segunda-feira, 9 de julho de 2012

Adriana Lisboa (Quintais)


 Na casa do meu avô, havia quatro quintais.

 No principal, o portão se abria para a rua, e ali ficava a casa propriamente dita, e por cima do muro baixo a gente via as cabeças das pessoas que passavam pela rua, sempre tão devagar. Às vezes vinha dar na varanda o cheiro do rio, um cheiro de pano e de barro. Na garagem descoberta, sobre os cascalhos, dormia a Variant marrom do meu avô.

 À esquerda, separado por um muro com uma passagem, ficava o universo dos abacateiros e o quartinho que o meu avô chamava de Petit Trianon. Nós apanhávamos abacates para fazer boizinhos com palitos de fósforo. O Petit Trianon eu não me lembro para que servia, ficava quase sempre fechado. Mas eu tinha pesadelos com ele.

 À esquerda, separado por outro muro com outra passagem, ficava um universo híbrido em que cabiam orquídeas numa estufa, galinhas, goiabeiras e um pé de romã quase esquecido, lá no fundo, longe de tudo. Era o quintal mais colorido. Uma vez minha irmã caiu de uma goiabeira, a barriga enterrou numa torneira e ela foi parar no hospital.

 À direita do quintal principal, ficava o último, e quase proibido. Havia o muro, mas na passagem tinha um portãozinho baixo de madeira, que às vezes a gente pulava por prazer. Lá só havia mato. Árvores altas, sombras, coisas indizíveis se arrastando junto às raízes, barulhos de insetos que nunca existiram de se ver. Lá fazia calor e férias, invariavelmente, mas também podia cair chuva, e a chuva ficava guardada para os nossos pés no tapete de folhas velhas, de frutos podres, de vermes lentos e moles.

 Os quatro quintais da casa do meu avô arrumaram-se numa bússola, e quando eu pisei pela primeira vez numa caravela fervilhando de adultos, vinha com ela no bolso. Se não como guia, ao menos como amuleto.

Fonte:
Luiz Ruffato (organização). 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, RJ: Editora Record, 2004.

Adônes Alves Pereira / MG (Poemas Escolhidos)


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NOSSOS QUATORZE VERSOS

 Repara, meu amor, que estes quatorze versos
 traduzem, em sua modéstia e singeleza,
 toda a estória dos lindos sonhos (tão diversos!)
 que alicerçaram nossas vidas - com certeza.

 Outrora, entre nós, de tudo houve: idas e vindas...
 brigas... distanciamentos... reaproximações...
 As Leis do Amor - conciliadoras e bem-vindas -
 pra sempre harmonizaram nossos corações.

 Lendo estes versos, que são teus (ou de nós dois),
 verás um enamorado coração beijando
 esse teu bondoso coração... E, depois,

 se os releres bem mais alto (e estando tu a sós
 em tua alcova), imaginarás me escutando
 falar do nosso amor co´a tua própria voz!…

MEU SÍTIO MARUPIARA

 Amigo, amo um lugar mais lindo deste mundo:
 lugar sagrado... e de um rico céu profundo,
 onde a lua-cheia, com seu brilho bem risonho,
 vem me ´´ditando´´ cada verso que componho. 

 Ali o arvoredo é mais belo... e os passarinhos
 têm muito mais cuidado ao construir seus ninhos
 nos balouçantes galhos, repletos de flores,
 exaltando a vida... multiplicando amores!...

 No amplo pomar há frutos, aves, hortaliças...
 no varandão, mi´a vida é a dos ´´marajás´´...
 nele dou asas ao meu estro... e às preguiças!

 Amigo, esse céu terreno existe!... Tomara
 que tu me venhas visitar... E, então, verás,
 na bela Ituiutaba, o meu ´´MARUPIARA´´!

SOU SERESTEIRO!...

 Num célebre soneto de Camões,
 Jacó serviu Labão, por sete anos,
 alentando a maior das pretensões
 de ter Raquel - como era de seus planos!

 Também faria tudo que eu pudesse
 pra ter-te, um dia, como esposa minha...
 Serviria a teu pai, se ele quisesse,
 até fazer de ti uma rainha...

