quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)


Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto transporta-nos para um universo onde sentimos de tal forma o pulsar da África, que chegamos a sentir saudades desse continente, mesmo sem nunca ter estado lá. Este livro mostra a preocupação do autor em preservar algumas tradições moçambicanas, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas aflorando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo. Tudo com uma linguagem lúdica, criativa, que não se envergonha nem mesmo de trocadilhos, capaz de fazer lembrar o falar das veredas do sertão de Guimarães Rosa.

Na obra somos levados a visitar os últimos 50 anos da história de Moçambique pela pena de um poeta que escreve em prosa. "Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas." (pág. 18).

É uma história que se situa num período de paz, depois de 16 anos de guerra. O autor viveu, praticamente, quase metade de sua vida sob o fogo cruzado da guerra. Primeiro, de 1972 a 1975, ainda adolescente, como membro da Frelimo, a frente de libertação liderada por Samora Machel. Depois, a guerra com a Rodésia e, em seguida, a guerra civil que destruiu o sonho de uma geração que pensava ser possível criar uma nação próspera, capaz de enfrentar o futuro com dignidade.

Fruto de um tempo de sonhada paz, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura que se sente em outras obras, de épocas mais duras. Enfim, sem esse viés, não se compreende este livro: Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, miséria e decadência que deixa claro que o sonho de Samora Machel e seus seguidores ficou longe de se concretizar. A realidade pós-colonial é ainda pior.

No livro, o estudante universitário Mariano volta a sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimônia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito íntimo, semelhante ao dilema da África pós-colonial. Esta Ilha vai representar para o protagonista um reencontro consigo próprio.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. (...) Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (pág. 190)

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral do avô de Mariano, este romance traduz, de uma forma ao mesmo tempo irônica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Certamente, nos familiarizamos com as personagens de Mia Couto, que poderiam habitar muitas de nossas regiões, com suas rezas e segredos. No entanto, o assalto aos valores desse povoado muito diz, como já citado, sobre a própria história de Moçambique, e mais além, sobre a situação atual do homem moderno em qualquer parte do mundo, exilado de sua coletividade e de suas crenças, errante num universo onde sua existência individual carece de importância. O autor aborda o confronto entre dois universos diferentes: o capitalista e urbano construído em torno das idéias de progresso e modernidade, e o religioso e mítico dominado pelos valores ancestrais da comunidade, cuja independência se apresenta recente.

Esse encontro se expressa nas surpresas e angústias de Mariano (personagem-protagonista), que ao redescobrir a sua comunidade, conhecerá também a sua própria história. Nascido na ilha, mas habitante da cidade, o jovem é obrigado pelas circunstâncias a um novo olhar para as tradições regionais que se impõem soberanas.

Ele irá transitar nos domínios natural e sobrenatural de Luar-do-Chão, onde o sagrado impera no mais banal e cotidiano, e as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a nos dar a dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada, bela lembrança de uma África originária.

Mariano recebe do avô "pseudomorto" a missão de restaurar a normalidade da vida, por meio da compreensão dos dramas interiores de cada um de seus familiares e do desvendar de segredos antigos. Insere-se o espaço da profundidade psicológica precisa na caracterização dos personagens, símbolos de diversas formas de existência e luta humanas.

As simples mulheres do povoado se mostram pivôs de antigos romances, de tragédias submersas no rio, muitas destinadas a representações míticas e fantásticas, como a bela Nyembeti, que simboliza a própria ilha (ou seria o próprio país, Moçambique). Incapaz de falar e dona de hábitos estranhos à maioria, a jovem é predestinada à exclusão e ao ofício de enterrar os mortos, dada sua familiaridade com o mundo subterrâneo.

Já os homens mostram-se sensíveis diante das transformações e ameaças iminentes da ilha. Por meio deles o autor trabalha o desencanto diante da independência conquistada, da tradição que se imaginara assegurada, misturado ao temor da perda de Nyumba-Kaya, morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

Não é à toa que o falecido avô, também Mariano, resiste em morrer. O retorno às origens, trilhado pelo neto, torna-se a verdadeira possibilidade da partida derradeira do avô, rumo a uma nova existência. A morte, nesse exemplo, requer o retorno à vida, a extração da verdade, sob conseqüência de perturbar todos os demais, pois algo deve ser dito. Algo tão importante, capaz de fazer com que a terra envergonhada se feche. Capaz de permitir que a ilha ressentida se mostre exausta e busque a verdade que oculta em seu solo.

Seu retorno é uma imposição da tradição, incumbido que fora para dirigir as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome e a incumbência. Neto favorito do patriarca de uma família moçambicana da terra, o estudante, ao chegar à ilha, vê-se envolvido então numa teia de intrigas e segredos familiares que imaginava já não existirem.

São intrigas que envolvem seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admiranga e sua mãe, Mariavilhosa, morta em circunstâncias nebulosas, todos nomes que fazem o leitor brasileiro lembrar de figuras do Nordeste. Marianinho logo descobre que a morte do avô – que teima em não morrer de vez – permanece envolvida por um mistério que escapa à luz da razão – como tudo nessa enigmática Luar-do-Chão, onde os mortos continuam a governar os vivos.

Portanto, o eixo temático deste romance gira em torno desta viagem empreendida pelo protagonista, e resgata, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Nas águas do rio Madzimi, Mariano parte em busca das suas origens e do seu passado, empreendendo, para tanto, um denso mergulho em suas memórias de menino, evocando com elas as brincadeiras de outrora com o amigo Juca Sabão, às margens desse mesmo rio. A chegada a Luar do Chão, sua terra-natal, se dá em sincronia com a partida do avô, passageiro do "barquito desabandonado" que o conduzirá pelas "águas do tempo" à "outra margem", onde ele se juntará aos seus antepassados, cumprindo, pois, o ciclo de vida acreditado em África.

A viagem de retorno à infância de Mariano e a do avô rumo ao futuro, indicam uma sincronia, visto que este movimento para trás e para frente aponta a chegada a um lugar onde idoso e criança tornam-se pontos limítrofes do mundo visível africano e que, por sua vez, convive harmoniosamente com mundo invisível dos antepassados. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance em questão, torna-se, portanto, "o umbigo do mundo", onde estes espaços se entrecruzam e estabelecem um ciclo vital entre si. A ilha é o último espaço de convivência entre avô, neto e família neste lado da margem e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar no mundo invisível. Esta premissa nos é inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro dos vinte e dois capítulos da obra: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos". A delimitação de um espaço primordial africano e a importância da consciência do homem da posição que nele ocupa revelam a preocupação constante de Mia Couto: como artesão da palavra, cabe ao poeta a função de pensar o mundo, o homem e a sociedade em sua totalidade e, com isso, fazer com que sua escritura provoque atitudes líricas mas também políticas que perpassem a beleza estética e resultem em ações que os integrem ao seu espaço e cultura.

A desagregação encontrada por Mariano em sua ilha-natal exacerba a fragmentação cultural que Mia Couto se preocupa em denunciar. Esta é claramente evidenciada através dos nomes das personagens, já que a descontrução lingüística empregada por ele denota um processo de revitalização da linguagem através da sua reinvenção, ainda que no romance em questão o autor lance mão de menos neologismos.

Pela modificação das construções e da estrutura das palavras da língua portuguesa, Mia Couto mescla elementos que resgatam a poeticidade em seu sentido lingüístico mais amplo, ressalta imaginário de seu país, preservando constantemente suas marcas culturais.

Por esta razão, o tio mais velho de Mariano, Abstinêncio abstém-se do mundo e da vida, minimizando todo o contato com o mundo externo, tomado por um mutismo que o afasta até mesmo de sua família. O terno negro e a gravata por eles envergados metaforizam um "escuro envergando escuridão" e a gravata cinza "semelha uma corda ao despendurão num poço que é seu peito escavado" por uma dor que ele não deseja claramente reconhecer, o que lhe acarreta a melancolia característica dos que se mantêm descontextualizados.

Fulano da Malta, o pretenso pai de Mariano, tem no nome toda a evidencia de indefinição e da insegurança como progenitor. O nome revela, sobretudo, sua melancolia em não reconhecer, como ex-guerrilheiro, os resultados da guerra por que lutou, o que o faz sentir-se excluído da nação e do mundo e, conseqüentemente, de sua família. O regresso de Mariano implicará, por isso, uma reaprendizagem mútua: a do pai que aprende a ser pai e a do filho que reconhece a pertinência de atos que Fulano outrora cometera e que apenas após este resgate do passado foram por ele compreendidos.

