segunda-feira, 7 de julho de 2008

Jorge Amado (Jubiabá)

O negro Antonio Balduíno lutava contra Ergin, o alemão, 'campeão da Europa central', sob os olhos do povo, sentado nos bancos do Largo da Sé. Pretos, brancos e mulatos torciam por Balduíno que, ao final, sagrou-se vencedor.

Antonio se destacava como o chefe das quadrilhas de moleques do Morro do Capa Negro. Seus companheiros eram O Gordo, Joaquim, Viriato, o anão, Zé Casquinha, Rozendo e Felipe, o belo. Por volta dos oito anos, seu prazer era olhar a cidade de cima do morro e ver, lá embaixo, as luzes acendendo; sonhava conhecer a cidade de perto. Às vezes, nessa contemplação, perdia o jantar e a surra, dada por sua tia Luísa, o aguardava. A tia foi pai e mãe para o menino, que só conhecia o nome paterno; Valentim, jagunço ligado ao grupo de Antonio Conselheiro, fato que deixava o garoto orgulhoso.

Nas brincadeiras, escolhia sempre o papel do pai. Uma de suas tarefas era ajudar a tia fazer mungunzá e mingau de puba para ser vendido à noite no Terreiro. Luísa sofria, de vez em quando, de severos ataques de dor de cabeça que a tiravam de ação. Jubiabá, o pai-de-santo, era chamado para atender a velha. Antonio Balduíno o temia. Muitas histórias corriam sobre o feiticeiro. Alguns meninos diziam que ele virava lobisomem, outros que prendia o diabo numa garrafa. Além disso, durante as reuniões, na casa do pai-de-santo, saía uma música estranha, uma batucada misteriosa que tirava o sono do menino. Por tudo isso, Balduíno temia Jubiabá.

Em certas noites e dias santificados, muitas pessoas se reuniam na porta de Luísa para contar casos passados e Jubiabá lá também estava, contando histórias que Antonio amava, evitando sair com os amigos para poder ouvi-las. Outro que se juntava ao grupo, era o malandro Zé Camarão, tocador de violão e contador de histórias sobre cangaceiros. O menino o admirava e era seu melhor aluno de capoeira. Desejava, ainda, aprender a tocar violão com o mestre. Essa era a forma de educação que recebia, acreditando que, quando crescesse, certamente teria suas aventuras narradas num ABC.

A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas, Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no morro.

Após três anos, Luísa passou a ter, com mais freqüência, fortes dores de cabeça. Nesses ataques tratava muito mal Balduíno e assim que melhorava, arrependida, punha o sobrinho no colo e o agradava. Era difícil para a criança compreender os humores da tia, tendo sempre a sensação de que iria perdê-la.

As dores passaram a ser mais freqüentes e Luísa enlouqueceu de vez, sendo levada para o hospício. Antonio Balduíno foi morar com o comendador Pereira, numa casa na Travessa Zumbi dos Palmares e, pelo caminho, só desejava fugir. Ficou amigo da filha do casal, Lindinalva. A cozinheira Amélia, enciumada porque o tratavam bem, lhe dava surras violentas. Na escola, o moleque chefiava todas as malvadezas, até ser expulso como aluno incorrigível. Jubiabá levou-o até o hospício para visitar a tia. Mas, na segunda visita, foi para acompanhar o enterro de Luísa.

A vida na casa do comendador tornou-se insuportável, porque o ódio da cozinheira aumentava dia a dia. Balduíno tinha agora quinze anos e Amélia inventou que o rapaz ficava olhando as pernas de Lindinalva, além de espiá-la na hora do banho. O comendador, furioso com essa história, lhe deu tremenda surra que Antonio fugiu de casa. Maltrapilho passou a freqüentar as ruas do centro de Salvador e a mendigar.

Tornou-se o líder dos desocupados, especialista em pedir esmolas da maneira mais comovente. O dinheiro apurado era dividido entre os membros do grupo. Mais tarde, dedicaram-se a assaltar as pessoas durante os festejos de carnaval, a festa do Bomfim e as do Rio Vermelho. Assustavam a todos com suas navalhas, punhais e canivetes.

Passaram-se dois anos e os garotos, já homens fortes, não conseguiram mais convencer as pessoas a lhes dar esmolas. Acabaram presos como malandros e desordeiros, apanhando dos soldados até sangrarem, sem nenhum direito de defesa. Foram fichados e ficaram por oito dias na cadeia. Ao saírem livres, voltaram a vagabundear pela cidade, contudo, aos poucos os membros foram se distribuindo em trabalhos diversos. Antonio Balduíno voltou ao morro para malandrear com Zé Camarão, jogar capoeira, tocar violão e ir às macumbas de Jubiabá.

Balduíno tornou-se um bamba na capoeira, exímio tocador de violão e bom compositor de sambas, vendidos para serem gravados, com sucesso, por Anísio Pereira, que afirmava ser o compositor de todos eles. Antonio namorava Joana e com o dinheiro recebido por dois sambas vendidos, comprou sapatos para si e um corte de chita para Joana. Toda vez que a amava, no areal, sonhava com o corpo de Lindinalva.

O casal freqüentava o bar 'Lanterna dos Afogados', mas Joana não gostava do local por ser mal freqüentado. Copeira na casa de D. Vitória, a moça morava num quartinho nas Quintas. Tinha ciúmes de Balduíno, pois sabia que o negrinho amava outras mulatas. Aos dezoito anos, Balduíno tinha grande prestígio entre as empregadas, lavadeiras e negrinhas que vendiam acarajé e abará. O negro levava uma vida boêmia, enquanto Jubiabá trabalhava em seu terreiro, fazendo macumbas, recebendo amigos e pessoas que vinham de fora pedir despachos. Toda sorte de gente procurava o pai-de-santo, de ricos de automóvel a doutores de anel.

Uma noite no 'Lanterna dos Afogados', Balduíno foi procurado por um gringo, Luigi, que o tinha visto brigar com o soldado Osório por causa da mulata Maria dos Reis que acabou se tornando amante de Balduíno. O homem o convidou para lutar boxe, oferecendo-se para ser seu treinador. Acabou contratado por Luigi e, o companheiro de infância e boemia, o Gordo, se tornou seu ajudante. Seguiram-se várias lutas em que ora perdeu, ora saiu vencedor.

Mas a tristeza maior veio quando Maria dos Reis parte com a madrinha para morar no Maranhão. Chora de saudades, porque era a única mulher que não lhe recordava Lindinalva. Acabou campeão da Bahia, tornando-se o Baldo, campeão baiano de todos os pesos. Um empresário do Rio o procurou e pagou cem mil-réis para Baldo perder a luta.

O negro aceitou a oferta, exigindo pagamento em adiantado. No dia acertado, venceu mais uma vez, deixando o empresário aturdido. A carreira de boxeador de Balduíno terminou no dia em que leu no jornal sobre o noivado de Lindinalva com o advogado Gustavo Barreiras.

Balduíno e o Gordo embarcaram no saveiro de Mestre Manuel e ficaram trabalhando na cidade velha de Cachoeira, onde se fabricava charutos. Vagabundeavam por lá, vendo as tristes mulheres voltando das fábricas. Notaram que, enquanto os homens da terra aguardavam as mulheres do trabalho, pescando ou arranjando uns vinténs com as canoas, os alemães, donos desses estabelecimentos, comiam do bom e do melhor e sonhavam com a futura guerra que venceriam.

Balduíno acabou matando o capataz Zequinha, durante uma briga, abandonando seu punhal nas costas do morto, denunciando a autoria do crime. Escondeu-se no mato, acusando Zequinha da briga, porque este o vivia perseguindo por causa de uma menina de 12 anos, Arminda. Os homens da fazenda entraram no mato a sua procura. O assassino os ouviu dizer que a capoeira estava toda cercada e que o fugitivo não teria escolha; ou morreria de fome, ou teria que se entregar para ser preso.

Com os pés sangrando e o rosto rasgado por espinho venenoso, Balduíno resolveu enfrentar a situação, pronto para matar ou morrer. Pensava na sua história que seria contada a todos: Antonio Balduíno foi mendigo, boxeur, fazedor de sambas, desordeiro e matou um homem por causa de uma menina, acabando morto diante de vinte homens, lutando valentemente.

Apesar de tudo, conseguiu fugir ao cerco, buscando proteção num casebre imundo de um velho que lhe limpou os ferimentos e lhe deu o que comer. Ficou sabendo que Zequinha não morreu, foi apenas ferido e o patrão queria dar em Balduíno uma boa surra. Após a estada de três dias no casebre, conseguiu fugir clandestinamente num trem com destino à Feira de Santana. No vagão, ponderava com outros elementos ali escondidos, a tristeza que era ser pobre.

Em Feira de Santana, tentava conseguir uma carona para Salvador, quando deu de repente com Luigi que o levou para ser lutador no circo arruinado de sua propriedade e de Giuseppe. Este, embriagado, caiu do trapézio e morreu. Luigi vendeu o circo e dividiu o dinheiro com os empregados. Balduíno partiu com a dançarina do circo, Rosenda Rosedá.

O casal recebeu o urso como pagamento e procurou fazer dinheiro com o animal. Partiram no saveiro 'Viajante sem Porto' do mestre Manuel para Salvador, juntando-se lá com os companheiros Joaquim e Gordo.Levaram o urso para a feira. Conseguiram fazer dinheiro com o animal, porque o Gordo bom contador de histórias foi encantando o público com suas narrativas cheias de anjos e peripécias. Balduíno avisava a todos que o urso tinha vindo diretamente das selvas africanas e já tinha matado três domadores, enquanto Rosenda ia lendo as mãos dos homens.

Ao chegar à feira, Jubiabá juntou-se ao grupo que comia e bebia o dinheiro arrecadado até que um mulato decidiu colocar um charuto aceso, no nariz do urso. Balduíno deu pancada para todos os lados. Finalmente, todos se aquietaram, felizes pelo divertimento.

O tempo passa, Balduíno, cansado de Rosedá a abandonou. Encontrou por acaso com Amélia, a cozinheira que lhe desgraçou a estada na casa do comendador. Ela lhe diz que Lindinalva, o amor da vida de Balduíno, não estava casada, caiu na vida, depois de ter sido seduzida pelo noivo. A mãe de Lindinalva faleceu e o pai gastou toda fortuna com mulheres. Lindinalva, com um filho para educar, era prostituta da pensão Monte Carlo. O filho ficava aos cuidados de Amélia, enquanto a mãe trabalhava, mudando-se cada vez para quartos mais pobres.

Uma noite, ao sair com amigos para o 'Lanterna dos Afogados', Balduíno encontrou Lindinalva. Meses, mais tarde, a moça, doente à beira da morte, lhe pediu perdão e que ajudasse Amélia a criar seu filho, Gustavo. Balduíno ficou triste com a morte da amada. Quis que seu caixão fosse branco, porque a considerava uma virgem. Dizia que ninguém a possuiu, pois era prostituta e não gostava dessa vida. Ele sim a possuiu no corpo de suas amantes, de todas que dormiram com ele.

Decidido a ajudar na educação de Gustavo, Balduíno empregou-se na estiva, no lugar de Clarimundo, morto por um dos guindastes. Estourou a greve dos condutores de bonde e toda cidade foi trabalhar a pé. As padarias acabaram aderindo ao movimento e os entregadores de pão jogaram os cestos na rua. Balduíno brincava com o filho de Lindinalva, quando os amigos vieram procurá-lo, buscando apoio para o movimento. Chegando ao sindicato, o voto do negro decidiu a vitória dos grevistas.Descobriram depois, que tinham votado contra pessoas que nem eram da estiva e muito menos do sindicato.

Balduíno estava feliz com a paralisação e radiante por fazer parte da comissão de greve. Tudo estava parado. O negro se sentia o dono da cidade. Sempre desprezou os trabalhadores, preferia se suicidar a juntar-se a eles e, no entanto, agora os admirava, sabia que podiam deixar de ser escravos. Tinham a vida da cidade nas mãos. Essa descoberta o fazia renascer.

Durante a assembléia, narrou a vida dos camponeses nas plantações de fumo, descreveu o trabalho das mulheres nas fábricas de charuto, falou dos homens sem mulheres. Saiu carregado em triunfo sob os aplausos dos amigos. Um dos investigadores, que a tudo observava, o fitou para não esquecer aquele rosto.

No palácio do governo, o advogado, Gustavo Bandeira, pai do filho de Lindinalva, negociava pelos grevistas, avisando-lhes que a reunião seria prolongada, mas a solução seria honrosa. Lutava para que as reivindicações dos operários fossem atendidas, mas os patrões insistiam em atender apenas 50% delas.

A caminho do restaurante, o advogado da Companhia, Dr Guedes, e o diretor americano, Tomas, convidaram Gustavo para ser o segundo advogado da firma. Diziam que não o estavam comprando, desejavam ter um representante dos trabalhadores na companhia. Defenderia, portanto, os interesses dos operários ao compor o quadro da diretoria.