 Mas ele não me quer... e tu me odeias...
 (então, a ele não mais vou servir!)
 Fico eu aqui, co´as minhas luas-cheias

 e o meu violão - amigo e companheiro
 que sabe as minhas horas distrair.
 Jacó frustrado?!... não, sou SERESTEIRO!…

CLANDESTINO AMOR

 Devemos ocultar, meu bem, sem mais tardança
 (não somente do mundo, mas de todo o mundo),
 o nosso clandestino amor ´´sem aliança´´,
 que a humana hipocrisia diz ser ´´vagabundo´´.

 Seria até bom se pudéssemos, um dia,
 mostrar a todos esse amor, sem qualquer medo...
 Se pudéssemos externar nossa alegria,
 inda que um invejoso nos mostrasse o dedo.

 Porém, que fique tudo mesmo como está...
 vamos deixar que pensem: - É só amizade!...
 Deus sabe muito bem o que depois virá.

 Não posso te exaltar aos olhos do universo...
 mas como é difícil conter minha vontade
 de pôr teu nome neste derradeiro verso!…

ADEUS, ILUSÕES...

 Ouve esta bela canção que eu compus pra ti...
 partiu do meu coração - sempre mui contente,
 vibrante e gazeteiro, como um bem-te-vi,
 por entender que o teu amor é meu somente!

 Outras canções farei afora pela vida
 (pois não me faltarás com tua inspiração).
 O estro meu de ti depende, ó querida,
 e o meu cantar é mudo sem tua afeição!

 Inda que mude a vida os teus negros cabelos
 em luar de prata de belíssimos novelos...
 ...ainda assim hei de compor tuas canções!

 Mas, quando eu partir lá pro além, sem muitas flores,
 na minha campa tu verás - se lá tu fores -
 a derradeira delas - ´´Adeus, Ilusões´´!

SONHAR É BOM, MAS...

 Quando, ao largo, tu passas... assim tão airosa...
 e toda a rapaziada te olha, cobiçosa,
 fico a considerar: ´´tadinhas´´ dessas flores,
 que, preteridas, não me inspiram mais amores!

 Vou eu, também, atrás de ti, em pensamento,
 apreciando-te as formas de rara beleza...
 Para meus olhos é o maior deslumbramento
 e glória poder ver tão grande boniteza!

 Tal qual um visionário, sonho-te na cama...
 na cama... so nós dois... em plena intimidade,
 naquele ´´laissez-faire´´ mui próprio de quem ama!

 Que sonho lindo me inspirou tua passagem!
 Vamos sonhar - é bom - nos traz felicidade!
 (Té que a razão nos diga: - Deixa de bobagem!...)

SÃO TEUS ESTES MEUS VERSOS...

 São teus estes meus versos, minha doce amada!
 Traduzem eles toda a ânsia de um amor
 profundo e belo, como as curvas desta estrada 
 que vimos percorrendo, em sonho cismador...

 São teus estes meus versos, pois te dizem eles
 de toda esta ventura de que desfrutamos
 em nosso doce idílio e, muito mais, naqueles
 momentos de intimidade em que nos amamos!

 São teus estes versos... e em cada verso meu
 encontrarás teu puro e meigo coração
 de JULIETA, bem colado ao de ROMEU!

 São teus estes meus versos... lê-os...e relê-os...
 Mesmo estando a sós, não sentirás solidão:
 contigo estarão, sempre , estes versinhos meus!…

O CORAÇÃO TEM RAZÕES...

 Nunca ela me disse por que me abandonou...
 Por mais que eu perguntasse, ela não dizia...
 Falava: - Meu bem, entre nós tudo acabou!...
 (deixando-me angustiado... e de alma tão vazia!

 Terminou aí toda a nossa intimidade,
 que deu lugar a um formalismo cruciante:
 ´´Como vai?... tudo na maior tranquilidade?´´
 E a vida, indiferente, foi seguindo adiante!

 Mas o tempo... Ah, hoje (até que enfim) nos falamos.
 Grande remorso observei em seu olhar...
 e compreendi, então, o quanto nos amamos:

 ela, chorando muito, me pediu perdão...
 Apaixonadamente (e também a chorar)
 perdoei tudo... e lhe entreguei meu coração!...

Fonte:
Bernardo Trancoso. Sonetos 

Irene Coimbra (Roberto, Sebastião e a Feia)


Ela havia acabado de entrar no elevador, quando aquele senhor a olhou, viu-a com três livros nas mãos e disse-lhe:

- Isso é que é gostar de ler!