O tio Ultímio, terceiro dos três filhos, é, por sua vez, o que menos percebe a relevância da terra, da família e das tradições como elementos constituintes do homem, uma vez que, como burocrata, "se dá a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital, ocupado entre os poderes e seus corredores". A crítica à personagem se exacerba na comicidade da cena de seu automóvel importado atolado nas areias de Luar do Céu, até ali levado para impressionar futuros investidores estrangeiros ávidos por transformar a ilha em rentável investimento turístico, assim como para ressaltar as diferenças que Ultímio crê existir entre ele, sua família e os demais habitantes da localidade.

É, no entanto, outra personagem, a velha Miserinha, quem melhor descreve o quadro inicial da viagem e do cenário sombrio que permeia a ilha e seus moradores, todos metonimizados pela alegoria e vítimas, como o restante do país, da perda de identidade: "Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos". O único resquício de cor associada à personagem e à ilha está no lenço de seda multicolorido usado por ela e que representa a última memória das diferentes colorações do mundo, que contrastam, no entanto, com a roupa surrada da personagem, com seu rosto vincado e, sobretudo, com suas retinas fatigadas pelo tempo, as quais vêem os homens acinzentados e marcados por um traço comum: a perda do desejo e da identidade.

Ao longo da narrativa, Mariano se depara, pois, com o insólito causado pela quase morte do avô. Em estado de latência e possível catalepsia, Dito Mariano aguarda o regresso do neto a casa para que se ajustem detalhes cruciais à sua partida. Como espaço catalisador da ação das personagens "Nyumba-Kaya" é a casa que tem seu nome composto pelas palavras que designam este vocábulo em línguas de pontos extremos do país, "para satisfazer familiares do norte e do sul". Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fertilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano.

Quem a faz molhar é a avó Dulcineusa, doce no nome para compensar a amargura da perda de parte da mão e dos dedos corroídos pela acidez do caju colhido nos tempos coloniais. Em momentos que alternam delírio e lucidez, Dulcineusa revela conflitos do homem diante da confluência de valores sociais, culturais e religiosos que lhe foram impostos ao longo dos anos.

O percurso de Mariano é igualmente permeado por conflitos, dúvidas, descobertas e surpresas ligadas originariamente ao funeral, mas que acabam por revelar novas histórias para o protagonista e para sua terra. Lançando mão de elementos fantásticos, o "avô" comunica-se com o neto por meio de cartas que sua mão moribunda não pode escrever, as quais, por sua vez, surgem misteriosamente ao pé do neto para lhe servir de diretriz sobre cada passo a ser dado na condução das exéquias e na sua posterior liderança da família.

O retorno de Marianinho à ilha para encontrar uma nova forma de salvar a terra, que também é a sua casa, e reconstruir um mundo novo, sem abandonar as tradições, é, de certa maneira, uma parábola da África pós-colonial que precisa juntar seus destroços para seguir adiante e não ficar irremediavelmente para trás na história das nações.

O centro deste retorno é a casa de seus ancestrais na Ilha de Luar-do-Chão, o ponto de partida de sua identificação consigo mesmo dentro daquele universo aparentemente tão distante e tão diferente da cidade, lugar de sua formação, rico em recursos da modernidade, porém infértil para o sustento das tradições.

A relação estabelecida entre a casa e o tempo, declarada pelo próprio título do romance, permeia todas as vertentes da obra, todos os seus personagens e seus espaços.

Uma sucessão temporal de eventos, abrigados pela memória dos rituais da tradição africana, dentro das visões que Marianinho estabelece em suas visitas, se dá pelo contato do que lhe é natural e sobrenatural, um processo, muitas vezes, afastado dos conceitos de lógica e linearidade da verossimilhança.

Esta ruptura com a linearidade do texto, no uso sensível da prosa poética, é um grande marco da escrita de Mia Couto, apropriando-se da construção do fantástico dentro da realidade de seus personagens e da realidade do próprio leitor. O trabalho “artesanal” de seu léxico é um registro de compromisso com a representação estética do mundo. O uso explícito de criações neológicas ultrapassa o registro do que seria uma linguagem regional e oral, representando, nas mãos do escritor, a exposição de um universo contraditório presente nos países colonizados em África que buscam até hoje, após e até pela Independência, sua identidade.

O tempo e a casa selam uma união conjugal dentro do romance. O tempo, em seu caráter masculino, representa os homens da história. Sofre um processo de desmoronamento (particular à casa) para refletir toda a desconstrução dos homens desta família: suas dependências emocionais, suas ambições sempre volúveis, os desenganos vestidos pela guerra do país e desnudos por uma fome de paz interna e externa insaciável em seus corpos e espíritos.

A casa, o feminino, é habitada pelas mulheres. Precisa de defesa, mas mantém-se altiva pela junção dos vivos e dos mortos no ventre de seus corredores. As revelações que direcionam o desenvolvimento do romance são cozidas, conduzidas e muitas vezes protagonizadas pelas mulheres da família.

A morte de Dito Mariano, patriarca dos Malilanes é a morte da “casa pai” e o nascimento da “casa mãe”, responsável pelo abrigo das peças que compõem a identidade de Marianinho mediada pela tradição e pela modernidade de seus valores.

Um dos pontos fulcrais do romance é a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto (ou semivivo?) antes do tempo oportuno. A tentativa de antecipar o enterro, liderada por Últímio, não encontra a maior resistência na família, mas sim no solo adubado pela insensatez humana que se cerra completamente na recusa de receber o corpo de Mariano. O chão arenoso em que o automóvel importado atolara resiste, agora, rígido, à pá do coveiro e faz com que seu metal se vergue ensimesmado no terreno desprovido da maciez que a umidade da água outrora lhe concedera.

Fontes:
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, Portugal | AdeltoGonçalves, doutor em Letras (Literatura Portuguesa), Universidade de São Paulo(USP) | Prof. M. A . Robson Lacerda Dutra, Mestre em Literatura Portuguesa -Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponivel em Passeiweb

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas)


IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,
meu pai pintou acasa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe ospeixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar,abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado,até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

DIA

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral-
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

PARÂMETRO

Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

POEMA COMEÇADO NO FIM

Um corpo quero utro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.

Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

EXAUSTO

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

(in Bagagem)

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 473)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

No imenso palco, o amor
destaca nos jardins meus
um carvalho com fulgor
na ponte entre mim e Deus…
–JOSÉ FELDMAN/PR–

Uma Trova Potiguar

Duvido dessa paixão,
embora razões não tenha.
As cordas do coração
não servem p’ra amarrar lenha!
–WALTER CANUTO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Quando a noite sobrevém,
a solidão, por maldade,
só traz lembrança de alguém
quando esse alguém é saudade...
-VASQUES FILHO/PI-

Uma Trova Premiada


2010 - RibeirãoPreto/SP
Tema: VIAGEM - 2º Lugar


Já reservei a passagem
e aguardo sem reclamar...
que a data desta Viagem
é Deus quem vai carimbar!
–Carolina Ramos/SP–

Simplesmente Poesia

Mata
–SELMO VASCONCELLOS/RJ–


Hoje me matas
violentamente com este machado.
Mas, amanhã das minhas flores
te farão uma coroa,
do meu caule
tua urna mortuária.
Aí sim,
irás ao encontro da minha raiz.

Estrofe do Dia

Cada vez mais eu consigo,
separar trigo do joio...
Pra quem precisa de apoio,
meu coração é um abrigo.
Desconhecido ou amigo,
seja lá quem ele for
no seu momento de dor
eu ponho a disposição
meu sofrido coração
para os carentes de amor.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Sublime Amor
–HAROLDO LYRA/CE–


Numa clínica, um velho procurava
Rápido curativo à mão doente.
Dizia-se apressado, que era urgente,
Pois tinha um compromisso e se atrasava.

O médico, atendendo ao paciente,
Perguntou por que tanto se apressava!
É que, num certo Asilo, costumava
Tomar café co’a esposa, já demente.

O médico ressalta: “Por descaso,
Não reclamara ela desse atraso?”
E ele: “Nem mais me reconhece, até”.

“Então! É apenas um capricho seu?”
“Oh, não! Ela não sabe quem sou eu,
Mas eu sei muito bem quem ela é”.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Pedro Malasartes (Malasartes e as Botijas de Azeite)


Um dia, Pedro Malasartes foi ter com o rei e lhe pediu três botijas de azeite, prometendo-lhe levar em troca três mulatas moças e bonitas. O rei aceitou o negócio. Pedro saiu e foi ter à casa de uma velha, ali pela noitinha; pediu-lhe um rancho, e que lhe botasse as botijas no poleiro das galinhas. A velha concordou com tudo. Alta noite, Pedro Malasartes levantou-se, foi de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derramou o azeite, lambuzando as galinhas. De manhã muito cedo Malasartes acordou a velha, e pediu-lhe as botijas de azeite. A velha foi buscá-las, e, achando-as quebradas, disse: "Pedro, as galinhas quebraram as botijas e derramaram o azeite".

