quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 673)

Uma Trova de Ademar  

Num sonho eu me fiz refém,
ao viver uma emoção
que o próprio sonho a retém
na mente e no coração...

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Se São Francisco de Assis,
fosse o herói da mocidade,
dos corações juvenis
transbordaria humildade!

–Luiz Antonio Cardoso/SP–

Uma Trova Potiguar


Quero paz, mão estendida,
carinho, amigos e enfim,
a escolha de amar a vida
e ser amado, por fim ...

–Fabiano Wanderley/RN–

Uma Trova Premiada



2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema - PRESSA - M/H


Minha vontade se expressa
e eu recuo e ... me patrulho,
segurando a minha pressa
para agradar meu orgulho!

–Dilva Maria Morais/RJ–

..E Suas Trovas Ficaram


Por mais que a vida destrance
tantos sonhos, nó por nó,
não desfaz nosso romance,
porque somos dois...num só!

–João Freire Filho/RJ–

U m a P o e s i a


No sertão quando a terra está chovida
se escuta a cantiga do carão,
a cigarra se cala no oitão
e a paisagem se torna mais florida,
a semente do milho se engravida
nasce uma raiz e lasca o chão,
cresce o pé, a boneca e o pendão
e a espiga começa a criar dente;
o trovão meia noite no nascente
é um grito de Deus no meu sertão.

–Ferreirinha/PB–

Soneto do Dia

DECLARAÇÃO DE AMOR DO QUINTO MILÊNIO.
–Pedro Mello/SP–


Seu eu te disser o quanto que te quero
e que por ti me torno até bandido,
não te enganes pensando que exagero:
o amor me torna louco e destemido!

Se eu te disser que não me desespero,
mas que me entrego a um sonho desmedido,
acredita que estou sendo sincero,
pois sou capaz de coisas sem sentido!

Quando enfim reduzir os meus rivais
a pó, eu te amarei ainda mais,
sem medo de qualquer tribulação ...

E nós dois fugiremos do planeta,
embarcando num rabo de cometa
para vermos as flores em Plutão...

História da Literatura (Classicismo) Parte IV

Epístola: 
composição em que o autor expõe suas idéias e opiniões, em estilo calmo e familiar. Pode ser doutrinária, amorosa ou satírica. É feita à maneira de uma carta;

EXEMPLO DE EPÍSTOLA
Carta da Índia

Desejei tanto uma vossa, que cuido que pela muito desejar a não vi; porque este é o mais certo costume da Fortuna: consentir que mais se deseje o que mais presto há-de-negar. Mas porque outras naus me não façam tamanha ofensa, como é fazerem-me suspeitar que vos não lembro, determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco mais ou menos vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, de antemão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de uma arca para aviso de alguns aventureiros que cuidam que todo o mato é orégãos, e não sabem que cá e lá más fadas há.
Depois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão público: Por falsificadoras de moedas. E desenganei esses pensamentos, que por casa trazia, por que em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assim posto em estado que me não via senão por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que na nau disse foram as de Cipião Africano: Ingrata patria, non possidebis ossa mea. Por que quando cuido que, sem pecado que me obrigasse a três dias de Purgatório, passei três mil de más línguas, piores tenções, danadas vontades, nascidas de pura inveja, de verem su amada yedra de sí arrancada y em outro muro asida... Da qual também amizades, mais brandas que cera, se acendiam em ódios que disparavam lume que me deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão. Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as quais de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavam os acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros de Merceana, e mais quieto que na cela de um frade pregador.
Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins e madrastra de homens honrados. Porque os que se cá lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre águas com {o} bexigas; mas os que sua opinião deita a las armas, Moriscote, como a maré corpos mortos à praia, sabei que, antes que amadureçam, se secam. Já estes que tomavam esta opinião de valente às costas, crede que nunca

Riberas del Duero arriba
Cabalgaron zamoranos,
Que roncas de tal soberbia
Entre sí fuesen hablando;

E quando vêm ao efeito da obra, salvam-se com dizer que se não podem fazer tamanhas duas cousas, como é prometer e dar.
Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões, verdadeiramente que ali era su comer las carnes cruadas, su beber la viva sangre. Calisto de Sequeira se veio cá mais humanamente, por que assim o prometeu em uma tormenta grande em que se viu. Mas um Manuel Serrão, que, sicut et nos, manqueja de um olho, se tem cá provado arrazoadamente, porque fui tomado por juiz de certas palavras de que ele fez desdizer a um soldado, o qual, pela postura de sua pessoa, era cá tido em boa conta.
Se das damas da terra quereis novas, as quais são obrigatórias a uma carta como marinheiros à festa de S. Frei Pero Gonçalves, sabei que as portuguesas todas caem de maduras, que não há cabo que lhe tenha os pontos, se lhe quiserem lançar pedaço. Pois as que a terra dá? Além de serem de rala, fazei-me mercê que lhe faleis alguns amores de Petrarca ou de Boscão; respondem-vos uma linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgai, Senhor, o que sentirá um estômago costumado a resistir às falsidades de um rostinho de tauxia de uma dama lisbonense, que chia como pucarinho novo com a água, vendo-se agora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como não chorará las memorias de in illo tempore! Por amor de mim, que às mulheres dessa terra digais de minha parte que, se querem absolutamente ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis meses de má vida por esse mar, que eu as espero com procissão e pálio, revestido em pontifical, aonde estoutras senhoras lhe irão entregar as chaves da cidade, e reconhecerão toda a obediência, a que por sua muita idade são já obrigadas.
Por agora não mais, senão que este soneto que aqui vai, que fiz à morte de D. Antônio de Noronha, vos mando em sinal de quanto dela me pesou. Uma écloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma cousa da morte do Príncipe, que me parece melhor que quantas fiz. Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel Dias, que, pela muita amizade de D. Antônio, folgaria de a ver; mas a ocupação de escrever muitas cartas para o Reino me não deu lugar. Também lá escrevo a Luís de Lemos em resposta de outra que vi sua: se lha não derem, sabia que é a culpa da viagem, na qual tudo se perde. - Vale.
(Luís Vaz de Camões)


Epitalâmio:
composição em honra aos recém casados, própria para ser recitada em bodas;

Canção:
composição erudita, de longas estrofes, versos decassílabos por vezes entremeados com outros de seis sílabas (heróicos) e de caráter amoroso;

EXEMPLO DE CANÇÃO
Canção V

Oh! quem me ali dissera
Que de amor tão profundo
O fim pudesse ver inda algua hora!
Oh! quem cuidar pudera
Que houvesse aí no mundo
Apartar-me eu de vós, minha Senhora,
Pera que desde agora
Perdesse a esperança,
E o vão pensamento
Desfeito em um momento,
Sem me poder ficar mais que a lembrança,
Que sempre estará firme,
Até o derradeiro despedir-me.

Mas a mor alegria
Que daqui levar posso,
Co'a qual defender-me triste espero,
É que nunca sentia,
No tempo que fui vosso,
Quererdes-me vós quanto vos eu quero;
Porque o tormento fero
De vosso apartamento
Não vos dará tal pena
Como a que me condena,
Que mais sentirei vosso sentimento
Que o que minha alma sente.
Moura eu, Senhora, e vós ficai contente!

Canção, tu estarás
Aqui acompanhando
Estes campos e estas claras águas,
E por mim ficarás
Chorando e suspirando,
E ao mundo mostrando tantas mágoas,
Que de tão larga história
Minhas lágrimas fiquem por memória.

Se este meu pensamento,
Como é, doce e suave,
De alma pudesse vir, gritando, fora,
Mostrando seu tormento
Cruel, áspero e grave,
Diante de vós só, minha Senhora;
Pudera ser que agora
O vosso peito duro
Tornara manso e brando.
E eu que sempre ando,
Pássaro solitário, humilde, escuro,
Tornado um cisne puro,
Brando e sonoro, pelo ar voando,
Com canto manifesto
Pintara meu tormento e o vosso gesto.

Pintara os olhos belos,
Que trazem nas meninas
O Menino que os seus neles cegou;
E os dourados cabelos
Em tranças de ouro finas,
A quem o Sol seus raios abaixou;
A testa, que ordenou
Atura tão formosa;
O bem proporcionado
Nariz, lindo, afilado,
Que cada parte tem da fresca rosa;
A boca graciosa,
Que querê-la louvar é escusado.
Enfim, é um tesouro:
Os dentes perlas, as palavras, ouro.

Vira-se claramente
Ó Dama delicada,
Que em vós se esmerou mais a Natureza;
E eu, de gente em gente,
Trouxera trasladada
Em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
De vossa condição,
Senhora, não dissera,
Por que se não soubera
Que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
- Porque morres? - dissera, respondera:
- Mouro porque é tão bela,
Que inda não sou para morrer por ela.

E se pela ventura,
Dama, vos ofendesse,
Escrevendo de vós o que não sento.
E vossa fermosura
Tanto à terra descesse
Que a alcançasse humilde entendimento,
Seria o fundamento
Daquilo que cantasse
Todo de puro amor,
Por que vosso louvor
Em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse
A causa pelo efeito, minha dor
Diria ali, sem medo:
Quem me sentir, verá de quem procedo.

Então amostraria
Os olhos saudosos,
O suspirar que a alma traz consigo;
A fingida alegria,
Os passos vagarosos,
O falar e esquecer-me do que digo;
Um pelejar comigo,
E logo desculpar-me;
Um recear, ousando;
Andar meu bem buscando,
E de poder achá-lo acobardar-me;
Enfim, averiguar-me
Que o fim de tudo quanto estou falando
São lágrimas e amores;
São vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,
Palavras com que iguale
Com vossa fermosura minha pena?
Que em doce voz de fora,
Aquela glória fale
Que dentro na minha alma Amor ordena?
Não pode tão pequena
Força de engenho humano
Com carga tão pesada,
Se não for ajudada
Dum piedoso olhar, dum doce engano,
Que, fazendo-me o dano
Tão deleitoso e a dor tão moderada,
Enfim se convertesse
Nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos
À pena vêm pequenos,
Não queiram de ti mais, que dirás menos.
(Luís Vaz de Camões)


Fontes:
Garganta da Serpente
Imagem = compartilhada no facebook pela Libreria Fogola Pisa

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Trova 228 - Nemésio Prata (Fortaleza/CE)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 672)

Uma Trova de Ademar  

Eu sou qual um jangadeiro
que a fé no peito tatua...
Num barco sem paradeiro,
sua esperança flutua.

