terça-feira, 17 de julho de 2012

Afonso Arinos (A Garupa)

Saímos para o campeio com a fresca da madrugada.

Tínhamos de ir longe e de pousar no campo. Eu tomava conta da eguada, ele era vaqueiro. Vizinhos de retiro na fazenda de meu amo, companheiros de muitos anos, não largávamos um do outro. Sempre que havia uma folgazinha, ou ele vinha para o meu rancho, ou eu ia para o rancho dele.

Às vezes, quando meu amo queria perguntar por nós aos outros vaqueiros e camaradas, dizia:

- Onde estão a corda e a caçamba?

– Vancê bem pode imaginar, patrão, que tábua eu não carrego, que dor me não dói bem no fundo do coração, desde aquele triste dia.

Como eu lhe ia dizendo, nós saímos com a fresca. Por sinal que, naquele dia, compadre Quinca estava alegre, animado como poucas vezes. Ainda me lembra que o cavalo dele, um castanho estrelo calçado dos quatro pés, a modo que não queria sair do terreiro. Quando nós fomos passando perto do cocho da porta, ou ele viu alguma coisa lá dentro ou que, o diacho do cavalinho virou nos pés.

O defunto Joaquim - coitado! Deus lhe dê o céu! juntou o bicho nas esporas, jogou-o para a frente e, num galão, quase ralou a perna no rebuço do telhado de mei'água dos bezerros.

Saímos.

Quando fomos confrontando com a lagoa da Caiçara ele ganhou o trilho para umas barrocas, lá embaixo, onde diziam que duas novilhas tinham dado cria e que um dos bezerros estava com bicheira no umbigo.

Eu torci para o logradouro das éguas, cá para a banda do cerrado de cima.

- Está bom. Então, até, compadre!

- Se Deus quiser, meu compadre!

Não sei o que falou por dentro dele, porque, naquele mesmo suflagrante, ele virou para mim e disse:

- Qual, compadre! Vamos juntos. Assim como assim, a gente não pode chegar à casa hoje. Pois então, a gente viageia junto, e da Água Limpa eu torço lá para Fundão, para pegar as novilhas; vancê apanha lá adiante o caminho do logradouro.

Eu já ia indo um pedaço, quando dei de rédeas para trás e ajuntei-me outra vez com o compadre. Parece que ele estava adivinhando!

E fomos indo, conversa tira conversa, caso puxa caso.

Eta, dia grande de meu Deus!

Ainda na beira de um corguinho, lá adiante, eu tirei dos alforjes um embornal com farinha, fiz um foguinho e assamos um naco de carne-seca, bem gorda e bem gostosa, louvado seja Deus! Bebemos um gole d'água e tocamos.

Aí, já na virada do dia, o compadre me disse:

- Compadre, vancê vai andando, que eu vou descer àquele buraco. Pode ter alguma rês ali. A modo que eu vi relampear o lombo daquela novilha chumbadinha, que anda sumida faz muito tempo.

Ele foi descendo para o buraco e eu segui meu caminho pelos altos. Com pouca dúvida, ouvi um grito grande e doído:

- Aiiii!

Acudi logo:

- Que é lá, compadre! - e apertei nas esporas o meu queimado.

Não le conto nada, patrãozinho! Quando cheguei lá, o castanho galopava com os arreios e meu compadre estava estendido numa moita de capim, com a cabeça meio para baixo e a mão apertada no peito.

- Que é isto, meu compadre? Não há de ser nada, com o favor de Deus!

Apalpei o homem, levantei-lhe a cabeça, arrastei-o para um capim, encostei-o ali, chamei por ele, esfreguei-lhe o corpo, corri lá embaixo, num olho-d'água, enchi o chapéu, quis dar-lhe de beber, sacudi-o, virei, mexi: nada!

Estava tudo acabado! O compadre morrera de repente; só Deus foi testemunha.

E agora, como é, Benedito Pires? Peguei a imaginar como era, como não era: eu sozinho e Deus, ou melhor, abaixo de Deus, o pobre do Benedito Pires; afora eu, o defunto e os dois bichos, o meu cavalo e o dele. Imaginei, imaginei... Dali à casa era um pedaço de chão, umas cinco léguas boas; ao arraial, também cinco léguas. Tanto fazia ir à casa, como ao arraial. Mais perto, nenhum morador, nem sinal de gente!

Largar meu compadre, eu não podia: amigo é amigo! Demais, estava ficando tarde. Até eu ir buscar gente e voltar, o corpo ficava entregue aos bichos do mato, onça, ariranha, tatu-peba, tatu-canastra... Nem é bom falar! Levar o corpo para a casa e de lá para o arraial, era andar dez léguas, não contando o tempo de ajuntar gente em casa para carregar a rede. Assim, assentei que o melhor era fazer o que eu fiz. Distância por distância, decidi levar o compadre direito para o arraial onde há igreja e cemitério.

Mas, ir como? Aí é que estava a coisa. Pobre do compadre!

Banzei um pedacinho e tirei o laço da garupa. Nós, campeiros, não largamos o nosso laço. Antes de ficar duro o defunto, passei o laço embaixo dos braços dele - coitado! - joguei a ponta por cima do galho de um jatobá e suspendi o corpo no ar. Então, montei a cavalo e fiquei bem debaixo dos pés do defunto. Fui descendo o corpo devagarinho, abrindo-lhe as pernas e escarranchando-o na garupa.

Quando vi que estava bem engarupado, passei-lhe os braços por baixo dos meus e amarrei-lhe as mãos diante do meu peito. Assim ficou, grudado comigo. O cavalo dele atufou-se no cerrado.

- Lá se avenha! - pensei. - Tomara eu tempo para cuidar do pobre do dono!

Caminho para o arraial era um modo de falar. Estrada mesmo não havia: mal-mal uns trilhos de gado, uns cortando os outros, trançando-se pelos campos e sumindo-se nos cerradões.

Tomei as alturas e corri as esporas no meu queimado, que, louvado Deus, era bicho de fiança; nunca me deixou a pé e andou sempre bem arreadinho.

O sol já estava some-não-some atrás dos morros; a barra do céu, cor de açafrão; as jaós cantavam de lá, as perdizes respondiam de cá, tão triste!

Quando eu ganhei o espinhaço da serra, lá em cima, as nossas sombras, muito compridas, estendiam as cabeças até ao fundo do boqueirão.

Era tempo de escuro. O que ainda me valeu, abaixo de Deus, foi que estava chegando o meio do ano, e nessa ocasião, a estrela do pastor nasce de tarde e alumia pela noite adentro.

Enquanto foi dia, ainda que bem; mas, quando a noite fechou deveras e eu não tinha no meio daquele campo outra claridade senão a da estrela, só Noss'enhor sabe por que não acompanhei o compadre para o outro mundo, rodando por alguma perambeira, ou caindo com o seu corpo no fundo de algum grotão.

Nos cerradões, ou nos matos, como no da beira do ribeirão, eu não enxergava, às vezes, nem as orelhas do meu queimado, que descia os topes gemendo. O compadre, aí rente. O que vale é que "macho que geme, a carga não teme", lá diz o ditado.

Toquei para diante: sobe morro, desce morro, vara chapada, fura mato, corta cerradão. salta córrego - eu fui andando sempre. O defunto vinha com o chapéu de couro preso no pescoço pela barbela e caído para a carcunda. Quando o queimado trotava um pouco mais depressa, o chapéu fazia pum, pum, pum. O compadre a modo que estava esfriando demais.

Não sei se era porque fosse mesmo tempo de frio, eu peguei a sentir nas costas uma coisa que me gelava os ossos e chegava a me esfriar o coração. Jesus! que friúra aquela!

A noite ia fechando, fechando. Eu já seguia não sei como, pois tinha de andar só pelo rumo. O queimado, às vezes, refugava aqui, fugia dacolá, cheirava as moitas e bufava. Pelo barulho d'água, eu vi que nós íamos chegando à beira do ribeirão. Tinha aí de atravessar uma mataria braba, por um trilho de gado. Insensivelmente, eu fugia de um galho, negava o corpo a outro, virando na sela campeira. A cabeça do compadre, que, no princípio, batia de lá para cá e, às vezes, escangotava, endureceu, e o queixo dele, com a marcha do animal, me martelava a apá.

Fui tocando. Dentro da mataria, passava um ou outro vaga-lume, e havia uma voz triste, grossa, vagarosa, de algum pássaro da noite que eu não conheço e que cantava num tom só, muito compassado, zoando, zoando...

Em certa hora parecia que meu cavalo marchava num terreno oco: ao baque das passadas respondia lá no fundo outro baque e o som rolava como um trovão longe. A ramaria estava cerrada por cima de minha cabeça, que nem a coberta do meu rancho. O trilho a modo que ia ficando esconso, porque o queimado não sabia onde pisar; chegou uma horinha em que ele pegou; a patinhar para cima, para baixo, de uma banda e de outra, sem adiantar um passo.

O bicho parecia que estava ganhando força para fazer alguma.

Não levou muito tempo, ele mergulhou aqui para sair lá adiante, descendo ao fundo de um buraco e galgando um tope aos arrancos, escorrega aqui, firma acolá.

Nesse vaivém, nesse balanço dos diabos, o corpo do compadre pendia pra lá, pra cá. Uma vez ou outra, ele ia arcando, arcando; a cara dele chegava mais perto da minha e - Deus me perdoe! - pensei até que ele queria me olhar no rosto.

Eu ia tocando toda-vida. Mas, aquele frio, ih! aquele frio foi crescendo, foi me descendo para os pés, subindo para os ombros, estendendo-se para os braços e encarangando-me os dedos. Eu já quase não senti as rédeas, nem os estribos.

Aí, por Deus! eu não enxergava nem as pontas das orelhas do queimado; a escuridão fechou de todo e o cavalo não pôde romper. Corri-lhe as esporas; o bicho era de espírito, eu bem sabia; mas bufava, bufava, cheirando alguma coisa na frente e refugava... Tanto apertei o bicho nas esporas, que, de repente, ele suspendeu as mãos no ar... O corpo do compadre me puxou para trás, mas eu não perdi o tino. Tinha confiança no cavalo e debrucei-me para a frente... Senti que o casco do queimado batia numa torada de pau atravessada por cima do trilho.

