção a essa passividade e alienação é Valentina, mulher do Dr. Quintiliano. Influenciada por leitura perigosas e possivelmente pelo Pe. Pedro-Paulo, ela se rebela consciente e politizada, questionando o marido e não aceitando as imposições. Era, sem dúvida, um avanço naquela sociedade rigidamente patriarcal. Valentina, contudo, é ainda uma “pantera açaimada” (expressão do Prof. Martim) que não tem condições de se libertar plenamente.
3) As personagens esquerdistas, taxadas de comunistas naquela sociedade conservadora, defendem o socialismo e lutam por um ordem social mais justa e um mundo melhor. Evidentemente, esses progressistas chocam-se com os interesses da aristocracia dominante e são perseguidos. Entre outros, destacam-se aqui o Pe. Pedro-Paulo, o Prof. Martim, Joãozinho Paz com sua mulher (Ritinha), Geminiano ramos, Barcelona, o anarco-sindicalista, e mesmo Xisto, neto do Cel. Tibério.
4) Entre os humildes, constituindo a ralé da sociedade antarense, está o submundo da favela Babilônia. Nessa linha, incluem-se a prostituta Erotildes e o bêbado Pudim da Cachaça. Essas personagens, apesar de discriminadas e marginalizadas, revelam, na sua humilde e singeleza, uma grandeza comovente. Certamente por isso, não assustam os amigos visitados depois de mortos (Rosinha e Alambique).
5) Mais ou menos marginalizados, enclausurados, nos seus dramas pessoais e nos seus traumas, destacam-se o maestro Menandro, o neonazista Egon Sturm e certamente o subserviente secretário do Prefeito (o Mendes). Nessa lista, em falta de outro lugar, talvez possa entrar aqui também o fotógrafo checo Yaroslav.

ESTILO DA ÉPOCA
Publicado em 1971, Incidente em Antares se enquadra no estilo modernista não só pelas inúmeras referências e fatos e pessoas da época atual, como também pela presença de ingredientes que configuram, no livro, o gosto modernista.
1) A fundamentação na cultura nacional revela bem uma das tendências do Modernismo: a valorização de elementos folclóricos e tradicionais, bem como de costumes regionais, é uma das metas modernistas. Esse nacionalismo aparente, contudo, quase sempre esconde dramas existenciais que têm dimensão universal. No livro de Érico Veríssimo, Antares é, sem dúvida, um símbolo de um universo maior. Aliás, essa idéia aparece, numa conotação política, pichada nos muros da cidade: “A sociedade de Antares está podre. Antares é o símbolo da burguesia capitalista decadente” (p. 459).
2) Outro aspecto do livro que configura o Modernismo é o fantástico, que se manifesta em Incidente em Antares através dos sete defuntos insepultos. Embora autores não-modernistas tenham-se utilizado desse recurso também (Machado de Assis em Memórias Póstumas, por exemplo), esse é um gosto mais freqüente do Modernismo. Esse truque evidentemente tem o seu sentido: é através do morto (fora, portanto, do palco da vida) que se vê melhor. Ficando fora do círculo da vida, desataviado da máscara e convenções sociais, é possível ver com maior nitidez e mais objetividade.
A invasão dos ratos, sem dúvida é outro elemento bem ao gosto da literatura fantástica.
3) No que diz respeito à linguagem, são constantes os registros da fala coloquial, como é comum no Modernismo. Isso, sem dúvida, confere maior autenticidade à personagem.
“- Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu não faço (p. 20).
- Ele vai acabar levando o Brasil pro lado de Moscou (p. 73).
- Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta (p. 75).
- Uma das meninas me telefonou ind’agorinha (p. 203).
Fiel a esse registro da linguagem coloquial, muitas vezes aparece palavrão e pronúncias típicas do Rio Grande, além de regionalismos.
- Não hai bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe. (p. 287).
- Desculpe lê tirar da cama a esta hora, governador (p. 192)
-Se algum filho da puta me fizer qualquer provocação, traço-lhe bala (p. 123).
4) Outro aspecto que se destaca no estilo modernista é a postura engajada assumida pelo autor em relação a problemas de ordem política ou social. Em Incidente em Antares, o autor denuncia não só as falcatruas e negociatas escusas, como também a truculência e atrocidades da polícia, que espanca e tortura em nome da ordem e da segurança social. O caso de Joãozinho Paz e sua mulher gráfica (Ritinha) é dos mais ilustrativos.