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Pensamento irresolvido
remoendo a mesma história:
- um amor não esquecido
reticente na memória.

–Eliana Jimenez/SC–

Uma Trova Potiguar


Conduzo a minha jangada
remando-a (já na descida)
sem temer onda quebrada
no mar revolto da vida.

–Tarcísio Fernandes/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema - PRESSA - M/E


O que eu vibrei em teus braços
a minha alma vibra agora...
ouvindo o som dos teus passos,
mais que depressa, indo embora!

–Clenir Neves Ribeiro/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Na quietude costumeira
de muita vida vazia,
solidão é companheira
dos que não têm companhia...

–Luiz Otávio/RJ–

U m a P o e s i a


O tempo faz e desfaz
não começa como finda,
estou velho e penso ainda
nos tempos que não vem mais,
vejo no corpo os sinais
das chagas dos desenganos,
são os fantasmas tiranos
carrascos dos meus segredos
olhando para os rochedos
das serranias dos anos.

–Cazuza Nunes/PB–

Soneto do Dia

PRIMAVERA.
–José Ouverney/SP–


Quando a esperança já não faz efeito,
Quando a alegria já não tem lugar,
Faz-se mister mexer no “script”, ousar,
Substituindo o “por fazer” por “feito”.

Às vezes por cautela, preconceito
Ou razões que não cabe revelar,
O homem opta até por não lutar,
Achando que o destino “dá um jeito”.

E nessa alternativa derradeira
tem gente que percorre a estrada inteira
colhendo o amargo fruto de uma espera;

submete-se ao inverno e seus rigores,
sonhando com um mundo só de flores
e morre... sem que alcance a primavera...

Jogos Florais de Cantagalo 2012 (Classificaçaõ Final – Âmbito Nacional)

ÂMBITO NACIONAL:

TEMA: ESPAÇO


01
No ocaso de minha vida,
se antigos sonhos refaço,
vem a saudade e, atrevida,
quer ocupar todo o espaço!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLA (São Paulo/SP)

02
Neste planeta avarento,
onde o "ter" é o ditador,
que triste é ver o cimento
roubar o espaço da flor!
ANTÔNIO AUGUSTO DE ASSIS (Maringá/PR)


03
Ao passar por mim, nem para...
sou a sombra de ninguém!
Que espaço enorme separa
meu amor de seu desdém!
WANDA DE PAULA MOURTHÉ (Belo Horizonte/MG)

04
Quando me deito e, no espaço
que foi teu, alguém se lança,
não é outra que eu abraço
senão a tua lembrança...
JOSÉ OUVERNEY (Pindamonhangaba/SP)

05
Por te amar tanto, é que a vida,
embora dure um segundo,
possui o espaço e a medida
das horas todas do mundo...!
MARA MELINNI DE ARAUJO GARCIA (Caicó/RN)

06
A maquiagem pesada,
diante do espelho, desfaço
e em minha cara lavada
rugas brigam por espaço...
ÉLBEA PRISCILA DE SOUZA E SILVA (Caçapava/SP)

07
Meu amor nunca se expande
por mais que eu queira e insista.
Não cabe um amor tão grande
no teu espaço egoísta!
RITA MOURÃO (Ribeirão Preto/SP)

08
Perdê-la foi uma pena...
E hoje dói ficar olhando
esta casa tão pequena,
com tanto espaço sobrando.
HEGEL PONTES (Juiz de Fora/MG)

09
Mandei a ilusão embora.
A saudade quis entrar.
Há tanto espaço lá fora,
mas ela insiste em ficar.
ZENI DE BARROS LANA (Belo Horizonte/MG)

10
Homem...! É afoito seu passo
e um paradoxo o consome:
- Rompe limites no Espaço,
enquanto a Terra... tem fome!
PEDRO MELLO (São Paulo/SP)

11
Um casebre na favela...
o espaço ganhou fulgor,
quando alguém pôs na janela
um simples vaso de flor!
VANDA FAGUNDES QUEIROZ (Curitiba/PR)
12
Se a inspiração vem chegando,
eu me vejo em pleno espaço,
vendo Deus metrificando
todos os versos que eu faço!
ADEMAR MACEDO (Natal/RN)


13
Ventre Materno... o espaço
da semente em gestação,
onde Deus fez Seu regaço
em amor à Criação!
MARIA DA CONCEIÇÃO FAGUNDES (Curitiba/PR)

14
Quem tem um amor fecundo,
semeado a cada passo...
Quando parte deste mundo,
deixa um "vazio" no espaço!...
ROBERTO TCHEPELENTYKY (São Paulo/SP)

15
O mais cruel beijo do mundo
demonstrou de forma ingrata,
que no espaço de um segundo
alguém trai, condena e mata.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ (Curitiba/PR)

Fonte:
A.A. de Assis

Edson Amâncio (Lançamento do romance "Diário de um Médico Louco)

Data: 19 de setembro de 2012 (quarta-feira), às 19 horas.

Local: Casa das Rosas (Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura).

Endereço: Av. Paulista, 37 (Metrô Brigadeiro) - São Paulo/SP - Brasil. Entrada franca.

Precedendo à sessão de autógrafos, haverá uma Mesa Redonda sobre o tema "LITERATURA, GENIALIDADE E LOUCURA". Integrantes da Mesa: o autor Edson Amâncio (neurocientista, especialista em transtornos da mente, integrante do corpo clínico do Hospital Albert Einstein e escritor), Ademir Demarchi (poeta e crítico, doutor em Literatura Brasileira pela USP e editor da revista "Babel Poética"), Fábio Lucas (professor, crítico e escritor) e Flávio Viegas Amoreira (escritor, crítico e jornalista). Mediador: Nicodemos Sena (escritor e editor).

ACERCA DO ROMANCE "DIÁRIO DE UM MÉDICO LOUCO"

São já célebres as reflexões de Foucault sobre a relação da escrita com a loucura que, a partir do século XIX, como que governa os textos motivando a liberação do escritor da necessidade de ter uma relação social, podendo ele derramar-se em busca de seus limites, assunto que é explorado à exaustão por Blanchot, com quem Foucault dialoga.

A liberação do texto de qualquer amarra possibilitou, por sua vez, a entrega dos escritores não apenas à loucura do texto, mas à expressão de sua loucura no texto, a ponto de Doctorow ter se saído com uma interessante síntese segundo a qual “escrever é uma forma socialmente aceita de esquizofrenia”.

Este Diário de um médico louco é, pois, justamente, um relato que se monta sobre essas questões, ganhando ares de uma confissão de algo há muito contido, que supostamente teria levado à demência e que move a escrita, de modo a que o narrador se transforme de médico em escritor com sua fantasia de ser socialmente aceito como tal e com todos os seus defeitos e supostos crimes praticados.

Num primeiro plano, temos um narrador médico que apresenta um colega que lhe deixou um diário, esse que se lerá. Esse narrador é comedido e não tece comentários sobre o colega, mas o que descreve dele com uma aparente frieza clínica não soa normal aos olhos de um leitor arguto. E é isso que se constatará a seguir: o relato de um louco que soa como uma câmara de ecos, que é a própria ordem da literatura contemporânea. Não à toa o autor deste livro o começa com um dos clichês da literatura, ou seja, com um narrador que informa que recebeu de outro um relato que não é dele e em seguida é esse outro que passa a narrar o que se vai ler.

A partir dessa introdução a ressonância a temas caros à literatura e à vida de outros escritores, assim como aos textos deles, vai se imiscuindo no texto em cornucópia, consubstanciando a tal câmara de ecos, e assim nele passamos a ler através do médico louco os modos próprios de sua profissão, sobre como se forma um louco com direito a um batismo de fanatismo religioso, extraterrestres, autores como Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Camus, Walser, Freud e Jung, Guimarães Rosa, Cervantes, e os preferidos de Edson Amâncio, os russos, como Dostoiévski, Gógol, Pushkin, cuja parte do diário, sobre uma viagem à Rússia, é o ponto alto do livro.

O diário tenta transmitir uma “verdade”, um relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai se colocando, de fato, como seguidos falseamentos. A dúvida, assim, perpassa a leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as viagens que relata, uma delas à Rússia de Dostoiévski, podem ser totalmente falsas, uma vez que fantasias, delírios de um louco que não saiu do entorno de seu quarto, para mencionar Maistre. Desse quarto ele vê as estrelas e o mar de Santos, ironizado nas entrelinhas, e pode, através dos livros, ir à Rússia, tal como quem o lê vai...

O aviso disso parece notório já no início do diário, quando o narrador, continuando sua autobiografia, faz um relato de veterano de guerra, típico das literaturas pós-guerras mundiais, para nós familiares, de tanto que já os lemos. Ocorre, porém, que esse fragmento inserido no texto imediatamente se desmonta quando o narrador informa que deixou a TV ligada... Ou seja, como se trata do relato de um louco, não somente a TV está ligada ecoando a cultura de massas em todas as suas possibilidades, mas, na esquizofrenia de eus, a própria literatura e a biblioteca de Babel que vai se presentificando nos autores mencionados, consubstanciando a loucura no texto, bem como a loucura do texto, que é a própria literatura. (Obs: Texto de orelhas escrito pelo crítico Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela USP-Universidade de São Paulo).