– Não quero saber disso, -disse Pedro; -quero para aqui meu azeite, senão quero três galinhas.

A velha ficou com medo, deu-lhe as três galinhas. Malasartes partiu e foi à noite à casa de outra velha; pediu rancho e que agasalhasse aquelas três galinhas entre os perus. A velha, como tola, consentiu. Alta noite, Pedro se levantou, foi ao quintal, matou as três galinhas, besuntando de sangue os perus. No dia seguinte, bem cedo, acordou a velha, pedindo as suas galinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi buscá-las e encontrou o destroço. Voltou aflita, contando a Malasartes.

Ele fez um grande barulho até levar seis perus em troca das galinhas. Na noite seguinte, foi ter à casa de um homem que tinha um chiqueiro de ovelhas, e pediu-lhe para passar a noite em sua casa e que lhe agasalhasse aqueles perus lá no chiqueiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez.

Tarde da noite, Pedro foi ao lugar onde estavam os perus, e matou-os a todos, labreando de sangue as ovelhas.

O homem, indo-os buscar, achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo: "Pedro, não sabe, as ovelhas mataram os seus perus". Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus. Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas.

Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram.

Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e de enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um homem rico que havia ali perto. Pediu rancho, disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar.

Foram levar a moça para uma camarinha, indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, dizendo às donas da casa: "Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança; quando chorar, metam-lhe a correia."

Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a moça e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou.

Depois ele escapuliu e foi para o seu quarto.

De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que ela estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça dizendo:

"Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!…"

Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito.

Malasartes largou-se e foi logo para o palácio, onde entregou orei as três mulatas com este dito: "Eu não disse a vossa majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas".

O rei ficou muito admirado.

Lola Prata/SP (Terragua)


Na dança galáctica, eis o planeta,
em parte prateado sob lua-cheia
ou dourado ao sol... O fogo o recheia,
grafitado em névoa, pura naveta.

Revelou Betânia numa retreta:
todo azul ao longeda astral aldeia
vem da santa Virgem que a galanteia
sob o manto anilado da paleta...

Há sonho branco de anseio de paz,
de verde vivo... ou de sangue vermelho
da insensatez carrasca que se alastra...

Tal lar esférico sera capaz
de reversão... ou de se por de joelho
contra a teimosia que a vida castra?

Fonte:
Jacqueline Aisenman. Revista Varal do Brasil: Literário, sem frescuras. Edição Especial:Nosso Planeta Terra. Genebra: abril de 2011

J. G. de Araújo Jorge (Caminhos Para a Solidão)


A verdade é que à proporção que vivemos, vamo-nos sentindo mais sós, como uma ilha cercada de gente por todos os lados. Não a solidão dos cosmonautas, povoada de silêncios e de estrelas. Mas a solidão de um carnavalesco, cantando para não chorar, para se esquecer que está sozinho.

"Por certo a pior solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração,
no meio de muita gente."


Gente tão perto de nós, com quem se esbarra na rua, que se atropela na corrida para apanhar a condução, que se acotovela nos ônibus, nos trens; gente tão próxima, mas na realidade, cada vez mais distante.

Gente que não existe. Ou por outra, que existe como multidão, anônima, fora de nossas realidades, apenas vago e fantástico cenário.

Sociólogos, psicólogos, têm procurado estudar o grau de desumanização do homem e da vida nas grandes cidades. Urbanistas e arquitetos projetam concepções salvadoras para esse pobre homem criado num caos. Que restará do homem que havia dentro de nós? Veja-se a indiferença com que encontramos pedintes miseráveis, crianças abandonadas, criaturas doentes, e seguimos tranquilos para a nossa sessão de cinema. Sua dor não nos toca; seus problemas não nos preocupam; fazem parte de todo um complexo mundo, em que vamos vivendo, despercebidos de nossa desumanidade. E a nos dizermos cristãos.

O remorso ficou no poema:

"Às vezes me envergonho
de alguma ajuda recebida,
quando sei que há tantos homens mais necessitados
sem um gesto de apoio ou de acolhida.

Me envergonho de gozar meu reduzido conforto,
quando sei que há tantos homens inteiramente
desabrigados, sem destino nem porto.

Me envergonho de meu egoísmo a se chamar de
altruísmo, quando dou uma esmola
e contínuo para a minha seção de cinema."


Bem diz a amarga letra da canção: "Ninguém é de ninguém"

Não temos tempo para os contatos cordiais, para cultivar a amizade, para trocar idéias em torno da mesa de um bar, ou de um café. Inventaram uma profissão "relações públicas", mas para se ganhar mais dinheiro. É diferente.

Os cafés que tinham mesas, os antigos cafés que eram como salas-de-espera de populares academias literárias, há muito desapareceram. Os próprios bares já se transformaram. E não só o cafezinho, ou a laranjada, tudo é tomado às carreiras, de pé, sem oportunidade para uma pausa amistosa, sem esse calor humano que faz do homem um ser integrado em sua coletividade.

Vivemos nas grandes cidades a pior de todas as províncias, cada um com a sua pequena "linha-circular". Passamos, diariamente, a carbono, a nossa vidinha.

Acordamos à mesma hora, apanhamos a mesma condução, encontramos as mesmas pessoas, trabalhamos com os mesmos colegas e companheiros.

Conhecemos as caras dos cabineiros, motoristas garçons, jornaleiros. São os habitantes da nossa "província cotidiana", mas, no fundo, nada ou pouco representam. São apenas acidentes do nosso itinerário, e a eles não nos prendem laços mais profundos que cumprimentos convencionais ou comentários supérfluos.

O "cafezinho" - essa expressão que encerra, no fundo, uma indisfarçável ternura do brasileiro por alguns efêmeros minutos de convívio humano, - é o último refúgio de sua inevitável desumanização. Saturado de trabalho, de tédio, ou da vida, da repartição ou do escritório ele tenta a escapada:

"Vamos tomar um cafezinho?"

Mesmo em pé, comprando ficha, sem poder sentar-se, ele se refaz um pouco. Tenta lembrar-se de si mesmo, dos outros. É o seu segundo de higiene mental, seu resto de sociabilidade. A oportunidade para um "papo" com o amigo eventual, ou com o conhecido. Para olhar as belezas que passam tão perto dos olhos, e tão longe... Para rir-se um pouco. Ouvir, ou contar a última anedota. Para sentir-se, durante uns poucos momentos, uma pessoa humana.

As grandes cidades vão asfixiando o homem, como um imenso polvo em seus tentáculos de concreto e de asfalto. Homem de infância no interior, o Rio (de Janeiro) às vezes me angustia, me oprime. Quase diria: me amedronta. Sinto necessidade de fuga. Mas, para onde? Fuga, não só ao ar cinzento, aos ruídos, letreiros luminosos, mas, principalmente à multidão indiferente que escachoa ao redor, atordoante e estranha. Que não sabe que existimos, não se interessa por nosso destino, não participa de nossas emoções; tão ao nosso lado, mas da qual nos mantemos capilarmente isolados.

Li, não me lembro quando, que um arquiteto suíço, Honeger, tendo construido um bairro, numa cidade africana, para tribos pouco civilizadas, projetou-o com todas as comodidades modernas inclusive água encanada. Para sua surpresa, quando expôs seu plano, as mulheres não gostaram. Preferiam suas antigas choças, mesmo sem tanto conforto, e sem água encanada. Preferiam continuar indo à fonte de águas limpídas, onde enchiam seus vasilhames de barro, ou suas latas. Era justamente nesses momentos que elas esqueciam um pouco o trabalho de casa, perdiam tempo conversando, tagarelando, e se sentiam humanas, deixando de lado problemas e preocupações. Era, digamos assim, para aquelas humildes criaturas, a sua vida social.

A civilização atual vai tirando ao homem todas as oportunidades de poder perder tempo. O homem vai se esquecendo de que, o que ele perde em tempo, ganha em vida.

Esses que não têm tempo a perder, são justamente aqueles que perderão a vida num passo adiante. Os homens se esqueceram de que não são máquinas, de que o coração não é um dínamo, de que os nervos e o espírito não possuem a estrutura ou a resistência do aço.

Já que somos uma ilha cercada de gente por todos os lados, vamos lançar, ao menos, vez por outra, uma ponte para o grande continente da convivência e da solidariedade humanas. A solidão dos homens normais é aquela que não prescinde das alegrias da amizade, da companhia do amor.