- Ganhei um agora e os outros dois são meus.

- Você é escritora?

- Sim.

- Posso dar uma olhada?

- Naturalmente. O senhor gosta de ler?

- Muito.

Nesse momento o elevador chegou ao térreo e os dois saíram conversando até a calçada. A seguir se despediram e quando ele já ia atravessar a rua, ela o chamou e disse:

- Algo me diz que devo dar-lhe um livro. Com ele quero passar-lhe minha mensagem: A palavra “impossível” não existe para Deus.

Ele pareceu emocionar-se e disse-lhe:

- Você acertou. Estou com problemas de saúde e precisava ouvir essa mensagem. Muito obrigado. Nunca mais vou esquecê-la.

Ela continuou seu caminho sentindo-se leve, feliz. Ia caminhando e pensando naquele encontro quando sua atenção foi atraída para dois jovens que caminhavam à sua frente.

Eles falavam num tom de voz alto e era impossível deixar de ouvi-los. De repente um deles virou-se para ela e disse:

- A senhora viu que muié feia?

Ela virou-se, instintivamente, mas viu somente as costas da mulher que acabava de passar. Viu que o vestido era muito colorido e que ela usava meias amarelas. Sorriu, mas não disse nada. E o rapaz, animado talvez por aquele sorriso, continuou:

- Num é feia mesmu?

O companheiro retrucou:

- Eu que qui ocê tem cum issu, Robertu?

- Nada. Só sei qui é muitu feia.

- Pára di falá bobêra, rapaiz.

- Pódi sê bobêra, Sebastião, mais qui ela é feia, é.

- Ocê nun sabi de nada, Robertu, é mio calá a boca.

- Nun é mio não. Vô falá até cansá. A muié é feia mesmu.

- Cala boca, rapaiz, ocê nun tem nada ca vida da muié.

- Nun tenhu mais vô falá. Ela é feia.

- Pódi sê feia procê, mais nun devi di sê pru maridu dela.

- Que issu, Sebastião? Caquela feiúra ocê acha qui ela tem maridu? Si tive é purquê u cara tem qui pagá us pecadu du mundu intêru. Si eu acordassi di manhã i vissi uma muié feia daqueli jeitu era capaiz di caí mortu di sustu. Nunca vi feiúra mais feia.

- Oia, ocê tá izageranu, Robertu.

- Quarqué izagêru ainda é pôcu pra feiúra da muié, Sebastião.

Os dois continuaram andando à sua frente enquanto ia ouvindo-os falar. Começou a observá-los. Pareciam dois amigos que acabavam de sair do trabalho. Um vestia macacão azul e o outro, calça e camisa bege. O de bege era o revoltado com a feiúra, e o de macacão, o defensor da feia. Talvez tivessem passado em algum barzinho antes e, agora, levemente embriagados, estavam mais falantes, e por isso, continuavam batendo na mesma tecla.

- Cala a boca, sô. Ocê nun tem nada mió prá falá não?

- Tenhu.

- Intão pára di falá da mardita da muié.

- Nun páru. Tô revortadu caquela muié. Ela é feia dimais da conta. Tenhu vontadi di vortá lá, oiá bem na cara dela i dizê:

- Nossa, mais cumu ocê é feia!

- I u quê ocê ia ganhá cum issu?

- Só u gostinhu di falá.

- Ocê é um besta mesmu, Robertu.

- Besta é a muié di saí na rua caquéla feiúra.

- Oia, ocê já tá mi danu nus nervu cum essa falação. É mio pará di falá.

- Só vô pará quandu chegá nu pontu di ônibus.

- Ah, mardição!

Sentiu que não ia conter o riso e se perguntava como acabaria aquele diálogo.

Finalmente chegaram ao ponto de ônibus onde eles ficaram.

Olhou para eles como se quisesse gravar para sempre aquela imagem e continuou caminhando sozinha. Enquanto isso pensava:

“Por que será que aquele rapaz se sentiu tão agredido pela feiúra da mulher? Será que ela era realmente muito feia? Por que será que muitas pessoas só enxergam o exterior?”

Meditando sobre isso chegou em casa. Foi direto para o computador, escreveu essa história que você acabou de ler e agora lhe pergunta:

- Você também se preocupa muito com o exterior das pessoas?