O autor modernista, pois, não é um alienado – participa ativamente dos problemas da sociedade em que vive, denunciando as arbitrariedades, desmandos e injustiças.
5) Atenda às novidades e ao progresso, na década de vinte, Antares toma conhecimento do movimento modernista através de versos de Mário e Oswald de Andrade que são receitados num sarau de arte por um forasteiro: “Num sarau de arte, no Solar dos Campolargos, um forasteiro recitou versos modernos – que ninguém entendeu – de Oswald e Mário de Andrade” (p. 30).

ESTILO DO AUTOR / LINGUAGEM
Ao longo da narrativa de Incidente em Antares, Érico Veríssimo revela algumas características estilísticas que configuram a sua maneira de escrever.
1) Como já observamos na “organização e estrutura”, o escritor constrói a sua narrativa intercalando, no romance, textos de pseudo-autores. Essa simulação, em que Érico Veríssimo transcreve relatos, diários e artigos de jornais, imprime à narrativa uma atmosfera de verdade, dá a impressão de que a estória é verdadeira.
É claro que, ao lado da ficção, há fatos históricos, registrados por ele, que realmente aconteceram. Aliás, é o próprio autor quem observa numa “nota”, logo no início do romance: “Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.”
Essa mistura de ficção e história (ou de estória com história) sempre foi uma das grandes características do estilo Érico Veríssimo.
2) Combinado com o sarcasmo e espírito critico que perpassa o livro, o autor revela-se irônico e mordaz ao longo do romance, caricaturando gente, linguagem e instituições. O Prof. Libindo, por exemplo, e outros eruditos da cidade sofrem sob a pena do escritor. Os discursos das palavras bonitas, os artigos de estilo grandiloqüente e pomposo (de Lucas Faia) vêm sempre perpassados de zombaria e sarcasmo. Veja bem a passagem abaixo, em que o sábio Prof. Libindo digladia verbalmente com o meritíssimo juiz Dr. Quintiliano, a propósito do lema dos “Legionários da Cruz”, da D. Quita: “Meu caro magistrado, quem defende a Pátria defende precipuamente a Lei e a Ordem contidas ambas no vocábulo oceânico Pátria (...)”. “Pois se a coisa é assim”, retrucou o juiz, “bastaria então que no lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a idéia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrande tudo: Ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade”. Ficava de fora a Propriedade, o que levou o Cel. Tibério a gritar: “E a prosperidade?” (p. 180).
Quase sempre com essa conotação irônica, vêm aí informações entre parênteses, como a que vamos transcrever que reproduz uma discussão entre os mortos, em que Dr. Cícero, ante a proposta de votação de Barcelona, diz: “- Não direi que aqui em cima estejamos numa democracia. Imaginemos que isto é uma... uma tanatocracia. (E os sociólogos do futuro terão de forçosamente reconhecer este novo tipo de regime)” (p. 250).
Assim, pois, combinando com a mordacidade que perpassa a obra, o autor ironiza e caricaturiza máscara da sociedade antarense na sua fala gongórica e vazia, na sua postura fingida e hipócrita. Só os humildes e sinceros escapam da “pena da galhofa” de Érico Veríssimo.
3) Outro aspecto que se destaca na linguagem do livro é a tendência do autor para criar tempos novos, quase sempre da formação erudita, com base nos radicais gregos e latinos. Além de “tanatocracia” (= morte+governo), que acabamos de ver no item anterior, veja-se ainda:
“- Vivemos numa cafajestocracia, isso é que é”. (p. 94) (hibridismo: cafajeste+governo).
“- Democracia qual nada, governador! O que temos no Brasil é uma merdocracia” (p. 193) (hibridismo: merda+governo).
Além desses, chama a atenção também para as lições do Prof. Libindo que vai ensinando ao longo do romance:
“O Prof. Libindo me garante que a palavra orquídea vem do grego e significa testículo” (p. 158).
“O Prof. Libindo, num aparte forçado, pergunta se os presentes sabem que a palavra canícula significa na realidade ‘cadela’ e que era o antigo nome da estrela Sírio” (p. 321).
Digno de nota também é o verbo “filho-da-putear”, usado na página 79: “... depois de se filho-da-putearem abundantemente, estavam já de revólver na mão”.
4) Além dessa erudição demonstrada (adquirida de forma autodidata, pois Érico Veríssimo não chegou à universidade, não tenho nem mesmo acabado o curso ginasial), o escritor entremeia a sua narrativa, sempre pela boca de suas personagens eruditas, de latim, francês, inglês e outras línguas.