Oh, a inveja que sinto, hoje, dos moradores das pequenas cidades. Os que ainda têm tempo para se sentar nos bancos das praças, nas mesas dos cafés, olhar as belezas que passam, discutir política, "salvar" o mundo dos outros, porque o seu está seguro. Os que se visitam e são visitados. Os que ainda podem ter uma província verdadeira, mesmo violentada pela televisão, mas sem a subversão do tempo.

Os que ainda tem tempo para ler livros, ouvir música, olhar o céu, admirar a paisagem. Os que ainda têm tempo para amar a paisagem e os seres e - Oh!, suprema ironia! -até para se lastimarem da vida monótona de sua cidadezinha, o seu Paraíso impercebido.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 472)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

No aceno a paixão reparte
a dor que se multiplica
na tristeza de quem parte,
na saudade de quem fica!
–ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA/PA–

Uma Trova Potiguar


Meu pai era um homem pobre
quanto ao sentido do ter,
mas foi sempre muito nobre
quanto às virtudes do ser.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Ia um casal caminhando,
velhinho, trôpego o passo.
- Era a Saudade levando
o Passado, pelo braço...
–ELTON CARVALHO/RJ–

Uma Trova Premiada

2011- Niterói/RJ
Tema:RANCHO - Venc.


Meu rancho ficou deserto
após sua despedida,
porque sem você por perto
nem minha vida tem vida.
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Simplesmente Poesia


Fuga ?
–J.G. DE ARAÚJO JORGE/AC–


Escrevo. Tento evadir-me.
Para onde? Se não há saídas,
se já experimentei todas as vidas
e em vão...

Tento evadir-me, e as palavras
são como túneis
sem fim, em minha solidão…

Estrofe do Dia

Não queria chorar na despedida
mas a saudade é mal que não tem cura,
a tua ausência é algo que perfura,
me retorce, e abre em mim uma ferida;
um abismo que habita a minha vida
uma angústia cruel chega e invade,
não suporto tamanha crueldade
e até hoje meu peito ainda chora;
se eu ainda estou vivo até agora
é porque ninguém morre de saudade!
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

Se Voltares
–ROGACIANO LEITE/PE–


Como o sândalo humilde que perfuma
o ferro do machado que lhe corta,
hei de ter a minha alma sempre morta,
mas não me vingarei de coisa alguma.

Se algum dia, perdida pela bruma,
resolveres bater à minha porta,
em vez de humilhação que desconforta,
terás um leito sobre um chão de pluma,

e em troca dos desgostos que me deste,
mais carinhos terás do que tiveste
e meus beijos serão multiplicados.

Para os que voltam pelo amor vencidos,
a vingança maior dos ofendidos
é saber abraçar os humilhados!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Carlos Magno e o Abade de S. Gall)


Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta da abadia, fresco, rosado, e bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos e ativos, e o abade era indolente. Além disso, o imperador tinha mais de um motivo de queixa contra ele.

– Bons dias, senhor abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida razão três perguntas, às quais terá a bondade de me responder daquia três meses, contados dia a dia, em sessão solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que V. Rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num burro com a cara voltada para o rabo.

O abade não sabia a que santo apegar-se. Mandou a todas as escolas, mas os doutores mais famosos pela sua ciência, não lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês, já não faltavam senão semanas, e afinal só dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.

– Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro! Anda doente?

– Ando, meu caro Félix, ando muito doente.

– Oh! meu rico amigo, eu lhe darei alguma erva que o possa curar.

– Infelizmente não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas três perguntas.

– É então latim?

– Não, não é latim, senão os doutores tinham-me arranjado tudo.

– Visto que não é latim, queira V. Rev.ma dizer-me o que é: minha mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.

Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou com o barrete ao ar, e disse-lhe:

– Se é apenas isso, eu me encarrego de responder por si, e V. Rev.ma pode continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu vista o seu hábito.

Quando chegou o dia, o pastor, disfarçado com o hábito do abade de S.Gall, foi introduzido na sala onde o imperador presidia ao conselho do império.

–– Então, senhor abade, parece que está mais magro; deu-lhe muito que pensar a chave do enigma? Vamos lá ver a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?

– Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só um dinheiro menos.

– Bravo, senhor abade, a resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há-de ser tão fácil encontrar a resposta. Vamos lá a ver: Quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?

– Senhor, se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir constantemente passo a passo o Sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro horas.

– Decididamente V. Rev.ma e um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a terceira, não é dessas a que se responda com suposições. Quem lhe há-de dizer o que eu estou pensando, e como me há-de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra, senhor abade.

– Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou o abade de S. Gall; está enganado porque sou o seu pastor.

– Mas então tu é que deves ser o abade de S. Gall; e desde já o ficas sendo.

– Não sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe outra coisa.

– Não tens mais que falar.

– Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.

Carlos Magno não era um homem que faltasse à sua palavra.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - X - Peninha não falha


Narizinho fora levada para o alto da árvore onde tinha de morar toda a vida com o seu esposo macaco. Pedrinho fora amarrado ao tronco onde ia ser comido pelas formigas. O Visconde fora dormido num galho de pau..

Era o único feliz. Teve lindos sonhos. Sonhou com um país sossegado, onde não havia nem Emílias nem canastras.

Veio a noite. A macacada começou a cair num tal sono que dentro em pouco só se ouviam roncos naquele trecho da floresta. Da árvore onde estava, Narizinho pôde ver Pedrinho amarrado ao tronco.

— Tepenhapa papacipienpenciapia quepe Pepenipi-nhapa nãopão tarpardapa — gritou-lhe ela.

Nem bem acabara e já ouviu um galo cantar longe — Cócóricócó!

— Épé epelepe — gritou de novo a menina, batendo palmas.

E era mesmo. A pena de papagaio vinha flutuando em cima do burro em disparada. Peninha saltou em terra e correu a descer Narizinho da árvore. Os macacos, que lá estavam de sentinelas, não perceberam nada, tamanho era o sono.

— Estou estranhando o sono desta bicharia — disse a menina.

— Por mais barulho que se faça, nenhum acorda.

— Pudera! — exclamou Peninha. — Pus tal dose duma planta dormideira no poço onde eles bebem, que só amanhã lá pelo meio-dia poderão despertar. Que é de Pedrinho?

— Ali naquele tronco!

Peninha correu a desamarrá-lo. Depois foi acordar o Visconde, que danou de ter de cortar a gostosa soneca para novamente pôr às costas a canastrinha.

— Agora é montar no burro e tocar no galope!

— Não ainda! — disse Pedrinho. — Tenho contas a ajustar com o macacão rei.

Foi em procura de Simão XIV, que encontrou a roncar no meio de toda a corte, igualmente adormecida.

“Que fazer para vingar-me? Ah, já sei!”

Tomou uma tesoura que andava por ali e cortou-lhe as barbas, a ponta da cauda e meia orelha, dizendo:

— Quando a macacada despertar amanhã, nenhum poderá reconhecer o grande rei Simão Banana, e todos correrão daqui, a pau, este mono duma figa!...

Em seguida reuniu-se aos outros e pronto!

— Vamos! — gritou Peninha para o burro.

O animal saiu no galope e em menos de meia hora os levou para onde estavam os fabulistas. De longe já os meninos os viram, sentados na mesma pedra, ferrados na mesma discussão.

— Vivam! — exclamou o senhor de La Fontaine. — Por onde andaram os meus meninos?

Cansada das aventuras do dia e ansiosa por voltar para casa, Narizinho desfiou atropeladamente, sem apear-se do burro, as principais peripécias do passeio.

— Quando estivermos juntos outra vez, contarei tudo mais direitinho. Agora não posso. Adeus, senhor de La Fontaine! Adeus, senhor Esopo! Até um dia!

— Para onde vão com tanta pressa?

— Jantar! — gritou Pedrinho.

— Senhor de La Fontaine — disse Emília — fique sabendo que gostamos muito da sua pessoa. Apareça lá no sítio para tomar um cafezinho coado na hora. O senhor também, seu Esopo. Mas vá de paletó e calça, se não tia Nastácia se assusta. Não façam cerimônias. Dona Benta não se importa. Ela é muito boa...

Os fabulistas prometeram aparecer.

— Au revoir! — gritou de longe a menina.

— Au revoir! — repetiu o senhor de La Fontaine com um aceno de mão — e ficou por um tempo a segui-los com os olhos.

Quando o burro desapareceu numa nuvem de pó, lá bem ao longe, o fabulista suspirou:

— Felicidade, teu nome é juventude!... Em seguida voltou a sentar-se na pedra, à beira do ribeirão, e retomou a conversa com Esopo no ponto em que os meninos a haviam interrompido.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Correções

As postagens de ontem tiveram incorreções, com palavras coladas, o que ocasionou leitura errada de frases. Graças a uma das leitoras do blog, que me avisou do ocorrido, corrigi-as e hoje estão postadas novamente, corretamente.