 Fonte:
Irene Coimbra . “Denúncias Poéticas, Contos e Crônicas”. p. 81. 

Adélia Prado (Final Feliz)


 E o locutor da festinha continuou empolgado, fazendo bonito pra sua mulher, que deixara, naquela noite, comparecer ao seu trabalho, tendo-lhe adquirido, ele próprio, o convite. ... "porque, além de militar reformado da PPMG, é ainda o proprietário do animado Bar Central, o avô da nossa Lesliene, a feliz aniversariante desta noite.” Quando disse "nossa Lesliene”, acreditou desapontado que a mulher não salvava sua inventividade narrativa. Arrependeu-se de tê-la trazido e insistiu com o moço do vídeo para que filmasse mais à esquerda do palco, a mesa da dona da festa. De verdade, queria mesmo é que a mãe de seus filhos não aparecesse no filme; uma mulher que não passava uma sexta-feira sem encher latas e latas de biscoitos e só sabia ir em festa daquele mesmo jeito: saia preta, blusa de seda, por fora, pra disfarçar as ancas e arquinho na cabeça — putisgrila —, desse tinha vários de diversas cores, devia se achar nua sem o arco nos cabelos, logo ele, um homem conhecido, com aquele talento incrível para animar festas. “... agora, senhoras e senhores, o momento tão esperado em que a nossa — olhou de novo pra mulher olhando pra ele embevecida, se esquecendo de ficar em pé —, a nossa festejada Lesliene, a menina-moça da noite, vai apagar as merecidas velinhas.” Ai, será que estava certo dizer “merecidas velinhas”? Achou ótimo ser o locutor e estar dispensado de dançar com a mulher, que não conseguia terminar o pratinho, bebendo guaraná em pequenos goles. Pensou ter sido um erro tê-la trazido à festa. Se sentia desconfortável, inseguro dos adjetivos, querendo tirar a gravata e mostrar pras pessoas o que o roqueiro doidão mostrou durante um show e acabou preso. Gente do céu, o que está acontecendo comigo? Olhou para o avô, da Lesliene. Um filho da mãe, esse "militar reformado" espancador de presos. Nem que a marica estica eu falo mais o nome dele aqui, E essa Lesliene está me saindo uma perua e tanto. Então isto é salto para uma menina de quinze anos? “... e agora, senhores — esqueceu das senhoras —, o Toniquinho do Arlindo vai tocar a valsa que a aniversariante dançará com o pai dela.” Não disse "o talentoso músico Antônio Miranda, filho do nosso popular Zico Miranda, tocará a valsa que Lesliene dançará com o seu progenitor". Meio escondida por uma coluna do salão, sua mulher ainda não terminara os salgadinhos. Finíssima. Lembrou que ela lhe aconselhara trocar de camisa, "você fica melhor com a de linho creme". Teve vontade de chorar e ao mesmo tempo sentiu raiva daquele amor paciente e silencioso, capaz de morrer por ele. 

 Foram pra casa calados. Quando se virou pro canto, um homem roubado, ela disse: você fala tão bonito, Raimundo! — Pois você fique sabendo que de hoje em diante não pego mais bico de locução noturna. Já tou cheio disso. Vou reabrir minha oficina que é melhor negócio. — Acho pena, você fala tão bem! — Cremilda, se eu te pedir, você nunca mais põe arquinho no cabelo? Dá pra sua irmã aquele conjunto de saia e blusa? Você me perdoa? Não entendia bem o discurso do marido, estranho naquela noite, mas era uma verdadeira mulher, fez como Nossa Senhora, disse sim ao senhor. E Raimundo fez com ela o que faz um homem competente para deixar feliz sua mulher.

Fonte:
Adélia Prado. Filandras", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág.11.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 602)


Uma Trova de Ademar  

Quadro de extrema beleza, 
de cor verde e cor de anil, 
onde a própria natureza 
pinta o mapa do Brasil!... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

A canção do amor primeiro 
o teu sorriso gravou… 
Mas foi assim tão ligeiro, 
como o vento que passou! 
–Cidinha Frigeri/PR– 

Uma Trova Potiguar  

O sol, eterno andarilho, 
nas rotas do movimento, 
abre as cortinas com brilho 
no escuro do firmamento. 
–Hélio Alexandre/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012  -  Ribeirão Preto/SP 
Tema  -  CIDADÃO  -  1º Lugar 

Não se ata pelas algemas, 
mazelas ao cidadão, 
que enfrenta tantos dilemas 
doando vida à nação. 
–Vanda Alves da Silva/PR– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Dei conforto em hora aguda
a tantos (que nem mais sei),
mas na dor só tive ajuda
de mãos que nunca ajudei.
–Alonso Rocha/PA– 

U m a    P o e s i a  

Magia se tem (e quanta!), 
e a inspiração vem de cima; 
Deus vê com olhos de agrado 
os plantadores de rima 
que fazem do "amor-semente" 
a sua matéria-prima! 
–José Ouverney/SP– 

Soneto do Dia  

APANIGUADOS I. 
–Haroldo Lyra/CE–

Tenho pena de quem não é capaz
De sustentar-se pelos próprios meios,
Nos donativos finca os seus esteios
E a propaganda de um viver falaz.

Tenho pena dos que romperam veios
Das batalhas que não enfrentam mais;
Mendigos de padrões oficiais
Classificados sem quaisquer receios.

Que pena!... quando o silo esvaziar-se
E o joio dessa safra esparramar-se
Sobre as mentes que o dolo enfeitiçou.

Será penoso então o amanhecer,
Pois apenas terão para comer:
As sengas do pão que o diabo amassou.

Jota Jota Souza (Paredes da Solidão)


Esta é a história de um homem lá do meu pedaço de chão. A história do homem que entrou dentro de si mesmo e nunca mais saiu. Antes, cuidadosamente olhou em volta. Não por receio ou medo. Apenas para certificar-se de que nada esqueceria do lado de fora. E fechou a porta assim como se fecha uma residência e esta com o tempo passa a guardar tão somente lembranças de quintais, passos e risos de crianças, cheiro bom de fruta madura, bicar de pássaros na fruta, vôos de colibris, lembranças de amantes.

 Ao travar a porta, muito jovem era ainda. E assim o tempo foi passando, passando, passando. E implacável é o tempo em seu curso. Tanto que, sem saber de quanto o tempo havia passado, ao tocar vagarosamente as mãos sobre a epiderme do rosto sentiu ondulações. Eram as rugas denunciando a implacabilidade do tempo e muito desconfiado só murmurou: -Teeemmmpo! Teeemmmpo! Teeemmmpo!

 Não! Não ousou, como é desejo contido no homem desde os primórdios fazer com este tempo pacto algum. Não quis nenhuma liberdade, não desejou parar o preciso relógio e assim esquivar-se de seus efeitos, isentar-se de pagar o alto preço. Estava certo de sua decisão.

 Não ousava olhar-se no espelho e assim não via seu rosto, o cabelo longo, a barba já longa. Ora! Ele era uma casa desabitada a guardar apenas recordações. E recordações só no espelho d’alma refletem. Porém aprendeu; Todas as vezes que tinha curiosidade em consultar o tempo, passava as mãos sobre a epiderme do rosto e só murmurava: -Teeemmmpo! Teeemmmpo! Teeemmmpo!

 Numa distante ocasião, ousou abrir um pouco a janela. Uma fresta suficiente para uma espiada. E sorriu ao ver que aquele mundo não lhe era de todo estranho. -Tudo tão igual!- Entes conhecidos, familiares até, no ir e vir que ele abdicara. Boca a salivar desejou os tenros umbus que envergavam os galhos dos verdejantes umbuzeiros da quinta em frente. Cavalos e homens desfrutavam sem pressa da sombra de frondosos tamarindeiros. Uma formosa senhora a passos lentos rumava para a rua da feira. Estreitou ainda mais a fresta. Seria a amada? A razão daquele silêncio? Porém, sorrindo das caretas das crianças com o azedo tamarindo fechou-se novamente, só murmurando: -Teeemmmpo! Teeemmmpo! Teeemmmpo!

 Embora tudo o que viu fosse uma espécie de convite para abrir a janela, escancarar a porta, deixar o Sol de intenso brilho entrar e aquecer as frias paredes (do coração), ele não cedeu. Bateu a janela e se viu novamente dentro de si mesmo. E o tempo passando, passando, passando. E implacável é o tempo em seu curso! Certo dia sentindo um estranho cansaço, desconfiado do tempo passou as mãos pela epiderme do rosto. Era como se camadas de musgos tomassem todas as paredes. Fez um intenso frio. -Teeemmmpo! Teeemmmpo! Teeemmmpo! - Murmurou. Agora segurando por minutos a epiderme do rosto. Saiu para abrir um pouco da janela e com um acre sabor na boca, peito ofegante e olhos estupefatos viu pela fresta que não havia tamarindeiros, nem umbuzeiros, nem passos e risos de crianças, cheiro bom de fruta madura, bicar de pássaro na fruta, vôos de colibris. Alongou seu decepcionado olhar de espera e a formosa mulher não passou. As crianças de outrora já homens e mulheres feitos. Dentro das paredes solitárias formou-se o eco: -Teeemmmpo! Teeemmmpo! ! Teeemmmpo!. Sentiu o intensificar do gélido vento na epiderme, receoso fechou a janela e se viu novamente dentro de si mesmo. Deitado ia murmurar: -Teem... quando ouviu bater à porta: -Toc, Toc, toc... Pensou ser brincadeira de velhos amigos de juventude insistindo para ele abrir e sair e quem sabe acenar-lhes com o real motivo da enigmática solidão. Solidão que a todos ali intrigava. Ficou tentando adivinhar:

 -Tomaz?- Mas ninguém respondia. Ia dormindo e novamente a porta:-Toc, toc, toc.

 -Quem está aí?...É você Salú? E assim por dias este estranho sinal se repetindo sem respostas. E ele: -Cicim? -João? -Indé? -Raimundo de Zefinha? -Daguia? Não se dava conta de que não podiam ser estes velhos camaradas, simplesmente porque os mesmos já eram ausentes.

 Até que um dia ela apareceu-lhe. Implacável e decisiva. Sentiu seu hálito gélido e imperativo. E como se desta já estivesse à espera, só murmurou: -Teeemmmpo! Teeemmmpo! Teeemmmpo! E profundamente dormiu.

 Agora para sempre.

Fonte:

Manuel Bandeira (50 Poemas Escolhidos Pelo Autor)


Artigo por Ana Lúcia Santana

50 poemas escolhidos pelo autor”, de Manuel Bandeira, não é uma mera antologia, mas uma seleção de poemas realizada pelo próprio autor em 1955. Contém, portanto, os melhores e mais inspirados momentos do poeta em sua trajetória literária. Bandeira recortou em sua obra o que há de mais representativo e essencial na sua produção.

50 Poemas Escolhidos Pelo Autor – Manuel Bandeira – Cosac Naify – São Paulo – 88 pp. – Acompanha CD.

Este trabalho foi empreendido pelo autor a pedido de José Simão Leal, responsável pela edição da coleção “Os Cadernos de Cultura do MEC”. Mas o poeta não encarou esta oportunidade como uma encomenda, e sim como um meio de reafirmar a unidade de sua obra e nela destacar a essência, compondo assim nesta versão um todo renovado, que ganha uma nova significação. Não se encontra nesta obra nenhum poema de sua fase parnasiana. Pelo contrário, ele ironiza este momento de sua poética com o eterno “Os Sapos”, que provocou frissom na Semana de Arte Moderna, em 1922, e não por acaso abre esta publicação.

O poeta passeia pelos temas comuns à sua poesia – crítica ao Parnasianismo, o erotismo, a morte, religião e o Recife de sua infância. Eros e Tanatos estão sempre presentes no cerne das preocupações do autor. Ora aparentemente em conflito, como em “A Dama Branca”, ora confundindo-se no poema como se fossem ambos uma coisa só, tal como no “Rondó dos Cavalinhos”.

A morte se oculta sob a face do tempo e traz consigo o aprendizado, em poemas como “Canção do vento e da minha vida”, e a vida infinita, presente nos versos de “Maçã”. Não somente os corpos encontram seu fim nos braços da Morte, mas também os dias, a infância, casas e ruas antigas, personagens freqüentes na poesia de Manuel Bandeira. É o que se percebe nos poemas “Evocação do Recife”, “Profundamente” e “Última Canção do Beco”, entre outras. Ao mesmo tempo, a morte assume outros significados, como o mergulho no nada, um “morrer completamente”, sem deixar rastros, “A Morte Absoluta”.

A esfera do sagrado atrai o poeta. Reflexões sobre a transcendência da vida, sobre anjos e arcanjos – como no poema “Eu vi uma Rosa” – perpassam sua obra como uma corrente de energia que a vitaliza e estabelece um certo equilíbrio entre o profano e o sagrado. Muitos desses poemas retratam também a religião do ponto de vista da cultura popular, enfocando este tema sob a ótica do tão celebrado sincretismo brasileiro. É o caso de “Os Sinos” e “Boca de Forno”.

A solidão do homem destaca-se também na poesia de Bandeira, sinalizando a condição humana como a de um ser exilado, embora no caso do poeta esta sensação seja a de um exílio no tempo, uma vez que este o distanciou dos personagens e cenários de sua infância, criando no mesmo espaço uma paisagem diferente, que ele não mais reconhece. È em suas lembranças que o poeta reencontra a vida palpitante, a perenidade de suas experiências afetivas. “Marinheiro Triste” e “Eu vi uma Rosa” são exemplos desses poemas perpassados pelo insulamento.

Esta obra tecida delicadamente pelas mãos do poeta é rematada por um Posfácio à edição, de Augusto Massi e Carlito Azevedo – “Manuel Bandeira, Intérprete de Si Mesmo”. Nele os autores definem antologia poética como “um gênero antigo e arbitrário”, e destacam a importância de saber incluir com coerência e excluir com rigor. Manuel Bandeira foi com certeza um mestre nessa arte, pois sabia como ninguém realizar a mais perfeita bricolagem poética, o que se pode perceber com clareza em um poema intitulado “Antologia”, de 1965, incluído neste Posfácio, no qual Bandeira extrai cada verso de um poema diferente. O poeta o define como um poema construído “com versos ou pedaços de versos” mais marcantes para ele, que também poderia ser lido como um poema autônomo por quem nada conhecesse de sua obra. Assim como esta antologia pode ser igualmente considerada, de certa forma, como uma publicação independente, tal a sua lógica própria. 

  Manuel Bandeira praticamente especializou-se em antologias, desde obras-primas da poesia brasileira, superando as fronteiras das estreitas classificações por períodos, até as de autores, dedicando-se depois a reorganizar constantemente sua própria obra, revelando-se seu mais acurado “leitor”. Para ele, é possível lançar um olhar para o passado e resgatar o que há de essencial, criando para a posteridade uma imagem ideal, sua desejada “mitologia pessoal”. Além disso, reunidos neste volume poemas antes dispersos em outras publicações, é possível flagrá-los em diálogo renovador, gerando entre eles laços originais.

Ler esta antologia e poder complementar a compreensão de seus poemas e a relação entre eles através da audição do CD que o acompanha, possibilita ao leitor-ouvinte se aprofundar no conhecimento do poeta e de sua obra, bem como surpreender faces desconhecidas de Manuel Bandeira, ampliando assim a visão muitas vezes restrita que se tem do poeta. 

Fonte

domingo, 8 de julho de 2012

Doze em Ritmo de Sextilhas (Parte 9)


193 - Assis
Às sextilhas enviadas,
respondo-as de coração,
enquanto aguardo o momento,
até com certa emoção,
de ajustar os meus ponteiros
para o horário de verão.

194 - Delcy
Esse horário,  meu  irmão,
podes crer, já está existindo,
pois passou da  meia-noite
como estavam nos pedindo!
Que a esperada  economia
deixe o meu Brasil sorrindo!...

195 - Elisabeth 
O tempo aqui vai seguindo,
estou em hora de almoço..
segunda feira... a preguiça
não quer saber de alvoroço...
peguei sobras de domingo,
do frango só  resta um osso! 

196 - Prof. Garcia
Sei que a vida é um colosso,
é rica em seu conteúdo,
tento mudar minha sorte
mas isso eu sei que não mudo,
pois o destino da gente
faz a mudança de tudo!

197 – Gislaine
Macio como veludo
é o amor, se verdadeiro.
Se existe a amizade e o sonho,
nosso destino é o veleiro
que nos conduz mar a dentro,
pois se faz nosso parceiro!

198 - Hélio
 A jura do amor primeiro
a gente nunca se esquece,
fica gravada na mente
vez por outra ela aparece...
Se compara a uma semente,
que regada, brota e cresce.

199 - Milton
O sextilheiro padece
para se manter na trilha,
ou a internet demora
para trazer a sextilha,
ou, quando menos espera,
traz duas, três, uma pilha...

200 - Ouverney
No horizonte o sol rebrilha,
no instante em que surge o raio:
céu azul mudou de cor,
sol simulou um desmaio,
e na mata, antes tranquila,
não sobrou um papagaio. 

201 - Tadeu
Aqui também teve raio
nos dias de chuvarada
mas a terra, pela seca,
andava tão ressecada
que ninguém quis reclamar 
do raio e da trovoada.

202 – Thalma 
Quando ouvia a trovoada
minha avó, cheia de medo,
à Santa Bárbara orava
fazendo sinais com o dedo,
dizendo: - “Acalma-te, ó raio!...
Ó chuva, acaba mais cedo!”

203 - Vanda
Não revelo meu segredo,
se temo ventos ao léu...
Relâmpago é luz que acende;
se um trovão faz escarcéu,
eu penso: é festa de arromba
dos anjinhos, lá no céu!
   
204 - Zé Lucas
 Com certeza, lá no céu
a vida é somente amor;
necessidades, não há;
dinheiro não tem valor,
e a felicidade eterna
supõe ausência de dor. 

205 - Assis
Penso o céu como o esplendor
do grande encontro fraterno,
e a vida aqui como a trilha
de retorno ao Lar Paterno,
onde de braços abertos
nos espera o Amor eterno.

206 - Delcy
Passou o tempo. Hoje, o inverno
já  chegou  à minha  vida!
O  fim já diviso perto
e, às vezes, fico  sentida,
porque  dúvidas me assaltam,
quanto  à  hora  da  partida!

207 - Elisabeth
Ninguém sabe o fim da vida, 
mas se ela tem o seu preço, 
é bom que no seu roteiro 
nós saibamos o endereço 
da justiça e da esperança, 
pois teremos recomeço! 

208 - Prof. Garcia
Penso que o novo endereço
é diferente demais,
não tem cep e não tem rua
nem precisa numerais,
porque Deus sabe onde fica
o endereço dos mortais!
  
209 – Gislaine
Não esqueçamos jamais
que a meta de nossa vida,
é trilharmos nossa estrada
com a fé, então, devida,
para, ao céu, então, chegarmos,
depois da missão cumprida!

210 - Hélio Pedro 
 Não existe outra saída 
do além não vem endereço, 
por isso é que pela vida 
todos têm um grande apreço; 
mas pra quem vive na fé 
vê que a morte é um recomeço. 

211 - Milton
A tal morte eu nem conheço,
deve ser uma bandida...
Leva o moço, leva o velho,
com ela não tem saída...
Morrer é a última coisa
que eu quero fazer na vida...

212 - Ouverney
Tal papo não me intimida,
de que adianta ter receio?
Morte é vida, vida é morte,
uma é aula, outra é recreio;
tem gente que está no mundo
sem nem saber a que veio.

213 - Tadeu
 Ah! se eu encontrasse um meio
de enganar esta "danada"
que leva a vida da gente!
Eu esticava a jornada
e não entregava mesmo
minha carcaça por nada.

214 – Thalma 
A vida não vale nada
se a gente nada produz...
E eu disse uma vez, em trova
com a fé que me conduz:
tanto a enxada quanto a pena
abrem veredas de luz!

   215 – Vanda 
   É certo: Melhor reluz
   a enxada que sulca o chão,
   do que uma joia ostentada
   na pérfida e suja mão
   que abre veredas do mal
   e indica a má direção.

216 - Zé Lucas
O pobre caleja a mão,
suando na roça alheia,
por um salário mesquinho
que não lhe garante a ceia,
e há tantos que nada fazem,
mas vivem de bolsa cheia!

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continua…
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Parte 2 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilhas-parte-2.html 
Parte 3 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilhas-parte-3.html
Parte 4 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilhas-parte-4.html
Parte 5 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilha-parte-5.html
Parte 6 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilhas-parte-6.html
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Parte 8 = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/07/doze-em-ritmo-de-sextilhas-parte-8.html

Fonte: 
Doze em Ritmo de Sextilhas: Debate pela Internet. 20.02.2010 a 22.12.2010., 2012.