5) Embora gaúcho, Érico Veríssimo usa com parcimônia vocábulos regionais. Uma ou outra palavra trai o regionalismo gaúcho, como a pronúncia de pronome “lhe” (=lê), o uso de formas que lembram o espanhol, como “Bueno” (p. 200) e “personalmente” (p. 201) e a pronúncia com “e” e “o” do Cel. Tibério, quando usa o palavrão “filho-da-puta”: “Filhos da pota” (p. 204).

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES
São muitos os aspectos temáticos que podem ser detectados no romance Incidente em Antares:
1) De conotação política, destacam-se no romance, entre outros, os seguintes aspectos:
a) Érico Veríssimo tece no livro um verdadeiro painel sócio-político, não só no Rio Grande do Sul como do país. Como vimos, o seu mapeamento abrange mais de cem anos e, através dele, pode-se acompanhar as marchas e contramarchas da política nacional. Sobretudo na primeira parte, a impressão que se tem é de que o autor faz mais história do que ficção.
b) Nesse contexto político, além de outros, sobressai a figura de Getúlio Vargas com seu carisma, com seu nacionalismo, com o seu populismo e mesmo com seu fascismo. Com a sua auréola de “pai dos pobres”, chega a ser impiedosamente ironizado por Tibério, quando do seu suicídio, ao ser inquirido por sua empregada sobre o que seria dos pobres: “- Os pobres vão continuar tão pobres como no tempo em que ele estava vivo” (p. 85).
Mas, apesar da frase de Tibério, dita com “perverso despeito”, Getúlio tornou-se um mito para as pessoas simples e humildes, como a preta Acácia, que adorava o pai dos pobres “como se ele fosse um santo” (p. 301). Chega a fazer oração a ele por um melhor salário: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, Presidente. Mande essa gente me pagarem mais. Amém!” (p. 302).
c) Não obstante, entre os protegidos de Getúlio, a corrupção alastrava com negociatas escusas (contrabandos) e negócios ilícitos. Muitos, como Tibério Vacariano, enriqueceram-se e mantinham contas numeradas em bancos da Suíça, favorecidos por negócios falcatruosos e empréstimos com fundo perdido no Banco do Brasil.
Numa conversa em casa dos Campolargos, por exemplo, o Tibério faz esta denúncia: “Em matéria de dinheiro o Getúlio é um homem honesto. Mas finge que não vê certas safadezas que se fazem ao seu redor. A sua técnica é a de corromper para governar. E nunca se roubou tanto, nunca se fez tanta negociata à sombra de Getúlio e em nome dele como neste seu atual quatriênio” (p. 74). Mas o Tibério era suspeito para falar, como pensava com seus botões a D. Quitéria: “Olhem só quem está falando em negociatas” (ib. id.).
d) Priorizando a política desenvolvimentista e a industrialização, vão-se instalando no país (período, sobretudo de JK) as multinacionais e, com elas, a espoliação do país e a exploração do proletariado, como revela muito bem a fala humilde da negra Acácia (item b) na sua oração ao Presidente Vargas: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, Presidente”.
A greve geral decretada pelos operários das multinacionais de Antares é uma resposta dos trabalhadores à exploração e ao salário da miséria que recebiam para enriquecer os abastados. A fala de Geminiano, líder dos grevistas, numa reunião com os patrões e o prefeito revela exatamente isto: “reivindicações salariais”. (p. 200).
e) Combatendo o modelo capitalista, socialmente injusto e perverso, vão-se proliferando os esquerdistas, simpatizantes do socialismo, que se identificam com os pobres e operários e, por isso, taxados de comunistas e vermelhos. O momento político (de Jango e Brizola) favorecia a esquerdização e os “subversivos” iam-se proliferando, para desespero da sociedade capitalista e conservadora que não aceitava mudanças e reprimia o movimento.
Como observa o Pe. Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio, numa conversa, “comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social” (p. 384). Numa outra passagem, esse mesmo padre lembrou ao delegado Inocêncio a postura “rebelde” de Cristo em face das arbitrariedades impetradas pela sociedade da época, dominada pelo império romano, e desafia o delegado torturador de Joãozinho Paz: “- Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-º Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar, torture-o em nome da Civilização Cristão Ocidental!” (p. 321).
f) Diante do perigo “comunista” ameaçada na sua ordem secular, a caça às bruxas é uma conseqüência lógica, engendrada e executada pela sociedade conservadora e capitalista. A punição através da tortura e mesmo a morte, no sentido de reprimir esse clamor que exige justiça e liberdade, é antigo milenar. Basta lembrar Cristo crucificado ou, em nosso caso, o Tiradentes do Romanceiro de Cecília de Meireles.