Perdoem não perceber a falha anteriormente.

José Feldman

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Carolina Ramos (Liberdade em Trovas)


No Livro da Eternidade,
o herói a expirar, exangue,
a História da Liberdade
escreve com o próprio sangue!
*

Na vida, quanta maldade
não punida, se repete!
E, em nome da liberdade,
quantos crimes se comete!
*

Dessa cruel liberdade
de ofender, há quem abuse
a esquecer de que a verdade
um dia talvez o acuse!
*

Liberdade de calar
todos têm, mas, cuida, pois,
ser livre é poder falar
e seguir livre depois!
*

Liberdade é o grande anelo!
Na mansão, casebre ou ninho,
é o cobiçado castelo
quer do rico ou pobrezinho!
*

Na vida, a luta não cessa
em prol do sonho e do pão
e a liberdade começa
onde acaba a servidão!
*

Ser livre é também saber
que a liberdade alcançada
faz parte do próprio ser
e não se troca por nada!
*

Liberdade, em termos sãos,
vale mais se, humildemente,
podendo retê-la em mãos,
nós a damos de presente!
*

Não se queixa de ser pobre,
quem, no seu modesto lar,
trabalha e feliz descobre
que é livre para sonhar!
*

Pobre pássaro!... é de crer
que a prisão não mais suporta
- e vale a pena viver
se a liberdade está morta?!
*

A liberdade germina
quando um povo pulsa e anseia,
qual semente pequenina
que rasga o solo e se alteia!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.
Imagem = http://www.adilsoncosta.com/tag/liberdade/

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 471)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

O ganso jurou vingança
ao notar, estupefato,
que o pato dormiu com a gansa
e ele fez “papel de pato”!
–JOSÉ OUVERNEY/SP–

Uma Trova Potiguar

A ressaca da bebida
é pra ninguém esquecer,
por isso a melhor pedida
é não parar de beber!
–HELIODORO MORAIS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

O viúvo, à falecida,
chorando que dava pena:
- Vai com Deus, minha querida,
que eu fico com Madalena
–ANALICE FEITOZA DE LIMA/SP–

Uma Trova Premiada


2010 - Curitiba/PR
Tema: PIJAMA - M/H


Irmão gêmeo, desligado,
só viu que errou de pijama,
quando acordou, assustado,
com a cunhada na cama.
–ALBA CRISTINA C. NETO/SP–

Estrofe do Dia


O desmantelo no mundo
Tem me causado alvoroço,
É homem falando fino,
É mulher falando grosso,
Tem até velha corcunda
Tirando carne da bunda
Pra colocar no pescoço.
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

Um Certo Alzheimer
–FRANCISCO MACEDO/RN–


Chegou sorrateiro, um famoso Alemão,
disfarça, me cerca, me deixa em apuro, ,
com cara de austero, em cima do muro,
e assim, vez em quando, a maior confusão.

Maior compromisso, e se foi reunião,
às vezes, um branco, melhor... Um escuro,
que deixa este vate, nem sempre seguro,
e assim, de repente, a mental confusão.

Por este “alemão”, eu já tenho fobia,
porque quase sempre me tolhe a poesia.
Por este infeliz, eu já pago alto preço!

O lápis na mão, a poesia chegando,
Ai, de repente, um branco nefando...
A ideia tão boa, meu Deus, mas esqueço!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (As Três Camas)


Esta estória se deu no canto de uma loja de moveis novos e usados na Rua do Catete. Num canto escuro, ao fundo da loja, bem distante do escritório, onde o gringo e o amigo conversam sobre as contas a cobrar, os juros das letras entregues ao banco e os clientes novos em perspectiva.

Acabavam de armar uma cama ao lado de outra que já estava no local. Por estranho que pareça, uma em imbuia, estilo "chipandale", pobre, a outra, em pau-marfim, rica, estilo moderno.

Os empregados armaram a cama e foram embora. Foi quando no silêncio daquele canto da loja, ouviu-se uma voz fina de imbuia:

- Até que enfim me arranjaram uma companhia! Puxa! Já estava entediada!

E outra voz, clara e forte, de pau-marfim, respondeu:

- Também fico satisfeita de me colocarem aqui. Pelo menos terei com quem conversar um pouco. Estava com medo danado que me botassem junto a uma mesa de sala ou a uma poltrona.

- Ah! Lá isto é verdade. Antes só, que andar misturada com essa gente estranha!

- Você já esta aqui há muito tempo?

- Pois você não viu logo? Repare que já estou toda empoeirada, e estes gringos nem sequer me mandam passar um pano vez em quando. Eles não fazem muita questão de me vender. Pertenço a uma mobília barata, ai uns 200 cruzeiros novos.

- 200 cruzeiros novos só! Olhe que é pouco!

- Olhe que é muito, minha amiga. Fizeram um trabalho porco com a minha madeira, e se você me levantar as tábuas é que verá como tenho as pernas desconjuntadas. E a estrado que me deram! Pinho vagabundo, cheio de furos.

- Pois você merecia outra sorte! Estou estranhando, por que ouvi lá na carpintaria dizerem que a minha mobília seria de 1.500 cruzeiros novos!

- Tem sorte! Olhe, repare aqui, na cabeceira. Esta vendo esta mancha? Pois eles nem pensaram em lixar a envernizar direito! Parece até que sou doente!

- Mas há quanto tempo você esta aqui?

- A falar a verdade não sei, não. Esta vida é tão monótona, os dias tão iguais, que acho que me enganei na canta. Mas pelo menos há seis meses, estou aqui, de pé... com poeira e tudo.

- É..., é muito tempo... E não tem vindo gente ver?

- Ter, tem... Mas o diabo do gringo só leva o pessoal para o outro lado onde há mobílias caras... Olhe que com a sua vinda eu talvez arranje um pretendente... Pelo menos melhorou muito a situação...

- Pois faço votos que realmente eu possa ajudar um pouco...

- Alias, minha amiga, eu nem sei se vou ficar satisfeita de sair daqui... Você sabe, mas destino de pobre é este mesmo. Nascemos para sofrer...

- Ora, não diga isto.

- É verdade. Veja você que destino há de me esperar. Algum operário ou pequeno funcionário me compra aqui a prestação, e eu vou parar numa casinha de subúrbio... vou viver em casa de pobre, servir de cadeira pra costura, de brincadeira pros garotos pularem... E na certa que vou comer pó como o diabo... Ah! porque não nasci eu uma cama em pau marfim!

- Gostaria tanto?

- Natural.

- Pois minha amiga, não vejo muita diferença, não.

- Não vê?

- Afinal que diferença faz eu estar numa casa de rico, não vou servir ao mesmo destino?

- Lá isso é verdade, mas pelo menos você vai pisar em cima de tapete, vai ser espanada todo dia... Talvez vá para um apartamento alto, sinta um pouco de ar, de sol... Ah! que saudades do tempo em que andei no tronco da imbuia no meio da mata, e apanhava sol e chuva . . .

- No fim, minha amiga, tudo vai dar no mesmo. . . E sorte teremos nós é se aqueles que nos comprarem não forem muito pesados... Sabe o que ouvi conversarem na carpintaria?

- Que foi?

- Estavam consertando uma cama usada.

- Sim, e que tem?

- Pois estavam dizendo que a cama quebrara com o peso dos que dormiam nela. E só vendo como o pessoal punha pimenta na história!

- Olhe, você quer saber de uma coisa? Quando penso nisto, eu tenho até vontade de ser uma poltrona.

- Ah! isto também não, seria rebaixar-nos demais! Você já pensou na maneira como os homens se utilizam da poltrona? Em nós pelo menus, eles ficam deitados...

- Sim, mas fazem cada coisa...

- E como é que você Sabe disto?

- Ora, minha amiga... . Eu estou aqui há seis meses... De passagem já ouvi muita conversa também... Pois você não esta contando coisas que ouviu lá na oficina?

- A minha esperança é servir a um casal de recém-casados, assistir a uma lua-de-mel...

- Pois não lhe gabo o gosto. O meu desejo era ser cama de mulher solteira...

- Sonsa! Alias você deve perder as esperanças, porque afinal você foi feita pare casal. . .

- Eu sei. Ninguém pode lutar contra o destino ... Mas era o que eu queria...

- Pois olhe, que deve haver muita cama solteira por ai, capaz de fazer corar uma cama... de pedra!

- Pelo visto você também ouviu mais coisas lá na oficina!

- Ora, se ouvi.

Nisto a converse é interrompida por alguns empregados que trazem duas mesinhas de cabeceira, colocando-as perto das duas camas. Depois se afastam.