E agora, Benedito? Entreguei a alma a Deus e bambeei as rédeas. O cavalo parou, tremendo... Mas, o focinho dele andava de um lado para o outro, cheirando o chão e soprando com força... Com pouca dúvida, ele foi se encostando devagarinho, bem rente do mato; minhas pernas roçavam nos troncos e nas folhas do arvoredo miúdo. Senti um arranco e, com a ajuda de Deus, caí do outro lado, firme nos arreios: o queimado achou jeito de saltar a barreira nalgum lugar favorável.

Toquei para diante. Ah! patrão! não gosto de falar no que foi a passagem do ribeirão aquela noite! Não gosto de lembrar a descida do barranco, a correnteza, as pedras roliças do fundo d'água, aquele vau que a gente só passa de dia e com muito jeito, sabendo muito bem os lugares. Basta dizer que a água me chegou quase às borrainas da sela, e do outro lado, cavalo, cavaleiro e defunto - tudo pingava!

Eu já não sentia mais o meu corpo: o meu, o do defunto e o do cavalo misturaram-se num mesmo frio bem frio; eu não sabia mais qual era a minha perna, qual a dele... Eram três corpos num só corpo, três cabeças numa cabeça, porque só a minha pensava... Mas, quem sabe também se o defunto não estava pensando? Quem sabe se não era eu o defunto e se não era ele que me vinha carregando na frente dos arreios?

Peguei a imaginar nisso, meu patrão, porque - medo não era, tomo a Deus por testemunha! - eu não sentia mais nada, nem sela, nem rédea, nem estribos. Parecia que eu era o ar, mas um ar muito frio, que andava sutil, sem tocar no chão, ouvindo - porque ouvir eu ouvia - de longe, do alto, as passadas do cavalo, e vendo - eu ainda enxergava também - as sombras do arvoredo no cerrado e, por cima de mim, a boiada das estrelas no pastoreio lá do céu!

Só este medo eu tive, meu patrão - de não poder falar.

Quis chamar por meu nome, para ver se eu era eu mesmo; quis lembrar alguma coisa desta vida, mas não tive coragem de experimentar...

Aí já não posso dizer que marchei para diante: fui levado nessa dúvida, pensando que bem podia ser eu alguma alma perdida naquela noite, zanzando pelos campos e cerrados da terra onde assisti de menino...

E quem sabe também se a noite era só noite para meus olhos, olhos vidrados de defunto? Bem podia ser que fosse dia claro...

Haverá dia e noite para as almas, ou será o dia das almas essa noite em que vou andando?

Essa dúvida, patrão, foi crescendo... E uma hora chegou em que eu não acreditava em mim mesmo, nem punha mais fé no que eu tinha visto antes... Peguei a pensar que era minha alma quem ia acompanhando pela noite fora aqueles três vultos...

Minha alma era um vento, um vento frio, avoando como um curiango arriba das nossas cabeças.

Daí, patrão, enfim, entendi que aquilo tudo por ali em roda era algum logradouro da gente que já morreu, alguma repartição de Noss'enhor, por onde a gente passa depois da morte. Mas, aquele escuro e aquele frio! Sim, era muito estúrdio aquilo. Ou quem sabe se aquilo era um pouso no caminho do outro mundo? Numa comparação, podia bem ser o estradão assombreado por onde a alma, depois de separada do corpo, caminha para onde Deus é servido.

Ah! patrão! o que minh'alma imaginou aquele tempo todo eu não lhe posso contar, não! Sei que fomos embora, aqueles três vultos, um carregando dois e todos três irmanados da mesma escuridão.

Tocamos.

De repente, peguei a ouvir galo cantar. Uai! Era bem o canto do galo; com pouca dúvida, um cachorro latiu lá adiante. Gente, que é isso? Que trapalhada era essa? Era o compadre que estava ouvindo, ou era eu? Pois, então, Benedito virou de novo Benedito?

Ou é que as coisas por lá são tal e qual as nossas de cá, com pouca diferença? Galo e cachorro eu ouvi. Estive assuntando mais e ouvi o mugido de uma vaca e o berro de um bezerro... Com um tiquinho de tempo mais, eu vi, e vi bem, uma casa e outra e outra ainda! Gente, isso é o arraial: olha a igreja ali!

Não havia dúvida mais: estávamos no arraial e o queimado batia o casco numa calçadinha da rua.

Era eu mesmo, era o meu queimado e o compadre aí rente, na garupa!

Toquei para a casa do sacristão e bati. Custou muito a responder, mas uma janela abriu e uma cabeça apareceu a modo muito assustada.

- Abre a igreja, que tem defunto aqui!

- Cruz, cruz, cruz, Ave Maria! - gritou o sacristão assombrado, e bateu a janela, correndo para dentro da casa.

Eu não insisti mais. Toquei para a porta da igreja, de onde correram assustados uns cabritos. Defronte, o cruzeiro abria os braços para nós. Como havia de ser?

Quem me podia ajudar a descer aquele corpo?

Parei um pedaço, olhando para o tempo.

Aí o frio pegou a apertar outra vez, e uma coisa me fazia uma zoeira nos ouvidos, que nem um lote de cigarras num dia de sol quente. Que frio, que frio! Meu queixo pegou a bater feito uma vara de canelas-ruivas. Turrr! turrr! O compadre, atracado na minha carcunda, ficou feito um casco de tatu; quando meu calcanhar batia no pé dele, o baque respondia no corpo todo e o queixo dele me fincava com mais força na apá. A porta da igreja pegou a rodar, principiando muito devagarinho; e o cruzeiro a modo que saía do lugar, vinha para mim, subia lá em cima, descia cá embaixo, como uma gangorra, mal comparando.

Peguei a sentir, não sei se na cabeça, não sei mesmo onde, um fogo, que era fogo lá dentro e cá fora, no meu corpo, nas minhas pernas, nas mãos, nos pés, nas costas era uma friúra, que ninguém nunca viu tão grande!...

Meu braço não mexia, minhas mãos não mexiam, meus pés não saíam do lugar; e, calado como defunto, eu fiquei ali, de olhos arregalados, olhando a escuridão, ouvidos alertas, ouvindo as coisas caladas!

Meu cavalo, entresilhado também de fome, de cansaço e de frio, vendo que a carga não era de cavaleiro, desandou a andar à toa, pra baixo, pra cima, catando aqui-acolá uns fiapos de capim...

Quando eu passava por perto da porta de alguma casa, fazia força e podia gritar:

- Ô de casa! Gente, vem ajudar um cristão! Vem dar uma demão aqui!

Ninguém respondia!

Numa porta em que o cavalo parou mais tempo - porque uma hora meu queimado parecia cavalo de aleijado parando nas portas para receber esmola - apareceu uma cara... E quando eu disse:

- "É um defunto..." - a pessoa soltou um grito e correu para dentro esconjurando...

Mas, as casas todas pegaram a embalançar outra vez, e eu estava como em cima d'água, boiando, boiando..

Parece que o queimado cansou de andar. Lá nos pés do cruzeiro, onde havia um gramado, ele parou...

E foi aí que vieram me achar, de manhãzinha, com os olhos arregalados, todo frio, todo encarangado e duro no cavalo, com o compadre à garupa!

Ah! patrão! amigo é amigo!

Daí para cá eu andei bem doente...

Quantos anos já lá se vão, nem eu sei mais.

O que eu sei, só o que eu sei, é que nunca mais, nunca mais aquele friúme das costas me largou!

Nem chás, nem mezinha, nem fogo, nem nada!

E quando eu ando pelo campo, quando eu deito na minha cama, quando eu vou a uma festa, me acompanha sempre, por toda a parte, de dia e de noite, aquele friúme, que não é mais deste mundo!

Coitado do compadre! Deus lhe dê o céu!
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Glossário
As palavras estão explicadas neste glossário só pelo sentido com que são empregadas neste livro.
- A açafrão - pó de cor amarela bem forte usado como tempero.
alastrado - repleto, cheio.
alforje - saco duplo, posto sobre o lombo do animal para carregar mercadoria.
apá - ombro.
borraina - almofada.
campeio - procura pelo gado no campo.
estrelo - que tem mancha branca na cabeça.
estúrdio - esquisito.
fiança - confiança.
friúme - o mesmo que friúra, frieza.
grotão - depressão funda entre montanhas.
jaó - ave de caça do sertão, de carne muito apreciada.
mezinha - remédio caseiro.
patinhar - o mesmo que patinar, andar sem sair do lugar.
perambeira - abismo, precipício.
queimado - cavalo de pêlo avermelhado.
suflagrante - momento presente.
tino - orientação.
vancê - forma popular de você.
viageia - forma popular de viaja.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

Seleção Permanente - Textos & Livros Premiados

Apresentação: 

O Textos & Livros Premiados foi criado com o propósito de dar espaço para os autores divulgarem suas obras premiadas e, principalmente, para que autores e leitores possam acompanhar um panorama das obras que tiveram seus méritos reconhecidos através de certames literários realizados pelo Brasil e por todo o mundo.

O blog permanecerá aberto aos comentários, a fim de estimular o debate acerca das obras apresentadas.

Esperamos que esta iniciativa contribua para a formação crítica de leitores e para a divulgação das obras de autores que, apesar de ostentarem currículos consideráveis, ainda são pouco conhecidos pelo público em geral.

Como publicar:

O blog publicará textos e livros selecionados em concursos e prêmio literários. Serão aceitas obras em qualquer gênero e que tenham obtido classificação, menção honrosa, indicação como finalista ou seleção para publicação.

No caso dos textos, podemos publicar o texto na íntegra ou, dependendo do tamanho do texto e da vontade do autor, um link para o mesmo. No caso dos livros, podemos divulgar apresentação ou sinopse e links para download ou compra.

Juntamente com a obra, será divulgado o nome (ou nome artístico) do autor, o ano da seleção, o concurso literário, a instituição organizadora do concurso e a classificação obtida. O autor também pode optar por divulgar seu e-mail e o endereço de seu blog ou site.

Para enviar as obras, os dados pessoais e os dados do concurso, os autores devem seguir as instruções que constam no seguinte endereço:

- http://textospremiados.blogspot.com.br/p/formulario-de-envio.html

Fonte:
Http://concursos-literarios.blogspot.com

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 609)

Uma Trova de Ademar  

Se a inspiração me inebria,
com temas, os mais dispersos;
mato a sede de poesia
na eterna fonte dos versos...
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


O meu prazer se renova
e a minha alma se extasia
ao perceber numa trova
um canteiro de poesia!
–Roza de Oliveira/PR–

Uma Trova Potiguar


O sonho que nasce em mim,
se não puder florescer,
terá comigo o seu fim,
só morrer, quando eu morrer.
–Maria Dalvaci Dantas/RN–

Uma Trova Premiada


1979 - Bandeirantes/PR
Tema - CRIANÇA - 8º Lugar


Ensina com tolerância
a criança pequenina
a ver o que é bom, na infância,
que o restante a vida ensina...
–Maria Nascimento/RJ–

..E Suas Trovas Ficaram


Veja, amada companheira,
este quadro, que beleza.
Temos a família inteira
ao redor de nossa mesa.
–Alydio C. Silva /MG–

U m a P o e s i a


Tem quem roube a merenda das crianças
e o dinheiro do pobre aposentado,
e sem dó tomam todas as finanças
num sequestro cruel e bem montado;
e os que matam e estupram criancinhas
andam soltos aí pelas pracinhas,
muitos deles nem vão para prisão;
digo neste relato que hoje eu faço:
eu estou com saudade é do cangaço
e das bravuras do grande Lampião!
–Ademar Macedo/RN–

Soneto do Dia

SE AMOR É...
–Carmo Vasconcelos/PRT–


Se amor é fogo que arde sem se ver,
E senti-lo se faz contraditório...
Sendo ou não, fogo-fátuo e ilusório,
Por que tanto queimamos de o querer?

Se é ferida que dói e não se sente,
Por que insistimos nessa dor sarar,
Vendo apenas recobro nesse amar
Daquele que de amor nos faz contente?

Se tal contentamento é descontente,
Por que alegria tamanha lá se afunda
Nos meandros da tristeza que a alma inunda?

Se é dor que desatina sem doer,
Que eu frua do controverso amor em mágoa,
E extinga-se o meu fogo ao fluir-lhe a água!

domingo, 15 de julho de 2012

Olga Agulhon (O Dito e o Não Dito)

As palavras são cruéis e desobedientes;
não são humildes servas.
Fazem-nos cócegas
e depois que saem da boca
não tornam a ela,
por mais que imploremos:
mas também não vão embora;
ficam ressoando no ar
e nos perseguem para sempre.
Por isso, busco o silêncio;
só ele nos deixa em paz.
As palavras...
prefiro prendê-las no papel.
Se viro a página
ou fecho o livro,
as silencio.
Vingo-me.
Torno-me rei.
-
Fonte:
AGULHON, Olga. O Tempo. Maringá: Midiograf, 2003.

Zé Lucas, Ademar Macedo e Prof. Garcia (Um Debate em Setilha Agalopada) Parte 5, final

121 - Zé Lucas
Entre as coisas que a vida me propôs,
desde o tempo feliz da tenra idade,
e eu procuro seguir com todo o empenho,
vêm, na linha de frente, a honestidade
e os princípios do amor e da harmonia,
porque Deus vai querer que eu prove, um dia,
o que fiz pra ganhar a eternidade.

122 – Ademar
Eu não sei se eu irei pra eternidade
quando Deus resolver me resgatar,
já andei por caminhos tortuosos
pelos quais não pretendo mais andar;
pelas coisas da vida que eu renego,
pelo fardo pesado que eu carrego,
tenho fé que Deus vai me perdoar.

123 - Prof. Garcia
Não se vive no mundo sem lutar,
pois o próprio Jesus, exemplo deu,
fez de tudo este pobre peregrino
pela terra sofrida onde nasceu;
perdoou todo o povo e pediu paz,
mas o vil pecador, quis Barrabás
no lugar deste Santo que morreu!

124 - Zé Lucas
Quem matou o Divino Galileu
deu um passo infeliz e negativo,
fez o mundo cobrir-se de amargura
por um crime covarde e sem motivo,
e jamais esperou que, após três dias,
Deus mostrasse a grandeza do Messias,
levantando-o da cova redivivo!

125 – Ademar
Quando eu for para o céu ver o Deus vivo,
além da grande fé que me conduz
levarei a muleta e meu boné
adereços da minha própria cruz;
aos meus fãs deixo aqui os versos meus,
e os poemas que eu fiz falando em Deus
levarei de presente pra Jesus.

126 - Prof. Garcia
Quando eu curvo o joelho aos pés da cruz,
vejo o quanto Jesus Cristo sofreu,
eu pergunto a mim mesmo, por que foi,
que este filho inocente, assim morreu?
Peço a Deus, rogo a Deus, vertendo pranto,
que não deixe eu na vida sofrer tanto,
sendo um bom pecador como sou eu.

127 - Zé Lucas
Judas, sendo discípulo, vendeu
o seu Mestre, por preço de cocada,
pra ser morto na cruz, entre ladrões,
vendo o pranto da mãe, amargurada
com a pena que a história mal descreve.
Se é difícil pagar quando se deve,
duro mesmo é pagar sem dever nada!

128 – Ademar
Minha cruz eu já sei que é bem pesada,
pelo peso do fardo que carrego,
mas não sinto cansaço nem fadiga,
os pecados são meus, eu não renego;
mas seguindo a Deus Pai, o verdadeiro,
vejo e sinto o meu fardo mais maneiro
pelas coisas de Deus que hoje eu prego!

129 - Prof. Garcia
Tudo quanto eu consigo, a Deus entrego,
porque sinto que um fogo, em mim reluz,
cada passo que dou em minha vida,
sinto a força de alguém que me conduz;
e esta chama queimando no meu peito,
é a fogueira da prece do meu leito
que me aquece nos braços de Jesus!

130 -Zé Lucas
Quando, há muitos janeiros, vim à luz,
foi chorando nos braços da parteira;
minha mãe, entre lágrimas e risos,
me beijava na face a vez primeira...
Dessa forma nasceu um trovador,
desprovido de bens, mas com amor
pra doar, neste mundo, a vida inteira.

131 – Ademar
Eu nasci pelas mãos de uma parteira
num sertão pobre, seco e abrasador,
nunca usei uma fralda descartável,
a chupeta era o dedo indicador;
e apesar de ter tantos empecilhos,
mesmo tendo já feito vinte filhos
o meu pai inda fez um Trovador.

132 - Prof. Garcia
No sertão, cada filho é uma flor,
que perfuma e inebria um lar feliz,
quanto mais nasce gente em cada casa,
mais o dono da casa pede bis;
mamãe tinha um menino todo ano,
papai pobre não quis mudar de plano
criou onze do jeito que Deus quis.

133 - Zé Lucas
Deus me deu cinco filhos e, feliz,
eu cumpri para os céus essa missão;
sinto neles a minha própria vida
como os dedos que toco, em cada mão,
quando rezo por todos, de hora em hora...
São pedaços de mim que vejo fora
porém nunca tirei do coração.

134 – Ademar
Deus me deu uma linda geração.
Todos eles são servos do Senhor;
duas filhas, dois genros, nora e neto
e meu filho, estudando pra pastor,
me ensinou que somente Deus nos salva
e eu pretendo, com minha ESTRELA Dalva,
ter as bênçãos de Deus, o Criador!

135 - Prof. Garcia
Tudo quanto se faz com muito amor,
Deus concede o perdão do que se faz,
somos todos eternos viajantes,
peregrinos na vida e nada mais;
quem quiser ser feliz por um segundo,
tenha fé no perdão, perdoe o mundo
plante o amor, colha o amor pedindo paz!

136 - Zé Lucas
Dessas coisas que a vida leva e traz,
lembro um fato do meu interior:
o rapaz era louco pela moça
que a má sorte feriu com grande dor
e levou-a pra longe, sem alarde.
Quando trouxe de volta foi tão tarde,
que não houve mais chances para o amor!

137 – Ademar
Uma seta atirada pelo amor
deixou marcas profundas no meu peito,
mesmo eu sendo ainda muito jovem
esta seta causou-me grande efeito;
até hoje no peito ela corrói,
quanto mais eu relembro mais me dói
já tentei esquecer... Não tem mais jeito!

138 - Prof. Garcia
Todo o amor que foi santo, tem defeito,
porque somos um filho do pecado,
quando Deus fez Adão, depois fez Eva,
quis o fruto do amor santificado;
mas Evinha, danada como era,
usou todas as garras da pantera
destruindo esse amor que foi sagrado!

139 - Zé Lucas
Guardo ternas lembranças do passado,
com o encanto de tudo que era meu:
a menina singela e tão bonita,
sem adornos de loja ou camafeu.
Nos seus lábios, a vida me sorria;
nos seus olhos românticos, eu lia
um poema que nunca ninguém leu.

140 – Ademar
Uma história de amor que não morreu,
retorná-la a viver, hoje eu queria.
Descobri que eu amava, um pouco tarde
e esse amor era tudo o que eu queria;
mas só vim descobrir tempos depois...
Nos momentos vividos por nós dois,
eu fui muito feliz e nem sabia!

141 - Prof. Garcia
Sou feliz, fui feliz e mais seria,
se eu voltasse aos jardins da mocidade,
inda visse a primeira namorada
e abraçasse os meus pais na flor da idade;
mas o tempo me deu folha corrida,
e abraçar os fantasmas desta vida
é o que faço, morrendo de saudade!

142 -Zé Lucas
A mudança do campo pra cidade
me deixou um sabor de despedida:
aqui tenho encontrado mais conforto;
de lá vêm as lembranças da guarida,
onde eu tinha um irmão em cada canto.
Finalmente, esta praia é meu encanto,
mas o velho sertão é minha vida!

143 – Ademar
Deus me deu este dom pra toda vida:
fazer versos, trovar, viver feliz.
Me tornei um poeta popular
e entre todos eu sou um aprendiz,
mas confesso com a mente envaidecida
que a poesia marcante em minha vida,
tenho toda certeza que não fiz!

144 - Prof. Garcia
Eu também vou na mesma diretriz,
repintando os meus sonhos de poeta,
cada lindo arrebol de um novo dia,
traz a luz da esperança para o esteta;
aos gemidos da musa benfazeja,
a poesia me abraça e me bafeja
e é assim, que meu sonho se completa.

145 - Zé Lucas
Quando jovem saudável, minha meta
era a grande aventura das jornadas,
enfrentando descidas e ladeiras,
sem temer o perigo das estradas
nem o peso das duras circunstâncias,
e hoje as pernas, cansadas de distâncias,
só aceitam pequenas caminhadas.

146 – Ademar
Tiro as pedras do meio das estradas,
corto as pontas que tem em cada espinho,
ponho o riso no rosto da criança;
e uma dose de amor e de carinho
eu coloco no olhar de cada velho,
pois seguindo o que diz nosso evangelho,
serei bem mais feliz no meu caminho.

147 - Prof. Garcia
Eu protejo as essências do meu ninho,
semeando a ternura como prova,
planto um galho de amor em cada canto,
brota um pé de carinho em cada cova;
toda noite eu replanto a minha roça,
e o orvalho que pinga na palhoça
beija os lábios da paz, que se renova!

148 - Zé Lucas
Neste nosso debate se comprova
a leveza de um longo versejar.
Estivemos juntinhos caminhando,
sem ninguém se mexer do seu lugar,
mas, agora, ao final deste rojão,
me despeço com aquela sensação
de quem sai com vontade de ficar.

149 – Ademar
Fabricante do verso popular,
sou fiel seguidor do meu destino,
mergulhado num mar de inspiração,
um momento, pra mim, quase divino;
misturando o real com a fantasia
eu mostrei a beleza da poesia
e a grandeza do vate nordestino.

150 - Prof. Garcia
Três poetas fiéis, e um só destino,
num debate em setilha agalopada,
versejando com tanta inspiração
sem ninguém se perder na caminhada;
cada qual debatendo do seu jeito,
mas deixando a saudade em cada peito
lamentando o final desta jornada!

Lucan (Lucas Candelária)/SP (Caderno de Trovas)

Quando este mundo acabar
Seremos as estrelinhas
Lá no céu a iluminar
Cada um com sua luzinha.

Na vida há sempre um momento
Em que ficamos bondosos...
Tudo em paz, sem sofrimento,
Carinhos, beijos gostosos.

Nossa Doce Solidão
Poetisa de Alto Mérito,
Vive em nosso coração,
Amiga desde o pretérito

Bom dia “Doida Varrida”
Que abandonou o Recanto
Atrás dos blogs da vida
No encalço de classe e encanto!

Acostumado co’a sorte
Que dá e tira se apraz,
Eu fui buscar lá no Norte
Um bocadinho de paz.

Não chore a perda do amor...
Outros, por certo, virão,
Então lhe dê mais valor
E guarde-o no coração.

Como é triste a solidão!
Só, aqui no meu cantinho,
Saudade no coração
E mágoa no meu caminho.

“Há males que vem pra bem”
Como revela o ditado
Não é segredo a ninguém,
Mas, eu fico desconfiado.

Mulher linda, mas distante
Machuca o meu coração.
Como é ruim e humilhante
Não se ter um avião.

Eu trago dentro do peito
A triste dor da saudade!
Porém, estou bem afeito
À torva e má realidade!

Saudade é chama pungente,
Tédio, pranto, amargor,
É o emblema de toda gente
Presa nas malhas do amor.

Duas estrelas os seus olhos
Iluminando a amplidão
Para compensar os abrolhos
Que os trago em meu coração!

É exato e muito verdade
Não sou eu, Cristo é quem diz:
Quem quer ter felicidade
Primeiro faça alguém feliz.

Quando eu só for um borrão,
Em sacrossantos desvelos,
Hás de enlutar meu caixão
Com os teus negros cabelos!

Nunca alteres tua voz
E nem ofendas em vão...
Esse papel é feroz,
Próprio da hiena e do cão.

Deixa-me só, a chorar
Tristes ais da solidão...
Algum dia hás de voltar
Para suster meu caixão.

Se eu pudesse, LU, faria
De você uma rainha
Com um reinado gigante,
Muito ouro, paz e harmonia.

Teus olhos negros e divinos
São graças celestiais
E teus lábios purpurinos
São cativantes demais.

Olhos, lábios e cabelos
São a beleza maior
Mais, simpatia e desvelos
Fazem-te linda e mulher;

Não há mulher mais formosa
Do que aquela que se ama
O resto é somente prosa,
Não precisa fazer drama!

Nos meus sonhos sempre beijo
Sua boca com prazer.
Perdão... Nem é meu desejo
Sempre sonho sem querer.

Não ponha lume à fogueira
Do homem que cai cruciado.
“Só atire a pedra primeira.
Quem estiver sem pecado”.

A vida é um jogo de bola
Sem regra e sem diretriz,
Onde a falta canta e rola,
Sem apito e sem juiz.

TROVAS AGRESTES

Nas noites de lua cheia
Fazem festa de primeira
A roça vira uma aldeia
E dançam a noite inteira.

E o vento em flautas da mata
Não pára, vai noite inteira
Fazendo uma serenata
Entre as palmas da palmeira.

Latem os cães no terreiro,
De espingarda a tiracolo
Bufando de carneiro
E vai cair no monjolo.

Que saudade de pamonha!
De milho verde e curau!
Ai! Me dá até vergonha!
Nem quero lembrar... Tchau!

E nas festas do divino,
Levantar de madrugada:
A orquestra de violino,
Os lábios da namorada!

Nunca vamos olvidar
O coração fica afoito
Com saudades de rachar
Do cafesão com biscoito.

A igrejinha lotada,
O padre paramentado
Nós e nossa namorada,
Um frio bem suportado.

Trova é dizer em versos
O que se diz a toda hora
E os ouvida já dispersos
Como algo que se põe fora.

O povo dança animado
E a alegria toma conta
Os casais de namorado
No escurinho logo apronta.

O roceiro é sossegado...
Espera o tempo passar,
Depois de um dia forçado
Toma banho e vai deitar.

No outro dia, madrugada
Levanta bem satisfeito,
Passa um fio em sua enxada
E vai depressa ao seu eito.

A liberdade na roça
É linda, reconfortante:
Os encantos da palhoça
E um povo alegre, operante.

A cachoeira em serenata
Os pássaros a esvoaçar,
O cheiro forte da mata
E a porteira a martelar.

Tudo isso é felicidade
Que alegra o povo unido,
Que não se vê na cidade
De um povo triste e sofrido.

Até as flores da roça
Tem mais mimo e mais olor
Só enfeita a nossa choça
E conforta o nosso amor.

O povo dança animado
E a alegria toma conta
O casal e namorado
No escurinho logo apronta.

O Roceiro é sossegado...
Espera o tempo passar,
Depois de um dia forçado
Toma banho e vai deitar.

No outro dia, madrugada,
Levanta bem satisfeito
Passa um fio em sua enxada
E vai depressa ao seu eito.

As mulheres também, cedo
Vão pras lides do fogão.
A boia não tem segredo:
É tempero e boa mão.

Amanhã vamos contar
Mais segredinhos da roça
Se alguém quiser me ajudar
Venha até nossa palhoça.

Fonte:

Tereza Lopes (O Soldadinho de Saco às Costas)

Para o João Pedro,
que nunca prove o gosto do inimigo.

Tolentino Esteves da Silva nasceu, por assim dizer, soldado.

Na noite em que veio ao mundo, seu pai logo profetizou: um rapagão assim só pode servir nosso mestre e nossa pátria.

Não podiam ser para ele os rebanhos que a família guardava havia séculos, nem o amanho da terra que a alimentava. Destino maior teria Tolentino e assim estava decidido.

Quando completou dezoito anos, o pai mandou-o inscrever-se no exército, conforme prometera à sua nascença. E poucos meses volvidos chegou a carta que mandava Tolentino apresentar-se no quartel mais próximo. A mãe juntou-lhe alguma roupa, um pedaço de presunto, meia dúzia de chouriças, um naco de pão e enfiou tudo num saco. Lágrima de mãe no canto do olho, disse-lhe que fosse em paz e pediu-lhe que nunca se esquecesse dela.

O pai, esse estava orgulhoso.

Tinha, finalmente, chegado o dia de mostrar àquela aldeia, que ficava nos confins da serra, que dali também partiam homens guerreiros, como sempre ouvira dizer que tinham sido seus antepassados.

Por isso ninguém lhe viu uma lágrima que fosse, embora elas estivessem todas a correr para dentro do peito e a magoarem-lhe a alma.

Dois dias e duas noites foi quanto Tolentino levou a chegar ao quartel. Apresentou-se, deram-lhe uma farda, uma arma, um número para pôr ao pescoço e disseram-lhe:

– Tens que obedecer aos teus superiores. Fazer tudo que te mandam, ouviste bem?

– Sim, senhor, que bem ouvira e que bem entendera. Que tudo faria a gosto de suas senhorias. Pois não era para isso que ali estava?

Depressa passou o tempo da recruta. Tolentino, bem mandado e forte como era, foi considerado um dos melhores. E que orgulhoso que ele estava. Não podia esperar mais pela hora de ir para a guerra, lutar contra o inimigo.

– Onde está ele, meu capitão? Onde fica a guerra, meu sargento? Quero ver a cara desse malandro já, meu cabo!

Os três entreolharam-se, admirados. Tanto empenho e tanta dedicação daquele soldado durante a recruta deviam ter-lhe afetado o pensar. E depois de uns segundos de silêncio, disse o capitão a Tolentino:

– A guerra acabou, bom homem. Tu, bravo soldado, mataste o inimigo.

– Mas como, se nunca eu vi a cara do safado?!

– Pois tu não sabes como o inimigo era esperto? Como ele se escondia atrás de cada colina por onde andaste? Entre os barcos que alvejavas escondido no pinhal? No meio das nuvens para onde descarregavas a tua arma?

Ainda incrédulo, Tolentino teve de se render às evidências. E, sempre bem mandado, lá arrumou o seu saco, pô-lo às costas e regressou a casa, bem no alto de uma serra, não sem antes ter feito um pequeno desvio.

Foi dia de festa quando o avistaram. A mãe deu-lhe um grande abraço, o pai, esse fez-se de forte e para que todos da aldeia ouvissem, perguntou-lhe:

– Então, meu filho, que tal a guerra? Que é do inimigo?

– Saiba meu pai e toda esta gente, para vosso descanso, que a guerra acabou e que o inimigo jaz no campo de batalha. E fui eu, Tolentino Esteves da Silva, que pus fim a tudo. Assim disseram o meu capitão, o meu sargento e o meu cabo.

Todos pasmaram com tamanha bravura e logo quiseram saber pormenores.

Tolentino tirou o saco das costas, meteu a mão com muito cuidado por um pequeno orifício da abertura e mostrou para que vissem bem e nunca mais esquecessem:

– Aqui está um pedaço de erva de uma colina onde o inimigo se escondia. Esta madeira são restos de um barco que afundei.

E abrindo completamente o saco, soltou-se no ar um nevoeiro espesso e húmido que a todos assustou.

– Não temais, sossegou Tolentino, neste pedaço de nuvem jazem em pó os restos mortais do último inimigo deste país.

O nevoeiro dispersou-se no ar e quanto mais subia mais os habitantes da aldeia erguiam as suas cabeças.

O silêncio pesava quando Tolentino Esteves da Silva juntou a erva e o pedaço de madeira e os meteu de novo no saco. Pegando na enxada de seu pai começou a subir o monte e, voltando-se para todos, esclareceu:

– Vou ao pico mais alto da serra enterrar estes despojos da guerra. Nunca vi a cara do inimigo, mas também ele merece paz e descanso. Amanhã, meu pai,... amanhã tratamos da sementeira. Amanhã.

E continuou a subida, curvado, como se no saco que sentia tão pesado, estivessem os restos mortais do feroz inimigo que ele nunca vira e que tanto atormentara o sono merecido da gente daquelas paragens.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

Ialmar Pio Schneider / RS (Livro de Sonetos VI)

SONETO DE UM CAVALEIRO TRISTE 

O sol descai... Montado no alazão
eu sigo pensativo pela estrada,
ouvindo o triste mugir da manada
que procura abrigar-se no capão.

Horas de amor... horas que o coração
modula calmamente uma toada;
que a tarde vai descendo para o nada
e cheio de poesia fica o rincão.

Morre a tardinha e nasce então o sonho
que anima, que cativa, que reluz,
embora seja às vezes tão tristonho.

A noite vai descendo, foge a luz,
por toda parte um reluzir tardonho
e eu prossigo levando a minha cruz !

SONETO DE UM ANDARILHO 

Eu vivo solitário e maltrapilho,
a caminhar por este mundo afora,
e levo a vida por um triste trilho,
boêmio sem amor e sem aurora.

Da solidão sou sempre um pobre filho,
e com imensa dor minh´alma chora,
quando lembro sozinho o nosso idílio,
aquele louco amor que tive outrora.

Hoje, tristonho e maltrapilho vivo,
da sociedade sempre longe, esquivo...
Apenas nas tabernas acho paz.

E lá, quando me afogo na bebida,
olvido a desventura desta vida
e penso, doido, que me amando estás.


SONETO ARDENTE 

Aos poucos vou contando minha história
nos poemas, nas crônicas, nos versos
dos sonetos, das trovas... - merencória
poesia - todos por aí dispersos...

Relembrando os amores mais diversos
que passaram, bem sei, longe da glória
de se concretizarem ou perversos,
magoando a minha triste trajetória...

Lendo as páginas de outros sonhadores
que enfrentaram fracassos, dissabores,
eu me ponho a pensar no céu da vida

que me pudesse dar felicidade
e chego a bendizer esta saudade
como se aos beijos da mulher querida…

SONETO TRISTONHO 

Que lindo é o modular do passaredo
que canta desde a aurora vir chegando
até que a tarde triste vá tombando
e a noite desça cheia de segredo.

Ai! quem me dera que eu cantasse ledo
sem estes prantos que me vão cegando
e quando a noite vier se aproximando,
cantar contente sem nenhum degredo !

Como meu peito já não quer cantar
e minha vida sem amor definha,
no verso derradeiro a chorar

te peço encantadora moreninha,
que quando a morte me vier buscar,
reza uma prece pela alma minha !

MATE NO GALPÃO 

O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos…

SONETO DO FIM DO DIA 

A noite vem descendo vagamente,
as estrelas no céu vão apontando,
a lua começa sua jornada urgente,
de um lado para outro vai passeando...

Quem nestas horas, de um amor ausente,
não fica triste a imensidão mirando,
e embora tantas vezes queira e tente
modular, de tristor fica chorando?!

Nesses momentos sempre é que a saudade
me desanima, me tortura, ingrata...
E eu me recordo, olhando a imensidade,

dos felizes passeios pela mata;
e a feroz aflição que então me invade
prorrompe dentro em mim como cascata !

SONETO À MULHER MORENA 

Linda manhã radiosa me convida
a prosseguir nos passos rumo ao mundo,
porque sonhar amando é tão profundo,
que mais e mais, também prolonga a vida !

Mas se eu pudesse ser um vagamundo,
sem conhecer a estrada percorrida,
com certeza, conceberia a lida
de procurá-la até em um submundo...

Eu sei que vou lhe amar a todo o instante,
com seu sorriso límpido e brilhante,
qual se fosse de Alencar - ´´A Iracema´´!...

E para consagrar meu preito à bela
morena, que não sai da minha tela,
eis o soneto que ainda é o poema !

FARRAPO 

Levantou-se o gaúcho sobranceiro
no alto da coxilha verdejante,
carregava uma carga no semblante
dum tristor que seria o derradeiro.

A glória de lutar e ser galante:
o sonho que conduz o aventureiro.
A glória de ser livre e ser gigante:
o lema que conduz o pegureiro.

Este lema e este sonho se fundiram
e assim surgiu o nobre Farroupilha
que lutou com ousada galhardia,

porque a honra e a justiça escapuliram
da canhada e do topo da coxilha,
do pago em que ele viu a luz do dia !

QUANDO MURCHAR A PRIMAVERA 

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente...

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.

CANSAÇO 

No corpo sentírás a lassidão
de uma canseira incrível, de um torpor
que te virá só para em ti depor
as esperanças que te morrerão...

E numa palidez verás, então,
teus olhos magoados pela dor,
vidrados sem o brilho sonhador
que te deixava tão alegre são...

Desejarás dormir nestes instantes.
O sono não virá dar-te umabraço.
Irás cantar, mas inda que tu cantes

passarás amarguras como passo
e enxergarás que em risos deslumbrantes
te sorrirá flamívolo cansaço…

Fonte:
Sonetos

Machado de Assis (Badaladas – 28 de julho de 1872)


Houve um jantar político no Pará. Comeu-se como é de uso nos jantares, e politicou-se, como é de praxe nos jantares políticos.

O leitor já está a adivinhar que, não sendo esta folha política, alguma coisa alegre me chama atenção para os brindes publicados no Jornal do Comércio de quarta-feira.

Adivinhou.

Um dos oradores encetou o seu brinde fazendo uma homenagem ao tipo do bom cidadão. Em seguida, disse que percebera desde o começo do jantar que todas as pessoas presentes rendiam homenagem a um bom cidadão.

Mas qual é o sintoma que dá a conhecer a homenagem prestada a um bom cidadão? Que pergunta! É o silêncio.

Disse o orador:

“O profundo silêncio que reinou durante a mastigação deste banquete, tão suntuoso quanto concorrido de convivas respeitáveis, despertou no meu coração este sentimento: Todos que estão aqui rendem homenagem a um bom cidadão.”

Eu peço humildemente ao leitor que acredite no assombro que me produziu a leitura do trecho citado. Ainda na véspera tinha eu jantado com alguns amigos; durante a sopa e a primeira entrada ninguém abriu o bico. Mal sabia eu que rendíamos homenagem a um bom cidadão.

Até aqui tinha eu uma boa suspeita de que o silêncio que se observa no começo dos
jantares era uma simples homenagem ao estômago. Atrevamo-nos: uma homenagem à besta.

Geralmente, quando os grandes jantares começam, está o estômago a dar horas. Daí vem, pensava eu, a mudez com que os convidados se lançam aos primeiros pratos.

Vê o leitor que eu fazia uma triste idéia da espécie humana.

O autor do brinde foi buscar uma causa mais elevada; levantou o estômago à altura de uma virtude social; fez uma aliança entre a gratidão pública e a couve-flor. Confraternizou, enfim, para usar os seus próprios termos, a homenagem e a mastigação.

E não pára aí.

Era o silêncio a única homenagem devida a um bom cidadão?

De certo.

Porque:

“Segundo a sentença dos Árabes, o silêncio é de ouro; e só o silêncio, digno de tão numerosa e ilustre concorrência, devia ser a primeira saudação ao distinto cavalheiro a quem é ofertado este banquete, credor de todo respeito.”

Isto e uma cacetada na cabeça dos muitos oradores que precedentemente brindaram o dito cavalheiro, era tudo um.

Para mitigar o efeito do golpe não se demorou o orador em borrifar um cumprimento, para o qual peço agora toda a atenção dos leitores:

”O entusiasmo delicado e discreto, que agora unissonamente aplaudimos, é a cor azul que veio firmar e fazer sobressair mais a eloqüência do silêncio de ouro.”

Meditemos.

Aquela cor azul é um achado feliz.

Um entusiasmo que é a cor azul de um silêncio de ouro, merece toda a atenção dos estilistas. Eu que o não sou, nem pretendo ser, não deixo de ver no entusiasmo — cor azul — um grande recurso para os prosadores.

Na poesia sabem todos a vantagem que há muitas vezes em poder empregar uma palavra curta em lugar de uma palavra longa. Por que razão não se dará o mesmo na prosa.

Entusiasmo e uma palavra de légua e meia; às vezes cai bem, outras vezes fica mal, não concentra, dilui o período.

Mas não acontece o mesmo com azul. Azul é breve e eufônico. Indico, portanto, aos
escritores esta substituição facílima.

Dirá o jornal:

“Fundou-se ontem a Associação para a pesca do marisco. Estavam presentes cerca de 45 membros. O azul produzido pelo discurso do iniciador da idéia é indescritível.”

Outro escreverá:
“O governo achará sempre frouxo o espírito público enquanto não entrar na via das reformas radicais. Açula-se o povo com grandes idéias, não com rebocos e mãos de cal.”

Enfim, um terceiro:
”O nosso amigo X chegou no dia 5 do passado a Nioac. O povo ardente, jubiloso,
azulado, correu em massa a recebê-lo.”

Outra vantagem que nos traz este azul.

O entusiasmo tem graus. Há entusiasmo e entusiasmo. Um chega ao delírio, enquanto o outro não passa de animação. Qual será a maneira de os indicar com a simples palavra usada exclusivamente até hoje?

Já não é assim com o azul.

Quero eu dizer, por exemplo, que um ator excitou entusiasmo febril na platéia. Exprimo-me assim:
”No ato 3.º, na ocasião em que o marquês tira o punhal para ameaçar o conde, esteve o ator X verdadeiramente sublime. O público no seu azul-ferrete, atirou para a cena os chapéus.”

Suponhamos que falo de um ator medíocre:
“O ator N faz esforços para progredir, e alguma coisa vai alcançando. Nunca será igual ao ator C, mas não há dúvida que sabe despertar na platéia um certo azul-claro, já honroso para ele.”

Quem não diria com graça, falando de um orador sagrado:

“O padre Z é a verdadeira glória do púlpito. O sermão pregado ontem na Cruz excitou no auditório um azul, que por uma verdadeira coincidência, era azul-celeste.”

Vi há dias anunciada uma casa para alugar. Dizia o anúncio que era uma casa nobre. Cogitei largo tempo.

— Casa nobre, dizia eu com os meus botões, é sinônimo de família nobre; mas uma
família nobre não se aluga. E demais casa, indicando família, não designa só uma aglomeração de membros vivos, mas uma geração, e isso ainda menos se podia alugar. Evidentemente o anúncio aludia a um prédio.

Indaguei se o prédio estava aliado com os Ossunas, os Montmorency ou os Northumberland; soube apenas que estava aliado com a cal e a pedra de que fora feito.

Donde vinha, pois, a nobreza do prédio?

Não me constava que seus avós tivessem ido à Terra Santa. Seus avós foram uns laboriosos pedreiros, que só talvez agora estejam na terra. . . da eternidade.

Não rezavam as crônicas nenhum façanha daquele prédio. As mais esmerilhadas genealogias não acharam a mínima gota do sangue dos barões normandos nas suas
veias. O prédio datava de 1835, ano que só uma excessiva boa vontade poderá encravar na idade-média. Supondo eu, depois de muita meditação, que o anúncio quis indicar a condição e o aspecto da casa, tomo a liberdade de oferecer aos anunciantes uma série de vocábulos que poderão evitar o calembour. Pode dizer-se:

Suntuosa,
Bela,
Elegante,
Magnífica,
Soberba.
E outros termos que não escrevo por falta de espaço.

Sur ce, lecteur, que Dieu vous aie dans sa sainte garde.
Dr. Semana.
Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
 

Paulo Mendes Campos (Fábula eleitoral para crianças)

Um dia, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular.

Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloqüentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.

Entre os bichos era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas passava com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.

Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.

O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e os outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam decidiam apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa; as cegonhas, irresolutas, passavam as tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no céu; as andorinhas, tímidas, buscavam o refúgio das igrejas; e a águia, fascista de nascença, pretendia organizar lá no alto uma conferência de que só participassem as aves de rapina, como o falcão, o condor e o gavião-de-penacho.

Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas árvores; a raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual; os macacos eram vaiados quando alegavam a semelhança com o homem; o cavalo se insinuou candidato, dando a sua condição de antigo senador; o pavão, escondendo os pés, exibia a cauda; nos brejos, os sapos repetiam “slogans”monótonos; os jacarés e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam levando sussurros quase imperceptíveis, a conversar as pedras e as ervas das margens; o rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com o rato da cidade; os gansos citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam direitos divinos, que não eram mais levados a sério; as hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser constituído pelos animais ferozes, que lhes deixavam os restos; até a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.

A mosca azul voava e revoava por todos os cantos.

Quem será o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas andavam como doidas pelos campos, à noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.

Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro reluziam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.

As flores distribuíam perfumes. Árvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos, cheios de experiência. E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer. Os monocotiledôneos discordavam dos dicotiledôneos, os fanerógamos acusavam de hipocrisia os criptógamos. A plena campanha eleitoral com todos os incidentes. Só os ciprestes continuavam fechados em sua indiferença.

A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com a máxima lisura.

Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.

Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o céu e a terra, eterna e efêmera, a rosa, carne, espírito e pó. E, para entronizar a rainha, o dia se iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os pássaros cantaram com inspiração, as árvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens de gala, os seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram em reverência, as nuvens se desfraldaram como cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do mar era uma alegria silenciosa e solene como um “te-déum” em uma catedral verde-escura, os polvos gesticulando em câmara lenta, os peixes e as medusas passando sem barulho.

Entre os seres humanos, só as crianças sabiam que era o dia da entronização da rosa, e nada contaram a ninguém. Mas pelo jardim onde se achava a rosa, expectante no seu recato soberano, passava naquela manhã um homem feio e preocupado. Era um candidato a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a Presidente da República, não se sabe ao certo. Distraído com as suas ambições, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a fenecer em suas mãos úmidas. Depois, olhou e viu que se tratava de uma bela rosa, uma rosa digna de se oferecer a uma namorada. Mas ele não tinha namorada. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... Ele começou a desfolhar a rosa só para saber se dessa vez seria eleito: à Câmara de vereadores, de deputados ou à curul da Presidência da República, não se sabe ao certo. E a rosa morreu.

E foi por isso que o dia se fechou de repente, o céu ficou escuro, os animais uivaram nos bosques, os pássaros sumiram, o vento se desatou sobre o mar agora encapelado, o raio e o trovão tomaram conta da noite sem estrelas, e as crianças na hora do jantar perderam a fome. Tinha morrido a rainha do universo.

Mas nas trevas desabrochou outra rosa para iluminar com a sua beleza o jardim amanhecido.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 608)

Uma Trova de Ademar  

O vencedor tem que ter
alguns tropeços por meta,
para só depois obter
uma vitória completa!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional

Venceste alguém...e sorris
numa explosão de prazeres...
Serás, porém, mais feliz
quando a ti mesmo venceres...
–Newton Vieira/MG–

Uma Trova Potiguar


A tartaruga que ostenta
duzentos anos de vida,
apesar de muito lenta,
no tempo, vence a corrida.
–Marcos Medeiros/RN–

Uma Trova Premiada


2011 - ATRN – Natal/RN
Tema - VERTENTE - 2º Lugar


Nas ilusões eu me orgulho
de vencer tempos tristonhos,
pois, destemido, mergulho
numa vertente de sonhos...
–Edmar Japiassú Maia/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Herdei de ti, pai querido,
essa força de condor
que te fez, sendo um vencido,
ter ares de vencedor.
–Lilinha Fernandes/RJ–

U m a P o e s i a


Quem no mundo, faz tudo pela paz,
já é mais que herói, que vencedor,
vive um sonho, que pouca gente vive,
e alivia do peito tanta dor;
porque neste universo tão mesquinho,
quem plantar um espinho, colhe espinho,
mas quem planta uma flor, colhe uma flor!
–Prof. Garcia/RN–

Soneto do Dia

TRIBUTO A ADEMAR.
–Francisco Macedo/RN–


A vida de Ademar é um sarau,
sem nenhuma poesia repetida,
razão desta homenagem merecida
desde o primeiro ao último degrau.

Suas duas muletas são a nau
pelos mares revoltos desta vida,
para vencer qualquer uma corrida
sempre ao lado do bem, vencendo o mau.

Mesmo útero materno concebeu,
já nascemos, poetas, ele e eu.
Vigésimo e vigésimo primeiro.

Nas três vezes venceu a própria morte,
obrigado, meu Deus, por ter a sorte,
de tê-lo como irmão e companheiro!

J.B.Xavier (O Teste)

Olhei para as conchinhas com as quais um dia um índio engenheiro chamado Nhuamã, com idade para ser meu filho, me deu a maior lição de minha vida e decidi não abrir mão de tudo o que prometera a mim mesmo naquele distante dia, em que, em sua companhia, atravessei distraidamente uma praia, após a dramática demissão de meu último emprego.

Agora, uma nova oportunidade de voltar ao mercado de trabalho me era oferecida.

Ainda tendo à mão o telegrama que me convocava para uma entrevista, eu pensava na importância que tinha aquele emprego para a seqüência de minha vida. Na verdade, eu precisava desesperadamente daquele trabalho.

Há quase um ano desempregado, minha situação financeira tinha se reduzido a farrapos. Juntamente com ela, meu relacionamento com meus familiares tinha piorado bastante e estava quase insustentável. A despeito de se dizer que dinheiro não é o mais importante, ele tem, sim, importância fundamental para a manutenção da dignidade, numa sociedade que avalia as pessoas pelo que elas têm, não pelo que são.

Fui demitido de meu último emprego quando estava no auge de minha carreira. Disseram-me um monte de baboseiras para justificar minha demissão, mas a verdade é que fui demitido por não ter me atualizado – me reciclado – como querem alguns, em tempo de continuar sendo útil à companhia. Confesso que eu não era lá essas coisas como companheiro, e meu ex-diretor me disse que eu era um elemento desagregador na companhia.

Na ocasião tive a sorte de encontrar um jovem que me conduziu por uma praia, e enquanto catava conchas coloridas ensinou-me uma das maiores lições que já tive em minha vida. Mas essa história eu já contei em outra ocasião e não desejo ocupar seu tempo, amigo leitor, com coisas repetitivas.

Basta que lhe diga que após conhecer esse jovem, eu modifiquei muitos dos meus hábitos de vida: Passei a considerar que sendo eu um ser único, devo ter, sem dúvida, algum valor. Passei também a prestar mais atenção às coisas belas que me rodeiam,e, principalmente, passei a valorizar as pessoas ao meu redor.

Mas - como se costuma dizer - na prática a teoria é outra! No mundo real, somos tentados a toda hora a vender nossos sonhos, e, conforme nossa necessidade, por um preço bem baratinho!

Então, após passar pela terrível experiência de ser demitido, uma das coisas que decidi foi nunca mais abrir mão dos meus princípios básicos de vida, éticos ou morais, nem que disso dependesse meu emprego. Digo isso porque volta e meia meu antigo trabalho me levava a procedimentos que se por um lado eram legais, por outro nem sempre eram éticos. Aliás essa linha divisória entre a legalidade e a ética é as vezes imprecisa e difícil de definir.

Mas não é fácil manter-se íntegro no mundo cão que nos rodeia e do qual dependemos. Mesmo assim, eu estava tentando, e já recusara algumas propostas de trabalho que, se as tivesse aceitado, haveriam de me reconduzir ao meu antigo hábito de violentar a mim mesmo.

Mas como explicar á minha família que um sujeito que precisava de trabalho desesperadamente dava-se ao luxo de rejeitar algumas propostas? Como faze-la compreender que minha integridade, recentemente recuperada, não estava mais à venda?

Foi pensando nisso tudo que tomei o avião, cuja passagem me havia sido enviada juntamente com o telegrama, e viajei até a cidade onde ficava a sede da empresa, para uma entrevista inicial.

Na tarde do dia seguinte, quando compareci ao local onde aconteceria a entrevista, eu estava calmo, mas aos poucos fui ficando tenso, ao ver a suntuosidade do edifício e da sala onde me instalaram à espera do entrevistador.

Quando cheguei já estavam na sala um homem bem mais jovem do que eu, e duas mulheres. Ele estava muito bem vestido e parecia um executivo em pleno esplendor da carreira. Era um jovem muito bonito, que parecia mais um modelo do que um executivo. Sua resposta seca ao meu bom dia enterrou minha curiosidade de saber se ele era também um candidato à vaga. Depois disso não tive oportunidade de lhe dirigir a palavra, porque ele ignorou completamente minha presença, fazendo com que me sentisse transparente contra o fundo, enquanto conversava animadamente com as duas mulheres, tendo na fala um forte sotaque inglês, embora falasse fluentemente o português.

Sorri interiormente, porque eu já havia sido assim, orgulhoso e confiante. Já havia impressionado muitas mulheres com meus conhecimentos de arte, e já causara muito sofrimento àquelas que por mim se apaixonaram inutilmente. Tempos de juventude febril, onde os fins justificavam os meios. Demorou para que eu descobrisse que são os meios que justificam os fins.

Uma das mulheres deveria estar beirando os quarenta anos. Era uma morena, elegante, sóbria e senhora de si. Ela espertamente acomodou-se na poltrona bem em frente ao jovem executivo, e cruzou as pernas de maneira que só ele pudesse ter uma visão aproximada dos tesouros que ela escondia. Pela atenção que ele lhe dispensava, percebi imediatamente que o jovem estava fisgado. Pobres homens!

Numa poltrona próxima, a outra mulher, uma loura muito jovem, beirando os trinta anos, deslumbrante e sensualíssima com seus lábios rubros e sua postura elegante, respondeu com um largo sorriso ao meu cumprimento, e sentou-se próximo a mim, passando a conversar comigo sobre os mais variados assuntos. Seu português escorregava constantemente, numa demonstração de que ela não era brasileira e não dominava o idioma.

Graças a ela, fiquei sabendo que eles também haviam sido convidados para a entrevista.

Fiquei impressionado e um pouco decepcionado. Impressionado porque vi que o nível dos candidatos era internacional, e decepcionado porque achei que a entrevista seria individual. Mas, enfim, talvez fosse alguma técnica de dinâmica de grupo em ação, pensei. O fato é que ao conhecer meus “adversários” na disputa pela vaga, minha preocupação aumentou. Eu já não tinha as mesmas certezas de antes. Minha demissão fizera-me mais consciente de minhas limitações.

Quanto mais eu observava os jovem, mais me convencia de que seria muito difícil ganhar deles na disputa pela vaga. Eles tinham as fichas a seu favor: Juventude, boa aparência, segurança, elegância e refinamento. Pensei que talvez não tivessem a experiência que eu tenho, mas, concluí logo em seguida, a experiência tem sido o maior entrave para minha recolocação no mercado de trabalho! As empresas andam à caça de jovens como esses, que têm menos vícios que executivos maduros como eu. Além disso, eles custam mais barato, quer com os pacotes salariais quer com os treinamentos necessários ao seu desenvolvimento, porque têm menos a desaprender.

A espera durou pouco. Logo uma moça nos conduziu por um extenso corredor cheio de maravilhosas pinturas renascentistas.

Enquanto caminhava ela mantinha um enigmático sorriso burocrático nos lábios. Finalmente chegamos a uma grande porta de vidro. Suspirei e tratei de me preparar para o que me esperava. Fomos introduzidos em uma deslumbrante sala, onde tudo era refinado e de bom gosto.

Meu olhar parou sobre uma réplica da Pietá, que estava sobre uma coluna de mármore verde, a um canto, iluminada pela luz do sol que vinha dos grandes janelões. Era uma peça feita em jade, e deveria ser muito valiosa.

Ao nos ver entrar, um senhor levantou-se de sua escrivaninha e veio ao nosso encontro. Olhando-nos diretamente nos olhos. Ele apertou fortemente a mão de cada um de nós, enquanto nos convidava para sentar.
Sentamos os quatro numa espécie de sofá. Notei que a morena apressou-se em sentar ao lado do jovem executivo, enquanto a loira sentava-se entre ele e eu.

Bom, senhoras e senhores - disse o anfitrião com um forte sotaque espanhol - Meu nome é Martim. Sou o Diretor Geral da filial brasileira da empresa. Somos uma grande companhia de seguros e estamos desembarcando no Brasil.

- A maior do mundo – disse a morena.

- isso mesmo! Somos a maior companhia de seguros do mundo. Estamos á procura de um Diretor Operacional para atuar no Brasil. Começaremos nossas atividades atuando no mercado de seguro de artes. Para isso foi criada uma nova empresa que já está instalada em vários países, e cujo controle acionário pertence ao casal Häagstrom, herdeiros dos controladores da holding. Eles estão no Brasil e em breve os senhores terão oportunidade de conhece-los.

Atuaremos inicialmente no seguro de Museus, bibliotecas, coleções particulares e coisas assim. Os senhores e as senhoras são os profissionais mais experientes desta área que conseguimos encontrar. É bom que lhe diga que alguns dos processos seletivos de que participaram nos últimos meses foram conduzidos por outras empresas de recolocação sob nossa orientação. Portanto, queimamos etapas. Finalmente vocês quatro foram os escolhidos para a seleção final, que será conduzida por nossa cúpula, pessoalmente.

Fiquei embasbacado, ao pensar que já estava sendo avaliado há meses para esta vaga! Mas o homem continuou:

- Após tantos cuidados para nos certificarmos de que escolheremos a pessoa mais adequada, é justo que lhes informe que o processo de seleção para o qual os senhores e as senhoras foram convidados prevê etapas insólitas e testes não convencionais. Diante disso, todos vocês concordam em continuar?

Balançamos afirmativamente a cabeça, mas só percebemos o quanto Martim falava sério quando ele nos apresentou uma declaração de que aceitávamos continuar no processo de seleção, qualquer que fossem os testes a fazer, desde que não implicassem em riscos de danos físicos.

Após assinarmos o papel, ele continuou:

- Serei breve, porque a maratona à qual vocês serão submetidos começa depois de amanhã e será cansativa. Amanhã os senhores terão o dia livre. Aproveitem-no para conhecer a cidade. A companhia os brindará com 500 dólares, a cada um de vocês, para que possam se divertir. Era tudo o que eu tinha a lhes dizer...alguma dúvida?

Resolvi descontrair o ambiente.

- Posso trocar meus 500 dólares pela réplica da Pietá?

- Nem por sonho! – respondeu o homem sorrindo – essa estatueta tem história! O senhor gosta de esculturas?

- Muito! Especialmente as da Renascença – respondi - e a Pietá talvez seja seu ponto mais alto. Michelangelo usou uma ilusão de ótica para produzir esta escultura, e ao fazer isso, inovou a arte da perspectiva...

Martim limitou-se a sorrir, mas a loura ao meu lado apertou meu braço e disse:

- O senhor parece entendido no assunto...

- Apenas gosto de arte...e por favor, se puder evitar o “senhor” fará um favor ao meu ego...

- Bom – tornou Martim a falar - lembro-os de que estão sob contrato, e que a desistência do processo seletivo pode dar-se quando bem o desejarem...

- Não sei quanto aos demais, – respondi – falo apenas por mim, mas para ser franco, eu não tenho muitas opções. Este é o único processo seletivo de que estou participando, portanto tentarei o impossível para me sair bem nele...

Não sei bem porque eu disse aquilo! Normalmente eu teria dito que já participara de muitos processos e que confiaria em que me sairia bem. É o que normalmente dizemos para nos valorizar. Mas eu já havia decidido dizer o que tinha no coração, e se isso fosse bom, ótimo; se não, eu pelo menos ficaria tranqüilo comigo mesmo, dizendo o que me ia na alma. Por isso resolvi ser franco.

Quando saímos daquela sala, estávamos os quatro mais descontraídos. A noite começava a descer. O Jovem executivo, então, contrariando a primeira impressão que eu tive dele, disse:

- Bom, amigos, o fato de concorrermos à mesma vaga, não nos torna inimigos! Que tal se esticássemos essa noite numa boate? Amanhã é nosso dia de folga!

Todos concordaram. Eu aceitei apenas para não ser estraga-prazeres, porque na verdade o que eu desejava era ficar no hotel assistindo a um bom filme na TV e preparando meu espírito para fosse lá o que me aguardava.

Na boate, o previsto aconteceu. Quando a madrugada já ia alta, a morena, depois de uns goles de Whisky, estava totalmente solta, e dançava dependurada no pescoço do jovem executivo, lânguida e suplicante por uma noite de amor.

A loira era mais discreta. Conversamos longamente, e muitas vezes tive que auxilia-la com o português, até que decidimos conversar em inglês. Então, fluentemente, ela demonstrou ter um conhecimento extraordinário do mercado de artes. Fiquei tão impressionado com sua segurança ao falar do assunto que não tive dúvidas de que se conhecimento de causa fosse o critério de decisão, ela certamente seria a escolhida.

Na verdade, ela parecia esperar uma iniciativa de minha parte, que desse início a uma maior aproximação. Considerei todas as vezes em que eu vivera situações semelhantes. Mulheres, sempre mulheres. Cama! É sempre o que a maioria dos homens pensa de uma relação entre um homem e uma mulher! Se era isso que ela pretendia, nesta noite ela ficaria decepcionada.

Felizmente ela não era do tipo agressiva, como a morena, porque eu desistira de viver essas mentiras momentâneas. Mas era uma mulher lindíssima. Ocorre que eu já havia desistido de manter relações que machucam ao invés de alegrar. Vazios da alma que relacionamentos relâmpagos não conseguem preencher.

Finalmente concordamos todos em voltar para nossos hotéis. A companhia nos instalara em hotéis diferentes, certamente para proteger nossa privacidade. A morena, já muito alcoolizada teve que ser carregada para o táxi, e depois para seu apartamento no hotel.

Depois nos despedimos, e cada um tomou o seu caminho. Não combinamos nada para o dia seguinte, por isso pude ficar á vontade para visitar a cidade, que é famosa pelos museus que possui. Fotografei monumentos, visitei galerias, e até assisti a uma peça musical que era executada no Teatro Municipal gratuitamente. Foi um dia extraordinário para mim, onde pude soltar-me das tensões que a pressão de meu desemprego me causava. Pude fazer o que gosto, e ainda com dinheiro no bolso, coisa que há tempos eu não via. Cheguei ao hotel lá pelas 23:00 e após um banho fui direto para a cama, porque o dia seguinte prometia ser árduo.

Na manhã seguinte compareci pontualmente para o início das atividade. Aguardei na mesma sala da vez anterior, porém nenhum dos meus “concorrentes” estavam lá, sinal de que deveriam ter marcado horários diferentes com cada um de nós.

Em poucos minutos, numa pontualidade que me alegrou, fui introduzido na mesma sala onde já estivera. Martim me recebeu com um sorriso e me fez sentar no mesmo sofá.

- Bueno – disse ele em seu “portunhol” - por onde devo começar? Eu tenho duas notícias para lhe dar. Uma boa e uma ruim...qual delas você deseja ouvir primeiro?

- Comece pela boa, por favor, assim me dará forças para resistir à segunda!

- A notícia boa é que pelo seu esforço em ter chegado até este ponto do processo seletivo, a pequena preciosidade que você tanto desejou no outro dia, é sua - a réplica da Pietá...

Um vazio me invadiu o estômago. Percebi logo que aquilo era um prêmio de consolação. Em outra circunstância eu teria pulado de alegria por tão maravilhoso presente, mas agora eu sentia que estava sendo elegantemente dispensado.

- O próprio casal Häagstrom achou que você merece ficar com a estátua...e olha que ela vale um bocado de dinheiro...é feita de jade...

A porta atrás de mim se abrira mas nem prestei atenção. Devia ser a recepcionista para me conduzir de volta.

- E...qual é a notícia ruim? – perguntei.

- É que você tem apenas 10 dias para assumir seu cargo de Diretor Operacional da empresa no Brasil – disse Martim sorrindo.

Nada me preparara para aquela notícia. Nada. Absolutamente nada!

- Mas..e os testes de que falamos...? - perguntei trêmulo e gaguejante...

- Você e a outra candidata já estavam aprovados para o cargo...apenas o casal Häagstrom desejava testa-los pessoalmente...eles têm seus próprios métodos...e ela foi reprovada por eles...

- Parabéns! - Disse uma voz atrás de mim – o senhor foi aprovado com louvor ontem à noite...gostamos muito de sua franqueza, lealdade e honestidade. Gostamos também de seu interesse pelas artes.

Voltei-me e vi o jovem executivo e a jovem loura com os quais eu havia ido à boate. Fiquei confuso.

Isto dizendo o jovem executivo me estendeu algumas fotos onde eu aparecia visitando museus e galerias no dia anterior.

- Queira nos desculpar se o seguimos e fotografamos o dia todo...precisávamos ter certeza de que seus gostos pessoais estavam em sintonia com sua função na empresa...

- Eis o casal Häagstrom – Disse Martin - herdeiros dos controladores da holding e os maiores acionistas de nossa companhia...

* * *
Fonte:
Recanto das Letras

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS (A Ordem é Deletar)

O verbo deletar entrou definitivamente no vocabulário da língua portuguesa. Os dicionários o traduzem por eliminar, suprimir, excluir, apagar. As palavras como sabemos não são neutras. Nascem, entram em uso e se consolidam num território bem preciso, do ponto de vista social e cultural. Abrem-se como janelas sobre um determinado contexto histórico. São filhas do tempo e do espaço. Todo organismo vivo cria novas células e expele os tecidos necrosados. Sendo a língua um desses organismos vivos, também ela faz brotar novas palavras de seu metabolismo, enquanto outras morrem e desaparecem.

O termo deletar é filho da revolução informática das últimas décadas. Insere-se no universo de um relativismo progressivo onde as certezas cedem espaço às dúvidas, as perguntas substituem as respostas e as referências se diluem como bolhas de sabão. Não há “verdades”, e sim interpretações. De acordo com o filósofo francês François Lyotard, em seu livro A Condição Pós-Moderna, acabaram-se as metalinguagens ou metanarrativas, restando apenas os experimentos e estudos de caso. Na contramão da globalização, o olhar amplo e universal deu lugar à visão localizada, setorizada, especializada. Na medicina, o clínico geral desaparece frente à proliferação dos especialistas.

Vem à tona toda a obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, com sua insistência no adjetivo “líquido”. Os títulos de algumas de suas obras são ilustrativos: Modernidade Líquida, Tempos líquidos, Vida Líquida, Medo Líquido, Amor Líquido. Tudo parece derreter-se no oceano do relativismo: contratos, relações interpessoais, valores morais, amizades, instituições, regras… Um exemplo corriqueiro e muito frequente: hoje faço cinquenta novos amigos através da rede social Facebook. Trocamos mensagens, fotos e até intimidades. Mas amanhã mesmo, sem maiores explicações, posso deletá-los. Com a mesma rapidez com que os contatei, eu simplesmente os ignoro. Ao invés de um laço sólido e durável, a amizade se converte em um relacionamento líquido, virtual, gasoso… Deletável!

Com o advento dos tempos modernos ou pós-modernos, o universo predominantemente rural da tradição dá lugar ao universo urbano das novidades. Neste último, nada é mais velho do que o jornal de ontem. As notícias ou são simultâneas aos fatos, ou deixam de ter interesse. Os antigos valores e contravalores, passados de geração para geração, são facilmente trocados por novas formas de pensar e de se relacionar. Entram em cena diferentes valores e contravalores, onde a pluralidade e a diversidade tomam o lugar da uniformidade. O tempo, antes marcado pelo sol e a lua, as estações do ano, o plantio e a colheita, o canto do galo ou os sinos da Igreja, agora adquire o ritmo da máquina, do apito do trem. A ciência e a tecnologia imprimiram uma velocidade sem precedentes na produção de mercadorias, inovações e mentalidades.

Torna-se relativamente normal construir e simultaneamente deletar relações de todo tipo. Instala-se progressivamente a ideia de que tudo é descartável: roupas, sapatos, aparelhos domésticos, telefones celulares, televisores, computadores… Mas também amizade, namoro, casamento, profissão, vocação, e assim por diante. Diante de tamanha abundância de coisas e oportunidades, como distinguir o que é essencial do que é secundário? A profusão e pluralidade de pontos de vista podem nivelar tudo por baixo. O experimento ganha força sobre o compromisso de longo prazo. Faz-se uma experiência provisória, se não der certo… Bem, é só deletar e partir para outra! No relacionamento amoroso, por exemplo, o “ficar” substitui o “namorar”, pois este último exige o respeito à alteridade, uma transformação profunda e recíproca, ao passo que o outro representa apenas o uso prazeroso da pessoa em questão.

O conceito de bem-estar pessoal se sobrepõe ao bem-estar social. O engajamento político e social é substituído pela busca do “estar numa boa”. Prevalece o “eu” sobre o “nós”. Os imperativos morais de uma consciência que se sente responsável diante da realidade sociopolítica ou diante da multidão dos pobres cedem o posto ao imperativo da saúde corporal acima de qualquer preço. Multiplicam-se a compra e venda de cosméticos, as academias de ginástica, o culto ao próprio corpo ou às celebridades. Com isso, trocar de partido, de religião, de amigo ou de relacionamento amoroso é quase como trocar de roupa, de sabonete, de shampoo ou de operadora do telefone celular. Busca-se ansiosamente a marca ou grife do momento, mas também elas se perdem na voracidade dos modismos. Tudo se troca, tudo tem vida curta, tudo se deleta… “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, afirmava o Manifesto Comunista de Marx e Engels ainda em 1848.

Essa passagem da predominância da tradição ao imperativo da novidade constitui um terreno profundamente ambíguo. Tomemos por exemplo o conceito de liberdade. No mundo da tradição rural e fortemente hierarquizada, a liberdade tem limites convencionais. Desenvolve-se sob a pressão contínua da família, da religião, da moral e da sociedade no seu conjunto. No cenário industrializado e urbano, a liberdade abre novos horizontes. As vielas estreitas se convertem em amplas estradas Mas o caminho largo pode levar aos becos sem saída da violência, da droga, do álcool e da prostituição. Tanto a “liberdade vigiada”, num caso, quanto a “liberdade de fazer o que se quer”, no outro, são extremos que escondem perigos. No primeiro caso, é fácil deletar de uma vez só uma longa e sólida tradição, às vezes adquirida como uma camisa de força. No segundo, é igualmente fácil deletar os laços tênues de relações superficiais e momentâneas. Em geral, tudo o que se engole à força, cedo ou tarde se vomita; mas também é comum vomitar o que se engole com excessiva sofreguidão.

Além disso, num universo pressionado pela observação moral ou moralista de princípios rígidos e hierárquicos, há uma tendência natural ao infantilismo. O indivíduo está mais protegido, sem dúvida, mas tende a manter o cordão umbilical que rege o comportamento. Mantém-se comodamente dentro das normas, dificilmente se arriscando ao novo. Ao invés de ousar, tende a neutralizar-se. Já na atmosfera mais aberta, livre e dinâmica do mundo urbano, o indivíduo sente-se exposto a uma série de riscos e aventuras, mas isso pode levar ao desenvolvimento de uma consciência mais madura. No primeiro caso, digamos, a pessoa nasce revestida pela roupagem protetora da família, do compadrio, da religião, da tradição… Sua identidade não terá grandes sobressaltos. No segundo, a pessoa nasce nua, terá que abrir a própria picada na selva de pedra, a identidade é algo a ser construído passo a passo. Cada um tende a regular-se menos pelas conveniências sociais e mais pelos próprios princípios éticos. Por isso mesmo, apesar dos riscos, os laços tendem a ser mais autênticos.

Mas, na medida em que o universo urbano coloniza gradativamente o mundo rural, em ambos os casos o verbo deletar pode ser acionado: ou para desfazer-se das amarras de um convencionalismo estreito e castrador, ou para exibir-se a cada momento com as novidades de uma sociedade que não pára de fabricá-las. Lojas e farmácias, profusamente iluminadas, expõem uma multidão de objetos e de analgésicos que torna líquido toda forma de comprometimento moral. O desejo, motor implícito ou explícito do comportamento humano, se vê atraído, seduzido, fascinado por todo tipo de apelo e modismo, onde o marketing, a propaganda e a publicidade exercem poderosa influência. Dois estudos de Gilles Lipovetsky poderiam ser chamados aqui em testemunho: A Era do Vazio e O Império do Efêmero, respectivamente sobre o individualismo contemporâneo e a moda e seu destino nas sociedades modernas.

Produzir, comprar, usar, descartar… Eis o círculo de aço que amarra fortemente nossa vontade, nossos projetos e nossos passos. Entramos nele quase sem nos darmos conta, mas, depois de a ele atados, é difícil desvencilhar-se. Mesmo professando o credo da preservação do meio ambiente, hoje em voga, não é fácil libertar-se da ratoeira armada pelo mercado total. Se o enxotamos pela porta, ele entra pela janela ou, mais frequentemente, pela telinha da TV ou da Internet. Para facilitar as coisas, lá está a tecla do deletar.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico (UEM)