Joãozinho Paz, sem dúvida, é aqui o bode expiatório, executado pela sanha do delegado Inocêncio Pigarço, em nome da ordem e da segurança da classe dominante. Conforme vem registrado no diário do Pe. Pedro-Paulo, “Joãozinho foi torturado barbaramente. Seu rosto está quase irreconhecível. Um braço e uma perna partidos” (p. 295). Por outro lado, detalhes da tortura vêm denunciados pelo morto Dr. Cícero, voz insuspeita do além-túmulo, no julgamento da praça nobre de Antares: “Vêm então a fase requintada. Enfiam-lhe um fio de cobre na uretra e outro no ânus e aplicam-lhe choques elétricos. O prisioneiro desmaia de dor. Metem-lhe a cabeça num balde d’água gelada e, uma hora depois, quando ele está de novo em condições de entender o que lhe dizem e de falar, os choques elétricos são repetidos...” (p. 369).
Como observou o Barcelona, do além-túmulo, “o delegado Inocêncio tinha aproveitado bem a sua ‘bolsa de estudos’ com a polícia do Estado Novo” (p. 254).
2) Numa divisão meramente didática, destacava-se também no romance a análise da sociedade antarense, que tem obviamente conotação simbólica, objetivo esse empreendido e executado com maestria pelo escritor:
a) A sociedade enfocada no livro, como se tem mostrado, caracteriza-se pelo conservadorismo, apegada às aparências e fachadas, coisa de suas tradições e costumes seculares. Através da pesquisa organizada pelo Prof. Martim e sua equipe, Érico Veríssimo faz uma verdadeira anatomia da sociedade local, que é também, no fundo, o retrato de tantas outras.
Conforme registra Prof. Martim no seu diário, o juiz Quintiliano é bem um símbolo dessa “sociedade simétrica, policiada, regida por leis inflexíveis e imutáveis, cada coisa no seu lugar (e quem determina o ‘lugar exato’ é a tradição, e tradição para ele é algo que tem a ver com seus ancestrais – pai, avô, bisavô, trisavô, etc.). Está sempre, notei, do lado do oficial, do consagrado, do legal” (p. 417)
b) Organizada pelo macho, impera na sociedade antarense o sistema patriarcal e machista, em que o poder é exercido pelo homem, de forma despótica e absoluta. Sua vontade é a lei, o seu querer tem que ser respeitado, a sua voz tem que ser ouvida. O Cel. Tibério é certamente o grande senhor patriarcal do livro. Sempre armado, o coronel tinha o hábito de resolver tudo a bala. Até mesmo no caso dos mortos, a sua sugestão, bem como a do delegado, era de fazer os mortos retornarem ao cemitério, à força.
c) Posta nesse contexto, a mulher vive à sombra do macho, em tudo submissa, passiva e subserviente, aceitando a ordem estabelecida. Poucas reagem contra essa ordem em que fazem o papel de “matrona romana”. Como já observamos, o exemplo de Valentina, com seu gesto de rebeldia, é uma tentativa ainda tímida de ruptura na ordem machista. Outro exemplo é a haitiana Dominique, mulher de M. Duplessis, a qual costumava “aprontar” nos rituais vudu.
Entretanto, integrada no “baile de máscaras” da sociedade, como diz Dr. Quintiliano a Valentina, é importante, para a mulher parecer honesta: - “Valentina, não basta a uma mulher ser honesta. É preciso também parecer” (p. 429)
d) Organizada assim – valorizando as aparências e fachadas – está claro que pobres e humildes serão objeto de discriminação e desprezo. Aqui entram as prostitutas, bêbados, a favela Babilônia, os loucos e desafortunados da sorte; aqui entram até mesmo os “subversivos”, como Pe. Pedro-Paulo, sempre mal visto e rejeitado pela sociedade; e também entram aqui os infelizes e solitários – os que sofrem de amor, como o Mendes, e os que sofreram trauma da frustração da derrota, como o maestro Menandro. Isso é o inferno – o inferno estava em Antares sob a forma do preconceito, e do desprezo, conforme dizia a D. Quita, no além-túmulo:
“- D. Quitéria, eu tive em Antares uma amostra do inferno. A incompreensão, o sarcasmo, a impiedade dos antarenses me doíam fundo. O inferno não pode ser pior que Antares” (p. 246).
e) Convivendo com essa podridão, conivente muitas vezes com falcatruas e arbitrariedades, parada no tempo, a igreja de Pe. Gerôncio ia rezando suas missas em latim, encomendando os seus defuntos à espera do Juízo Final, acomodada e fiel as tradições milenares, insensível aos problemas sociais e às vozes que clamam por justiça.
Esta é a imagem da religião tradicional, moldada à imagem e semelhança da sociedade aristocrática de Antares. A ela se contrapõe a igreja de Cristo, voltada para os pobres e miseráveis da vida; no lugar das rezas convencionais e da liturgia teatral dos milênios, surge o clamor de vozes que buscam a justiça e a libertação das garras do inferno, - inferno que é a vida degradante de milhões de miseráveis que jazem à margem de Antares.
Identificada com os pobres, chamando por justiça social, combatendo a truculência e as arbitrariedades humanas, esta é a igreja de Cristo, como diz o Pe. Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio:
“- Padre, enquanto Deus não nos disser claramente o que Ele pensa de tudo isso, nós devíamos em nome de Cristo, que era e é deste mundo, combater tipos como Inocêncio Pigarço, que matam em nome da Justiça, do Capitalismo, do Comunismo, do Fascismo, da Família, da Pátria e (não ria!) até mesmo de Deus”.
f) Em suma, nesse grande painel que é Incidente de Antares, Érico Veríssimo se revela imparcial, acima de ideologias e faz uma crítica contundente e mordaz à sociedade. Através do truque utilizado, em que os mortos insepultos exigem o sepultamento, ele expõe os podres daquela sociedade em decomposição, hipócrita e carcomida nas suas entranhas. Os mortos insepultos e o mau cheiro exalado, sem dúvida, constituem um símbolo e revelam bem a decomposição moral da sociedade.
Nada escapa à crítica do escritor. Ao erguer a tampa do caixão, ele destila o fel da sua mordacidade e desmascara a nata da sociedade antarense: nada escapa – nem a direita nem a esquerda; nem mesmo a medicina com sua falsa filantropia; nem muito menos a imprensa que com sua bisbilhotice; nem muito menos Rotary e o Lions com seu espírito fraternal; não escapam muito menos os doutores e professores com sua fala erudita e gongórica; também as senhoras honradas e impolutas são devassadas nos seus segredos de alcovas, flagradas em delitos de cama; nem mesmo o venerado ancião da estátua, exemplo-mor para descendentes e ascendentes, escapa à devassa realizada pelo escritor.
Entretanto, com o sepultamento dos mortos, a verdade também foi encerrada e a mentira, vitoriosa e triunfante, retoma o seu lugar no baile dos mascarados e na estátua da praça nobre da cidade.

CONCLUSÃO
É impossível ler um livro como Incidente em Antares e não se sentir assustado, não com os mortos que descem para a cidade, mas com a mentira que jaz subjacente em cada um de nós. É impossível ler um livro como este e não mexer, no sentido de combater e extirpar, da face da terra, a truculência e a mentira. É impossível sair da leitura deste livro insensível à causa do Pe. Pedro-Paulo e de Joãozinho Paz, em busca da justiça e do amor. É impossível ler este livro e sair dele sem se emocionar com o drama comovente de Joãozinho Paz e seu amor à vida, como diz ao Pe. Pedro-Paulo.
“Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito na vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo” (p. 294)
Redimido pela leitura de Incidente em Antares, o filho de Joãozinho Paz crescerá nas nossas entranhas. Viverá e frutificará. Salvará o mundo da truculência e da mentira.
Que fique também, em cada um de nós, a lição do Pe. Pedro-Paulo com seu amor à vida e a sua luta em favor do Império do Amor:
“- Padre, espero não estar pecando quando sinta a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é o Amor” (p. 338).
Sem dúvida, é possível fazer tudo isso. Existe em cada um de nós um “menino do dedo verde” – capaz de amar e transformar o mundo. O ser humano não é o que parece, como dizia um tropeiro ao Pe. Pedro-Paulo (p. 439): “Olhe, moço, ninguém é o que parece. Nem Deus”.
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