A cama de imbuia:

- Ih! Pelo visto vamos ter mais companhia.

A cama de pau marfim:

- É... e esta parece cama usada. Não vê pela aparência das mesinhas. . .

- Silêncio. Lá vem os homens carregando outra cama.

Os empregados chegam trazendo outra cama, uma cama velha, usada. Armam as peças, aparafusando-as nos lugares, e saem.

A cama de imbuia:

- Boa tarde companheira!

A cama de pau marfim:

- Pelo vista ela não gosta de conversa.

A outra cama:

- E não gosto mesmo. Será que nem bem cheguei não posso ficar descansada um minuto...

A mesa de imbuia:

- Coitada ! Esta sofre dos nervos...

A cama de pau marfim:

- É... e esta bem estragada . . . De só uma olhadela pro estrado. . .

A cama que chegou:

- E vocês não viram nada. se olhassem pro colchão é que iam ficar admiradas... Ora vejam só, que duas caminhas virgens tão metidas...

A cama de imbuia:

- Afinal não sabe precisa ficar toda abespinhada . . . Ninguém a ofendeu . . .

A cama que chegou:

- E será que eu ofendi a pudicícia das donzelas, chamando-as de virgens... Ou não são?

- Eu sou, respondeu a cama de imbuia.

- Eu também, não esta vendo logo... Ainda estou cheirando a madeira. . . Nem o homem do verniz me botou a mão...

- Pois, olhe minhas filhas, vocês não sabem a vida que as espera.

A cama de imbuia:

- Pois nós, falávamos há pouco justamente sobre isto. Fazíamos conjecturas. E tão ruim a vida de uma cama!

A cama que chegou:

- Tão ruim?! Vocês vão ver!

A cama de pau marfim:

- Por que você foi vendida novamente pra loja?

- Porque a mulher que me tinha resolveu acabar com o negócio.

- Negócio? perguntou a cama de imbuia.

- Sim, negocio. E quem pagava o pato era eu. Pra dizer a verdade eu era a base de todo o negocio, até que a policia bateu lá!

A cama de pau marfim:

- E que negocio era esse?

A cama que chegou:

- Ora, essa! Será possível que eu precise dizer que negocio era?

A cama de pau-marfim:

- Puxa! que vida interessante você levou.

A cama que chegou:

- Interessante! Eis ai uma caminha com vocação suspeita... Não há de ter bom destino...

A cama de pau marfim:

- Você sem ofender não passa.

A cama que chegou:

- Não seja tola. Você pode morrer de curiosidade por assistir porcarias, mas eu já estou cheia... Felizmente já me livrei daquele colchão imundo que aguentei durante três anos...

A cama de imbuia:

- Mas você só tem três anos de uso? Esta muito bem conservada.

- Três anos?! Três anos estive eu com a tal mulher. Tenho doze anos de uso, minha filha. Já estou derreada, precisando que me troquem as pernas...

- Doze anos! exclamou a cama de Pau marfim.

- Sim, mocinha. Sim, meu anjo, doze anos! Não vá corar essas brancas faces de pau-marfim se lhe contar o que passei. . .

As duas camas:

- Ah' conte! conte!

- Pois minhas filhas, eu fui comprada para uma lua-de-mel... No fim de seis meses voltei pra oficina, para que me apertassem as juntas, os calços. Sabem, estas traves de madeira que aguentam o estrado?

- Pois dois deles se partiram... Tiveram que ser trocados.

- Pesavam tanto assim os recém-casados?

- Não era tanto o peso . . .

A cama de Pau marfim:

- Que coisas você não viu, hein?

- Ver, não vi. Vocês sabem que nos não temos olhos. Mas o que não adivinhei . . . Bem! Pouco tempo depois, fui vendida. Botaram um anuncio num jornal, a eu troquei de dono. . .

- Logo, tão cedo?

- Ele era viajante, teve que mudar de cidade, e preferiu vender os moveis. Iniciava-se assim minha vida airada . . . Fui comprada pelo dono de um hotel... Vocês podem lá imaginar o que é ser cama em quarto de hotel?

A cama de pau marfim:

- Que vida dura!

A cama de imbuia:

- Cala a boca, sua tonta!

A cama que chegou:

- Pois bem que foi uma vida dura a partir dai. Em cima de mim, foi morta uma mulher, e sai até no jornal... Publicaram meu retrato com a mulher em decúbito dorsal, na primeira página...

- Mataram a mulher?

- O sujeito matou. E sabe que corri o risco de ser queimada?

- Como foi isto, perguntaram, a uma voz, as outras duas camas.

- Pois o sujeito pensou em queimar a cama, e deixar o quarto pegando fogo pare apagar a prove do crime.

A cama de pau marfim:

- E por que ele não fez isto?

- Porque com o ruído da lute e os gritos da mulher... mas já era tarde quando chegaram.

A cama de imbuia:

- Puxa! que susto você passou! Ser incendiada como qualquer acha de lenha sem nome nem estilo...

- Sei lá, meu bem. Eu até acho que preferia esse fim.

- E depois...

- E depois continuei na mesma vida... Foram oito anos e pouco, bem contados. Mudaram-me de quarto uma porção de vezes . . . Um dia, um casal dormiu com um filhinho pequeno de um ano e pouco... E o garoto durante a noite... molhou-me até os ossos

A cama de pau marfim:

- Eu queria ver era a cara do colchão numa horas destas!

A cama de imbuia:

- Ora, não zombe da desgraça alheia.

A cama que chegou:

- O que eu sei é que ele pelo menos apanhou um pouco de sol. O gerente mandou botar ele numa janela dos fundos pra secar ...Mas eu tive que secar ali mesmo... Uma outra vez trouxeram para o quarto duas camas pequenas, pares dois garotos... Mas os pais saíram, deixaram os garotos sozinhos, e eles me escolheram para palco de suas travessuras . . . Pularam tanto... tanto... que me arrebentaram as costelas... quero dizer, o estrado...

A cama de imbuia:

- Coitada, e você foi levada pra oficina?

- Vocês não vem estas ripas aqui por baixo? Pois estão aqui desde essa ocasião ...

A cama de pau marfim:

- E quando é que você foi pra casa da tal mulher... a tal que tinha o tal negocio...

A cama velha:

- Pois eu não digo que esta caminha tem umas inclinações suspeitas... Que curiosidade! Vou contar a vocês o melhor da coisa. E que vocês aproveitem minha experiência... Ah! nos três anos que passei lá, perdi-me completamente...

A cama de Pau marfim:

- Ficou mesmo uma cama perdida?

- Perdida, sim, meu anjo, Por que? Faz alguma objeção?

- Não, nada.

- Não pense que você, porque é de pau marfim, com esta madeira toda acetinada, esta livre disto... Pois vou contar-lhes então...

Nesse instante ouvem-se os ruídos de passos. São os empregados que trazem uma caminha pequena de criança, esmaltada, com desenhos infantis na cabeceira; e a colocam junto da cama velha. Chegam, armam a caminha e se retiram.

A cama de imbuia:

- E então?

A cama de Pau marfim:

- E depois... que a que houve com você?

A cama velha:

- Vocês não tem vergonha, não? Então não vêem logo que eu não vou continuar com estas estórias na frente desta criança?!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ronaldo Coelho Teixeira (Surtos & Sustos)


O livro Surtos & Sustos, de Ronaldo Coelho Teixeira, apresenta 50 crônicas produzidas pelo autor entre os anos de 2004 e 2006, e tem o prefácio assinado pelo renomado escritor e médico gaúcho, Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras.

No prefácio, Scliar afirma: “Mas a crônica continua representando um apelo irrecusável, sobretudo para jovens escritores que podem nela viver sua aventura emocional e intelectual. É o caso de Ronaldo Teixeira com seus "Surtos & Sustos" (ótimo título, a propósito). Temos aqui a fórmula clássica do comentário sobre o cotidiano. Mas Ronaldo vai mais longe. As suas crônicas representam uma meditação sobre o modo de vida da classe média brasileira que oscila entre os surtos e sustos.”

Surtos & Sustos reflete o homem dividido entre o mistério de Deus e as ações dos homens num mundo de fatalidades. A obra apresenta uma única unidade temática e grande coerência de objetivos. É nela e por ela que o autor manifesta a sua apocalíptica previsão de um mundo em pânico, é mais que uma invocação, é quase um grito do autor, conduzindo seu discurso crônico a um questionamento trágico na tentativa de desvendar o enigma cultural.