O AUTOR

Edson Amâncio nasceu a primeiro de janeiro de 1948, em Sacramento-MG, e vive em São Paulo. Pertence à nobre estirpe de escritores (infelizmente em extinção) da qual fazem parte Machado de Assis (Quincas Borba, O Alienista), Graciliano Ramos (Angústia), Dyonelio Machado (Os ratos, O louco do Cati) e Dostoiévski (Notas do subsolo, Memórias da casa dos mortos). Graduado, mestre e doutor em Medicina, Edson Amâncio integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein (São Paulo). Como cientista, tem estabelecido ‘pontes’ entre Ciência e Arte, as duas fronteiras de resistência da civilização ao declínio e à barbárie. Quer como neurocientista, quer como ficcionista, realiza uma profunda e incisiva prospecção nos “modos difusos da Alma”. Ao debruçar-se sobre casos de transtornos mentais à que foram acometidos artistas e celebridades, deteve-se sobre a vida de Fiodor Dostoiévski, que sofria de epilepsia, levando-o tal interesse a visitar a ex-União Soviética, em busca de novas informações sobre o caso, bem como a vasculhar indícios de possíveis influências da doença no estilo denso e muitas vezes delirante com que o inigualável escritor russo vazou a sua vasta e polifônica obra, marcada por personagens desconcertantes e situações carregadas de absurdo e dramaticidade, terminando por se tornar Edson Amâncio, quer do ponto de vista da ciência médica, quer nos aspectos estritamente literários, um dos maiores especialistas na vida e na obra do magnífico autor de Os Irmãos Karamázovi, considerado pelo pai da Psicanálise, Sigmund Freud, a "maior obra da história". Dessa trajetória através dos terrenos áridos e sombrios da psique humana e da alta literatura resultaram os assuntos e também o estilo denso e perquiritório utilizados por Edson Amâncio no "Diário de um médico louco".

Edson Amâncio fez sua estreia literária com os contos de Em pleno delito (1986), vindo a seguir Cruz das almas (romance, 1988), Pergunte ao mineiro (crônicas, 1995) e Minha cara impune (romance, 1997), que obtiveram excelente recepção por parte da crítica especializada. O reconhecimento do público, entretanto, só chegou com a obra O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente (2006), na qual discorre sobre as ligações ainda obscuras entre distúrbios psíquicos e genialidade e comentam-se casos clínicos bizarros de pacientes comuns e de mestres como John Nash, Bill Gates, Mozart, Van Gogh, Flaubert, Machado de Assis e Virginia Woolf.

SAIBA MAIS: http://www.letraselvagem.com.br/pagina.asp?id=244

Fonte:
Letra Selvagem

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Olympio Coutinho (Histórias de trova) Capítulo II – Meus Irmãos, os Trovadores

Enquanto vivia os doces anos da adolescência em Ubá, sempre fazendo trovas, acompanhava de longe o movimento trovadoresco. As iniciativas de Luiz Otávio

Tirem-me tudo que tenho,
neguem-me todo o valor!
-Numa glória só me empenho:
a de humilde trovador...

e J. G. de Araújo Jorge

Neste dia belo e doce/
de festa, - sentimental
- quem dera que você fosse
meu presente de Natal!


promovendo os primeiros “Jogos Florais” e, ainda, a edição de trovas de outros autores, como o “Cantigas de Muita Gente”. Zalkind Piatgorsky,

Vou sorrindo com cuidado,
sondando bem a pessoa,
pois ser feliz é um pecado
que pouca gente perdoa!


que mantinha um programa de trovas na TV Continental, em parceria com Aparício Fernandes

Parti do Norte chorando,
que coisa triste, meu Deus,
eu vi o mar soluçando
e o coqueiral dando adeus”


 lançava a coleção “Trovas e Trovadores” e o primeiro, em parceria com Magdalena Léa, a coleção “Trovas do Brasil”.

Quando volto ao meu rincão
piso a terra comovida;
- Cada pedaço de chão
conta um pedaço de vida


Nesta época, jornais como ”O Globo” e “O Jornal”(dos Diários Associados) davam certo destaque às trovas. No “O Globo”, Antônio Olinto, conterrâneo de Ubá, mantinha coluna chamada “Porta de Livraria”, onde, além de outras notícias literárias, prestigiava diversos Jogos Florais, principalmente os de Nova Friburgo, publicando as trovas classificadas; além dele, Helena Ferraz publicava a coluna “Na Boca do Lobo”, onde sempre saía uma trova na seção “Quadra no Quadro”, e, no “O Jornal”, Elza Marzulo editava o suplemento literário “Jornal Feminino”, onde a trova aparecia sempre com destaque.

Na Rádio Globo, Aparício Fernandes alimentava de trovas o Programa Luiz de Carvalho. Na Bahia, o trovador popular Rodolfo Coelho Cavalcanti, então presidente do Grêmio Brasileiro dos Trovadores, editava um jornal de trovas, “O Trovador”, e muitos outros trovadores, nos diversos recantos do País, também se encarregavam de divulgar o movimento trovadoresco. Nesta mesma época, surgiu a União Brasileira dos Trovadores (UBT), hoje com ramificações em praticamente todo o Território Nacional, em capitais e no interior dos Estados.

Introduzo aqui um comentário do trovador João Costa, delegado da UBT em Saquarema (RJ),

É nobre o gesto de quem
o sofrimento ameniza,
partilhando o que mal tem
com alguém que mais precisa


que, em artigo publicado In Poesis, julho de 2004, tendo como fonte de pesquisa “Uma Análise do Trovismo”, do saudoso e grande estudioso da trova Eno Thedoro Wanke, escreveu: “A trova atravessou os séculos e chegou até nossos dias, tendo seu primeiro movimento, seu apogeu, nos anos 60 e 70, graças a Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge. Antes, porém, havia chegado à capital cultural do país, o Rio de Janeiro, através do pernambucano Adelmar Tavares

Oh linda trova perfeita
que nos dá tanto prazer!…
Tão linda depois de feita,
tão difícil de fazer…


 e quase estourou como movimento literário, mas o Modernismo esfriou os ânimos. A trova, inclusive, chegou a ser chamada de“boboca” por alguns modernistas mais empolgados. Mas, a verdade é que um trovador chegou à Academia Brasileira de Letras e a trova continuou tendo um lugar especial nos corações brasileiros”.

Continua…
Fonte:
O Autor

Lenda Portuguesa (O Penedo do Sino)

A pequena aldeia de Bustelo, que, como se sabe, fica no alto do monte a dois passos da Citânia, viveu em tempos idos um cabaneiro que possuía um enorme rebanho de ovelhas, entre as quais existia também uma preciosa cabrinha leiteira. Rebanho e cabra eram apascentados na serra pela sua única filha, que, diz a lenda, era um encanto de menina. Aconteceu que, uma manhã, quando a pastorinha foi abrir a porta do redil para sair com o gado a pastar, viu sobre um penedo que havia no recinto um enorme sardão. Tinha um ar muito vivo e parecia ter o corpo coberto de pedras preciosas, tal o colorido reluzente das pintas que o cobriam. Nem a presença da menina nem o movimento do rebanho o assustaram e, a partir de então, a pastora nunca mais entrou no redil sem que visse sobre aquela pedra o sardão bonito, que parecia sorrir-lhe mansamente. Tanto se familiarizaram um com o outro que a pastora acabou por considerá-lo e amá-lo como a cada ovelha do seu rebanho.

 Uma vez que estava mungindo a cabrinha, a rapariga viu o sardão aproximar-se como quem tem fome, e pegando numa escudela cheia de leite pô-la à frente do bicho. O sardão sorveu tudo com sofreguidão, ficando tão alegre e satisfeito que a moça compreendeu imediatamente que lhe prestara um grande serviço. Assim, daí para a frente guardava sempre uma escudela de leite para aquele amigo.

 Estranhamente, porém, a rapariga começou a notar que desde que dava o leite ao sardão a cabra ia secando pouco a pouco, até ameaçar secar de todo. E se este facto entristecia a pastora, não parecia, contudo, aborrecer o sardão, que se mantinha alegre como dantes. Ela atribuía essa alegria ao reconhecimento do animalzinho e um dia, falando para ele como era seu costume, disse-lhe:

 — Ai, meu bichinho! O leite da cabrinha está quase seco e qualquer dia não tenho com que te alimentar!

 Ao ouvir isto, o bicho, em vez de mostrar tristeza, redobrou de corridas até que parou na frente da menina como que sorrindo muito contente.

 A determinada altura, o leite secou totalmente. Pela manhã, a pastora dirigiu-se ao redil muito acabrunhada, pensando no que daria de comer ao sardão nesse dia. Mas, ao abrir a porta ao gado, qual não foi o seu espanto, quando, em vez do sardão, viu sentado no mesmo penedo um rapaz muito bonito e bem vestido.

 Carinhosamente, ele disse-lhe então:

 — Entra, minha amiga, que sou ainda o mesmo! Não tenhas medo! O sardão que alimentavas não era senão eu, um pobre filho da Moirama que seus pais, ao serem expulsos de Portugal, aqui deixaram encantado naquele animalzinho. Foram os teus cuidados que quebraram o encanto e cativeiro a que estava votado. Há tempos e tempos que esperava a minha liberdade, que estava pendente do leite de noventa dias de uma cabrinha do monte da Citânia. Desde que o meu encanto se quebrou, secou o leite da cabra, mas descansa, que mal eu pise a terra da Moirama o leite há-de voltar. Antes, porém, vou deixar-te uma lembrança minha, como testemunho da minha gratidão e amizade.

 E puxando por um objecto muito brilhante, com forma de um X, que trazia na algibeira, acrescentou:

 — Toma isto que te dou. É um talismã com o qual conseguirás seduzir quem tu quiseres. Trá-lo sempre contigo durante três meses, ao fim dos quais devo ter chegado à Moirama, para onde vou partir. Nessa altura,

 volta aqui e coloca o talismã sobre este penedo, que é o cofre dos meus tesouros. O talismã há-de transformar-se numa chave debaixo da qual encontrarás uma fechadura. Abre, e tudo o que encontrares é teu. Mas atenta bem que até lá tens de guardar segredo absoluto de tudo isto que connosco se passou, senão perderei de novo a liberdade e voltarei à condição de réptil, como me encontraste.

 A rapariguinha ainda não conseguira sair do seu espanto quando o mouro desapareceu e a deixou ali de boca aberta e talismã na mão.

 Daí por diante, a pastorinha da Citânia tornou-se o enlevo e a sedução de quantos a conheciam. Principalmente, diz a lenda, não havia rapaz que a olhasse e não ficasse perdido de amores por ela.

 Isto tornou-se tão escandaloso que o pai da rapariga, vendo-a dar tanto nas vistas, a chamou para que lhe explicasse as razões do seu condão.

 Como resposta, a pastora perguntou:

 Meu pai, há quantos meses secou o leite da nossa cabra?

 Já lá vão uns quatro meses. Porquê? - perguntou o pai.

 Venha então comigo! - disse ela.

 De caminho até ao redil, ela foi-lhe contando tudo o que se passara e que levara ao seu poder encantatório junto das pessoas. Por fim, já junto ao penedo onde aparecera o sardão, pousou o talismã e tudo se passou como o mouro lhe predissera.

 Abriram a rocha e, maravilhados, encontraram lá dentro uma tão imensa fortuna que passado pouco tempo se tornaram fidalgos e grandes senhores da corte do nosso Rei. Eram grades, arados, cadeados, cordões, grilhões e meadas, tudo do mais puro ouro, tudo cravejado de pérolas e diamantes de todas as cores, tudo nunca visto!

 O penedo, assim que se viu vazio daquela riqueza, fechou-se para não tornar a abrir-se. Com o tempo, as casas colmaças que existiam sobre ele caíram e desapareceram com o vento, restando apenas, e esperamos que para sempre, o penedo tocando a vazio, oco como um sino e tangendo como ele.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa

Ambrose Bierce (O Capitão do Camelo)

Tradução de Octávio Marcondes

Ambrose Bierce (1842-1914 - Estados Unidos)
Criativo e crítico, escritor e aventureiro (ele foi lutar na Revolução Mexicana e acabou desaparecendo. Carlos Fuentes transformou-o em personagem no seu romance Nuestro Gringo), Bierce deixou uma obra diversificada, como o livro de humor em forma de dicionário (The Devils Dictionary), muito popular, além de fábulas modernas, contos e outros relatos. Aqui, escolhemos uma amostra de sua criatividade um conto de puro non-sense, no melhor tradição anglo-saxã.


–––––––––––-
O nome do navio era Camelo. Sob certos aspectos tratava-se de um barco extraordinário. "Media" 600 toneladas; mas depois de embarcar lastro suficiente para impedir que emborcasse como um pato morto, mais as provisões necessárias para uma viagem de três meses, era preciso ser muito meticuloso na escolha, tanto da carga, quanto dos passageiros. Uma vez, só para ilustrar, quando estava para zarpar veio um bote do porto com dois passageiros, um homem e sua mulher; eles haviam feito reservas no dia anterior, mas ficaram em terra para fazer mais uma refeição decente antes de se sujeitar ao "pé sujo de bordo", como o homem chamava a mesa do capitão. A mulher veio a bordo, e o homem se preparava para segui-la, quando o capitão, se inclinando na amurada, o viu.

- Bem - disse o capitão -, que é que o senhor pretende?

- Que é que eu pretendo? - disse o homem, se agarrando à escada. - Embarcar neste navio é o que eu vou fazer.

- Não, gordo deste jeito, o senhor não vai - gritou o capitão. - O senhor pesa no mínimo 120 quilos, e eu ainda não levantei a âncora. Ou vai querer que eu abandone minha âncora?

O homem disse que a âncora não era problema dele - que era como Deus o tinha feito (embora, pela sua aparência, desse a impressão que um cozinheiro tivesse dado uma mão ao Criador), e, por bem ou por mal, ele se propunha a embarcar no navio. Uma bela discussão se seguiu, mas finalmente um dos marinheiros jogou-lhe um colete salva-vidas, e o capitão, dizendo que assim ele ficaria mais leve, deixou-o embarcar.

Este era o Capitão Abersouth, anteriormente no comando do Atoleiro, o melhor marinheiro que alguém possa imaginar, sentado na murada da popa e lendo uma trilogia. Nada podia se igualar à paixão daquele lobo do mar pela literatura. Em cada viagem ele vinha com tantos pacotes de livros que não havia espaço para a carga. Eram romances no porão, romances no convés, romances no salão e ainda havia romances nos beliches dos passageiros.

O Camelo fora desenhado e construído por seu proprietário, um arquiteto do centro de Londres, e se parecia tanto com um navio quanto a Arca de Noé. Tinha sacadas e varanda; um beiral e portas na linha d'água. As portas tinham sinetas e campainhas. Em uma área tinha havido até uma tentativa fútil de se construir um navio. O salão dos passageiros era na ponte e coberto de telhas. A esta estrutura, com a aparência de uma corcova, o barco devia seu nome. Seu arquiteto havia construído várias igrejas (a de Santo Ignotus ainda é usada por uma cervejaria em Hotbath Meadows) e, possuído pela inspiração eclesiástica, dera ao navio um casco em forma de cruz, mas, descobrindo que as laterais atrapalhavam seu deslocamento na água, as removera, o que enfraquecera bastante a estrutura da quilha a meia nave.

O mastro principal era como um pedestal e no topo havia um cata-vento em forma de galo, de sua gávea se descortinava uma das mais belas vistas da Inglaterra.Era assim o Camelo quando me juntei à sua tripulação, em 1864, para uma viagem de descoberta ao Pólo Sul. Uma expedição sob os auspícios da Real Sociedade pela Promoção do "Fair Play". Numa reunião desta excelente associação, ficara decidido: 1 - que o favoritismo da ciência pelo Pólo Norte era uma indevida diferenciação entre dois objetivos igualmente meritórios, pela qual a Natureza já havia mostrado sua desaprovação castigando Sir Jonh Franklin e tantos outros de seus imitadores (o que era bem feito para eles); 2 - que esta empresa seria uma forma de protesto contra tal preconceito; e, finalmente, 3 - que nenhuma despesa ou responsabilidade devia reverter para a dita sociedade como corporação, mas que se criaria um fundo para o qual qualquer membro de forma pessoal poderia contribuir, se alguém fosse suficientemente idiota para isto (o que, justiça seja feita, ninguém foi). Aconteceu apenas que o cabo de amarração do Camelo arrebentou, num dia em que eu estava nele. O barco deixou o porto vagando com a corrente rumo ao Sul, debaixo dos insultos e imprecações de quantos o conheciam e, como eu, já não podiam voltar. Em dois meses ele cruzou o Equador, e o calor se tornou insuportável.

De repente começou uma calmaria. Tivéramos uma brisa perfeita até as três da tarde, e o navio vinha fazendo quase dois nós por hora quando, sem um aviso, as velas se inflaram ao contrário, isto devido ao ímpeto com que vínhamos, e então, quando ele parou de todo, as velas caíram, mais lisas que saia de mulher magra.

O Camelo não só parou por completo como começou um lento movimento de ré, rumo à Inglaterra. O velho Ben, nosso mestre, disse que calmaria igual só tinha visto mesmo uma, e esta, ele explicou, foi quando Pregador Jack, o marinheiro regenerado, se excitou demais num sermão e gritou que Miguel, o Arcanjo, sacudiria o Dragão de dentro do barco e faria o maldito provar a ponta de uma corda!

Nós permanecemos nesta situação deplorável boa parte do ano, até que, com impaciência crescente, a tripulação me delegou poderes de representação para procurar o capitão e ver se alguma coisa podia ser feita. Eu o encontrei, sob a coberta, entre um convés e outro, num canto empoeirado e coberto de teias de aranha, com um livro nas mãos. De um lado ele tinha, recém desembrulhados, três pacotes de "Ouida", do outro lado uma pilha de Miss M. E. Braddon que chegava à altura de sua cabeça.

Havia terminado "Ouida" e começara a atacar Miss Braddon. Ele estava muito mudado.

- Capitão Abersouth - eu disse, na ponta dos pés para poder ver por cima dos picos montanhosos de Miss Braddon -, o senhor poderia, por gentileza, me dizer até quando isso vai durar?

- Não tenho certeza - me respondeu sem tirar os olhos do livro. - Provavelmente eles vão transar pela metade do livro. Enquanto isso o jovem Monshure de Boojower vai entrar na posse de uma fortuna milionária. Então, se a bela e orgulhosa Angélica não vier atrás dele, depois de abandonar o advogado naval, então, pelo de Deus, eu não entendo nada do profundo e misterioso coração humano.

Eu me sentia incapaz de relatar aos homens de bordo a forma esperançosa que o capitão encarava nossa situação e subi para o convés bastante desanimado, mas foi só botar a cabeça para fora para notar que o navio movia-se com uma velocidade incrível.

Nós tínhamos a bordo um touro e um holandês. O touro estava preso ao mastro, pelo pescoço, com uma corrente, já o holandês tinha bastante liberdade e só era trancado à noite. Havia uma desavença entre eles - uma antipatia que tinha suas raízes no apetite do holandês por leite e no senso de dignidade pessoal do touro; seria penoso e cansativo relatar aqui o incidente específico que deu origem ao ódio. Aproveitando a siesta, que seu inimigo fazia depois do almoço, o holandês conseguira passar pelo mastro sem ser visto, e chegar até a proa, para pescar. Quando o animal, acordando, viu a outra criatura na sua frente pescando, deu uma folga na corrente, para pegar impulso, abaixou os chifres e atacou seu desafeto. O mastro era firme, a corrente era forte e com o touro rebocando o navio, como diria Byron: "caminhar sobre as águas foi coisa normal".

Depois disso nós deixamos o holandês exatamente onde estava, noite e dia. O velho Camelo andava como nem mesmo um furacão o faria andar. A bússola mostrando sempre o rumo Sul.

Nosso problema agora era outro. Há algum tempo não tínhamos comida suficiente, faltava carne em especial. Nós não podíamos sacrificar nem o touro nem o holandês; e o carpinteiro de bordo, tradicionalmente o primeiro recurso dos esfomeados no mar, era magro como um esqueleto. Os peixes nem mordiam nem se deixavam morder. Quase todos os cabos já haviam sido usados numa macarronada; tudo que era de couro, inclusive nossos sapatos, tinha acabado dentro de uma omelete; com trapos e betume fizéramos uma salada bastante razoável, e depois de uma breve carreira como dobrada à moda do Porto, nossas velas haviam dado adeus ao mundo para sempre. Só restavam duas alternativas, ou comíamos uns aos outros, como manda a etiqueta naval, ou lançávamos mão dos romances do capitão Abersouth. Terrível alternativa! - mas sempre uma escolha. E raramente, creio, marinheiros esfomeados têm o privilégio de encontrar à sua disposição um inteiro carregamento de nossos melhores autores contemporâneos já fritos pela crítica. Nós comemos toda aquela ficção.

As obras que o capitão já terminara de ler duraram seis meses, a maioria eram best-sellers e bastante substanciais. Depois que elas acabaram (é claro que alguma coisa tinha de dada ao touro e ao holandês) nós apertamos o capitão, tomando os livros de suas mãos assim que ele os acabava de ler. Algumas vezes, quando parecia que nós estávamos nas últimas e já nada podia nos salvar, ele saltava uma página inteira de considerações éticas, ou aquelas partes chatas com descrições monótonas, que eram imediatamente devoradas; e sempre, assim que ele começava a prever o desenvolvimento da trama (o que em geral acontecia pela metade do segundo volume), ele nos entregava o final do livro sem uma reclamação.

Os efeitos desta dieta não só não eram desagradáveis, mas ao contrário bastante interessantes. Nos sustentava fisicamente, nos exaltava o intelecto e moralmente não nos tornava muito piores de que já éramos. Nós falávamos como nunca ninguém falou, antes de nós. Coisas de uma absoluta falta de sentido eram ditas com muito espírito. Como na coreografia óbvia de um duelo de palco, onde cada golpe tem seu previsível contragolpe, nas nossas conversas, cada observação era a deixa para a outra fala que, por sua vez, provocava o seu preciso retorno. Uma seqüência que, quando interrompida, fazia perceber o vazio de que era feita; como um colar que, rompido o fio, deixasse ver suas contas, uma a uma, brilhantes e ocas.

Nós fizemos amor, uns com os outros, e conspiramos sombrios pelos cantos mais escuros do porão. Cada grupo de conspiradores tinha seus espiões e traidores que às vezes brigavam entre si. Às vezes havia confusão entre eles, dois ou mais indivíduos disputando o direito de espionar a mesma conspiração. Lembro-me quando o cozinheiro, o carpinteiro, o segundo cirurgião assistente e um marinheiro brigaram com ferros na mão pela honra de trair minha confiança. Outra vez, eram três os assassinos mascarados do segundo turno de vigia, debruçando-se ao mesmo tempo sobre o vulto adormecido do grumete que mencionara na semana anterior possuir: Ouro! Ouro! - acumulado durante oitenta anos (pois é, oitenta) de pirataria enquanto parlamentar pelo distrito de Zaccheus-cum-down e ia à missa todos os domingos. Vi o capitão no alto da ponte cercado de pretendentes à sua mão enquanto ele mesmo tentava adivinhar, sem desembrulhar, o conteúdo de um pacote de livros olhando pela fresta do papel e, ao mesmo tempo, fazia uma serenata para sua amada que se barbeava num espelho.

Nossas falas compunham-se de partes iguais, de alusões dos clássicos, citações diretamente das tabernas, amostras de fofoca copa-e-cozinha, do código de iniciados dos clubes esnobes e do jargão técnico da heráldica. Nós nos vangloriávamos muito de nossos ancestrais e admirávamos a brancura de nossas mãos, sempre que se pudesse ver alguma coisa através da camada de sujeira e graxa que as cobriam. Depois de amor, botânica, assassinato, incêndio, adultério e liturgia, o que mais ocupava nossa conversação eram as artes. A figura de proa do Camelo, representando um negro da Guiné sentindo um mau cheiro, e dois golfinhos corcundas pintados na popa assumiram uma nova importância. O holandês quebrara o nariz do negro com um pontapé e os restos da cozinha haviam praticamente coberto os golfinhos. Mas as duas obras eram objeto de peregrinações diárias de amantes das artes que a cada vez descobriam belezas ocultas, tanto na concepção quanto na excelente e sutil execução. Nós mudáramos muito; e se o suprimento de ficção contemporânea fosse igual à demanda, eu acho que o Camelo seria pequeno para conter as forças morais e estéticas despertadas pela maceração da imaginação dos autores no suco gástrico dos marinheiros.

Tendo conseguido transferir do seu cérebro para os nossos toda a literatura a bordo, o capitão apareceu na ponte de comando pela primeira vez desde que havíamos deixado o porto. Nós continuávamos no mesmo curso, e, fazendo sua primeira observação do sol com o sextante, o capitão constatou que estávamos a 83º de latitude Sul. O calor era insuportável; o ar como o bafo de uma fornalha dentro de uma fornalha. O mar fervia como um caldeirão e no seu vapor nossos corpos eram cozidos - nossa última ceia estava sendo preparada. Empenado pelo sol, o navio tinha popa e proa fora d'água; o convés da proa estava tão inclinado que o touro corria ladeira acima e o holandês se equilibrava precariamente no pico da proa em vertical. Havia um termômetro no mastro principal e nós nos reunimos em volta dele enquanto o
capitão fazia a leitura.

- Oitenta graus centígrados! - ele murmurou com evidente assombro. - Impossível! - virando-se rapidamente, ele correu os olhos sobre nós, e perguntou em voz alta:

- Quem ficou no comando enquanto eu passava os olhos nos livros?

- Bem, capitão - eu respondi, o mais respeitosamente possível -, no quarto dia no mar eu me vi, infelizmente, envolvido numa disputa, no meio de um jogo de cartas, com o imediato e o segundo oficial. Na falta desses excelentes marinheiros, senhor, eu me senti na obrigação de assumir.

- Matou eles, hein?

- Eles se suicidaram, capitão, questionando a eficácia de quatro reis e um ás.

- Bem, seu trapalhão, como é que você justifica esta temperatura absurda?

- Não é minha culpa, capitão. Nós estamos no Sul, muito ao Sul mesmo, e sendo agora o meio de julho, a temperatura é desconfortável, eu admito, mas, considerando a latitude e a estação, não chega a ser absurda.

- Latitude e estação! - ele gritou, pálido de raiva. - Latitude e estação! Sua besta emplumada, quadrúpede, alimária, você não sabe nada? Ninguém nunca disse a você que as latitudes ao Sul são mais frias que ao Norte, ou que julho é o meio do inverno aqui? Considere-se confinado ao seu alojamento, saia da minha frente agora mesmo, seu filho de uma égua, ou eu arrebento você.

Oh! Muito bem - respondi. - Eu não vou ficar aqui de qualquer forma, que não sou homem de aturar esse tipo de insultos, estou avisando. Faça como achar melhor.

Eu mal acabara de falar, quando um vento frio e cortante me fez olhar o termômetro. Segundo as novas noções de ciência geográfica o mercúrio vinha caindo rapidamente; no próximo segundo o instrumento estava completamente coberto por uma nevasca que impedia a visão. Enormes icebergs se levantavam do mar por todos os lados, erguendo-se monstruosamente dezenas de metros acima do mastro e nos cercando por completo. O navio se contorceu e tremeu, empurrado para cima; cada peça de madeira nele rangeu, e o barco fez um último balanço, como o coice de uma pistola. O Camelo congelou rápido. A parada brusca partiu a corrente atirando ao mar o touro e o holandês, que assim continuaram no gelo sua guerra pessoal.

Tentando descer para minha cabine, como me ordenara o capitão, ao passar pelos homens eu os vi caírem, à esquerda e à direita, como bonecos de boliche. A tripulação estava rigidamente congelada. Passando pelo capitão, eu perguntei com certa dose de ironia o que ele estava achando do tempo segundo o novo regime. Ele me respondeu com um olhar vago. O frio tinha chegado a seu cérebro e afetado suas faculdades. Ele disse:

- Nesse delicioso lugar, contentes e estimados por todos, cercados de tudo aquilo que torna a vida tranqüila, eles viveram felizes até o fim de seus dias. FIM.

Sua boca ficou aberta. O capitão do Camelo estava morto.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

História da Literatura (Classicismo) Parte III

Elegia:
poema de fundo melancólico, que fala dos sentimentos tristes ou é inspirada neles;

EXEMPLO DE ELEGIA

Elegia IV

Aquele mover de olhos excelente,
 Aquele vivo espírito inflamado
 Do cristalino rosto transparente;
 Aquele gesto imoto e repousado,
 Que, estando na alma propriamente escrito,
 Não pode ser em verso trasladado;
 Aquele parecer, que é infinito
 Pera se compreender de engenho humano,
 O qual ofendo em quanto tenho dito,
 Me inflama o coração dum doce engano,
 Me enleva e engrandece a fantasia,
 Que não vi maior glória que meu dano.
 Oh! bem-aventurado seja o dia
 Em que tomei tão doce pensamento,
 Que de todos os outros me desvia!
 E bem-aventurado o sofrimento
 Que soube ser capaz de tanta pena,
 Vendo que o foi da causa o entendimento!
 Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
 Trate-me com enganos, desamores,
 Que então me salva, quando me condena.
 E se de tão suaves desfavores
 Penando vive ua alma consumida,
 Oh, que doce penar! que doces dores!
 E se ua condição endurecida
 Também me nega a morte por meu dano,
 Oh, que doce morrer! que doce vida!
 E se me mostra um gesto brando e humano,
 Como quem de meu mal culpada se acha,
 Oh, que doce mentir! que doce engano!
 E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
 Mostrando refrear o pensamento,
 Oh, que doce fingir! que doce cacha!
 Assi que ponho já no sofrimento
 A parte principal de minha glória,
 Tomando por melhor todo o tormento.
 Se sinto tanto bem só na memória
 De vos ver, linda Dama, vencedora,
 Que quero eu mais que ser vossa a vitória?
 Se tanto vossa vista mais namora
 Quanto eu sou menos para merecer-vos,
 Que quero eu mais que ter-vos por senhora?
 Se procede este bem de conhecer-vos,
 E consiste o vencer em ser vencido,
 Que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
 Se em meu proveito faz qualquer partido,
 Só na vista de uns olhos tão serenos,
 Que quero eu mais ganhar que ser perdido?
 Se meus baixos espíritos, de pequenos,
 Ainda não merecem seu tormento,
 Que quero eu mais, que o mais não seja menos?
 A causa, enfim, me esforça o sofrimento;
 Porque, apesar do mal que me resiste,
 De todos os trabalhos me contento;
 Que a razão faz a pena alegre ou triste.
(Luís Vaz de Camões)


Ode:
composição pequena, de caráter erudito, com elevação do pensamento, sobre vários assuntos. As odes podem ser classificadas em pendáricas (cantam heróis ou acontecimentos grandiosos), anacreônicas (cantam o amor e a beleza), e satíricas (celebram assuntos morais e / ou filosóficos);

EXEMPLO DE ODE

Ode III

Se de meu pensamento
 Tanta razão tivera de alegrar-me
 Quanta de meu tormento
 A tenho de queixar-me,
 Puderas, triste lira, consolar-me.
 E minha voz cansada,
 Que noutro tempo foi alegre e pura,
 Não fora assim tornada,
 [Com tanta desventura],
 Tão rouca, tão pesada, nem tão dura.
 A ser como soía,
 Pudera levantar vossos louvores;
 Vós, minha Hierarquia,
 Ouvíreis meus amores,
 Que exemplo são ao mundo já de dores.
 Alegres meus cuidados,
 Contentes dias, horas e momentos,
 Oh! quão bem alembrados
 Sois de meus pensamentos,
 Reinando agora em mim duros tormentos!
 Ai, gostos fugitivos,
 Ai, glória já acabada e consumida,
 Cruéis males esquivos,
 Qual me deixais a vida!
 Quão cheia de pesar, quão destruída!
 Mas como não é morta
 A triste vida já, que tanto dura?
 Como não abre a porta
 A tanta desventura,
 Que em vão co'o seu poder, o Tempo cura?
 Mas, pera padecê-la,
 Se esforça meu sujeito e convalece;
 Que só, para dizê-la,
 A força me falece,
 E de todo me cansa e me enfraquece.
 Oh! bem afortunado,
 Tu, que alcançaste com lira toante,
 Orfeu, ser escutado
 Do fero Rodamante,
 E co'os teus olhos ver a doce amante!
 As infernais figuras
 Moveste com teu canto docemente;
 As três Fúrias escuras,
 Implacáveis à gente,
 Quietas se tornaram, de repente.
 Ficou como pasmado
 Todo o Estígio reino co'o teu canto;
 E, quase descansado
 De seu eterno pranto
 Cessou de alçar Sísifo o grave canto.
 A ordem se mudava
 Das penas que ordenava ali Plutão.
 Em descanso tornava
 A roda de Ixião,
 E em glória quantas penas ali são.
 Pelo qual admirada
 A Rainha infernal e comovida,
 Te deu a desejada
 Esposa, que perdida
 De tantos dias já tivera a vida.
 Pois minha desventura
 Como já não abranda ua alma humana,
 Que é contra mim mais dura
 E mui mais desumana
 Que o furor de Calírroe profana?
 Ó crua, esquiva e fera,
 Duro peito, cruel, empedernido,
 De algua tigre fera
 Da Hircânia nascido,
 Ou de entre as duras rochas produzido!
 Mas que digo, coitado,
 E de quem fio em vão minhas querelas?
 Só vós, ó do salgado,
 Húmido reino, belas
 E claras Ninfas, condoei-vos delas.
 E, de ouro guarnecidas,
 Vossas louras cabeças levantando
 Sôbola água erguidas,
 As tranças gotejando
 Saí alegres todas ver qual ando.
 Saí em companhia
 Cantando e colhendo as lindas flores;
 Vereis minha agonia,
 Ouvireis meus amores,
 E sentireis meus prantos, meus clamores.
 Vereis o mais perdido
 E mais mofino corpo que é gerado;
 Que está já convertido
 Em choro, e neste estado
 Somente vive nele o seu cuidado.
(Luís Vaz de Camões)


Fontes:
Garganta da Serpente
Imagem = compartilhada no facebook pela Libreria Fogola Pisa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 671)

Uma Trova de Ademar  

A lua, sem empecilho,
desfilando, linda e nua,
deixa também o seu brilho
“nas poças d’água da rua”!

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Deus, Garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o que há de melhor
pelos garimpos do mundo...

–Flávio Roberto Stefani/RS–

Uma Trova Potiguar


Velha fonte... O largo antigo...
Sob as ruínas... Num canto...
Hoje tu choras comigo,
dividindo o mesmo pranto!

–Mara Melinni/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema - JORNAL - M/H


Sou, na tua vida, agora,
o artigo já sem valia
de um jornal jogado fora
por falta de serventia...

–Maria Nascimento/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A vida é dura batalha
que não aceita um “talvez”
e nem outorga medalha
aos filhos da timidez!

–Hermoclydes S. Franco/RJ–

U m a P o e s i a


A chuva está no arquivo
e na vida do sertanejo,
que é pra ter coalhada e queijo
pra manter o homem vivo,
o trovão é curativo
o relâmpago, uma injeção,
a nuvem é cirurgião
e quem traz chuva é o vento;
a chuva é medicamento
pra doença do verão.

–Antônio Lisboa/RN–

Soneto do Dia

ESTRELA CADENTE.
–Vinícios Gregório/PE–


Viver perto um do outro a vida inteira
Prometemos nos vendo frente a frente.
Era noite... E deitados numa esteira,
assistimos o céu brilhar pra gente...

De repente nós vimos reluzente,
uma estrela cadente bem ligeira.
Cada qual fez pedido em sua mente,
como fazem de forma corriqueira.

Sem contar um ao outro o seu desejo,
nos olhamos quietinhos, nesse ensejo,
esconder os pedidos, foi besteira...

Nosso olhar foi sincero e distraído,
e entregou um ao outro o seu pedido:
viver perto um do outro a vida inteira.

Lenda Portuguesa (A Lenda dos Távoras)

Os dois irmãos D. Tedo e D. Rausendo, que segundo a tradição eram descendentes de Ramiro II de Leão, são protagonistas de um ciclo lendário que busca as suas bases na reconquista cristã anterior à formação do reino de Portucale. A História porém não dá crédito à existência destes dois cavaleiros pelos quais frei Bernardo de Brito mostra um especial carinho na sua Monarquia Lusitana.

Em Paredes da Beira possuía o emir de Lamego, em 1037, um castelo bem provido de tudo e repleto de excelentes guerreiros. Bem protegido pelas penedias, o castelo revelava-se inexpugnável num ataque de tipo clássico.

Efetivamente, os dois irmãos estavam cansados de perder homens contra aquelas muralhas e, assim, decidiram tentar a conquista de Paredes pela astúcia.

Sabendo que em manhã de S. João os mouros saíam do castelo para festejar, banhando-se nas águas do Távora, o final do ciclo primaveril, D. Tedo e D. Rausendo cobriram as cotas com vestes mouras e foram emboscar-se com os seus guerreiros nas proximidades do castelo.

Era madrugada quando os mouros começaram a sair alegres e sem preocupações. Atrás das rochas, os cristãos aguardavam que passasse o tempo suficiente para que a distância se alongasse o bastante entre eles e os mouros em festa. Depois entraram pelas portas escancaradas, sem resistência dos poucos muçulmanos que se haviam quedado intramuros.

Alguns, que conseguiram escapar ao morticínio de Paredes, dirigiram-se correndo ao Távora a dar a má nova, alertando desse modo os despreocupados festeiros.

Entretanto, D. Tedo tomou conta do alcácer e distribuiu os seus guerreiros pelos pontos de defesa, enquanto D. Rausendo descia até ao rio com os restantes homens.

Preparados, no rio, os mouros defenderam caro as suas vidas e D. Rausendo teria sido derrotado se o irmão não acorresse rápido ao aperceber-se do que acontecia.

Diz-se que nesse dia as águas do Távora correram vermelhas: D. Tedo a cavalo, no meio do rio, vibrava golpes ferozes no inimigo. Tanto espadeirou que quando conseguiu chegar junto do irmão mais de metade dos mouros jaziam mortos por terra ou boiando nas águas.

O resto da batalha foi fácil, e se algum mouro sobrou para contar aquela carnificina, foi um homem feliz. Por isso, o povo de Paredes da Beira chamou ao local daquela sangrenta luta Vale d'Amil, em memória dos corpos que juncavam o chão e as águas, mouros mortos aos mil.

Diz a tradição que depois desta batalha os dois irmãos adoptaram o apelido Távora, como recordação da vitória alcançada, e tomaram por armas um golfinho sobre as ondas para que sempre se rememorasse D. Tedo espadeirando nas águas sobre o seu ginete de guerra.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa 

Mia Couto (O Último Voo do Flamingo)

O livro começa com uma carta do “tradutor”, que é o narrador do livro, onde ele conta os motivos que o levaram a narrar essa história. Pouco tempo depois da guerra terminar em Moçambique, alguns soldados da Tropa de paz da ONU que estavam na região começaram a explodir. Para tentar entender o que estava acontecendo, o italiano Massimo Risi é enviado à Tizangara, cidade fictícia onde se passa a narrativa, para investigar os estranhos acontecimentos. Para tanto, o governante local contrata o tradutor para acompanhar Risi em sua investigação.

Há um orgão masculino decepado largado no chão da cidade e resolve-se fazer uma vistoria para tentar descobrir a origem do órgão ali jogado. Como ninguém sabia o que fazer, resolvem chamar Ana Deusqueira, a primeira e única prostituta de Tizangara, para reconhecer. Após olhar com ares de especialista, ela informa que o órgão não é de nenhum morador local. Todos partem e Risi dirige-se à pousada local com seu tradutor.

Lá chegando, o italiano é advertido que se aparecer um louva-deus pelo local, não deve mata-lo. Ao ir para o quarto, Risi se depara com Temporina, uma estranha mulher com belíssimo corpo de jovem, mas rosto de velha. Antes de dormir, o tradutor conta histórias de sua infância e de seu pai, o velho Sulplício, para Risi.

No outro dia, o italiano encontra Temporina no corredor e ela diz estar grávida dele, o que Risi nega, já que apenas havia sonhado com a mulher. O hospedeiro, que ouviu a conversa, entra no quarto e adverte Risi para tomar cuidado com Temporina. No meio da conversa, o hospedeiro repara que tem um louva-deus morto no chão e começou a gritar “Hortênsia! Você matou-lhe!”. Risi, sem nada entender, expulsa o homem do quarto e pede explicações para o tradutor.

Então, ele conta que naquela terra acreditava-se que um louva-deus era um ancestral morto voltando para visitar seus parentes vivos. Aquela seria Hortênsia, tia de Temporina e última neta dos fundadores de Tizangara. O tradutor então chama Temporina e pede para que essa conte sua história. A jovem conta que na realidade não tem nem vinte anos e que havia ficado com a cara cheia de rugas e velha por ter recebido castigo dos deuses, uma vez que quando jovem ela recusara todos os homens e acabou passando o “prazo de sua adolescência”. Ela resolve então conduzir Risi à casa de Hortênsia, que fora usada pelos soldados da ONU e talvez lá ele pudesse descobrir algo.

Hortênsia havia sido uma bela mulher que passava os dias na varanda de sua casa toda bem arrumada, somente para se exibir. Nunca tinha saído com nenhum homem e permaneceu sua vida toda solteira. Ao morrer, deixou tudo para um sobrinho tonto. Dizia-se que mesmo após morrer Hortênsia continuava cuidando dele e toda manhã tinha um prato de comida à mesa.

Enquanto isso, Estêvão Jonas, o governante local, escreve uma carta ao Chefe Provincial para informar o que estava acontecendo em Tizangara. Na carta em tom confessional, Jonas conta que os soldados estão explodindo, mas que ninguém sabe o porquê ainda. Além disso, diz ele que quando sua mulher o toca, suas mãos se esquentam como se fossem carvão aceso, chegando um dia inclusive a pegar fogo. Ele teme um dia explodir também.

Massimo Risi e o tradutor vão ao gabinete de Jonas para ouvir o depoimento de Deusqueira, que havia sido gravado pelo governante. A fita começa a tocar e nela a prostituta conta que os homens realmente explodem e o que causa as explosões são as mulheres. Porém, Jonas para a fita diversas vezes e não se entende exatamente o que ela sabe sobre o assunto. Até que a reunião é interrompida por outra explosão.

Sem mais saber o que fazer, Risi e o tradutor resolvem ficar andando pela cidade para se distraírem, ao que encontram o hospedeiro. Ele estava a procurar o irmão tonto de Temporina, que havia saído de casa dizendo que ia matar o italiano. Num dado momento, Risi tem uma visão de Temporina vindo em sua direção e tem um desmaio. Eles resolvem voltar para a pensão e o hospedeiro conta as histórias das primeiras explosões.

Conta ele que quando teve a primeira explosão, as pessoas acharam que ainda era a guerra e se esconderam na floresta. Lá, ele encontrou sua mãe, que lhe contou uma velha história sobre o flamingo. Num tempo em que não havia noite, era sempre dia, um flamingo disse que faria seu último voo e que iria para outra terra, a terra das estrelas. Quando o flamingo partiu, o bater das asas fundiu-se com o horizonte; até que o flamingo se extinguiu e a noite nasceu naquela terra.

No outro dia, prendem o padre Muhando, que dizia ter sido quem causou as explosões. Quando conseguiram conversar com ele, Risi e o tradutor ouvem sua história incerta e não lhe dão confiança. Eles percebem que Muhando, que vivia a xingar Deus pelas ruas, realmente enlouquecera e não sabia direito o que estava falando.

No dia seguinte, o tradutor resolve visitar seu pai e Risi pede para acompanha-lo por temer ficar sozinho. O velho Sulplício não os recebe bem e se recusa a falar com o estrangeiro. Por fim, ele acaba fazendo uma série de críticas à presença estrangeira no país, à colonização e aos dirigentes locais, que se dizem salvadores, mas também fizeram muita coisa ruim. O tradutor conta logo depois que Estêvão Jonas assumiu o comando, Sulplício, na época policial, prendeu o sobrinho de Jonas. Dona Ermelinda ficou furiosa e em um instante o moço estava solto e Sulplício é que ficou preso com as mãos amarradas. Ermelinda ainda tacou sal nas feridas e ordenou que só o soltassem no dia seguinte. Após essas histórias ouve-se uma nova explosão e Sulplício diz que essa não era uma explosão de estrangeiros, mas sim uma das explosões reais, de gente ali da terra mesmo.

Quem havia explodido era o sobrinho tonto de Hortênsia, irmão de Temporina. Risi e o tradutor foram para a cidade tentar entender o acontecido e encontraram o padre Muhando, já liberto, a praguejar contra Deus por ter deixado o moço morrer. Em seguida, encontraram o maior feiticeiro da cidade, Zeca Andorinho, que contou a eles que havia feito sobre encomenda dois feitiços para Risi. Um deles era um likaho de sapo, que faria ele inchar e explodir. O outro, um likaho de cágado, que o protegeria.

Então, Zeca Andorinho diz que fez o likaho de sapo para os homens que explodiram e começa a contar sobre eles, mas sua fala é incerta e não se sabe exatamente o que ele quer dizer com aquilo. Porém, deixa Risi avisado que, apesar de Zeca ter feito o likaho de cágado para protege-lo, o italiano deveria tomar cuidado onde pisava.

Um dia, o tradutor entra no quarto de Risi e o descobre arrumando suas malas para partir. Sem mais saber o que fazer, perdido em um labirinto, ele resolvera ir embora. Então, ele mostra uma gravação que fez de Deusqueira onde ela conta como foi quando o zambiano explodiu.

No dia seguinte o italiano sai com Temporina para ir se despedir do padre Mujando e o tradutor resolve ir à casa de Estêvão Jonas para informa-lo da partida de Risi. Chegando lá, estava uma grande confusão, pois ele gritava e xingava Ana Deusqueira dizendo que ela que havia causado as explosões. Ela, por sua vez, diz que ele é que era o culpado, pois ele desviava o dinheiro destinado para remoção das minas e plantava mais ainda para conseguir mais dinheiro. Dona Ermelinda chega e, para o espanto de todos, acode Deusqueira e expulsa Estêvão de casa.

O tradutor vai informar aos outros o que havia acontecido e Temporina decide ir se juntar à Deusqueira. Um tempo depois, ela volta dizendo que Estêvão e seu capanga, Chupanga, decidiram fugir para outro país e que iriam explodir a barreira para que a cidade toda fossem inundada e não sobrassem provas das minas. O tradutor e outros resolvem ir atrás para impedir, mas Risi deveria ficar ali, pois o negócio deveria ser resolvido por gente ali da terra. Apanharam Chupanga no meio da estrada e o levaram à Tizangara na presença de Zeca Andorinho e do velho Sulplício. Decidem não matar Chupanga, mas ele deve ir embora e levar Ermelinda junto.

Voltam Risi, o tradutor e Sulplício para casa. À noite, o tradutor vê seu pai tirar os ossos para dormir, coisa que o velho sempre disse que fazia, mas ele nunca tinha acreditado nessas histórias do pai. Dormem os três ali fora sob a árvore e, ao despertarem no meio da noite, descobrem que não há mais país. Tudo tinha sido engolido por um grande abismo. Chega, então, um barco carregando os ossos de Sulplício, que os coloca de volta ao lugar e chama Risi para ir ver onde os explodidos se encontravam. O italiano nega e Sulplício entra no barco e vai embora. Risi então escreve seu último relatório dizendo que o país havia sumido. Ele faz um avião com o papel e joga em direção ao abismo. Os dois se sentam e ficam esperando um novo barco chegar, esperando um outro voo do flamingo.

Lista de personagens

Massimo Risi: italiano encarregado pela ONU de investigar as estranhas explosões em Tizangara.
Tradutor: homem designado pelo governante locar para acompanhar Risi e servir de tradutor.
Sulplício: pai do tradutor.
Temporina: mulher com esbelto corpo de jovem e rosto de velha.
Dona Ermelinda: primeira-dama local, esposa de Estêvão Jonas.
Estêvão Jonas: governante local.
Ana Deusqueira: primeira e única prostituta de Tizangara.
Padre Muhando: padre que enlouquecera e vivia pela rua gritando injúrias a Deus.
Zeca Andorinho: maior feiticeiro de Tizangara.
Chupanga: capanga de Estêvão Jonas.
=============================

ANÁLISE DA OBRA

Contexto histórico


No início do século XVI, Portugal iniciou a ocupação do território onde hoje é Moçambique, mas em 1885, com a Conferência de Berlim (que partilhou a África conforme os interesses das superpotências), Moçambique se tornou uma ocupação militar. No início do século XX, o país havia se tornado uma ocupação colonial portuguesa.

Em 1964 teve início a Guerra de Independência de Moçambique entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Esta guerra durou dez anos e assolou o país, que conseguiu sua independência em 25 de junho de 1975. Porém, os novos estados independentes não tinham como manter a infraestrutura do país e houve uma grande crise econômica.

Durante todo o conflito, a FRELIMO, que tinha ligações políticas com países comunistas (URSS e outros), foi criando em Moçambique "zonas libertadas", que eram administradas pelas forças de libertação. Com a conquista da independência, a FRELIMO tentou implantar no país uma série de melhorias na educação, agricultura, saúde e outras áreas. Porém, com a crise econômica, os planos não surtiram efeito e acabaram por agravar a crise.

Nesse cenário de instabilidade económica e sócio-política, dá-se início à Guerra Civil Moçambicana em 1976, entre o exército de Moçambique e o exército rebelde da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Após 16 anos de guerra, em 4 de outubro de 1992, a FRELIMO e a RENAMO assinam um Acordo Geral de Paz, em Roma. O governo de Moçambique solicita, então, o apoio da ONU para o desarmamento das tropas restantes. A tropa das Nações Unidas em Moçambique, a ONUMOZ, apoiou esse trabalhado durante cerca de dois anos e, em 1994, ouve a formação de um exército unificado e a organização das primeiras eleições gerais multipartidárias.

Um país em pedaços

A ação de "O último voo do flamingo" se dá nos primeiros anos após a guerra de Independência e os anos de guerrilha. Nas palavras do próprio Mia Couto quando da obtenção do Prêmio Mário António em 2001, este romance fala sobre a "perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos". Dessa forma, "O último voo do flamingo" nasce como fruto de uma nação profundamente agredida pelos anos de ocupação, pelas guerras e pela ganância dos poderosos, uma terra que não suporta mais essa situação.

As explosões que ocorrem em Tizangara, terra fictícia onde se passa a narrativa, são tanto de estrangeiros quanto de moçambicanos. Os anos de conflito em Moçambique deixaram para trás tanto minas terrestres reaisquanto minas metafóricas, que seriam os conflitos sócio-políticos e outras mazelas da população local. Assim, poderíamos dizer que Moçambique se tornou uma "nação-mina", pronta para explodir a qualquer momento.

No livro de Mia Couto, os soldados da ONU explodem sem deixar nenhum rastro, exceto seu boné azul e o orgão. Essas estranhas explosões que acontecem aos estrangeiros são explicações dadas pelo povo local, que busca em sua própria cultura uma forma de entender o que acontece a seu redor. Dessa forma, a explosão de um estrangeiro de forma sobrenatural seria como uma vingança da própria terra, fato que encontra eco nas palavras do feiticeiro Zeca Andorinho e do velho Sulplício.

Como as explicações para os estranhos acontecimentos só se dão através do mito local, o italiano Massimo Risi não consegue entender o que está se passando mesmo falando português. Para ele o problema não é a língua, mas entender aquele mundo. Assim, é buscando nas raízes e na memória local é que se consegue reconquistar e preservar a identidade africana. E, através disso, consegue-se "explodir" toda forma de domínio.

Esse domínio, porém, às vezes nem é só estrangeiro. Em "O último voo do flamingo" vemos o domínio totalitário dos próprios governantes locais, que se esqueceram para o que lutaram nos anos de guerra e passaram somente a pensar na própria ganância. Nessa obra, o ataque não se dá somente à presença opressora de povos estrangeiros, que da África parecem nada entender, mas também àqueles poderosos que, movidos pela ganância, se esquecem de sua própria terra.

O país arrasado pelos problemas sociais, económicos e políticos, dividido quanto a sua própria identidade, é simbolizado ao final do livro pela própria terra que explode. As duas personagens centrais, Massimo Risi e o tradutor, restam sozinhos nesse abismo que sobrou da terra onde antes existira todo um país a espera do que virá a acontecer. Ao final, o estrangeiro continua sem entender o país e a própria África, que continua um mistério. Só resta aos dois esperar que um outro voo do flamingo faça o sol voltar a brilhar depois de tanta escuridão.

Comentário do professor Deco Duarte, do Colégio Gregor Mendel:

"O último voo do flamingo", do moçambicano Mia Couto - um dos autores lusófonos mais influentes da contemporaneidade -, desloca nosso olhar para o continente africano, em especial para a vila fictícia de Tizangara, no interior de Moçambique, local onde um acontecimento incomum chama a atenção da comunidade internacional: os soldados da ONU, enviados para vigiar o processo de paz após anos de guerra civil, começam a explodir sem uma razão aparente, restando deles apenas o órgão genital. Para investigar o fato, é enviado à região o italiano Massimo Risi, inspetor da ONU. Logo à sua chegada, Estevão Jonas - o administrador local -, em uma demonstração do progesso do lugarejo, oferece ao estrangeiro um tradutor, apesar da fluência dele na língua local. Será esse tradutor, que também é o narrador da história, um dos responsáveis pela mudança gradativa da visão de mundo do italiano. De um ceticismo inicial em relação aos valores locais, Massimo terá de se adequar a um modo novo de ver as coisas, despindo-se de seus valores eurocêntricos, os quais parecem de pouca valia naquele universo mágico. "O último voo do flamingo" é uma narrativa de formação, na qual ocorre um processo de africanização do europeu, numa espécie de colonização às avessas. Ao apaixonar-se pela estranha Temporina - mulher jovem com o rosto de velha -, o italiano será capaz de compreender as coisas da terra e despir-se da racionalidade ocidental.

Mia Couto é um autor muito atento às questões políticas de seu país, e o episódio serve de pretexto para o desfile de um sem número de temas que dizem respeito à constituição atual de Moçambique e que podem pegar o leitor brasileiro mais desinformado de surpresa. A obra trabalha com questões como o respeito às tradições locais, a ingerência estrangeira em assuntos internos de uma nação, a corrupção política, a riqueza da cultura oral, dentre outros. Assim, muitos dos personagens espelham esses temas em sua constituição: Estevão Jonas, o administrador local, encarna a corrupção e o desrespeito pelas tradições locais; Sulplício, o pai do tradutor, simboliza, por sua vez, a ancestralidade e o saber da experiência muitas vezes renegado em prol da novidade e da modernização. Vale ainda dizer que toda a narrativa se passa dentro de um clima que se assemelha àquilo que se convencionou chamar de "Realismo mágico" na literatura, apesar das negativas do autor em aceitar esse rótulo. Uma viagem profunda dentro de uma cultura que guarda muito de nossas raízes.

Fontes:
Guia do Estudante (Resumo)
Guia do Estudante (Análise)

domingo, 16 de setembro de 2012

Olympio Coutinho / MG (Histórias de trova) Capítulo I - Doce pássaro da juventude

Comecei a fazer trovas muito cedo, inspirado em uma trova apresentada em sala de aula de Português e atribuída a Alexandre Dumas:

“São as rosas que florescem,
são os espinhos que picam,
mas são as rosas que caem,
são os espinhos que ficam”.


Era em Ubá, em 1958, e foi colocada no quadro negro pelo professor Francisco De Fillipo visando nos exercitar em análise sintática. A trova chamou minha atenção e resolvi tentar fazê-las. Não foi muito difícil: eu tinha 18 anos, andava apaixonado e estávamos na entrada dos que, mais tarde, seriam chamados “os anos dourados”: a ânsia pela liberdade e a gostosa sensação que ela proporciona estavam soltas no mundo – e também no Brasil. Comprei, sem qualquer referência, alguns livros de trovas, rabiscava algumas em um diário que mantinha (e que tenho até hoje - uma delícia para ler agora!) e elas foram saindo.

Ubá, no início dos anos 60, os anos dourados, era uma cidade pequena, quase todos se conheciam e o que um e outro faziam todos ficavam rapidamente sabendo. Aconteceu comigo, que fiquei conhecido como poeta e trovador. Escrevia trovas nos jornais locais: Folha do Povo e Cidade de Ubá, e, uma vez, recebi um encargo de um amigo de então e amigo até hoje: Honório Joaquim Carneiro. Nascera sua filha Helena e ele pediu-me uma trova em sua homenagem. Fiz:

“Vi a alegria nascendo
em meio aos meus desencantos,
foi quando, filha, nasceste:
Helena dos meus encantos”.


Em sua coluna na Folha do Povo, Honório publicou a trova com um exagerado título: “A Trova do Século”. De outra vez, ao ser cobrado por alguns conhecidos que pediam, ironicamente: “Ô, poeta, faz uma quadrinha aí!”, afastei-me, mas voltei logo e declamei:

“Deus me livre dos amigos,
eu peço aos Céus de mãos postas,
depois que vi que os “amigos”
falam de mim pelas costas”.


A primeira namorada também ganhou trovas de amor, mas cito uma humorística nascida ao me olhar no espelho, antes de um encontro, e perceber-me “banguela”, devido à perda na piscina de um pivô, por sinal fruto de negligência minha:

“Só porque perdi um dente
ela deixou-me na mão;
ficou o espaço vazio
na boca e no coração”.


(Um parênteses: por volta de 1980, a calvície fazendo de minha cabeça um “aeroporto de piolhos”, a trova ganhou nova versão:

“Só porque fiquei careca
ela deixou-me na mão;
sinto frio na cabeça
e também no coração.”


Mas, de volta a 1960, o romance foi desfeito e a dor de cotovelo levou-me a fazer trovas assim:

“Hoje em dia pouco resta
do nosso amor, que passou;
tristes restos de uma festa,
depois que a festa acabou”.


Depois, vieram as fofocas e as trovas mudaram de tom:

“Afirmas que recebeste
o que nunca lhe escrevi;
gostaria de reler
esta carta que não li!”.


Mas, as duas seguintes é que mais deram o que falar (lembrando que estávamos em 1960 e a cidade era mineira e do interior):

“Não tenhas, Maria, medo
se o nosso amor teve fim,
o nosso grande segredo
eu guardo só para mim”


e

“Eu tenho, Maria, medo,
que, em tuas horas vazias,
tu contes nosso segredo
às minhas outras Marias.”


Mais tarde, outra Maria entrou em minha vida, ensejando trovas mais líricas:

“Felicidade, Eleninha,
me deste a definição
ao pousar sua mãozinha
ternamente em minha mão”.


Em 1961, já mais amadurecido em relação ao “fazer trovas”, dediquei-lhe outra, que dizia assim:

“Eram alegres meus olhos
e tristes eram os teus;
por serem tristes teus olhos
ficaram tristes os meus”.


Mais tarde, em 1965, esta trova foi enviada para concorrer aos I Jogos Florais da Comunidade Lusíada, promovido pelo Elos Clube, em São Paulo, e, entre as três vencedoras, era o única de um brasileiro – os outros dois vencedores eram portugueses.

Continua…

Fonte:
O Autor

Elane Rangel / RJ (Trovas: O Pinheiro e a Gralha Azul)

Trovas enviadas pela trovadora carioca, homenageando os símbolos do Paraná.

O que mais me contagia
nos meus passeios no sul,
é ver  a  graça  e a magia
do  vôo  da  gralha-azul.

Para perpetuar a vida
da araucária na região,
voa a gralha, destemida,
carregando o seu pinhão.

O  pinheiro  simboliza
o   Estado do  Paraná;
a gralha-azul,eterniza
sua  permanência  lá.

Os pinheiros – que beleza !
quanta graça neles há ...
dão mais vida à natureza,
enriquecem  o  Paraná !

Pra conservar o pinheiro
como  um símbolo do sul,
temos que zelar, primeiro,
pela  nossa  gralha-azul.

Diz a gralha: homem, reparte
com a  terra  o  teu  pinhão !
eu  já  fiz  a  minha  parte,
eu  já  dei  o  meu  quinhão !

Com  as  reservas, precárias,
de  terras  livres  no  sul,
pra plantar, hoje, araucárias,
só  se  for  a  gralha azul !

A gralha-azul  perpetua
a vida das araucárias;
com habilidade, atua,
cultivando aquelas áreas.

Semeia a gralha, sensata,
a floresta de pinheiro,
e o homem vem e a desmata
por ambição do dinheiro!

Vem a gralha-azul e enterra
o  pinhão  no  seu  celeiro,
o  que  faz brotar  da  terra
as  florestas  de  pinheiro.

Fonte:
Trovas enviadas pela autora