Gustavo pensou na esposa, Zuleika, e no carro que esta tanto desejava, na possibilidade de chegar ao parlamento. O americano Tomas lhe ofereceu oito contos por mês pelo trabalho. O advogado disse que o dinheiro não era o mais importante e, sim, sua condição de ser o representante dos operários.

Fontes:
http://www.algosobre.com.br/
http://www.geocities.com/ (capa do livro)

Marco Tulio Aguilera Garramuño (Criação do Conto)

Um conto, em última análise, se move nesse plano do homem em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se nos permitem o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva, ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência.
Julio Cortázar

Vamos partir de uma tese que se afigura absurda para tentar compreender o que é o conto, essa jóia da imaginação cuja elaboração é tão complexa e cuja leitura é tão satisfatória. A tese é a seguinte: cada conto ê uma criatura nova que se instala no universo com o esplendor com que se instalaria um novo inseto, uma nova besta criada pelo acaso genético ou pela mão misteriosa de um deus que brinca de inventar espécies.

O contista será, então, segundo nossa tese, e repetindo o que tantas vezes se disse sobre os que criam ou fazem arte, um deusinho ocupado no labor de tornar mais complexo o universo, povoá-lo de novas entidades que tornem mais divertido e rico o trajeto dos homens pela vida. Mas como compreender esse fenômeno da criação do conto? De que maneira uma comparação absurda, como a proposta, pode ajudar-nos na criação das novas entidades de seres fictícios? Não será precisamente pelo conhecimento das características dos insetos, nem de seus costumes de acasalamento que poderemos criar uma libélula, um pernilongo anófele, uma pulga. Saber que o náutilo tem um pênis vagabundo que se separa de seu corpo e vai em busca da fêmea, ou que o macho dos percevejos parasitas fratura a carcaça da fêmea para fecundá-la, nos remete à variedade fantástica da criação, mas não a explica.

A descrição dos costumes dos insetos expõe a fantasia da natureza, e a descrição dos contos, pelo menos de certos contos exemplares, pode nos ensinar algo a respeito das secretas alquimias que determinam a existência de uns e de outros.

Mas nenhuma definição, nenhuma descrição pode explicar a origem e o funcionamento de um ser ou de uma obra. Se existe algo de que deva fugir uma pessoa que tente fazer Arte, será precisamente das definições. Dir-se-ia que há uma grande diferença entre criar um inseto e escrever um conto. Ninguém, que eu saiba, conseguiu criar um inseto; ao contrário, são muitos os bons contistas: Poe, o mestre; Maupassant, Lovecraft, Bradbury, Ambrose Bierce, Katherine Mansfield, James Thurber, Julio Ramón Ribeyro, Julio Cortázar, Nélida Piñon, Rubem Fonseca, Lord Dunsay, Tchékhov e talvez uns outros vinte são nomes perfeitamente confiáveis de escritores que tiveram a rara luz, a chispa sem a qual é impossível se chegar à depuração dessas estranhas criaturas chamadas contos.

Somente a sutil arte da analogia nos permite acercarmo-nos do fenômeno — e é preciso recordar a origem milagrosa da palavra fenômeno: do grego faino, o que aparece, o que se manifesta — da manifestação do conto. A analogia pode nos dar idéia daquilo que escapa a todas as idéias. Um conto, como um inseto, não é somente a definição do inseto, com o número de patas, a alimentação, o tamanho e os costumes, senão a síntese de todo um universo que gira em torno dele, que o precede no tempo e que o sucederá sem dúvida alguma. Assim, o conto não se define por sua extensão (pode ser lido de uma assentada, como se diz), por sua história (pode ser qualquer uma, desde a queda da folha de uma árvore até uma luta de morte), por sua intenção (de buscar um só efeito, sem entrar por desvios e sem pousar por muito tempo no indispensável), mas por sua própria existência. A definição do conto é o conto mesmo, e nenhuma teoria vai nos ensinar como escrevê-la. Para retomar à analogia que serve de fio condutor, diremos que cada conto, como obra de arte que é, inaugura uma nova espécie, ainda que conserve certas similitudes com textos preexistentes.

Passemos agora das generalizações, que pretendem sintetizar realidades complexas e tudo o que fazem é colocá-las em camisas de força, para casos particulares, nos quais encontraremos contos como organismos vivos em funcionamento. Falemos, para entrar num tema agradável e muito conhecido dos leitores, dos contos de Edgar Allan Poe. Indaguemos sobre a inclinação do neurótico gênio de Boston por certos tipos de mulheres e a tentativa de fixá-las em seus contos. Em Ligéia, Berenice, Morella, Lady Rowena, o leitor quase poderá sentir o cheiro de parentesco, um ar de família, que o fará exclamar: estas só podem ser filhas da pena de Poe! Em geral, suas.mulheres são eruditas, belas, cheias de mistério, hipersensíveis, vinculadas a certos segredos inomináveis. Mulheres que parecem ser uma reprodução da alma de Poe, de suas inquietações espirituais. 'Mais que fêmeas, fantasmas românticos que devem muito ao espírito caprichoso e irracional de, Lord Byron com seu desprezo pelo mundo das convenções, pelo racionalismo, pelas simetrias que consideram ser este o melhor dos mundos possíveis.

Cada contista, queira ou não, imprime sua marca em seus contos. Sua arte é o resultado de uma percepção particular e originalíssima do Mundo.

Definição

Cortázar, por exemplo, parecia estar escrevendo sempre o mesmo conto. Seus personagens masculinos e femininos se repetiam uma e outra vez e enfrentavam situações aparentemente distintas, mas que vinham a ser, no fundo, a mesma: um mundo ordenado e cotidiano que subitamente se quebra e permite a entrada do fantástico. Cortázar defendia quase pedagogicamente, em suas ficções e entrevistas, a normalidade da anormalidade, a magia e o convencional do insólito.

Cada contista instala sua própria lógica e cria seus leitores, seus iniciados, seu próprio culto.

Mas o que une Cortazar a Poe, Borges a Rulfo, Leonid Andreiev a Bradbury? Digamos, por enquanto, que não sabemos, deixemos a pergunta em aberto e nos conformemos em afirmar que a única definição de conto é o próprio conto. O conto não existe, existem os contos; o contista, como espécie humana determinável, na qual podem submergir certa quantidade de pessoas dedicadas ao trabalho, tampouco existe: o que existem são os contistas, todos diferentes, como diferentes são as gotas d' água num aguaceiro torrencial ou as espigas num enorme campo de trigo florescente.

O melhor caminho para se encontrar a diferença específica entre os contistas e os contos é debruçarmo-nos sobre os casos exemplares, escolher alguns e estudá-los como o entomólogo que, numa selva, não se .contenta em caçar um grilo verde, mas todos os grilos verdes, para poder tirar suas conclusões. Selecionemos alguns contos de qualidade indiscutível: Ligéia, de Edgar Allan Poe; Tlon, Uqbar, Orbius Tertius, de Borges; Um Acontecimento Sobre o Rio Owl, de Ambrose Bierce; O Que Só a Gente Escuta, de José Revueltas; Remédio para Melancólicos, de Ray Bradbury; Bola de Sebo, de Guy de Maupassant. Creio que seria difícil fazer uma lista de textos mais dessemelhantes; algo assim como, no campo dos insetos, uma libélula, um escaravelho, uma aranha, um escorpião e um funcionário público.

Leiamos as primeiras linhas de Ligéia:

Realmente não posso me recordar exatamente como, quando nem onde conheci a senhorita Ligéia. Transcorreram muitos anos desde então e minha memória se debilitou de tanto sofrer. Ou talvez não possa agora recordar; pois, na realidade, o caráter da minha amada, sua rara sabedoria, sua beleza singular e tranqüila e a eloqüência subjugadora e dominante de sua voz grave me cativaram o coração paulatinamente, e de ta, forma, que quase não notei

O tom é discursivo, lento, preciso, com uma serena monotonia que, inclusive musicalmente, vai emitindo uns acordes solenes, abrindo os primeiros compassos de um enigma que irá prender as atenção do leitor até o final. Quem é Ligéia, o que oculta, que secreta força a impele a desvelar os mistérios do conhecimento humano e divino, até onde levará sua curiosidade? Ao final do conto, nem o leitor nem o narrador terão solucionado de todo os mistérios suscitados, e é precisamente esse um dos encantos não apenas deste conto, mas de todos os de Poe, em geral, e de todo bom conto: deixa um eco na mente do leitor, como uma campainha que continua ressoando, como o miado do gato emparedado ao lado do cadáver, como a pulsação do coração delator.

Os bons contos tocam as fibras mais sensíveis dos seres humanos e as fazem vibrar secretamente, com o vento que arranca melodias aos bosques ou às harpas eólias.

Muitos contistas fracassam porque tentam demonstrar teses, ilustrar uma situação, corrigir uma injustiça, ensinar seus pobres e ingênuos leitores. O bom leitor de contos não é um sub-dotado e não busca, na leitura, lições de moral. É, ao contrário, pessoa sensível que, na leitura, procura se divertir sem se embrutecer.

Paradoxalmente, todo bom conto proporciona elementos que enriquecem a vida dos leitores; de certa forma, ensina a viver, mas não porque o escritor tenha querido ensinar, a priori, mas por que, para chegar a concluir seu texto, teve que explorar a realidade a fundo e se comprometer moralmente com o que acontece no texto. Cada conto, queira ou não, defende uma concepção do mundo, uma posição diante da vida. Por isso, não basta contar uma boa história para se ter um conto; pois há que se explorar as secretas raízes dos acontecimentos e desvelá-las discretamente.

O bom contista não ensina porque queira ensinar, mas porque lhe é impossível não ensinar. É parte de seu ofício de estudante da realidade.

Poe, o mais inquietante dos contistas que exploraram a irrealidade, tentou definir de forma perfeitamente racional sua forma de escrever. Em sua Filosofia da Composição, possivelmente filha da leitura atenta do Discurso do Método, de Descartes, propôs que a origem da composição deveria ser a análise do efeito que se pretende criar no leitor. Uma vez achado o efeito — que pode ser o terror, a repulsa, a dúvida a respeito da origem do homem, a existência de seres inquietantes e completamente diferentes dos humanos, ou qualquer outro —, o escritor deve procurar os meios mais propícios para criar tal sensação; deve inventar o enredo adequado, os personagens indispensáveis, a época histórica, o cenário.

A teoria de Poe foi um tour de force racionalista que ia de encontro à prática dos escritores de todos os tempos. Em geral, os contos não nascem de uma intenção, mas as intenções nascem ou são descobertas durante a escrita dos contos.

E, mesmo assim, a Filosofia da Composição ficou como um hiato histórico no longo caminho da ficção e da poesia, da mesma forma que o célebre texto de Cortazar, ititulado "Passeio pelo Conto". Um e outro ensaio são indispensáveis para quem se dedique a escrever.

O problema da teoria é que, na maior parte dos casos, deve ser modificada pela prática, e, portanto, seu estatuto de guia de viajantes extraviados apenas serve como serviria um mapa memorizado para um transeunte extraviado na névoa.

Mas voltemos a Ligéia e tentemos entrar nele com o farol da Filosofia àa Composição. Que efeito perseguia Poe ao criar Ligéia? Possivelmente algo como o terror metáfísico, essa sensação de espanto cuja origem não se pode precisar e que tem a ver com o que, no fundo, o homem é.

Poe parte de um texto isento e constrói em torno dele a figura de uma mulher que leva sua obstinação vital e sua curiosidade intelectual ao extremo de romper as fronteiras da morte. A epígrafe que encabeça o conto é de Joseph Glavill e diz:

E a vontade ficou ali, pois não havia morrido. Quem conhece os mistérios da vontade com seu vigor? Deus não é outra coisa que uma grande vontade que penetra todas as Coisas, por sua intensidade. O homem não cede ao anjos nem se rende totalmente à morte, salvo pela fraqueza de sua débil vontade.

O conto é, exatamente, a ilustração das idéias desse parágrafo: se o homem morre é por covardia, por debilidade, porque se sente derrotado por sua própria pequenez. Se chegasse a desenvolver a vontade em toda sua potência, poderia viver eternamente.

Aqui descobrimos o que alguém poderia qualificar como debilidade num contista supremo: a falta de originalidade de suas idéias. E quem quiser pesquisar na grande literatura, descobrirá que as obras-primas não fazem outra coisa que magnificar e dar vida às idéias de seu tempo, às inquietações de sua época: Joyce e Proust são devedores de Bergson e de Freud; Fuentes saqueia a História sem recato; Homero se apropria da mitologia; Ovídio sistematiza o caudal de fábulas da antiguidade helênica e romana; García Márquez apóia-se em Ovídio, na Bíblia, num desconhecido prêmio Nobel chamado Halldor Laxnes.

A idéia da vontade como força originária não é nem de Poe, nem de Glavill, nem de Schopenhauer, nem mesmo dos faraós egípcios que quiseram perpetuar-se em suas múmias. Na realidade, os artistas, no que se refere às idéias, são os seres menos originais do mundo. Não há nada que já não esteja proposto, pelo menos em germe, nos pré-socráticos, cinco séculos antes de Cristo.

Então o que há de novo no conto de Poe? Por que se transformou num clássico indiscutível? Acaso porque propõe uma das maiores angústias do homem: sua incerteza acerca da morte? Talvez porque tire o homem de suas casinhas e seus costumes e o ponha a meditar sobre sua condição? Possivelmente.

Voltemos a Ligéia, essa besta sublime que é um paradigma do homem. Vejamos como está escrito. Notemos que as frases se entrelaçam e exploram as diversas possibilidades e que não deixam precisamente certezas, mas dúvidas, apalpadelas, passos sigilosos em terrenos atoladiços. Se compararmos o estilo destse conto com os outros do mesmo autor, veremos que há uma característica comum nessa ramalhada de frases, nessa elaboração sistemática, quase científica, da dúvida, da digressão paralela, antitética ou retórica, na enumeração de grande quantidade de possibilidades.

Os contos aprisionam a alma dos contistas, os contos são como os contistas, os revelam e os desnudam. Não há escapatória. O estilo de vida dos contistas passa quase diretamente ao estilo literário. O retorcimento e a morbidez de Poe como pessoa está em seus contos; a agressiva atividade vital de Hemingway se reflete numa percepção direta da realidade, num prosa direta, jornalística; o caráter fabulador de Garcla Márquez em sua vida cotidiana passa quase sem tamis a seus relatos. Os melhores contistas são aqueles que selecionam da realidade, para seus personagens; aqueles que se parecem com eles: pensar em O Perseguidor e Cortázar, em Blacamán e García Márquez, em O Homem.1lustrado e Bradbury.

O conto resume um universo, comprime-o numa massa apertada, densa, contida, que, como a força do átomo, deve explodir diante dos olhos do leitor e revelar amplos espaços. A isso Cortázar chama abertura: "um fermento que projeta a inteligência e a sensibilidade na direção de algo que está muito além do enredo visual ou literário". É como quem olha através de um orifício de um centímetro de raio e contempla uma paisagem cujas dimensões se perdem no horizonte. '

Erudição

Outro dos métodos utilizados por Poe para suscitar interesse em seus contos é a erudição. Dados insólitos ou separados da experiência comum ou inadvertidos. O bom leitor não lê para que lhe descrevam sua própria vida ou para que lhe contem o que já sabe, mas para que o surpreendam ou revelem dados que talvez estejam ao seu alcance, mas que ele perde por pressa ou preguiça. Para que sua vida se torne mais complexa, mais cheia de opções, mais enigmática e, por isso, se não mais feliz, pelo menos mais interessante.

Schopenhauer afirma que sofrem mais as almas mais desenvolvidas, mas se esquece que o sofrimento é condição indispensável da felicidade e que as mudanças de estado são o que permite a liberdade não apenas da vida rasteira, mas também da imaginação.

Outro caso de contista erudito é Borges. Aproximemo-nos de seu conto Tlon, Uqbar, Orbius Tertius, caso típico de um texto construído a partir de idéias, em geral extraídas sem pudor da filosofia e postas a viver por meio da imaginação. Borges, personagem, partindo de um fato cotidiano, chega ao descobrimento ou à invenção de todo um universo, com suas ciências, suas línguas, filosofias e costumes.

A diferença entre a erudição de Borges e a de Poe se estriba na extrema frieza do argentino, que vai cedendo os dados de suas histórias como quem dita um relatório forense. Não há retórica, não há explicações, não há sentimentos intercalados. O leitor deve entender seus contos, mais que senti-los.

Ser leitor de Borges não é tarefa fácil. Compreender seus textos plenamente exige a sagacidade do detetive, a sabedoria de um enciclopedista e um senso de humor digno de um Chesterton. Um adjetivo incômodo posto no meio de uma frase pode alterar por completo o sentido do conjunto.

Nos contos de Borges encontramos uma das características ideais do bom conto: seu caráter inesgotável, de fonte que sempre está manando. Cada um de seus contos pode ser lido várias vezes e as novas leituras não só reiteram o prazer da leitura, como também revelam elementos antes insuspeitados. .Isso não quer dizer, naturalmente, que outro tipo de contos, nos quais predomine .a narração de acontecimentos íntimos, como Um Acontecimento Sobre o Rio Owl ,de Ambrose Bierce, ou O Que Só Gente Escuta, de José Revueltas; tenham valor menor, da mesma forma que na ordem da natureza tanto um mastodonte como um infusório cumprem uma função importante na história da evolução das espécies. O que ocorre é que nesse tipo de conto existe como que uma outra dimensão literária, na qual importa mais a sensibilidade dos personagens, as percepões extraordinárias que alcançam, em vez de elaboradas construções conceituais.

Comparemos, por exemplo, a fantasia de Borges em Tlon, Uqbar, ,Orbius Tertius, com a intensificação da sensibilidade do personagem de Um Acontecimento Sobre o Rio Owl Borges, a partir de um fato cotidiano — uma reunião com Bioy Casares, na qual menciona a existência de um dado estranho em uma enciclopédia — vai se elevando, através de uma série de investigações, à conclusão de que existe um mundo fantástico, paralelo ao que conhecemos. Bierce não entra ou descobre um mundo, mas penetra num personagem, e, graças a ele, acha que o tempo da subjetividade não depende de acontecimentos objetivos — como postulou Kant —, mas obedece à qualidade das experiências que se tem. .Peyton Farkuar, o protagonista, está a ponto de ser enforcado sobre o Rio Owl. Entre o instante da ordem de execução e a morte, Peyton vive uma vida inteira; — e cai no rio, escapa, foge para um bosque, olha no céu as estrelas dispostas de forma estranha, chega à sua casa e, no instante em que está prestes a abraçar' sua mulher, que o espera à porta, sente o golpe da corda no pescoço: Eis aqui outra espécie de conto, muito diferente da de Borges, na qual não está envolvida a humanidade, mas o homem. Mas, pela lei dos contrários, uma e outra espécie dão conta do mesmo: dessa capacidade que têm os fantasiosos de modificar as ordens aparentemente inapeláveis.

Também Borges tem um conto em que. se violentam as fronteiras do tempo e do espaço. Refiro-me a O Aleph, no qual um homem descobre, num sótão, um maravilhoso ponto em que se concentra o universo, seu passado, presente e futuro.

Os dois textos, ainda. que um se circunscreva à experiência íntima de um personagem e outro se ocupe de uma experiência objetiva que envolve o universo, partem de uma mesma idéia que Heráclito propôs e que Borges repetiu até a saciedade: tudo é uno; no uno se pode conter o universo, um instante pode ser todos os instantes, um espaço pode conter todos os espaços. A Física é uma ciência estéril nos domínios da imaginação. A imaginação, pelo contrário, é poesia fecunda que tem enriquecido, desde a antiguidade, a física e todas as ciências.

Borges, o mais humilde de todos os escritores, disse que a história da Literatura talvez não seja mais que a de umas poucas metáforas, e acrescentou que não inventava seus relatos, mas que alguém ou algo os ditava para ele, talvez o mesmo gênio que ditava a/ sabedoria a Sócrates .. Na contística predomina, como em nenhum outro campo, a democracia: qualquer tema bem tratado pode dar origem a um ,bom conto. Leia-se, por exemplo, A Árvore, de Maria Luisa Bombal, onde a queda de um gomeiro permite a criação de um texto dos mais belos e inspirados. Como dizia Cortázar: “não há temas bons nem ruins, há somente um bom ou um mau tratamento do tema".

A maior parte dos bons contos envolve uma ruptura, uma crise. A felicidade, por isso, é um mau assunto para um contista; Pela mesma razão é que tantos autores têm declarado ser preferível ir ao .inferno, onde há mais variedade, do que se aborrecer no céu, onde se cuida de entoar louvores ao Senhor e contemplar sua majestade. A descrição de um fragmento da vida ou da natureza, sem fragmentá-lo, iluminá-lo, exaltá-lo ou violentá-lo de alguma forma, dificilmente dará material para um bom conto.

É a lição que nos dá Kafka, na primeira. linha de A Metamorfose: para criar o pathos narrativo é necessário descobrir e revelar aquilo que de estranho e de insuportável tem o cotidiano. Estou seguro que mais de uma pessoa já despertou de manhã e descobriu que se transformara num monstruoso inseto.

Contar a vida tal e qual ela parece ser — não tal e qual ela é — carece de graça. Vivemos convencidos, por uma multidão de falácias, de que somos felizes e de que nossa vida é suportável. Romper essas falácias, para as quais contribui a televisão e a subliteratura, é uma das funções de boa Literatura. Um bom conto pode desnudar o leitor de suas mentiras e fazê-lo enfrentar sua vida mais autenticamente.

Recordo-me agora — no momento em que escrevo isto e de novo quando o leio — de um conto de Revueltas, esse retórico que se salvou para as letras pelas exigências de contenção que lhe foram impostas pelo gênero breve. É O que Só a Gente Escuta. Nele, um violinista em decadência, antes de morrer, interpreta uma peça de fantástico brilhantismo e dificuldade. Visto esse ato por outro escritor menos hábil e apaixonado, menos conhecedor das súbitas iluminações do bêbado, possivelmente a interpretação da peça não teria ido além dos desvarios de um ébrio à beira do delirium tremens. Na pena de Revueltas o ato adquire dimensões verdadeiramente universais e messiânicas: a interpretação é o ato derradeiro pelo qual o violinista se salva perante si mesmo, se justifica e se liberta da mesquinhez de sua própria vida. Revueltas, mediante certeira mudança de ponto de vista, rompe a distância que existe entre o violinista e o seu público, que, na realidade, é sua própria consciência, mas também é o leitor — e faz com que este último compartilhe da experiência de salvação prévia à morte.

Outras funções

E nos deparamos aqui com outra das funções do conto, em particular, e da arte, em geral: permitir que os leitores e todos aqueles que apreciam uma obra, penetrem em consciências alheias, se transformem em outros, vivam mais vidas e, graças a ela, gozem com maior profudidade das possibilidades que. lhes oferecem suas próprias existências.

Penso que o contista deva ser um homem aberto a todos as possibilidades, sem limites sociais, sem restrições nem condições, sem sentimento de ridículo, sem pudor mesmo, porque só os espíritos amplos e livres podem entender a variedade infinita que o gênero humano e a natureza oferecem.

A fábula negra de autores como Poe, Lovecraft e Dostoiévski não faz sempre parte de uma concepção romântica desordenada do Mundo, mas resultado de uma atividade vital que os seres convencionais que os rodeavam não souberam compreender. Saber que nada há de vituperável e sem explicação nos mais peregrinos atos do homem é parte da serena atitude da maior parte dos grandes escritores. Quem não esteja disposto a romper com o que existe de frágil e de insosso, quem se renda à autoridade dos imbecis, que são os que geralmente se ocupam da política, quem se deixa enterrar pelas minúcias cotidianas e sepulta nelas sua imaginação, não pode ser um bom contista.

Condição indispensável do contista é a liberdade, ainda que essa liberdade seja encontrada numa masmorra, como aconteceu com Cervantes. Somente sendo livre o homem será capaz de chegar à raiz de seus temas. A censura jamais deveria preocupá-lo, jamais o temor do que pensarão seus contemporâneos. Quem escreve pensando na censura ou na aprovação é igual a quem pretenda nadar calçado de botas, ou como querem, para usar a expressão do poeta espanhol Blas de Otero, "tiene alas de cadenas". A moralidade e os princípios, as premissas não devem existir previamente à escrita do conto, mas ser conseqüência deste e obedecer à lógica das ações e dos personagens, e não às debilidades do autor.

Se pretendêssemos aplicar conscientemente certos princípios, por exemplo, demonstrar que os trabalhadores são os bons, e os capitalistas os maus, que as mulheres são intuitivas e os homens racionais, faríamos certamente cópias pífias de nossas idéias, e mentiríamos não só por supor que a realidade obedece às nossas idéias, como também empobrecem setores da realidade sempre mais complexos do que qualquer generalização É o primeiro conceito que o contista deve ter presente: nada é o que parece ser; nem o bom é totalmente bom, nem o mau é totalmente mau. Um homem, qualquer homem, contém em si a possibilidade do infinito. A condição do homem é ambígua e é isso o que torna a arte possível. Se tal não sucedesse, a Ciência poderia dar conta por completo da complexidade dos seres humanos. A Arte seria um luxo que desapareceria.

Na Literatura, mais ainda que na Ciência, funciona a teoria da relatividade. Daí ser mais importante, na parte dos contos, o ato do que a reflexão sobre o ato; a apresentação dos personagens do que os conceitos que, sobre eles, emita o narrador.

Outra idéia tradicional e arquisabida é que nos contos — como na maior parte das obras literárias — deve haver uma transformação. Transformação de quê? Digamos, provisoriamente, que da medula. Em certos contos, a medula é o personagem, em outros a ação, em outros o ambiente.

Remédio para Melancólicos, de Ray Bradury, exemplifica à perfeição como se leva a cabo uma transformação do espírito de uma adolescente por meio da narração de uma série de acontecimentos. A garota sofre de melancolia e consegue superá-la pela descoberta do amor. A essa transformação, quase metamorfose — conceito básico na Literatura desde Ovídio, e mesmo antes, na fábula de Eva e a serpente —, assiste o leitor graças à sua inteligência, que interpreta os indícios que o autor lhe vai cedendo.

Bradbury tem a graça — e diz Fray Luis de León que a graça é a beleza da alma que muitos poucos contistas possuem; é o dom da poesia. Mas sua poesia não brota por meio da destilação na linguagem ou das figuras retóricas, mas através de uma linguagem simples que é fruto da amorosa contemplação das coisas e dos seres humanos.

Geralmente — por uma fatalidade propícia às forças do bem —, triunfam os valores morais; Nunca um bom texto estimula o vício ou a corrupção. Mostra, isso sim, as cicatrizes do Mundo, mas atua no leitor à maneira de reativante. É o que acontece nos sonhos em que se levam o cabo atos terríveis, mas que nos forçam a refletir sobre a vida e perseguem uma melhora de atitude frente ao Mundo.

Recordamos agora outra transformação célebre, neste caso não no personagem central, mas nos que o rodeiam. Refiro-me à mulherzinha humilde do conto Bola de Sebo, de Guy de Maupassant A mulher vai numa carruagem acompanhada por damas da sociedade, um cavalheiro embonecado e uma freira. A mulherzinha — possivelmente uma prostituta, a julgar por seu aparato e suas atitudes — é desprezada por aquelas boas pessoas. A carruagem sofre uma avaria e o grupo se vê obrigado a permanecer uma noite em campo aberto. Bola de Sebo, a mulherzinha, oferece sua comida às pessoas que a acompanham. Os passageiros, famintos, esquecem seus preconceitos e fazem amizade com a viajante de origem duvidosa. Comem opiparamente e passam uma noite de amizade e de folguedos. Ao amanhecer, a carruagem é consertada. Os viajantes chegam à cidade e se restabelece as distâncias sociais. A mulher volta a ser uma prostituta indigna e os passageiros retornam à sua dignidade de pessoas probas que não se rebaixam a se despedir de Bola de Sebo.

O que Maupassant fez foi mostrar-nos o conforto de dois tipos de moralidades. E o fez sem nos impingir discursos. Atos, atos, atos, e não conceitos. Guy de Maupassant, com esse conto, dá uma lição inesquecível da secreta alquimia que se requer para entender a vida e as mesquinharias.

Há tantos tipos de contos quanto de contistas. Generalizemos para poder falar de algo: os contos eruditos de Poe e de Borges; os que se centram num instante significativo da vida, como Remédio para Melancólicos, Um Acontecimento Sobre o Rio Owl, de Ambrose Bierce, e O que Só a Gente Escuta, de Revueltas; os que se baseiam numa metamorfose social ou individual, como Bola de Sebo; os que se expõem por meio de palavrório e discurso vazio; os que se baseiam apenas na descrição de atos, como alguns de Hemingway, e assim, sucessivamente, poderíamos enumerar espécies e espécies para tentar preencher um universo literário paralelo e tão rico como o que nossos sentidos percebem e nossa' imaginação constrói.

Ainda que se possa construir toda uma ciência em torno da arte de escrever e analisar contos, nada pode substituir o ato da leitura; nele, de uma maneira natural, manifesta-se a criação e vive um novo gênero de realidade. Uma realidade paralela à conhecida, mas concentrada, interpretada sutilmente por uma pessoa que se dedicou a estudar a realidade exterior, todos os campos do conhecimento, para oferecer, em poucas páginas, não apenas diversão, mas também paixão compartilhada. O artista é um vivedor, um. explorador da experiência, um vampiro de seus semelhantes que tudo põe em função do momento luminoso em que pode sentar-se a escrever, a descobrir as jóias que passam velozes por sua imaginação, sua memória ou seus sentidos. Mas não chegam a esses momentos inspirados ou de catarse ou de explosão vital ou de eclosão do inconsciente, mas graças à sua disciplina, ao suor diante da máquina, à repressão da energia, à acumulação dos conhecimentos, à longa maturação de uma idéia que subitamente floresce, à contemplação prolongada de certas palavras e certos símbolos nos quais está cifrado isso que não apenas os artistas procuram, mas todo os seres humanos: o sentido, o significado, a função do homem sobre a Terra. Cada homem, como cada inseto, por pequeno ou estranho, por absurdo ou simétrico que seja têm ou devem ter um objetivo sobre a Terra, e, quando não têm, procuram. A criação de um conto e a aparição de uma nova espécie voltam a atualizar este problema — que, depois do aborrecido assunto da subsistência, é o mais importante que qualquer um pode enfrentar.

***********
Nota:
Marco Tulio Aguilera Garramuño, colombiano, faz parte do corpo de redação da revista La Palabra y el Hombre, da Universidade Veracruzana. Publicou os seguintes livros: Alquimia popular, Cuentos para después de hacer el amor, Breve historia de todas Ias cosas e Paraísos hostiles.

Fonte:
O presente ensaio foi traduzido da revista mexicana Plural, n.º 176, de maio de 1986, e publicado no Suplemento Literário do “Minas Gerais, 8.11.1986.
http://www.jornaldecontos.com/

Hélio Pólvora (Os Dez Mandamentos do Conto)

Uma poética do Conto Literário
O grande contista uruguaio-argentino Horacio Quiroga, autor de Cuentos de la selva, El desierto e Los desterrados, entre outros livros, elaborou em Buenos Aires, 1927, o Decálogo do Perfeito Contista — ou seja, seus mandamentos sobre a arte da história curta. O contista gaúcho Sérgio Faraco submeteu o decálogo a alguns contistas brasileiros, entre eles Hélio Pólvora, que emitiu os seguintes pareceres:

I

Crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchékhov — como na própria divindade.

Creio em Edgar Poe, que estudou a estrutura da história curta e para ela cunhou o tributo de “singular efeito único”. Poe foi o mestre do gothic appeal — e convenhamos que o leitor gosta de mistérios, sejam os do sobrenatural, sejam os da personalidade. Não creio mais em Maupassant, porque concordo com Sherwood Anderson: não há, na vida, histórias seqüenciadas; há “instantes” que devem atuar como epifanias. O conto maupassantiano tem início, miolo e fim bem elaborados, numa fusão episódica que se sobrepõe a acontecimentos normais da vida. Não divinizo Rudyard Kipling apenas por causa da sobrecarga de exotismo Mas creio no todo-poderoso Anton Pavlovitch Tchékhov, Senhor do Conto, do qual retirou o arcabouço clássico para que pudesse espelhar a vida baça. E creio, também, em Machado de Assis, que escreveu contos funéreos à maneira de Poe, contos anedóticos à feição de Maupassant e contos modernos, tchekhovianos, nos quais os silêncios eloqüentes valem por todo um manual de ambigüidade e apelo à cumplicidade de quem o lê.

II

Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguiste sem que tu mesmo o saibas.

Sim, olhemos sempre para o alto, para as distâncias. Mas o conto, tal como a Casa Celestial dos crentes, tem várias mansões e muitos são os caminhos até elas, segundo o ponto de vista (viewpoint) do autor. Os mestres devem ser tomados como referência, não como ídolos onipotentes e inalcançáveis. Dentro de cada contista que se sente maduro ou em vias de amadurecer há, pelo menos, um facho a guiá-lo na noite escura da criação. Quando esse facho crescer a ponto de se transformar em tocha olímpica, então as cordilheiras e os cumes das cordilheiras estarão a seus pés. Para isso não bastam as musas: Hemingway falou em dez por-cento de inspiração e noventa por-cento de transpiração.

III

Resiste tanto quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência.

Nesta nossa modernidade, ou pós-modernidade, como queiram, predominam temas recorrentes: a literatura de ficção está sempre a reescrever-se. Mas não se trata de remake, porque serão sempre o temperamento e a formação do autor, com o seu ponto de vista, que farão do tema assemelhado um relato novo e original. Quiroga tem razão: há que confiar no desenvolvimento da personalidade. “Meu amigo, façamos contos”, disse Diderot, citado por Machado de Assis como epígrafe a Várias Histórias. “O tempo passa e o conto se completa sem disso darmos conta”. Jorge Luís Borges disse que “o conto, por sua índole sucessiva, corresponde intimamente a nosso ser que se desenvolve no tempo”. Verdade: no conto nada se perde, tudo se completa e se transforma. O conto é para quem o escreve — e quem o lê — meio de busca e averiguação. Brota bem de dentro do autor, tanto quanto o poema. O conto é a maneira de o autor-narrador conviver com os seus conflitos básicos. Por isso o conto há de aprimorar-se, ou simplesmente mudar, na medida em que o autor-narrador muda de conceito, ponto de vista e insight. O conto, ainda que acabado, estará sempre a pulsar, a germinar e a fermentar nos misteriosos meandros das entrelinhas.

IV

Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração.

Reconheço que é preciso acreditar, embora de desilusão em desilusão estejamos a perder as velhas crenças. Mas a fé no conto literário prevalece nos contistas ardorosos. Estes vêem no conto um enigma, uma esfinge a decifrar — ou então um espelho em que refletir e identificar a própria personalidade. Sem o ardor dessa identidade amorosa, caminha-se com mais vagar e tropeços. E, como disse o poeta António Machado, “el camino se hace al andar”. O contista William Saroyan fez praça de franqueza: quando tivermos fome, devemos comer com vontade, quando sentirmos raiva, devemos estrebuchar de cólera. E, analogamente, quando estivermos a escrever um conto, entreguemo-nos a ele de corpo e alma. Mesmo porque, conforme lembrou Saroyan, “cedo morreremos”. E disse mais: “Do not pay any attention to the tales other people make, I wrote. They make them for their own protection, and to hell with them. (...) Forget Edgar Allan Poe and O. Henry and write the kind of stories you felt like writing. Forget everbody who ever wrote anything”. Palavras da introdução a The Daring Young Man on the Flying Trapeze.

V

Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

Há quem comece um conto cegamente, guiado pelo instinto, por uma luz bruxuleante de vaga-lume. Pelo visto, Quiroga não acreditava na intuição. E há, paralelamente, os que estruturam o conto na cabeça, deixando-o sazonar até o instante de deitá-lo no papel em branco. Eu procedi assim com “O Grito da Perdiz”, que ficou germinando uns dez anos, acreditem. São atitudes, jeitos, temperamentos. Quanto à importância do início e do fim, ela foi salientada por Tchékhov, para quem a nota inicial deveria retornar, como mesmo timbre ou timbre parecido, no fecho. Não me refiro àquele final de impacto, maupassantiano, senão a uma impressão ou estado de ânimo, ou pressentido instante revelador, que deveria abrir e fechar-se como um leque, definindo-se em toda a plenitude da onda, ou de um impulso único.

VI

Se queres expressar com exatidão essa circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” — não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes.

São os instantes, as emoções, as circunstâncias que ditam as palavras. Há palavras (ou seja: formas de dizer) peculiares ao que se deseja exprimir. São únicas, insubstituíveis. Infelizmente, há momentos em que o ficcionista, errando no labirinto, defronta o indizível. Impõe-se, nesse caso, a arte da sugestão, com a qual seria possível, de acordo com Stevenson, transformar um jornal diário em nova Ilíada. A ambivalência é a maior conquista do ficcionismo moderno. Lutemos, pois, com as palavras, que nem sempre a luta será vã. Mas, ao contrário do que recomendou Quiroga, convém que nos preocupemos com o ritmo, a musicalidade da prosa. Devemos ter ouvidos abertos, afiados. A lição é de Flaubert: na solidão de Croisset, ele cantava as sentenças e ia torneando a prosa, livrando-as de nós e rugosidades. Frases sem o fluxo da música interior são típicas de prosadores surdos.

VII

Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo.

Nada tenho contra o adjetivo. Sem ele, o que seria da prosa gostosa de Eça de Queiroz? Certas categorias gramaticais parecem apegadas a determinados prosadores. Que seria de Monteiro Lobato se lhe retirássemos a força verbo-motora? O adjetivo faz parte intrínseca da prosa retórica, como, por exemplo, a de William Faulkner, que é um dos grandes ficcionistas atuais. Logo, defenda-se o adjetivo, que não é tão ornamental quanto parece: quando bem empregado, tem a sua carga imagética necessária. Nem sempre, mestre Horacio Quiroga, o substantivo é capaz de vibrar sozinho: requer um fundo musical, um acompanhamento de violino ou violoncelo. Quando se fala em escritor adjetivoso, condena-se o mau prosador, aquele prosador artificial e artificioso, que agita águas rasas para parecer profundo. Em mãos do escritor consciente, artesão, carpinteiro, engenheiro e arquiteto de palavras, o adjetivo é argamassa, é adorno sem exagero. Quem tem medo do adjetivo? Tchékhov e Machado dois artistas reticentes, não o temeram.

VIII

Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor . Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

De quando em quando os personagens se afirmam por conta própria, com um impulso interior de que não suspeitávamos. E, em vez de dar-nos as mãos, nos puxam sem cerimônia pelo braço, arrastam-nos para suas aventuras ou desventuras, seus abismos ou suas planícies rasas. Além disso, conforme já observado, não se abre o caminho inteiro, de ponta a ponta: ele se desdobra na medida em que caminhamos, em que o nosso roteiro prossegue. Quiroga pretende ater-se, naturalmente, ao essencial, ao fulcro, ao ponto ou turning point do relato. Quanto a esse aspecto, de acordo: desvios resultam cansativos. Convém atentar que o conto tem desenvolvimento unicelular, ao contrário do romance, que admite afluentes. Se um conto apresenta subplots, então se desviou para a novela, que, com as suas sobreposições, não passa de um romance curto. O conto independe de extensão: poderá completar-se nas densas “duas polegadas quadradas” de Samuel Rawet ou no latifúndio de Grande Sertão: Veredas. Decerto, Quiroga elaborou o Decálogo tomando por modelo o conto clássico ou imediatamente pós-clássico. De lá para cá, algumas regras foram atiradas pela janela, conforme o conselho de Saroyan.

IX

Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.

Perfeito, mestre. A emoção, enquanto se escreve, é má conselheira. Não podemos sufocá-la de todo, porque o escritor mergulha na água limpa ou na lama do que escreve, e se conjuga, e se transmite. Mas, deve-se contê-la, sufocá-la o mais possível. Uma vez escrevi um conto em estado de sofreada exaltação, depois o reli e vi que era bom, e deixei a emoção transbordar; ela me inundou, saí pelas ruas em estado de êxtase e comunhão. Mas seria atitude prudente, uma vez concluído o conto, ou considerado acabado, guardá-lo na gaveta durante algum tempo. A gaveta funcionaria como refrigerador. Louise Bogess, americana que escreveu sobre a arte do conto literário, recomendava essa atitude: esfriar o conto, o que significa esfriar a emoção. Graciliano Ramos, depois de concluído Caetés, levou anos cortando uma palavra aqui, outra ali, fazendo substituições. Escrever, para Hemingway, consistia em cortar palavras. Para outros, menos áticos e mais retóricos, significa acrescentar. Joseph Conrad, um dos pais da prosa moderna, advertiu que era preciso esgotar o assunto, sorvê-lo como se extrai o suco da cana-de-açúcar, deixar o bagaço do assunto. Não há regras definitivas, há temperamentos que elaboram regras próprias. Em vez de “assunto” eu deveria dizer “tema” (theme), para sinalizar aquilo que a personagem principal capta e absorve em conseqüência do andamento do conto.

X

Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua historia causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens, e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.

Uma lição valiosa. Literatura de peso se faz em silêncio. Os outros — sejam amigos, sejam, competidores ferrenhos — devem servir de emulação positiva. Escreve sem pensar no que será amanha o teu escrito, se ele terá passaporte para a eternidade ou morrerá despercebido. Os livros fazem seu próprio destino, como observou Terenciano Mauro. Escreve para desabafar, movido por necessidade interior; para calar por algum tempo os teus fantasmas, para consolar-se, para purgar. Os humildes escrevem assim, para se acalmar e se conhecer, sem pensar na glória do tipo pedestal. A verdadeira glória está na escrita, está na capacidade de quem escreve e no que ficou dito. Escreve também sem pensar na crítica. Afinal, para que serve a crítica? Em geral, ela é burra ou caprichosa, ou preconceituosa. A crítica ensinou alguém a escrever bem? Escreve, pois — porque entre os teus valores é na tua escrita que mais confias, e por ela serás absolvido.

Fonte:
Recolhido de Itinerários do Conto. Interfaces críticas e teóricas da moderna Short Story. Editus – Editora da Universidade stadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002, 252 p.
http://www.jornaldecontos.com/

http://www.thebest.blog.br/ (imagem)

4ª Semana do Escritor de Sorocaba está com inscrições abertas

O evento que será realizado de 22 a 27 na Fundec prossegue até o dia 18, as inscrições para autores que desejem divulgar suas obras durante a 4ª Semana do Escritor de Sorocaba, evento que será realizado de 22 a 27 deste mês na Fundação de Desenvolvimento Cultural de Sorocaba (Fundec).

Organizada pelo escritor Douglas Lara, com o apoio do Gabinete de Leitura Sorocabano, da confraria Teia dos Amigos, e da Editora Ottoni, a Semana consiste numa oportunidade para que escritores, principalmente os iniciantes, divulguem seus trabalhos. Da mesma forma, a mostra garante maior visibilidade às produções literárias locais.

A semana literária reunirá dezenas de autores independentes, editoras e livrarias, com sessões de autógrafos, lançamentos e palestras. Como acontece em todos os anos, haverá, no dia 24, o lançamento da coletânea Roda Mundo 2008, junto com a primeira antologia infanto-juvenil, Rodamundinho 2008. Para participar, o interessado recolhe uma taxa de R$ 50 por título publicado; em caso de lançamento, o valor é de R$ 100. Coletâneas com dez ou mais participantes, contribuem com R$ 200.

A programação ainda não foi fechada, mas os organizadores, reservaram o dia 25, sexta-feira, para que profissionais da imprensa promovam seus trabalhos. Nesse dia, participa da noite de autógrafos, o jornalista do Cruzeiro do Sul, José Antônio Rosa, autor de O Livro de Salomão, projeto aprovado pela Linc, que conta as histórias do radialista, comunicador e proprietário do Sistema Vanguarda de Comunicação e da Tv Sorocaba, Salomão Pavlovsky.

Pretendemos abrir espaço para que os jornalistas que possuam obras publicadas, ou que estejam por ser lançadas, o façam durante a Semana. Essa interação é muito importante, comentou Douglas Lara. A representante da confraria Teia dos Amigos, Sonia Maria Grando Orsiolli, também destacou o potencial do evento que já faz parte do calendário cultural da cidade. Temos a certeza de que a semana não só repetirá, como deverá alcançar um sucesso ainda maior nesta edição.

Para participar, os interessados podem manter contato com escritor Douglas Lara, pelo telefone (15) 3227-2305, ou pelo e-mail douglara@uol.com.br .

A Semana do Escritor de Sorocaba será realizada de terça-feira a sábado, das 14h às 22h, e no domingo, das 10h às 18h com entrada gratuita.

A Fundec fica na Rua Brigadeiro Tobias, 73.
A Fundec tem sua sede no antigo Teatro São Rafael, construído em 1844, em pleno coração da cidade, já serviu de abrigo à Prefeitura Municipal de 1935 a 1980 e à Câmara Municipal de 1982 a 1999. Restaurado e modernizado, o prédio conta com auditório e espaço para as mais variadas mostras artísticas.

Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (15) 3233-2220.

Fonte:
Colaboração de Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Notícia publicada na edição de 06/07/2008 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 5 do caderno B,
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=42&id=100437

Sarau Literário no XV Festival de Artes de Itu

Sarau Literário Leva Poesia e Música ao Festival de Artes

Um dos primeiros eventos do XV Festival de Artes de Itu será o Sarau Literário e Musical, que acontecerá no dia 12 de julho próximo, às 16 horas, na Biblioteca Comunitária "Prof. Waldir de Souza Lima". Haverá poesia, prosa, música e performances, inclusive com a interação do público.

Participarão cerca de oito poetas e músicos da capital, entre eles João Rosalvo; Paulo Almeida; Rui Mascarenhas, poeta e autor do livro MEIOHOMEM; Ivan Antunes, poeta do grupo Vacamarela e agitador cultural responsável pelo projeto "as treze visões do largo treze de maio"; Carlos Galdino, poeta que domina a literatura de cordel; e Vinícius Leite, músico.

SARAU LITERÁRIO E MUSICAL
Data: 12/07/2008
Horário: 16 horas
Local: Biblioteca Comunitária "Prof. Waldir de Souza Lima"
Endereço: Rua Floriano Peixoto, 238, Centro, Itu.
Contatos: (11) 7599.7848 - Nathalia; (11) 8445-6122 - Renato

Fonte:
E-mail enviado pela Biblioteca Comunitária "Prof. Waldir de Souza Lima"

domingo, 6 de julho de 2008

Hélio Pólvora (1928)

Hélio Pólvora costuma identificar-se como "um pobre homem de Itabuna", parodiando Eça. Diz também que saiu do "ventre dos cacuais". Itabuna é cidade do sul da Bahia, centro comercial da Região Cacueira.

Pólvora aprendeu as primeiras letras com a mãe, decifrando manchetes de jornais. Mais adiante leu a pequena biblioteca familiar, fez o curso primário na cidade e o secundário, a partir de 1942, em Salvador, Bahia.

Voltou à sua aldeia em 1947, praticou jornalismo em Voz de Itabuna, um semanário, e a 16 de Janeiro de 1953 chegava ao Rio de Janeiro – cinco dias antes da morte de Graciliano Ramos, com quem pretendia conversar.

Passou por quase todas as redações cariocas, assinou rodapés de crítica literária e iniciou-se na prosa de ficção.

Alguns livros: Os Galos da Aurora (1950), Estranhos e Assustados (1966), Noites Vivas (1971), Massacre no Km 13 (1978), O Grito da Perdiz (1982), Mar de Azov (1986) e Xerazade (1990) – todos eles de histórias curtas e novelas.

Retornou à Bahia após 32 anos.

Ainda faz jornalismo em Salvador e atualmente preside a Fundação Cultural de Ilhéus.

É ainda coordenador do "site" Jornal de Contos (http://www.e-net.com.br/contos/).

Também ganha o pão como cronista e tradutor.

Fonte:
http://www.vidaslusofonas.pt/

Hélio Pólvora (Enlutada estará Helena)

Primos estranhos. Deles, pelos pais, Helena ouvia falar vagamente: notícias miúdas, observações, críticas. Percebeu, enquanto crescia, que os primos eram rejeitados. Mais adiante, madura, inferiu que a rejeição, se houvera, como de fato parecia, fora mútua. Os primos não os queriam, a eles, Oliveira, nem eles, os Oliveira, davam maior importância aos primos.

Nem todos podem inspirar amor, pensou mais tarde. Do contrário, o mundo seria um palco de extremadas ligações perigosas. Mas o amor comporta facetas, graus de intensidade que formam estágios e definem, então, o limite do afeto. Amizade, por exemplo, é um antecedente do amor. Se não se transforma em sentimento mais forte, em paixão, em apego, é apenas amizade. Amigos se gostam, uns mais, outros menos — mas, se gostam, são necessários. Amigos se procuram, se consultam. Amigos se visitam.

No entanto, os primos não visitavam nem eram visitados. Moravam ali perto, em lugar que os Oliveira fingiam conhecer, e até diziam conhecer o caminho, chegarem lá sem erro. Por que, então, se eram parentes, ramos do mesmo tronco, andavam distantes, mal se cumprimentavam? Os dias eram monótonos. Escorriam morosos, como lesmas, e deixavam, como as lesmas, um sulco gosmento, de tédio, de horas perdidas para os êxtases. Conviver com os primos seria bom. Talvez deles partisse a sugestão, o aviso, o conselho de que, afinal, se necessita na vida. Quem sabe um deles seria capaz, mesmo por acaso, inadvertidamente, de dizer as palavras mágicas, que não apenas confortam, mas fazem das fezes do coração o bálsamo do consolo, o elixir da alegria?

Numerosas vezes interrogou a mãe sobre os primos. Quem eram, onde viviam, do que viviam. Sentia uma curiosidade grande, tinha um interesse fundo pelos outros, a ponto de escrutinar vidas e tornar-se indiscreta. Mais tarde verificou que, nessa ânsia de ver os outros por dentro, ela pretendia apenas justificar-se. Examinando-lhes de perto os atos, ouvindo-lhes a fala, vendo como se vestiam e os seus modos em sociedade, se convenceria de que era normal, era como os outros. Suas falhas eram iguais às deles, não havia necessidade de arrependimento, de meter dores na consciência. Era uma explicação, e parece que correta, porque Helena fora criada na mais fechada solidão, recolhida em si mesma como a ostra na concha, e se sentia muitas vezes diferente, para não dizer anormal. Aquele seu pendor para isolar-se, para se entreter apenas consigo, seriam normais na juventude, que quer estar sempre alegre e, na busca permanente da alegria, pratica asneiras, dá mostras de juízo fraco?

No alpendre da casa, em tardes mornas, com a vida a pingar espaçadamente de invisíveis bicas, Helena tentava atiçar a mãe acerca dos primos. Se cansada, e, portanto, de mau humor, a mãe respondia com muxoxos que nada exprimiam. Se alegre por algum motivo que nem sempre sobejava, a mãe enfiava-lhe dedos vagarosos no couro cabeludo e, enquanto coçava, a provocar uma dormência que os desmaios da tarde acentuavam, a mãe lhe passava dados soltos, desconexos, que não chegavam a formar um retrato satisfatório dos primos.

— Eu nem sei os nomes deles — dizia-lhe a mãe.— Conheço de vista somente um.
— E não perguntou o nome?
— Não, porque já me tinham dito que era João.

Pausa para uma reflexão.

—Todos o chamam Joãozinho. É engraçado.
— O quê, mãe?
— O nome carinhoso, o diminutivo, pois não? O Joãozinho é alto e branco, esbelto, de elegante porte, e tem o rosto azulado. Sem dúvida acabara de fazer a barba, a navalha, quando o vi.
— Conversaram?
— Muito pouco. Eu ia pagar uma visita à comadre Zulmira. Perto da fonte, ele surgiu na dobra do caminho. Quando me viu, tirou respeitosamente o chapéu. Um chapéu preto, de boa qualidade. Talvez de feltro, com uma banda larga, cor de vinho. Afastou-se para um lado, deixou-me o caminho livre. Um cavalheiro, não acha?
— Sim. Um personagem de romance. E depois?
— Nada.
— Não se falaram?
— Eu disse: “Boa-tarde, primo. Como passa?” Ele disse que estava bem. Eu então perguntei pela família. Ele respondeu que todos ótimos. Me olhou sério, pôs o chapéu, levou a mão à borda e foi-se.

Os dedos da mãe pararam, ela de repente riu-se.

— Ele estava descalço — disse ela.
— É mesmo?
— Terno preto, camisa de seda preta, chapéu de feltro preto. Todo alinhado. E sem sapatos.

Em outras conversas com a mãe e o pai, Helena recolheu outros dados sobre os primos distantes. Nunca ficou sabendo ao certo, porém, se eram três ou quatro. Todos eles altos, brancos, trajados de preto. Via-se as veias azuladas sob a pele branca das canelas. Perguntou ao pai porque não vinham visitá-los. Caprichos, disse o pai. Mania, entende? Mas, nesse caso, por que não tomar a iniciativa, por que não ir vê-los, numa dessas tardes modorrentas de domingo, quando nada ou quase nada se tem a fazer, salvo olhar os matos e medir a aproximação da tarde, e fitar as pessoas e fazer trejeitos com os beiços?

— Ir sem ser convidado? — disse o pai.
— Por que não?
— Primeiro conversar com eles, oferecer um cafezinho. Não lhe parece?

Não sabia o que seria melhor. E começava a se angustiar, porque a solidão pesava, havia os primos, eram quatro, e apesar de estranhos, e apesar de andarem de luto (a propósito: ia perguntar à mãe por que o luto pesado e contínuo), podiam fazer-lhe companhia, ouvir discos na velha vitrola de dar corda, apresentar as pessoas da família, que trocariam entre si receitas de bolos e geléias. Na véspera do seu décimo-segundo aniversário, o pai perguntou-lhe o que queria de presente, se mais um livro da Biblioteca das Moças.

— Eu queria conhecer os primos.

O pai e a mãe trocaram olhares carregados.

— Tudo tem seu tempo certo — disse o pai. — A Bíblia diz que há tempo de arar e semear, de plantar e colher.

Logo no dia do aniversário, como se para estragar a pouca alegria trazida pela data, a vaca parida chifrou-lhe a mãe de vestido colorido na pastagem. Atirada contra uma pedra, a mãe fraturou a bacia e levou três meses imobilizada, de cama. Quando a mãe era levada para casa, em pranto, nos braços do pai, a cancela bateu e um viandante avançou pelo caminho. Era um dos primos. Alto, chapéu preto, todo de negro. Mas descalço, com os pés brancos enlameados. O primo enlutado tirou o chapéu para os cumprimentos, parou um instante.

— Coisa grave? — indagou.
— Ainda não sabemos direito — disse o pai. — Foi chifrada por uma vaca doida e acho que fraturou algum osso.
— Espero melhoras — disse o primo, afastando-se com um meneio do chapéu de feltro.
— Entre para um café — chamou o pai.
— Fica para a volta — prometeu o primo enlutado.

Helena via o primo, um dos três ou quatro, pela primeira vez, e ele lhe pareceu severo, de atitudes formais. Se estivesse calçado, e não de pés nus, sujos de lodo dos caminhos, o teriam na conta de homem de bem e de posses, ou, como se dizia nos romances, cavalheiro e gentil-homem. Ainda assim, o rosto de linhas harmoniosas, as feições finas, as palavras bem medidas e pesadas, tudo indicava um lastro de boas maneiras que somente se adquire com alguma educação familiar.

O vulto do primo, no seu terno de seda preta, coroado pelo chapéu de feltro também negro, desapareceu na estrada além. Para onde ia? O que buscava? Helena queria pensar nisso mais a fundo, meditar possibilidades, mas havia a mãe que, posta na cama, buscava entre gemidos a melhor posição com que repousar, enquanto não vinha médico da cidade.

Do tempo escorreram areias, imperceptivelmente, nas também invisíveis ampulhetas, e água escorreu, esta de forma audível e até rumorosa, sobre o leito movediço dos rios e córregos, e de súbito ela tinha dezoito anos, e caminhava, quase corria, com o seu cão, para casa, embrulhada nas sombras do entardecer, quando estacou, guiada por um sexto sentido, diante de uma cobra que, erguida sobre a cauda, no meio do caminho, tinha a boca escancarada e mexia com a língua bífida. Parou de chofre rente à cobra, na exata altura da cabeça da cobra, que era um jaracuçu danado, e se fitaram, ela e a serpente peçonhenta, durante talvez um minuto, e imóvel olhava-os o cão, na expectativa do desfecho daquela cena, envoltos Helena e a cobra num silêncio que parecia conspiração, conluio edênico — e adiante do cão, como que esperando licença para passar, de olhar neutro e olhos sem lume, um dos primos, qual deles não sabia dizer. E foi este o seu primeiro encontro a sós com um dos primos arredios que se vestiam de luto.

Mas, por que o luto permanente, por quê?

— Talvez seja a cultura da morte — explicou-lhe o pai.

Helena não entendeu.

— Vivemos no país dos óbitos, e, nele, numa região de alta densidade obituária — prosseguiu o pai. — Se a criança escapa da disenteria e de moléstias infecto-contagiosas, a fome e a exposição aos ventos gelados podem levá-la à tuberculose. Se consegue safar-se e fazer-se adulta, vêm as vicissitudes do trabalho, entre elas as picadas de cobras, os acidentes. Morre-se muito nestas nossas bandas.

Entendeu, então, o que o pai dizia.

— Vai ver — completou o pai, olhando-a dentro dos olhos — que a família dos primos é grande. Quando o luto pela desgraça de um está findando, morre outro, e o luto continua. O crime governa o país, morre gente como formiga.
— Ou então fizeram promessa de luto cerrado no funeral do avô, ou do pai, ou da mãe.
— É possível — disse o pai. — Quem conhece os desígnios dos outros? Mal conhecemos os nossos. O mais comum é sermos surpreendidos pelo que fazemos num repente.

No mar, quando perdeu pé, Helena sentiu-se flutuar e engoliu a primeira golfada (a cena ainda ardia na memória como uma água-viva). Sua vida, o que fora até então o seu projeto de vida (trechos dos caminhos interrompidos por urzes ou pedras, ora secos, ora com lodaçais, e em rumos opostos, caminhos que não prosseguiam), passou-lhe em veloz sucessão de imagens — um filme solto na manivela. E encontrou-se estendida no chão, acabara de cair da borda de uma pedreira, todo o corpo lhe doía e a cabeça era uma cabaça oca em que zumbiam enxames de insetos, todas as vespas enfurecidas do verão. Fechou os olhos. Tinha quase cinqüenta anos. Não ia levantar-se já. Devagar, tentou movimentar uma perna. Movia-se. Experimentou a outra. Sã. Virou-se de leve para um lado. As costas doeram, mas resvalaram no chão pedregoso. Mexeu-se também para o outro lado. Os ossos pareciam no lugar. Conseguiria erguer-se? Primeiro, sentou-se com sacrifício. O arvoredo subia e descia, obra de sua visão entontecida. Em baixo, no caminho que descia a serra, passava um homem de preto, de pés no chão. Não a viu, nem ela, que estava sentada e zonzo, o chamou, porque sabia que, na próxima meia hora, pelo menos, não articularia palavra. Agora bracejava no mar, que insistia em puxá-la da praia. O filme de sua vida, um pequeno percurso acidentado, árvores retorcidas na paisagem baça, avançava enlouquecido na manivela em disparada. E Helena se viu, a seguir, numa rua de sua cidade, era sábado, dia de feira, comércio ativo. Ia pela calçada, absorta, quando um sujeito baixo e troncudo, avermelhado pela aguardente, puxou-a pela gola da blusa, encostou-a na porta ainda fechada de uma loja, sacou um revólver niquelado, encostou-lhe o cano na boca e disse: ”Puta”. Não respondeu. O sujeito empurrou mais o cano do revólver. “Puta, puta escrachada”, gritou. E continuou a gritar aqueles nomes até que ela, enfadada, desviasse com o braço o cano da arma e, sem nada dizer, se afastasse em passo normal. Na calçada, apreciando a cena, estava um dos enlutados primos, atento, a mão parada no ar, o fósforo aceso entre os dedos, esquecido de acender o cigarro. Veio outra golfada, que parecia a última. A cabeça da cobra estava imobilizada, a cena era de encantamento, de hipnotismo. Mas não, o mar não a queria por enquanto, o seu corpo branco estaria destinado a apodrecer em terra, coberto de terra. Sentiu um impulso para cima, bracejou outra vez, os pés tocaram em areia fugidia, flutuou e uma onda a fez avançar, tocou areia firme. O corpo moído pela queda tinha os ossos no lugar. Pela praia, com uma corda de robaletes, passava um pescador vestido de preto, os pés brancos afundando na areia fofa. Helena não o olhou. O primo? Um dos primos.

Que era a vida? Uma trégua da consciência entre dois golfos de escuridão, o ser e o não ser, o primeiro nada absoluto que, livrando-se da ousadia de o terem gerado e afadigado, ruma para o nada derradeiro. Helena pensava assim, na vida adulta, e assim continuaria a pregar, ao menos para si mesma, porque fazia questão de perder-se sozinha no seu desânimo existencial, mas havia os primos, aqueles três discretos primos trajados de preto, que, vez por outra, lhe surgiam no caminho. Apareciam sempre como por acaso, e nada queriam, às vezes nada inquiriam, em outras ocasiões sequer a olhavam, sequer lhe admiravam seios e quadris com olhos cobiçosos. Apenas atestavam, os primos, a sua muda e inexorável presença, como se estampas coladas a uma página de sua vida — bem parecidos, vestidos de seda negra, vestais desencaminhadas de seu templo.

Helena queria os primos. Só em vê-los, naquelas poucas vezes, já lhes tinha afeto, como se à mesma família pertencesse e com eles dividisse o enlutado culto a uma tristeza desejada, buscada e assumida. E se eu me vestisse também de luto?, ela pensou por fim. Talvez os atraísse então. Talvez os primos, sentindo nela um igual, um parente, quem sabe uma irmã, se aproximassem e lhe oferecessem uma flor, ou lhe pedissem um copo com água fresca. Sim, poderiam ser amigos, os primos, e ela precisava de amigos — ela que jamais os tivera, apesar da sua ânsia por longas conversas alentadoras; ela que sentia nas amizades o prenúncio de um possível amor.

Estava órfã. Órfã de pai e mãe, e em idade avançada, e se lhe perguntassem o que fizera da vida, diria certamente que a perdera, ou dela se esquecera na medida em que se limitara a viver. Os pais lhe faziam falta. Não davam sombra larga, mas eram referências, pontos luminosos na noite escura. Tais pontos de luz atraíam, como a dizer que, se os buscasse, se até eles ela se deixasse guiar, talvez lhes revelasse uma casa, o lume aceso, a mesa posta, o encontro de quem reconhecemos apenas com o olhar, sem necessidade de fala.

Um dia, afinal, Helena vestiu-se de luto. Ou então, inerte, consentiu que a vestissem de luto. Tinha amanhecido e chovia. Ela amanheceu conformada e serena. A chuva caía em bagas e o mundo estava opaco, lutulento. Falava-se em voz baixa, talvez alguém, chorasse. Pés nus soaram no chão de tábuas.

Eram os primos.

Os três, no mesmo terno que, de tão lavado e passado, embranquecia. Chegaram — e pela primeira vez, sorriram.

Os pés traziam crostas de lama dos caminhos. Que caminhos? Por onde andavam, assim tão incansáveis, tão determinados?

Tiraram o chapéu para o cumprimento cerimonioso, inclinaram-se. Cavalheiros. Gentis-homens. Fidalgos. Agora Helena tinha companhia — e, quem sabe, o desejado e protelado amor.

Fonte
Contos da Noite Fechada, 2004
Disponível no Jornal de Poesia
http://www.secrel.com.br/JPOESIA/

Hélio Pólvora (Do Outro Lado do Rio)

— Ei, senhor.

Sentado na popa de sua canoa, um remador fazia-me sinais há algum tempo.

— Ei.
— Quer atravessar?
— Não sei ainda. Mais tarde.
— O outro lado do rio é bonito.
— É bonito ou está bonito?

Ele não entendeu, ou então não quis estabelecer diferença. Para que? Miudezas. Olhava-me com ar absorto e com a paciência de quem lida com viajantes indecisos. Vi que uma barba rala e alourada cobria-lhe o rosto, e que tinha o nariz curvo. A cabeça encoberta por um chapéu de palha mostrava apenas a sombra dos olhos. Visto de perfil, parecia velho, mas ainda robusto, e com um jeito afiado de ave de rapina pousada num galho.

Continuei a olhar o rio, que parecia estancado, sem correnteza, mas movimentava de leve as águas, de forma a escorrer de forma quase imperceptível. A água não estava escura ou baça, nem clara. Parecia água nova, trazida das cabeceiras onde decerto chovera. Mas não estava barrenta. Mesmo sem transparência, transmitia uma superfície de espelho.

— Está assim há dias — disse o remador.
— O quê?
— A água do rio. Costuma ser clara, fina. Choveu, o leito subiu e a correnteza parou.
— O senhor é canoeiro há muito tempo?
— Desde menino.

Puxou mais o chapéu sobre os olhos, como a proteger-se de uma luz cegante, e recordou que, antes da ponte, a travessia era feita em canoas chamadas besouros. Alongadas, com duas tábuas atravessadas à guisa de bancos, algumas tinham motor de popa. O motor chiava, por isso deram-lhes o nome de besouros. Atravessava-se o rio recebendo na roupa salpicos de água. Às vezes a superfície do rio rolava grossa, como um tapete sujo a distender-se, e nesse caso as canoas oscilavam, emborcavam. Quem não soubesse nadar, afogava-se.

— O senhor socorreu algum viajante?
— Não fui feito para essas coisas — respondeu em tom seco.

O sol voltara a luzir por entre gotículas da água suspensas. Um arco-íris foi-se delineando do outro lado do rio, ao longo da encosta verdejante que cobria o litoral. Em baixo, numa enseada indistinta, os pilares da ponte. Não se via movimento na ponte, talvez por causa da distância. Apurei os olhos. Nada, sequer um vulto, nenhum automóvel.

— Ninguém atravessa pela ponte? — arrisquei.
— É uma travessia muito direta, que depende da vontade de cada um. No fundo, meu senhor, ninguém gosta de atravessar.

Não entendi então porque as autoridades mandaram construir a ponte, e porque, havendo ponte, canoas e barqueiros ainda aguardassem viajantes fortuitos.

— Há dois caminhos — o remador voltou a falar, como se me adivinhasse os pensamentos. — As pessoas preferem vir para cá, como se não esperassem encontrar este cais antigo, estas canoas, esta solidão. Chegam e, então, já que aqui se encontram, atravessam. O caminho da ponte é uma escolha deliberada, como eu já lhe disse.

Cala-se, olha o marulhar das águas no casco da canoa. O sol aumenta de intensidade, vejo que o arco-íris do outro lado se vai dissipando. Mas a água nada reflete, é um espelho embaciado.

— Deve ser bonito do outro lado — eu digo.

O remador se agita, seus olhos faíscam sob a aba do chapéu.

— Pode ter certeza, senhor. É um espetáculo.
Um espetáculo. Fico a saborear esta palavra, como quem a mastiga. E, estendendo a vista até o outro lado, encho os olhos com uma encosta ligeiramente escarpada. Está verde, varrida pelo sol, e brilha, brilha como se fosse um vitral do qual se coassem muitas cores, as cores do arco-íris, o verde e o amarelo em predomínio. Um bosque extenso e profundo, sem clareiras, de árvores irmanadas que devem formar uma alfombra com a sua copa generosa. No chão, naturalmente folhas secas, imagino que folhas outonais, ferrugentas, a formarem tapete macio. Olhos d´água, troncos secos que se oferecem como bancos, pedras limosas em que descansar os olhos, lagos de água límpida. E suponho que frutos. O vento espalha a fragrância de suas polpas, o odor de seus líquidos. É, o remador tem razão, deve ser convidativo o outro lado. Deve ser bom.
— Muitos viajantes não voltam para o continente — diz o remador. — Preferem ficar naquela ilha comprida. Alguns pedem que eu espere, querem dar um passeio pelas praias desertas e limpas, querem sentir o perfume das trilhas, saber se vão dar em uma aldeia. Outros mais decididos vão logo dizendo, antes que eu encoste a canoa: ”Não me espere, remador. Eu vou ficar”. Estou acostumado a todas as reações. Sou observador, entende?

Sei que é. Ele se antecipa aos meus pensamentos, adivinha o desenrolar lento das minhas idéias. Um interlocutor desses, eu penso, é um bem na vida. Em geral não nos ouvem. As pessoas fingem escutar, mas em verdade escutam a si próprias, e o fazem por educação, a pensar no que vão dizer, no que desejam ouvir, ou no que pretendem induzir o outro a dizer para que tenham afinal a confirmação da resposta. Ah, é preciso saber escutar, é preciso saber ter ouvidos e fazer com que eles se apurem para ouvir nos momentos certos. Aquele remador tem o instinto da conversa mútua, do diálogo. Com ele o monólogo da vida cessaria, a trituração interior que gera angústias se desfaria em pó com que aspergir e esconjurar todos os nossos espaços vagos.

— A ilha tem nome?
— Não. É apenas o Outro Lado.
— O Outro Lado?
— Sim, senhor. O Outro Lado do Rio.

Duas touceiras de erva sumarenta, muito verde, desciam pelo rio, vagarosas. Sem correnteza levariam horas a chegar a alguma praia, porque os rios sempre despejam suas águas no mar, em outro rio ou num lago. Há sempre uma praia, haverá sempre uma margem em que naufragar ou secar ao sol.

— Baronesas — diz o barqueiro.
— Têm um ar distinto.
— E cobras dentro das touceiras — prossegue o barqueiro. Vira-se, dá uma cusparada no rio. A voz trai um tom de desgosto. Olha as baronesas arrancadas de barrancos, rio acima, na estação das chuvas, e completa: — Vai ser uma longa viagem.
— A não ser que vente — eu digo.
— É, a menos que venha vento forte.
— Acha que vai ventar?
— Não. Hoje o dia escurece cedo, mas sem chuva e sem vento.
— Tem certeza?
— Tenho. É a experiência. O cheiro do vento a gente pega no ar.

Dou alguns passos pela margem de terra nua, sem ervas, com pedregulhos. Ninguém mais, somente eu e o canoeiro, que, com sua calma, parece estar ali à minha espera. Melhor, à minha disposição. O tempo não o incomoda, é como se ele tivesse todo o tempo de uma vida galática, de uma eternidade. Não sou dado a enigmas, mas de súbito me vem a impressão de que marcamos um encontro ali naquela margem deserta, e que ele está ali com a sua canoa para me prestar um serviço, para levar-me à outra margem. Mas como saberia que eu, nas minhas andanças às vezes sem rumo, contemplativo, imerso em meditações, iria dar ali, naquele antigo cais de um tempo em que havia uma chusma de canoeiros e viajantes ávidos por escarpas verdes do outro lado do rio turvo?

— Está com medo? —pergunta o canoeiro.
— Medo? De que? De quem?
— Não sei. Talvez medo do senhor mesmo. Ou de mim.
— O senhor não me fez mal.
— Nem farei. Estou aqui somente para levá-lo, se quiser atravessar. Se sentir que chegou a sua hora de atravessar.
— Como vou saber? Nunca tenho certeza de nada. Certeza somente a de estar vivo
— Ainda bem. Tem pelo menos esta, que explica o medo.
— Como assim?
— O senhor sabe que está vivo e isso lhe dá medo. Estar vivo é bom, mas o bem não dura. Nada na vida está em repouso permanente, nem mesmo as pedras, que um dia se transformam em pó.
— E qual seria o estado perfeito, o bem-estar supremo?
— O não-ser. Aquela noite escura, de uma escuridão total, sem desejos, sem necessidades.
— Uhm... Alguém já disse isso com outras palavras. Creio que foi Schopenhauer, um filósofo pessimista. Não se deve temer o não-ser, porque dele viemos. Ao existir, vemos então que o não-ser tem suas vantagens. Estar vivo é um problema. A vida seria, nesse caso, o medo crescente de algo melhor. Estou certo?
— Para mim, está. O maior sinal de cultura consiste em perder o medo. É preciso atravessar, atravessar sempre.

Começo a examinar melhor o remador. Humilde, mal vestido, pés no chão, e, no entanto, idéias profundas. Quem o teria ensinado a filosofar? Quem o teria aproximado de mistérios?

Do outro lado do rio o litoral escarpado adquire uma tonalidade enfermiça de poente. Cores desmaiadas, com a luminosidade mortiça de velas. Mas seriam muitas velas juntas, e todas acesas, e por isso ali não se fazia noite, a luz resistia às trevas, tangia a noite, que já começava a tombar, para o lado de cá, onde estávamos o remador e eu. E a noite, desdobrando a sua capa sobre o rio, enlutava definitivamente os restos de um dia a apagar-se.

O remador protege o pescoço com a gola aberta do casaco. Dou um passo hesitante, talvez movido pela necessidade de fazer um movimento, na direção da canoa. Ainda não sei se vou atravessar o rio.

— Resolveu atravessar ? — pergunta o remador, com um, sorriso que me parece irônico.
— Acho que sim. Afinal, do outro lado há luz.
— Os poentes são sempre longos na Ilha do Outro Lado.

Sento-me na tábua do meio da canoa. O remador entra na água rasa e dirige-se à margem. Com certeza vai impelir a canoa para longe da areia, para o fundo, antes de tomar do remo e iniciar a travessia.

A noite cai depressa, como se alguém no alto soltasse as dobras de uma cortina escura. A canoa oscila, a água bate nos costados e na proa, em baques fofos, um vento morno, com um toque de frio, me percorre o corpo, deixa uma sensação de carícia. As mãos coçam. Estão ocupadas com o remo, na verdade empunham o remo, sou eu, afinal, quem rema nesta canoa — o único a remar. O canoeiro ficou em terra, seu perfil recurvo absorvido pelo silêncio, pelas trevas.

Eu remo de coração leve para o âmago da noite ou para o facho de luz, não sei bem. A luz que me parecia brotar da Ilha do Outro Lado brilha agora no antigo cais onde embarquei. E as trevas do velho cais caem sobre a Ilha, lhe acentuam a silhueta esguia.

Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?

Fonte
Contos da Noite Fechada, 2004
Disponível no Jornal de Poesia
http://www.secrel.com.br/JPOESIA/

Palavras Idiomáticas Utilizadas no Ceará

ABESTADO Bobo. Após ouvir uma história incrível mas verdadeira, por exemplo, você comenta: "Tô abestado!".
ABIROBADO: atroiado, estabanado
ABIUDA: Intrometida
ABUFELAR: se atracar com alguém
ACABANADO: Adj. Quem tem as orelhas descidas, caídas.
ACATRUZAR: v. Perseguir com insistência, chatear, importunar.
ACOLOIADO:juntos,coesos,unidos em algo...
ACUNHAR: correr, fugir
AFOLOSADO: arrebentado, arregaçado
AGORA TOROU DENTRO: significa "a coisa tá feia"
ALFENIM: doce feito de mel de engenho
ALGAROBA: farsa, mentira (é de algaroba)
ALTIAR: levantar
ALUÁ: suco feito da casca do abacaxi deixada em imersa em água por alguns dias
ALUIR: despertar para alguma coisa, se alertar
AMOFINAR: ficar magro, triste e moribundo
AMOLEGAR: apertar com as mãos
AMUNDIÇADO: deseducado, pessoa que não tem boas maneiras
APERREADO Nervoso, apressado
APERREIO: sufoco
APIAR: prender as pernas de um bode, boi ou jumento com corda para limitar sua movimentação
APOCADO: calado
APURRINHADO Irritado
ARACA: confusão
ARENGAR: pertubar
ARIADO: perdido, sem saber em que lugar está
ARIAR: polir a panela até ela ficar com brilho
ARIGÓ: bobo, mané
ARMADOR: peça parecida com um gancho fixada na parede para sustentar rede de dormir
ARREADOR: tipo de chicote para fazer o boi andar também usado para dar um corretivo em crianças travessas
ARREGAÇADO: virado pelo avesso, afolosado
ARRIÉGUA: Expressão de espanto, indignação ou descrença.
ARROXAR O NÓ: apressar-se, fazer mais depressa
ASSUNGAR: correr em disparada
ATINHAR: encher o saco, torrar o juízo, azucrinar
ATROIADO: doido, tronxo
AVEXADO Apressado
AVIA AÍ: ande logo
AVIA! Se apressa. "Avia, menino, vai tomar café!"
BABATANDO: lesando, patinando, sem sair do lugar
BABUJO OU BABUJE: relva que nasce no solo sertanejo logo após as primeiras chuvas do inverno.
BACURIM: leitão, porco pequeno
BAIXA-DA-ÉGUA: lugar longe
BALSEIRO: monte de capim misturado com lenha, etc.
BANDIDO: alma sebosa
BARBATÃO: diz-se do boi criado solto, garrote selvagem
BASCÚI: um monte de lixo, cacarécos
BATER CATOLÉ: falhar
BATORÉ: mulher baixa,feia e homem deformado e baixo
BEBOMÓVEL: carrinho de mão
BERDUÉGUA: tipo de gramínea que nasce quando chove
BERUÁ: tolo, arigó
BICORADA: dar uma bicorada: beber um gole de cachaça
BIGU: carona na traseira de veículos como trem e caminhão
BILA: o mesmo que bola de gude
BIMBÓCO: lugar longínguo, afastado. (Ex.: Naquele bimbóco de serra)
BIRITEIRO: cachaceiro,alcolatra.
BIRÓSCA: lugar depreciado, pobre
BONECO: botar boneco é fazer bagunça, ribuliço, chafurdo
BORÓ: cigarro de palha
BOTAR BONECO: Criar dificuldades, reclamar
BRÓCA: queimada para limpeza da terra
BRÔCO: pessoa ignorante, rude
BRUGUELO: filhote de passarinho ainda no ninho
BUFA DE PADRE: cogumelo
BURREGO: cordeiro recém-nascido
CABÔCO Homem. Em Mundaú há um estabelecimento chamado "Pousada do Cabôco Sonhadó"
CAIBÁ: o mesmo que caibro (de madeira)
CAIXA D'ÁGUA: s.m. Bêbado, viciado no álcool, alcoólatra, bebarrão.
CALANGADA:Porrada, murro
CALIBRADO: bêbado, zoado
CANGALHA: artefato usado nas mulas para carregar bagagem e outras cousas
CANGAPÉ: golpe de capoeira
CANGATI: tipo de peixe pequeno e feinho, mulher feinha
CAPIONGO: cabisbaixo, triste
CAPOEIRA: tipo de relevo em ladeira ou o lado de uma elevação geográfica (monte)
CARÃO: repreensão, ralhar
CARRAPICHO: tipo de espinhos existente em mata baixa
CASAMENTO DA RAPOSA Fenômeno meteorológico bastante comum no Ceará, no qual chove e faz sol ao mesmo tempo
CASSACO: tipo de roedor (muitos chamam de gambá do sertão)
CATABIM: solavanco ocasionado por um buraco na estrada
CATITA: rato, camundongo
CATOTA: meleca, catareca tirada do nariz
CATRAERO Cafona, brega
CAXINGAR: mancar, com dificuldade para andar
CELULAR = garrafa plástica de cachaça 480 ml/ meiota
CEZÃO: enxaqueca, depressão, estado febril
CHAPISCAR: fazer o pré-reboco da parede com argamassa de cimento e cascalho
CHIBANCA: ferramenta de uso agrícola parecida com a enxada
CHIBATADO: diz-se de quem anda chutado, ou seja trafega em alta velocidade
CHOKITO: defunto
CHUTADO: lotado (em altíssima velocidade)
CIBITO: Tipo de pássaro encontrado no Sertão, cibito baleado (pessoa muito magra, raquítica)
COIVARA: Tipo de tecnica de queimada que consiste em juntar as plantas cortadas do resultado de uma limpa em montes e tocar fogo. (Esse metodo é menos agressivo e menos perigoso que o tradicional)
COLOIO: ajuntamento de pessoas
COMÉDIA: pode ser qualquer programacao divertida
CORISCO: raio
COTOVIA Prostituta.
COXIA Meio Fio.
COXINHA: Pessoa falsa, hipócrita. (Hoje nacionalmente conhecido graças ao Programa "Nas Garras da Patrulha", de produção local, mas exibido em toda parte, via parabólica...)
CROQUE: cascudo
CUIA (OU COITÉ): recipiente feito dividindo uma cabaça em duas bandas, usado para carregar água, tomar banho etc; BANHO DE CUIA: o mesmo que chapéu (no futebol); CUIA DOS INFERNOS: lugar ermo que nem Deus sabe onde fica
CUMARU DE CHEIRO: casca de árvore usada para espantar insetos
CURRULEPO: pesqueiro, tapa na cabeça/pescoço
CURUBA: infecção na pele
CURURÚ: sapo
CUVIÔCO: morada pequena e apertada, casa de pombo, buraco
DAR A PELOURA: dar escândalo, passar mal, descontrolar-se
DAR PITACO Emitir opinião
DAR UM GRAU OU UMA GUARIBADA: ajeitar, arrumar
DE VERA: de verdade, valendo
DESABAR: Ir, dar o fora (Ex.: Desaba daqui mulher!!!)
DESARNAR: desenvolver, progredir
DESFAZER: diz quando uma pessoa começa a humilhar ou desprezar a outra
DESINCHAVIDO: sem graça
DESTOCAR: limpar um terreno com chibanca ou enxada
DEZONERAR: apodrecer
EMBIOCAR (OU IMBIOCAR): entrar lá pra dentro
EMPALHAR Atrapalhar
EMPEREIRAR: parar o crescimento
ENGEMBRADO: entortado ou amassado
ENGAZOPAR: v. enganar, tapear, embair, ludibriar, mistificar, engabelar.
ENGILHADO: diz-se do tecido que está todo cheio de dobras, ou pele ressecada
ENTOJADA: mau humorada
ENTRAMELADO (OU INTRAMELADO): diz-se de um dente que cresce em cima de outro
ENTREVADO: enferrujado
ENXUÍ: tipo de colméia
ESCACAVINHAR: remexer, cavar remexendo
ESCAMBICHADO: o mesmo que estrupiado
ESCANGOTADO: no limite do medidor (de velocidade, etc)
ESCARRAR: falar mau de alguem
ESPINHO DE CIGANO: tipo de erva daninha comum no sertão
ESPOJAR: diz-se quando o animal (cachorro, jumento, etc) deita ou cisca no chão
ESQUIPAR: fugir, esquivar-se
ESTRIBADO: com muita grana
ESTURRO: grito do leão
EXTRUIR: desperdiçar, jogar comida fora,
FARNIZIM: perturbação no juízo
FILHÓIS: tipo de pão feito com farinha de mandioca, também chamado de péta
FRESCAR: Tratar com deboxe, brincar, tratar com humor.
FUBICA: peba, fraco
FULERAGE: Ordinário, pode ser também pessoa muito irreverente, brincalhão, depende do sentido da frase.
FUNARÉ (OU FUNARÉU): confusão dos diabos, grande agitação
GAITADA: gargalhada
GALALAU: pessoa alta, vara de tirar coco
GARAJAL: proteção feita com grades para proteção de árvores em praças, jardins, etc.
GASGUITO: pessoa que tem a voz muito desafinada
GAZO: albino
GIA: rã
GIRADOR Rotatória. Ao pedir instruções à Policia Rodoviária com certeza vai ouvir algo assim:"Siga tantos quilômetros e no girador vire à direita".
GUREJAR: diz-se do animal que está sentido o cheiro da comida e fica com água na boca
IMBIOCA: entra
IMPALHÁ: atrasar (as vezes 'impaiá')
IMPINJAR: provocar, tirar a pagode, implicar com alguém
IMPINJEM: marcas vermelhas no corpo
INCANDIAR: ofuscar, iluminar
INFERNO DA PEDRA: lugar mais longe que você possa imaginar
INHACA: cheiro de cigarro ou outro fedor que impregna o ambiente
INTRANÇAR: ficar transitando no meio das pessoas
ISPILICUTE Adjetivo para qualificar crianças bonitinhas. Palavra derivada da expressão "Is pretty cute", utilizada pelos soldados norte americanos que durante alguns anos instalaram-se no Ceará.
JABOBÊU: coisa enorme, absurdamente grande ou pesada
JUREMA: planta típica do semi-árido que proporciona boa lenha
LASCA-PEITO: cigarro de fumo brabo
LOMBRA: drogado
LUNDÚN: de mau humor
LUXENTO: adj. Exigente para comidas.
MAÇADA: demora
MAH:É praticamente um ponto final.Quase sempre é citado no final das frases.É uma forma mais curta de Macho.
MALINO: buliçoso
MANCHÃO:remendo interno em pneus.
MARIOLA: tipo de doce de banana.
MARMOTAS: espalhafato
MARRÃ: ovelha
MEROL = bebida alcoólica
MIOLO DE POTE = conversa fiada/ papo de bêbado
MÔCO: surdo
MÓCÓ: tipo de roedor (hamster), pessoa boba
MÓI: inicialmente era molho (coletivo de chaves) depois virou coletivo de qualquer coisa: mói de coentro, mói de cebola, mói de mulher
MOJADA: grávida
MONDRONGO: caroço
MÔXO: diz-se do boi que tem os chifes atrofiados
MUCIÇO (A): macio(a), carne muciça (carne macia)
MUGUNZÁ, MUCUNZÁ OU MACUNZÁ: comida típica da região feita com feijão, milho e carne de porco.
MURRAÇA: fedor de cachorro molhado ou pessoa imunda
MUZENGA: coisa imprestável(Ex.: Ô muzenga!!!)
NARGADINHA: dose (de leite, café, cachaça, etc)
Ô CORRA LINDA, MAH: = oh coisa linda, macho.
OITÃO: parte anterior da casa, alpendre
PAI D'ÉGUA: legal demais
PANTIM: movimento brusco ou suspeito
PAPÔCO: estouro, explosão
PAPUDIM = pinguço (com barriga inchada característica)
PARAPEITO: parede baixa
PASTORAR Tomar conta do carro.
PÉA: pelanca da carne
PEBA: Objeto de péssima qualidade.
PÉBA: tipo de tatu (tatu-péba), coisa que não presta ou é de má qualidade
PEITICA: ave do nordeste, pode ser desejar o mal, fazer macumba
PELEJA: o mesmo que lida, trabalho,
PIAU: tipo de peixe
PIOLA: ponta de cigarro
PIRROTOTINHA: pequena
PISA: surra, pêia, sova, corretivo
PITACO: palpite, conselho, opinião
POTÓ: inseto muito comum que solta um odor desagrádavel
PUIM: resíduo do beneficiamento do arroz ou do milho
QUENGO: cabeca
QUEIMA RAPARIGAL Vai com tudo
RADIÊ: cinta de amarração de ferro e argamassa
REBOLAR NO MATO: Atirar alguma coisa fora, se desfazer de algo.
REVESTRÉZ: de ponta cabeça, de virada
RIPUNAR: rejeitar (comida)
RUBACÃO: baião de dois
RUMA: monte (de gente, de bicho, etc)
SAPECAR: jogar longe, arremessar, ou queimar na brasa
SUGESTA: medo repentino
TÁ DE LUNDUM Está chateado, de mau humor
TABA DO QUEIXO : região compreendida entre o maxilar inferior e o pé da orelha
TALAGADA : dose de cachaça
TAMPA DE CRUSH : é um cara filé, de quem todos gostam
TARECO : bolacha
TEM É ZÉ: é dificil
TERETÊITÊI: conversa vai, conversa vem, bláblábla´
TERTULHA : festa
TETÉU : pessoa que fica acordada durante a noite (em ref. à ave de mesmo nome)
TIBUNGAR: mergulhar, pular dentro d'água
TIRINETE : rojão doido, ritmo forte
TITELA: costelas da galinha (mas pode ser de gente)
TIÚ: também conhecido por téjo é um tipo de lagarto
TORÉCO: boi pequeno
TORREÃO: nuvem de chuva do tipo cúmulus
TRANCILIM: brincadeira de rua em que se usam elásticos esticados pelas pernas das meninas
TRISCAR: tocar de leve
TRONXO: torto
UNHA-DE-GATO:tipo de vegetação rasteira nativa do nordeste do brasil.
VAQUETA: tipo de fita feita de couro de boi para ser usado entre o pneu e o aro da bicicleta para não furar com espinho
VIXE: ave maria, eita ZÉ RUELA:Panaca,tolo
ZURUÓ : bêbado demais


Fontes:
http://www.futepoca.com.br/2008/02/o-bom-da-bebida-o-boneco.html
http://forum.paodemugen.com.br/
http://www.ceara.com/dicionario.htm
http://www.vadiando.com (imagem)