Ronaldo Teixeira faz com que se refleta, com uma literatura pragmática, persuasiva e de transformação, num esforço metalingüístico, sobre o trabalho do escritor, sobre produzir literatura pela criatividade e pela sensibilidade aguçada. De ser valorizado pelo estilo, consagrado pela abordagem temática, e, enfim, culturalmente aplaudido, por habilitar-se a iniciar um longo processo de transformação por meio da reflexão.

A razão humana vacila perante as imensas forças de destruição por ela geradas. Daí resulta a problemática existencial do homem contemporâneo. Em pleno século XXI... é a expressão que marca o início de várias crônicas pertencentes a esta obra em que o autor mostra-se surpreso e até indignado com certas atitudes e posturas assumidas pela sociedade. Dono de um discurso injuntivo e argumentativo, o autor demonstra preocupação com a globalização e a despersonalização do cidadão.

A obra dividida em duas partes, sendo a primeira voltada para os “Surtos”, em que Teixeira, retém e desvela a realidade social, política, econômica e educacional em que estamos inseridos. Suas crônicas revelam a busca incessante da situação do homem em relação ao mundo. A realidade é percebida através de olhos questionadores. O autor apresenta o mundo, sem mistificação, sem eufemismo e sem sentimentalismo. Por vezes, torna-se cético. Critica a sociedade, a mecanização e o tecnicismo: Há tempos cruzam o repulsivo triângulo da mesmice: casa – trabalho – escola. E, como resvalo – pobre resvalo – sobram a TV e o controle remoto com a vazia e inútil ilusão de que o mundo todo está a seus pés. O autor quer nos levar a reflexão sobre a rotina que se instaurou na sociedade, a falta da novidade e das perspectivas do sonho. Envolvidos nessa rotina, somos levados ao esquecimento de nossa identidade e dos objetivos que traçamos para nossas vidas.

Em “As duas faces do medo”, Teixeira viaja entre o passado e o presente, comenta de maneira saudosista dos medos que sentíamos na infância, causados pelas histórias que ouvia antes de dormir: Quem não se lembra daquelas noites de contação de histórias assombradas, em que, mesmo morrendo de medo e arrepiados, ficávamos ali naquela rodinha até o final. E hoje o medo que sentimos é causado pela insegurança, conseqüência da violência que se instaurou na sociedade. De resto, sobra esta trágica e triste constatação: quando crianças, temos medo de gente morta e, quando adultos, temos medo de gente viva.

Nas crônicas “Quando muito é pouco” e “O mundo no gibi” existe a preocupação com o avanço tecnológico e o acúmulo de informações que não trazem o verdadeiro conhecimento para a sociedade, incentiva a leitura e critica o sistema educacional brasileiro.

Teixeira afirma que o amor está dentro de cada indivíduo. É pela ironia que enfrenta a problemática angustiante trazida pelo excesso de novidades em todos os setores da vida humana. Mostra certo saudosismo emocional ao denunciar o desaparecimento da emotividade, do sentimento, substituídos pela modernidade ou “A era dos surtos”, em que a sociedade busca a perfeição da beleza física e torna-se vítima de síndromes, fobias, loucuras e paranóias.

Em algumas crônicas, o autor dialoga com Schopenhauer, Gibran, Nietzsche e Jung ao falar dos tédios e dos desejos que cercam o homem. Do consumismo, da divisão de classes sociais e da felicidade momentânea trazida pela tecnologia.

Na segunda parte da obra "& Sustos", o autor afirma que "A palavra tem sido a chave-guia do homem através dos séculos." Talvez, por isso, é que ele faz das palavras um meio de denúncia das mazelas sociais. Faz uso de um vocabulário despojado de artificialismos e conotações para não torná-las desligadas da realidade.

Os “Sustos” são descrições de uma sociedade angustiada que sabe que o mundo não é o que se quer, mas o que se tem. Daí o presente, o hoje e o aqui, espacial e temporalmente, tornarem-se uma obsessão para o nosso autor. O mesmo mostra grande consciência da realidade brasileira, o seu nacionalismo não é ufanista, ele mostra-se solidário com o homem que, pela necessidade, tem de lutar pelo dia-a-dia: Passar a vida toda trabalhando que quando se chega à velhice não há dinheiro para curtir o lazer merecido e, havendo-o, não sabe mais como fazê-lo. O presente é a convergência do passado e do futuro pré-visto. Sonha com um amanhã em que não haja lugar para desnivelamento social, injustiça , miséria. Debate-se entre a matéria e o espírito e considera-se representante dos desanimados – Votar por obrigação e eleger pessoas para serem nossos representantes nas esferas municipal, estadual e federal e terminarmos reféns de suas vilanias, incompetências, autoritarismos e corrupções. Por fim, já que tudo parece ser estromberância nesse país, deixo aqui a definição desse termo para o amigo leitor, e que significa absurdo, monstruoso, surreal.

Surtos & Sustos reflete o homem dividido entre o mistério de Deus e as ações dos homens num mundo de fatalidades. A obra apresenta uma única unidade temática e grande coerência de objetivos. É nela e por ela que o autor manifesta a sua apocalíptica previsão de um mundo em pânico, é mais que uma invocação, é quase um grito do autor, conduzindo seu discurso crônico a um questionamento trágico na tentativa de desvendar o enigma cultural.

Fontes:
A Noticia (TO), Profa. Maria Wellitania O. Cabral disponível em Passeiweb
http://ronaldo.teixeira.zip.net/arch2010-05-23_2010-05-29.html

Pedro Malasartes (De como Pedro dá Mingau a Certa Velha)


Foi então que Pedro se encontrou com um de seus irmãos, com quem gastou em pândegas muito dinheiro.

Esvaziada a bolsa, seguiram de viagem juntos.

Depois de caminharem muitas léguas varados de fome, chegaram à casa de um casal de velhinhos, gente da lavoura e muito pobre.

Pediram pousada. Mas os velhos disseram que não tinham cômodo nem nada que lhes dar para matarem a fome...

-Só se quiserem dormir na salinha, no monte de palha...

Pedro aceitou logo a oferta.

Os velhos foram para seu quarto e os irmãos ficaram na palha.

Mas de madrugada o Malasartes sentiu um cheirinho bom e ouviu o chiado de uma panela lá na cozinha e perguntou ao irmão:

-Manuel, você não está ouvindo um chiado?... Quem sabe se na cozinha há alguma coisa que se coma?

O outro respondeu:

-É possível. Essa gente da lavoura costuma deixar a panela no fogo durante a noite para comerem de manhã, antes de irem para o trabalho.

Pedro, andando na ponta dos pés, levou o irmão para a cozinha, onde encontraram no fogo uma panela de mingau de fubá fumegando.

Comeram quanto quiseram até fartar-se e, como Pedro era um grande pândego e não podia passar sem fazer das suas, disse que estava com muita pena da velha e que lhe ia também dar um pouco de mingau.

Foram para o quarto e, enquanto o irmão segurava com muito medo a panela o Malasartes ia pondo com a colher o mingau onde supunha que era a boca da velha.

De vez em quando ouviam uns sopros e Pedro dizia baixinho:

-Está quente, avozinha? sopra minha velha!

Depois de irem levar a panela à cozinha os dois irmãos puseram-se ao fresco logo ao amanhecer.

Já estavam longe quando o velho despertou furioso com a mulher, a quem acusava de ter desfeiteado a cama...

-Eu! seu tratante! eu!

-Não se faça de tola, que não foi outra senão você mesma!

Mas então a velha sentiu alguma coisa lá nela mesma. E os dois que nunca tinham brigado agarraram-se às unhadas, saltando fora da cama. E qual não foi o espanto deles, quando viram a cama toda cheia de mingau...

Correram para a cozinha e acharam a panela vazia, foram à sala e já lá não estavam os hóspedes.

Rogaram muitas pragas e juraram não dar mais pousada a ninguém salvante a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 470)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Amai-vos, e as derradeiras
muralhas hão de cair.
Havendo amor, as fronteiras
não têm razão de existir!
–A. A. DE ASSIS/PR–

Uma Trova Potiguar


A brisa mansa e fagueira,
que sopra no meu jardim;
é uma fiel companheira
que beija as flores por mim.
–INÁCIO DE MEDEIROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Nos caminhos paralelos
ao cansaço da jornada,
Deus me empresta seus chinelos
e eu prossigo a caminhada...
–ADELIR MACHADO/RJ–

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - M/E


Partiste... e o que mais me fere,
ao ver nossa história finda,
é o teu recado: “Me espere...”
tentando iludir-me, ainda...
–THEREZA COSTA VAL/MG–

Simplesmente Poesia


M O T E :
Antonio Juraci Siqueira/PA


Tomado por ânsia extrema,
o poeta o peito escalavra
e deita o grão do poema
no fértil chão da palavra.

GLOSA :
DÁGUIMA VERÔNICA/MG

Tomado por ânsia extrema,
o canoeiro atravessa
a ponte do seu dilema;
martírio de uma promessa.

Driblando as forças do vento,
o poeta o peito escalavra
arranca, nesse tormento,
forças para a sua lavra.

Sabe ele montar esquema:
Prepara a terra do amor
e deita o grão do poema
colhendo um jardim em flor.

Troca o mar pela poesia,
a nova terra ele lavra
e encerra sua agonia
no fértil chão da palavra.

Estrofe do Dia

Pode olhar nas plantas que tem no mato
xique xique, mofumbo e catingueira
mororó, baraúna e aroeira
e na jurema do tipo unha de gato,
que o vaqueiro deixou nelas de fato
um pedaço do seu gibão inteiro,
pendurado num galho de pereiro
como prova de amor a profissão;
cada ponta de toco do sertão
tem fiapo da roupa do vaqueiro.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

O Beijo
–ANTÔNIO CARLOS TEIXEIRA/DF–


O beijo! Interpretá-lo é fácil incumbência...
É puro... quando toca os pés de uma criança;
Afortunado, pois, pela magnificência
Que envolve em doce paz e bem-aventurança.

Na boca... já demonstra a nítida tendência
Para um novo sentido, em radical mudança.
E da cumplicidade aflora a refulgência
Do incontido prazer, sob o esplendor que alcança.

Na fronte... de respeito inteiro se recobre.
É sublime, afetivo, um gesto meigo e nobre
Que se banha, feliz, do amor na própria luz.

Na face... não é mais que simples cumprimento,
Embora fosse, um dia, em trágico momento,
A senha amarga e vil que delatou Jesus!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (O Ermitão)


Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa, deliberou retirar-se a urna gruta solitária para se dedicar inteiramente à salvação da sua alma. Jejuando sempre, orando, ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca da ideia de Deus. Depois de viver assim durante muitos anos, uma noite lembrou-e de que já tinha merecido um lugar glorioso no Paraíso e podia ser contado entre os santos mais notáveis.

Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:

– Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas eternas.

O ermitão, atônito, ao ouvir estas frases, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do músico e mal o encontrou disse-lhe:

– Irmão, diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e penitências te tornaste agradável a Deus.

– Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça; santo padre, não zombes de mim. Nunca fiz boas obras, e quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os outros.

O austero ermitão continuou a insistir:

– Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda, praticaste algum acto de virtude.

– Em verdade não poderia citar nem um só.

– Mas então como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu patrimônio e o produto do teu ofício?

– Não: mas um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão para pagar uma dívida. Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa, protegi-a em todos os perigos, dei-lhe tudo o que possuía para resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro tanto?

A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e exclamou:

– Nos meus setenta anos de solidão nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas de um pobre músico ambulante.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - IX - Prisioneiros


Na corrida Peninha cruzou com o burro, que também ia fugindo, e pulou-lhe no lombo. Isso fez que os outros ficassem para trás e se perdessem no mato. Sem o Peninha para guiá-los, andaram, andaram às tontas e por fim entraram sem o saber no país dos macacos. Assim que transpuseram as fronteiras desse reino, vários guardas lhes caíram em cima e os enlearam com cipós. Em seguida os levaram à presença de Sua Majestade Simão XIV, que os cortesãos chamavam o Rei Sol, porque quando Simão aparecia todas as caras se iluminavam de sorrisos.

— Majestade — disse um dos guardas — aqui trazemos à Vossa Sublime Presença estes quatro viajantes que estavam atravessando as fronteiras sem passaporte.

— É mentira, senhor rei! — berrou Emília. — Eu tenho passaporte, sim. Olhe aqui — e abrindo a canastrinha, sempre nas costas do Visconde, tirou de dentro o célebre alfinete de pombinha. — Este é o meu passaporte.

O Rei-Sol examinou com a maior atenção aquele objeto para ele desconhecido, pois nunca vira nem alfinete simples, quanto mais de pombinha. Depois disse:

— O passaporte adotado no meu reino é uma banana-ouro, mas como sei que outros povos usam outros passaportes, aceito como válido este que esta senhora apresenta. Podem soltá-la.

Os guardas começaram a desamarrar Emília. Enquanto isso Pedrinho achou jeito de lhe dizer na linguagem do P, que os macacos não entendem:

— Apavipisepe Pepenipinhapa quepe espestapamospos naspas upunhaspas despestapa hoporrenpendapa mapaca-pacapadapa. (Avise Peninha que estamos nas unhas desta horrenda macacada.)

— Simpim — respondeu Emília disfarçadamente, e mal se pilhou livre raspou-se, muito tesinha, sem olhar para trás.

Em seguida Narizinho foi trazida à presença do real come bananas.

— Senhorita — disse ele — embora seja um crime entrar no meu reino sem licença, ouvirei de bom grado as suas explicações. Sou um rei magnânimo, mais amigo de premiar do que de castigar. Diga-me, quais são as suas impressões sobre a minha corte?

A menina correu os olhos em redor e só viu macacos e macacas, cada qual mais peludo e feio. Mas era esperta. Compreendeu que se dissesse a verdade teria de pagar caro. O melhor seria fingir-se encantada e só dizer coisas agradáveis aos ouvidos daquela horrenda bicharia. E respondeu:

— Estou maravilhada, Majestade, com a magnificência desta corte! Conheço muitas, tenho visitado muitos reis, como o Rei de Ouros, o Rei de Copas, o Rei de Espadas e outros. Mas nunca vi soberano mais bonito e nobre do que Vossa Majestade! Nem nunca vi damas da corte mais formosas que as presentes! Tão entusiasmada estou com o vosso reino, que nele ficaria morando a vida inteira, se Vossa Majestade o permitisse e vovó concordasse.

Simão XIV lambeu-se de gosto. Apesar de acostumado a só ouvir elogios, nunca tinha saboreado gabos como aqueles. Achou-os ainda mais gostosos do que a melhor banana-ouro.

— Soltem-na incontinenti — ordenou ele — e dêem a essa encantadora visitante a árvore mais alta para morar e o mais gentil macaco para esposo! Ficará residindo aqui, como é seu ardente desejo. Mandarei emissários contar o caso a sua vovó, que certamente vai ficar radiante quando souber da honra insigne que o Rei-Sol acaba de conceder à sua neta.

Narizinho, que não esperava tanto fez uma careta. Mas conteve-se, resignada, na esperança de que Peninha viesse salvá-la. Foi conduzida dali para o alto da sua árvore, enquanto os guardas traziam à presença do rei o Visconde, sempre de canastrinha às costas.

— E você, senhor viajante de cartola e canastra, qual a sua opinião?

O pobre sábio arriou a canastra, sentou-se em cima e enxugou o suor da testa com as costas da mão.

— O que acho? — disse ele depois de tomar fôlego. — Acho que esta canastrinha é muito pesada para um velho doente como eu.

— Não me refiro a nenhuma canastra, seu palerma! Que acha do meu reino? — berrou Simão carregando sobrolhos.

Sempre atrapalhado e esmagado sob o peso da carga, o Visconde não havia podido prestar atenção a coisa nenhuma e portanto não podia achar coisa nenhuma.

— Vossa Majestade me perdoe — disse ele — mas ainda não vi nada, de tão cansado que estou. Deixe-me primeiro tomar fôlego e dormir um sono. Amanhã darei minha opinião mais sossegado.

O rei não gostou nada de semelhante resposta, mas deixou-a passar. Mandou que dormissem o Visconde e trouxessem o último prisioneiro.

Os guardas trouxeram Pedrinho. O menino estava furioso com o que havia acontecido. Se tivesse ali o bodoque, era a bodocadas que responderia às perguntas do macacão. Mas não tinha. Estava de mãos amarradas. Mesmo assim resolveu dizer o que realmente pensava, porque Pedrinho sempre fora um menino de caráter forte, dos que não mentem em caso nenhum. Assim que o rei lhe repetiu aquela pergunta, o menos que pôde dizer foi o seguinte:

— O que acho deste reino ? Não acho coisa nenhuma. Não é reino nenhum. Não vejo rei nenhum. Vejo um macacão, como todos os outros, trepado num galho que ele supõe ser trono. As damas da corte? Macacas. Simples macacas, como todas as macacas do mundo. Tudo macaco! Isto não passa dum grande macacal como os que há em todas as florestas...

— Fora da minha presença, miserável caluniador! – berrou Simão XIV no auge da cólera. — Levem-no, guardas! Amarrem-no a um tronco para ser devorado pelas formigas antropófagas.

O pobre Pedrinho viu-se arrastado dali como se fosse um cacho de bananas.
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Continua… Pena de Papagaio – X - Peninha não falha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa