domingo, 23 de dezembro de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 8


Ângelo de Sousa
(Santos/SP, 8 dezembro 1871 – São Paulo/SP, 4 outubro 1901)

" BOCA INFERNAL "

Bipartido morango, os lábios frescos
de um rubro de framboesa machucada!
Há, nessa boca fina, e delicada
curvatura de raros arabescos.

Os prazeres vivazes e grotescos
- licenciosa volúpia exagerada! -
foram todos pousar, em revoada,
nesse ninho de gozos sultanescos.

Deixem-me, pois, viver a vida amante
a beijar uma tão divina boca
toda ambrosia, feita de desejos;

e enquanto eu sonho assim, a fulgurante
boca pequena a minha prendo, louca,   
numa valsa fantástica de beijos!
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Anna Amélia
(Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça)
(Rio de Janeiro/GB, 27 agosto 1896 – Rio de Janeiro, 31 março 1971).

" MAL DE AMOR "

Toda pena de amor, por mais que doa,
no próprio amor encontra recompensa.
As lágrimas que causa a indiferença,
seca-as depressa uma palavra boa.

A mão que fere, o ferro que agrilhoa,
obstáculos não são que amor não vença.
Amor transforma em luz a treva densa.
Por um sorriso amor tudo perdoa.

Ai de quem muito amar não sendo amado,
e depois de sofrer tanta amargura,
pela mão que o feriu não for curado.

Noutra parte há de em vão buscar ventura.
Fica-lhe o coração despedaçado,
que o mal de amor só nesse amor tem cura.
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Anthero Bloem
Anthero Augusto de Albuquerque Bloem
Campinas/SP, 7 fevereiro 1878 – Rio de Janeiro/GB, 23 outubro 1919)

" CRISTO DE MARFIM "

Quando depões sabre o teu Cristo Amado,
esse Cristo que pende de teu peito,
ungido de ternura e de respeito,
um beijo de teu lábio imaculado,

eu, sacrílego, sinto-me levado
- ou seja por inveja, ou por despeito -
a arrebatar o Cristo de teu peito
e em teu peito morrer crucificado . . .

Mas, quando vejo de teu lábio crente
cair sobre o Jesus a prece ardente,
talvez por nosso amor, talvez por mim,

ardo na chama intensa dos desejos
de arrependido, sufocar meus beijos
nesse teu alvo Cristo de Marfim . . .
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Antonio Braga   
(S. João da Barra/RJ, 1898 – ?)

" CARRO DE BOIS... "

A pensar neste amor, nesta tarde cinzenta,
tão distante de ti - primavera gloriosa -
paira o meu triste olhar pela estrada poeirenta,
onde um carro de bois segue em marcha morosa.

Rola o carro a gemer nessa música lenta
que me faz recordar tanta coisa saudosa!
Velho carro de bois! O seu gemer aumenta
esta ânsia que me põe toda a alma dolorosa.

Eu invejo, afinal, esse carro gemente,
que parece ter alma e parece que sente
a tristeza do amor que palpita em nós dois...    

Coração! Coração! A saudade é infinita.
E não podes gritar como esse carro grita,
e não podes gemer qual o carro de bois! . . .
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Antonio Lôbo 
(Antônio Francisco Leal Lôbo)
(São Luiz/MA, 4 julho 1870 – São Luiz/MA, 24 junho 1916)

" IMUTÁVEL "

Decerto estranharás que nos meus versos,
nestas quadras de amor que vou rimando,
nunca o teu nome passe, perfumando
os meus pobres vocábulos dispersos.

E quedarás talvez, triste, pensando,
- os negros olhos em pesar imersos -
que os meus afetos de hoje são diversos
desses que outrora eu te contei, cantando.

E, no entanto, este amor, velado, embora,
é ainda o mesmo que ele foi outrora,
da mesma forma ainda o meu astro anima.

Que eu oculte o teu nome, nada prova,
porque estás toda, inteira, em cada trova
e vives palpitando em cada rima.
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Antonio Zoppi
(Americana/SP, 12 setembro 1923 – 16 julho 2010)

" AGRADECIMENTOS "

Hoje eu regresso à minha vida antiga,
despreocupado com o meu futuro.
E embora vendo meu presente escuro,
olho o passada e me conformo, amiga.

A vida é assim: nos dá, depois castiga...
E quando lembro aquele amor tão puro
que dediquei a um coração perjuro,
aumenta a mágoa que meu peito abriga.

Porém, não ligo, sou indiferente.
A própria dor vai ensinando a gente
a não chorar o que já se perdeu.

Pois ao contrário de ficar sentido
estou feliz, e muito agradecido,
pela saudade que você me deu...
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Apollo Martins

" ALMA CRUENTA"

Vinte e seis anos só... Tão pouca idade,
tão pouca idade e tantos desenganos...
Como me fere fundo uma saudade!
Como me causam, suas garras, danos!

Não tive infância, em minha mocidade
cercado fui de afetos desumanos
de mim, sempre fugia a alacridade,
possua a fé e a crença dos profanos!

E, como um bardo sonhador, eu sigo
sentindo que a meus ombros um castigo
muito maior que o de Jesus me pesa...

E tu, visão formosa, loura e santa,
se passares por mim – de leve, canta...
Se pensares em mim – baixinho, reza…
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Aracy Dantas de Gusmão
(Porto Alegre/RS, 26 novembro 1886 – Rio de Janeiro, ???)

" NÓS DOIS "

Tu és a força, eu a fragilidade.
Tu tens cérebro, e eu tenho coração...
A tua vida pautas na vontade,
e a minha vida toda é uma ilusão.

Tens a lei do trabalho e da igualdade,
exaltas tudo quanto é nobre e são,
e eu fiz a minha gloria da humildade
de viver sob o jugo dessa mão.

Tu tens o olhar dominador, profundo,
eu tenho o olhar mais triste que há no mundo,
cheio sempre das sombras do sol-por...

Eu e tu. . . Tão diversos! Mas, no entanto,
como é que nos queremos tanto e tanto
se eu sou tão fraca e tu tão forte, amor?

" O SHEIK "

Foste rei de uma tribo - e eu fui, de certo,
a tua predileta companheira,
aquela que, a sorrir, seguiu de perto
a tua vida nômade e altaneira.

O teu rosto moreno é um livro aberto:
- vejo os leques rendados da palmeira,
o oásis a sorrir para o deserto,
e a tenda pequenina e hospitaleira.

Teus olhos - cor da treva e do pecado -
fazem meu coração descompassado
mil romances esplêndidos sonhar...

E em teu vulto sorrindo a minha frente
vejo a Arábia, o deserto, a noite ardente,
e a glória de ser livre para amar!

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Teatro de Ontem e de Hoje (Diário de um Louco)


Adaptado do conto homônimo de Nikolai Gogol, o monólogo do funcionário público que vive a fantasia esquizofrênica do poder e da riqueza é realizado pelo Teatro do Rio, em 1964. A interpretação estilizada, entre o ridículo e o patético, marca a carreira de Rubens Corrêa. Trinta e quatro anos depois, o texto ganha nova leitura, interpretado por Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi.

O monólogo é uma adaptação do conto de Nikolai Gogol, escrito no século XIX, que antecipa a fase áurea do realismo russo. O autor constrói um funcionário público, Axenty Ivanovitch Propritchine, que é a encarnação da insignificância: sua existência pobre e solitária se mostra no pequeno quarto em que vive, sua falta de importância no emprego é pateticamente simbolizada pela função que ocupa: funcionário de apontar penas de escrever. Para escapar da pequenez de sua vida, ele cria para si um mundo de fantasias, uma nova identidade que cresce até fazer dele um rei. A segunda parte da história o coloca em um manicômio. Metáfora sobre a alienação, o texto mergulha profundamente nas causas sociais da loucura mostrando que, na cisão entre realidade e desejo, entre o mundo que se oferece para ser vivido e o mundo a que não se tem acesso, cria-se um abismo que cinde a personalidade.

A montagem de 1963 salva o Teatro do Rio de uma crise financeira que parecia irreversível. Com o teatro fechado e pagando dívidas, os sócios Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque ensaiam durante um ano e meio em tempo integral, dividindo-se entre o palco, o estudo do texto e a pesquisa da cultura russa. Embora a adaptação do texto já tivesse sido encenada na França, no Brasil eram incomuns tanto a transposição de textos literários para o palco quanto os monólogos. 

A iniciativa tem excelente repercussão e durante três anos, com intervalos para outras montagens, o espetáculo faz novas temporadas e turnês pelo país. No entanto, apesar de aplaudir a iniciativa e a qualidade da montagem, a crítica em geral se dedica mais ao elogio do texto do que à montagem - e o espetáculo não recebe nenhum prêmio. O ator Rubens Corrêa, vinte anos depois, em entrevista a Simon Khoury, considera este trabalho o melhor desempenho de sua carreira, o mais difícil tecnicamente e o que lhe exigiu maior entrega: 

"A sensação mais próxima de pronto que eu tive foi no Diário de um Louco. (...) Talvez nesse espetáculo eu tenha estreado perto do que queria, e quando acabou eu achava que estava perto também do meu objetivo. Recordo muito bem que nas últimas semanas (...) minha comunicação com o público estava tão linda, tão fácil, que comecei a querer enfeitar demais, aí me tranquei com o Ivan no teatro e comecei a limpar tudo, tirar os excessos, extirpar o supérfluo até atingir aquele grau de pureza absoluto, aquele ponto de simplificação total. Quando consegui alcançar esse ponto, ficou ótimo, e falei comigo mesmo: Rubens, agora realmente você pode parar de fazer o espetáculo, porque você não tem mais nada a declarar. (...) Nessa peça foi onde me aproximei mais das pessoas, onde cheguei mais perto delas. Penetrei em suas entranhas, fazia o que queria com o interior delas".1

Em 1997, Diogo Vilela retoma o papel, e a encenação fica a cargo de Marcus Alvisi. O diretor procura dar ao texto um tratamento leve, centrado mais na personagem do que no mundo que o esmaga. Há pinceladas de humor e a tentativa de se descolar da linguagem realista, ao mesmo tempo que se desenha o trajeto do espetáculo pela relação emotiva com a platéia. No teatro da Casa da Gávea, o público, acomodado em uma arquibancada, se encontra bem próximo à exígua área cênica. A intimidade que se cria entre o ator e a platéia é utilizada por Diogo Vilela com uma interpretação olho a olho e a projeção da interioridade do personagem.

A crítica Barbara Heliodora aplaude a realização da Casa da Gávea, recém-inaugurada e já com perfil definido, "fazendo clara opção por montagens austeras (...), vem encontrando um caminho digno de nota, no qual a qualidade tem sido a força norteadora".2 A crítica enaltece também a tradução de Luís de Lima e a dramaturgia de Roberto de Cleto. O trabalho de Diogo Vilela recompensa, segundo ela, a ida ao teatro: "Mais conhecido por suas atuações em comédia, Diogo Vilela consegue dar a gradação correta ao trajeto do personagem, numa atuação rica, variada e obviamente trabalhada com muito amor; se o seu pobre funcionário é patético e vítima de uma sociedade injusta, ele colabora para o próprio destino com suas invejas e manias, ele não é apenas um boneco na mão do destino, ele existe e é multifacetado".3

O crítico Macksen Luiz comenta os elementos do espetáculo: "A música vai um pouco de encontro com este detalhamento da cena ao sublinhar aquilo que o ator vive com economia de meios expressivos. Os dois momentos da personagem - a dissociação da realidade e o confinamento no manicômio - estão bem marcados pelo diretor, que consegue aproveitar a pausa (inclusive para a mudança do cenário) para criar um belo impacto cênico para registrar a transformação do tempo. A iluminação de Marcus Alvisi também marca com desenho detalhista as passagens de tempo, e os figurinos de Kalma Murtinho mostram um requinte de criação na precariedade da sua pobreza, enquanto o efeito cênico da camisa de força explode numa beleza melancólica no adereço da coroa de talheres".4

Notas

1. CORRÊA, Rubens. Depoimento prestado a Simon Khoury. In: ATRÁS da Máscara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. v. 2, p. 324. 

2. HELIODORA, Barbara. Arte inspirada na perturbação mental. O Globo, Rio de Janeiro, 20 set. 1997.

3. Ibid.

4. LUIZ, Macksen. A grandeza humana numa pequena jóia literária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set 1997.

Fonte:

Antonio Brás Constante (Hoje o Mundo não Acabou...)


Hoje... O mundo não acabou...

Acabaram-se, porém, as balas que estavam no tambor de uma arma, atiradas contra um corpo que jaz sem alma, cujo tempo se encerrou.

Acabou a fome da criança, esqueleto sem vida, lançada numa sarjeta esquecida, suja e encardida, que nasceu sem amor.

Acabou-se a alegria de uma mulher amada, por animais estrupada e degolada, deixada como lixo na beira da estrada.

O que acabou foi à jornada de alguns trabalhadores, presos em um ônibus em chamas por traficantes “socialmente desajustados”. Pessoas carbonizadas, símbolos da insegurança.

Hoje... O... Mundo não acabou...

Apenas jorrou sangue inocente, que entre súplicas cheias de dor, foi humilhado e espancado até que seu ultimo suspiro soltou.

Acabaram-se os sonhos de futuro, do casal jogado contra um muro, por um sujeito totalmente dopado em seu possante carro envenenado, que desgovernado lhes atropelou.

O que parou foi um coração viciado, que batia em busca de viagens e fantasias, sendo vítima de uma overdose de drogas que em si mesmo injetou.

Hoje... O... Mundo... Não acabou...

Mas tantos se acabaram, mergulhados em garrafas de líquido embriagante, jogando fora à própria felicidade e alegria em troca de copos de alcoólica bebida.

Acabou-se o brilho nos olhos do estudante, que por não ter dinheiro o fio de uma navalha a sua vida ceifou.

Hoje... O... Mundo... Não... Acabou. O sol renasceu para os sobreviventes, que perambulam por este planeta doente, e que felizmente ou infelizmente a morte ainda não libertou.

Fonte:
O Autor

Jornais e Revistas do Brasil (Diário de Minas)


Período disponível: 1866 a 1875 
Local: Ouro Preto, MG 

Lançado em 1º de junho de 1866, o Diario de Minas é considerado o primeiro jornal informativo da província de Minas Gerais, o que lhe confere lugar especial na história da imprensa mineira. O primeiro jornal desta província, de 1823, foi o Compilador Mineiro, publicação voltada para o apoio ao governo imperial. 

Jairo Faria Mendes, na tese “O Silêncio das Gerais: O nascimento tardio e a lenta consolidação dos jornais mineiros”, baseia-se na periodização da história da imprensa brasileira proposta por Nelson Werneck Sodré: Colonial (1808 a 1822) , Publicista (1823 a 1885), Informativa (1885 a 1927) e Grande Imprensa (a partir de 1927). Mendes insere a imprensa mineira nessa divisão da seguinte forma: Imprensa Colonial – fase que Minas não viveu; Imprensa Publicista – fase de interiorização da imprensa mineira e fortalecimento do publicismo; Imprensa Informativa e Literária – fase em que ocorre o surgimento de uma imprensa mineira informativa consistente; e Grande Imprensa – fase em que surge em Belo Horizonte o Diário da Manhã, considerado a primeira grande empresa jornalística do estado. 

Observa-se, assim, que o Diario da Manhã, embora considerado o primeiro jornal informativo de Minas Gerais, não inaugurou a fase chamada de Imprensa Informativa (inaugurada pelo jornal O Pharol), mas sim surgiu em uma fase que a imprensa mineira era basicamente publicista, ou seja, as notícias eram mais de interesse comercial e político, como informações sobre chegada e partida de navios nos portos, sobre guerras ou revoluções e, principalmente, com frequentes artigos escritos pelos próprios editores, que comandavam o jornal segundo suas opiniões ou dos grupos políticos a que estavam ligados. 

Considerado informativo por fugir do publicismo, o Diario de Minas trazia informações diversas, além das de caráter político e opinativo, e também empresarial. O proprietário, J. F. de Paula Castro, contou com ajuda do governo provincial, então ligado ao Partido Liberal, para comprar a tipografia onde era impresso, no Rio de Janeiro, uma vez que em Minas os prelos que existiam estavam em mau estado. Segundo Mendes,

Com os novos equipamentos foi possível fazer um jornal em um formato bem maior dos que circulavam na Província. Assim começou a circular o Diario de Minas, com quatro páginas standard diárias, que continham as seguintes sessões: a Parte Oficial (que era paga), Diário de Minas (o editorial), Exterior (notícias internacionais, que eram tiradas de jornais do Rio de Janeiro, principalmente o Jornal do Commercio), Interior (notícias locais), Noticiário (notas e informações variadas), Publicações a Pedido (textos literários, cartas, etc.), editais e Folhetim. Era comum algumas sessões ficarem de fora nas edições, assim como serem criadas outras. Também havia muitos anúncios, alguns bem trabalhados graficamente e com textos bem apelativos. Eles ocupavam de uma a duas páginas, ou seja, grande parte do jornal, e eram em sua grande maioria de produtos farmacêuticos. (...)
 Com o decorrer do tempo ganhariam mais espaço os anúncios de compra e venda, além dos de escravos fugidos. Também surgiam esporadicamente anúncios de peças teatrais, perfumes (...), cosméticos (...).
 A primeira edição do jornal dedicou dois terços da 1ª e 2ª páginas para falar de seu compromisso liberal.” (pág. 102 – 104)

Embora dedicado principalmente a informar, o jornal dependia das receitas provenientes das publicações oficiais, o que o levou a mudar a linha editorial quando o Partido Conservador assumiu a frente do governo provincial em 1868, dessa forma garantindo o recebimento de receitas advindas das publicações oficiais. Dez anos depois, no entanto, o Partido Liberal retornou ao poder e rescindiu o contrato com o Diario de Minas. 

Em boa parte por essa razão, gradualmente o jornal diminuiu sua periodicidade, deixando de ser diária, e os anúncios diminuíram. Em março de 1878, circulou o último número. A tipografia foi vendida e nela passou a ser impresso, no ano seguinte, A Província de Minas (1879 a 1889). 

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/diario-de-minas

Soares de Passos (Anelos)


Que imenso vácuo neste peito sinto!
Que arfar eterno de revolto mar!
Que ardente fogo, que jamais extinto
Somente afrouxa para mais queimar!
Ai, esta sede que meu peito rala,
Talvez a apague mundanal prazer:
Ali ao menos poderei fartá-la,
Ou num letargo sem paixões viver.

Mas dessa taça já provei... não quero!
Quero deleites que inda não senti...
A luta, os riscos dum combate fero!
Talvez encantos acharei ali.

A luta, os riscos, em acção travadas
Guerreiras hostes disputando o chão;
O sangue em jorros, o tinir d'espadas,
O fogo e o fumo do voraz canhão!
Ali os gozos dum feroz delírio,
À luz das armas, sentirei em mim,
Ou numa delas o funéreo círio
Que à paz dos mortos me conduza enfim.

Mas não, não quero sobre a terra escrava
A vis tiranos imolar o irmão...
O mar, o mar, que em sua fúria brava
Ninguém domina com servil grilhão!

O mar, o mar! sobre escarcéus revoltos
Em frágil lenho flutuar me apraz,
Ao som das vagas e dos ventos soltos,
E das centelhas ao clarão fugaz.
Ali sorrindo da feroz tormenta,
E dos abismos que me abrir aos pés,
Dentro desta alma de prazer sedenta
Sublime gozo sentirei talvez.

Mas o mar livre tem um leito ainda
Que os meus anelos poderá suster...
O espaço, o espaço! na amplidão infinda
Talvez que possa o coração encher.

O espaço, o espaço! qual ligeiro vento
Irei lançar-me nesse mar sem fim,
E a longos tragos aspirar o alento,
Sentir a vida que desejo em mim...
Ora águia altiva, desprezando o solo,
O rei dos astros buscarei então
Ora entre as neves do gelado pólo
Voarei nas asas do veloz tufão.

Mas solitário, sem cessar errante,
De que valera na amplidão correr?...
A glória, a glória, que em painel brilhante
Me of'rece a imagem dum maior prazer!

A glória, a glória! mil troféus ganhados,
Mil verdes palmas e lauréis também;
Triunfos, c'roas e sonoros brados
Da turba – é ele! – repetindo além...
Então em sonhos duma vida infinda
Verei a chama d'imortal farol,
Que eu meu sepulcro resplandeça ainda,
Bem como a lua, quando é morto o sol.

Mas não, que a inveja com a voz mentida
A luz em sombras poderá tornar...
O amor, o amor, que redobrando a vida,
A vida noutrem me fará gozar!

O amor, o amor, celestial perfume
Que a mão dos anjos sobre nós verteu,
Doce mistério que num só resume
Dois pensamentos aspirando ao céu!
O amor, o amor, não mentiroso incenso
Que em frios lábios só no mundo achei,
Mas imutável, mas sublime e imenso
Qual em meus sonhos juvenis sonhei...

O amor! só ele poderá nesta alma
Risonhas crenças outra vez gerar,
De minha sede mitigar a calma,
E inda fazer-me reviver, e amar.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Machado de Assis (Álvares de Azevedo: Lira dos Vinte Anos)


QUANDO, há cerca de dois ou três meses, tratamos das Vozes da América do Sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem às obras de outro acadêmico, morto aos vinte anos, o Sr. Álvares de Azevedo. Então, referindo os efeitos do mal byrônico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto:

Um poeta houve, que, apesar da sua extrema originalidade, não deixou de receber esta influência a que aludimos; foi Álvares de Azevedo. Nele, porém, havia uma certa razão de consangüinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver-se o seu robustíssimo talento.

A estas palavras acrescentávamos que o autor da Lira dos Vinte Anos exercera uma parte de influência nas imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não era então desconhecido às inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães já tinham trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste ceticismo de segunda edição. Cremos que este mal já está atenuado, se não extinto.

Álvares de Azevedo era realmente um grande talento: só lhe faltou o tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impressão da juventude, Alvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade. Compare-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se-á que seiva poderosa não existia, naquela organização rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a íntima convivência de alguns grandes poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos, uma poderosa impressão naquele espírito, aliás tão original. Não tiramos disso nenhuma censura; essa convivência, que não poderia destruir o caráter da sua individualidade poética, ser-lhe-ia de muito proveito, e não pouco contribuiria para a formação definitiva de um talento tão real.

Cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos Vinte Anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horário, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de unia página  de versos. Amava Shakespeare, e daí vem que nunca perdoou a tosquia que lhe fez Ducis. Em torno desses dois gênios, Shakespeare e Byron, juntavam-se outros, sem esquecer Musset, com quem Azevedo tinha mais de um ponto de contacto. De cada um desses caíram reflexos e raios nas obras de Azevedo. Os "Boêmios" e "O Poema de Frade", um fragmento acabado, e um borrão, por emendar, explicarão melhor este Pensamento.

Mas esta predileção, por mais definida que seja, não traçava para ele um limite literário, o que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginação, impressível a todos os contactos, acabaria por definir-se positivamente.

Nesses arroubos da fantasia, nessas correrias da imaginação, não se revelava somente um verdadeiro talento; sentia-se uma verdadeira sensibilidade. A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos Vinte Anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica. uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os belos versos que deixou impressionam profundamente; "Virgem Morta", "À Minha Mãe", "Saudades", são completas neste gênero. Qualquer que fosse a situação daquele espírito, não há dúvida nenhuma que a expressão desses versos é sincera e real. O pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como um eco interior, menos um desejo que uma profecia. Que poesia e que sentimento nessas melancólicas estrofes!

Não é difícil ver que o tom dominante de uma grande parte dos versos ligava-se a circunstâncias de que ele conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma existência poética, inteiramente conforme à índole dos seus poetas queridos. Este afã dolorido, expressão dele, completava-se com esse pressentimento de morte próxima, e enublava-lhe o espírito, para bem da poesia que lhe deve mais de uma elegia comovente. 

Como poeta humorístico, Azevedo ocupa um lugar muito distinto. A viveza, a originalidade, o chiste, o humour dos versos deste gênero são notáveis. Nos "Boêmios", se pusermos de parte o assunto e a forma, acha-se em Azevedo um Pouco daquela versificação de Dinis, não na admirável cantata de Dido, mas no gracioso poema do Hissope. Azevedo metrificava às vezes mal, tem versos incorretos, que havia de emendar sem dúvida; mas em geral tinha um verso cheio de harmonia, e naturalidade, muitas vezes numeroso, muitíssimas eloqüente.

Ensaiou-se na prosa, e escreveu muito; mas a sua prosa não é igual ao seu verso. Era freqüentemente difuso e confuso; faltava-lhe precisão e concisão. Tinha os defeitos próprios das estréias, mesmo brilhantes como eram as dele. Procurava a abundância e caía no excesso. A idéia lutava-lhe com a pena, e a erudição dominava a reflexão. Mas se não era tão prosador como poeta, pode-se afirmar, pelo que deixou ver e entrever, quanto se devia esperar dele, alguns anos mais.

O que deixamos dito de Azevedo podia ser desenvolvimento em muitas páginas, mas resume completamente o nosso pensamento. Em tão curta idade, o poeta da Lira dos Vinte Anos deixou documentos valiosíssimos de um talento robusto e de uma imaginação vigorosa. Avalie-se por aí o que viria a ser quando tivesse desenvolvido todos os seus recursos. Diz-nos ele que sonhava, para o teatro, uma reunião de Shakespeare, Calderon e Eurípedes, como necessária à reforma do gosto da arte. Um consórcio de elementos diversos, revestindo a própria individualidade, tal era a expressão de seu talento.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Elias José (A Morada do Inventor)


A professora pedia e a gente levava,
achando loucura ou monte de lixo:
latas vazias de bebidas, caixas de fósforo,
pedaços de papel de embrulho, fitas,
brinquedos quebrados, xícaras sem asa,
recortes e bichos, pessoas, luas e estrelas,
revistas e jornais lidos, retalhos de tecido,
rendas, linhas, penas de aves, cascas de ovo, 
pedaços de madeira, de ferro ou de plástico.
Um dia, a professora deu a partida
e transformamos, colamos e colorimos.
E surgiram bonecos esquisitos, 
bichos de outros planetas, bruxas 
e coisas malucas que Deus não inventou.
Tudo o que nascia ganhava nome, pais,
casa, amigos, parentes e país.
E nasceram histórias de rir ou de arrepiar!…
E a escola virou morada de inventor! 

Fonte:
Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 765)



Uma Trova de Ademar  

Deus, demonstrando poder, 
quando a mulher engravida, 
transforma a dor em prazer 
na celebração da vida!
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Liberdade sem porteiras
está nas rimas que oferto,
versos cruzando as fronteiras
das pautas de um livro aberto.
–Egiselda Charão/RS– 

Uma Trova Potiguar  

A ciência, sem suspeita, 
será no mundo aplaudida 
se a clonagem só for feita 
em benefício da vida. 
–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   PASSAGEM   -   2º Lugar 

Aprendi desde menino
que a vida é livro de escolhas,
e a mão firme do destino
faz a passagem das folhas!
–Adilson Maia/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

No livro azul do infinito,
as letras feitas de estrelas...
Só o autor do manuscrito
entende e faz entendê-las...
–Aloísio Alves da Costa/CE– 

U m a P o e s i a  

Eu nunca tive ambição 
por nada que tem no mundo, 
guardo no meu coração 
um amor puro e profundo; 
com muita sabedoria 
eu disse numa poesia 
com o maior desempenho: 
da vida nada reclamo... 
Não tenho tudo que Amo 
mas Amo tudo que tenho! 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

O CORAÇÃO 
–Cruz e Sousa/SC– 

O coração é a sagrada pira
onde o mistério do sentir flameja.
A vida da emoção ele a deseja
como a harmonia as cordas de uma lira.

Um anjo meigo e cândido suspira
no coração e o purifica e beija...
E o que ele, o coração, aspira, almeja
é sonho que de lágrimas delira.

É sempre sonho e também é piedade,
doçura, compaixão e suavidade
e graça e bem, misericórdia pura.

Uma harmonia que dos anjos desce.
que como estrela e flor e som floresce
maravilhando toda a criatura!

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 27 de maio: Como se escreve sem tinta


Desculpai-me!

Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais interessantes de minha vida de escritor.

Aposto que nunca viste escrever sem tinta!

Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é possível no século atual, no século do progresso.

Eis o caso.

Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí mesmo dispunha-me a escrever a minha revista.

Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o que tem a dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando...

Talvez não acrediteis.

Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e saiu intata e pura. Não trazia nem uma nulidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi debalde.

O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um passo, creio que temperou a garganta, e pediu a palavra.

Estava perdido!

Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco e seis horas. Que elementos para não trabalhar!

Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução pronta e imediata.

Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois empregados, que assim se esqueciam dos seus deveres.

O meio era bom, e surtiu o desejado efeito como sempre.

Entramos em explicações; e no fim de contas soube a causa dessa dissidência.

A pena se tinha declarado em oposição aberta; o tinteiro era ministerial quand même. E ambos tão decididos nas suas opiniões, que não havia meio de faze-los voltar atrás.

Era impossível, pois, evitar uma discussão; resignei-me a ouvir os prós e os contras deste meu pequeno parlamento.

A pena do meu amigo fez um discurso muito desconchavado, a falar a verdade. Por mais que lho tenha dito, não quer acreditar que a oratória não é o seu forte; tirando-a da mesa e do papel não vai nada.

Enquanto, porém, ela falava, o tinteiro voltava-lhe as costas de uma maneira desdenhosa, o que não achei bonito. Estive quase chamando-o à ordem; mas não me animei.

Chegou finalmente a vez de falar ele, e defendeu-se dizendo que todas as penas faziam  oposição aos tinteiros logo que estes lhes recusaram o elemento para trabalhar, e se não lhe davam a tinta necessária para escrever, sem a qual ficavam a seco. 

- C’est trop fort! Gritou a pena do meu amigo, que gosta de falar em francês. Quebro os meus bicos antes do que receber uma só gota de tinta em semelhante tinteiro.

E, se o disse, melhor o fez. Não houve forças que a fizessem molhar os bicos no tinteiro e escrever uma só palavra com aquela tinta.

Atirei-a de lado, abri a gaveta, e tomei um maço de penas que aí havia de reserva.

Mesma coisa: todas elas tinham ouvido, todas se julgavam comprometidas a sustentar a dignidade de sua classe.

Por fim, perdi a paciência, zanguei-me, e, como já era mais de meio-dia, larguei-me a toda pressa para a casa, a fim de escrever alguma coisa que pudesse fazer as vezes de um folhetim.

Mas uma nova decepção me esperava.

A minha pena, de ordinário tão alegre e tão travessa, a minha pena, que é sempre a primeira a lançar-se ao meu encontro, a sorri-me a dar-me os bons dias, estava toda amuada, e quase escondidas entre um maço de papéis. 

Quanto ao meu tinteiro, o mais pacato e o mais prudente dos tinteiros do mundo, este tinha um certo ar político, um desplante de chefe de maioria, que me gelou de espanto.

Alguma coisa se tinha passado na minha ausência, algum fato desconhecido que viera perturbar a harmonia e a feliz inteligência que existia entre amigos de tanto tempo.

Ora, é preciso que saibam que há completa disparidade entre esses dois companheiros fiéis das minhas vigílias e dos meus trabalhos.

O meu tinteiro é gordo e barrigudo como um capitão-mor de província. A minha pena é esbelta e delicada como uma mocinha de quinze anos.

Um é sisudo, merencóreo e tristonho; a outra é descuidosa, alegre, e às vezes tão travessa que me vejo obrigado a ralhar com ela para faze-la ter modo.

Entretanto, apesar desta diferença de gênios, combinavam-se e viviam perfeitamente. Tinha-os unido o ano passado, e a lua de mel ainda durava. Eram o exemplo dos bem casados.

Façam, portanto, idéia do meu desapontamento quando comecei a perceber que havia entre eles o que quer que fosse.

Era nada menos do que a repetição da primeira cena.

Felizmente não veio acompanhada de discussões parlamentares, mesmo porque na minha mesa de escrever não admito o sistema constitucional.

É o governo absoluto puro. Algumas vezes concedo o direito de petição; no mais, é justiça a Salomão, pronta e imediata. 

A minha pena, como as penas do meu amigo, como todas as penas de brio e pundonor, tinha declarado guerra aos tinteiros do mundo.

Não havia, pois, que hesitar.

Lembrei-me que ela me tinha sido confiada há coisa de nove meses pura e cândida, e que assim a devia restituir.
Lembrei-me de muitas outras coisas, e tomei uma resolução inabalável.

Atirei o meu tinteiro pela janela fora.

A pena saltou, de tão alegre e contentinha que ficou. Fez-me mil carícias, sorriu, coqueteou, e por fim, fazendo-me um gestozinho de Charton no Barbeiro de Sevilha, um gestozinho que me mandava esperar, lançou-se sobre o papel e começou a correr.

Escrevia sem tinta.

Quero dizer, desenhava; esgrafiava sobre o papel quadros e cenas que eu me recordava ter visto há pouco tempo; debuxava flores, céus, estrelas, nuvens, sorrisos de mulheres, formas de anjos, tudo de envolta e no meio de uma confusão graciosa.

E eu nem me lembrei mais de escrever, e fiquei horas esquecidas a olhar esses quadros, que decerto não conseguirei pintar-vos.

Recordo-me de um.

Passava-se na segunda-feira, na baia de Botafogo.

A uma hora o tempo fez umas caretas, como para meter susto aos medrosos.

Daí a alguns momentos o sol brilhou, o azul do céu iluminou-se, e uma brisa ligeira correu com os vapores do temporal que ainda toldavam a atmosfera.

Uma bela tarde desceu do seio das nuvens, pura, fresca e suave como uma odalisca, que, roçando as alvas roupagens de seu leito, resvala do seu divã de veludo sobre o macio tapete da Pérsia.

Era realmente uma odalisca, ou antes uma moreninha de nossa terra. Seu hábito perfumado se exalava na aragem que passava; os seus olhos brilhavam nos raios do sol; sua tez morena se refletia na opala dourada que coloria o horizonte.

Tudo sorria, tudo enamorava. As nuvenzinhas brancas que corriam no azul do céu, o vento a brincar com as fitas de um elegante toilette, uma réstia de sol que vinha beijar uma face que enrubescia ao seu contato, tudo isto encantava.

Apenas o mar, como um leão selvagem, eriçava a juba, estorcia-se furioso, e arrojava-se bramindo sobre as areias da praia.

Isto, em bom português, quer dizer que havia uma ressaca insuportável. Mas é necessário recorrer de vez em quando às imagens poéticas, e seguir os preceitos da arte; e foi por isso que dei ao mar a honra de compara-lo a um leão selvagem e indômito.

Na minha opinião, ele não passa de um sujeito muito malcriado, que, apesar de tanta moça bonita que se incomodou para ir vê-lo, pôs-se a fazer bravatas, como se alguém cá da terra tivesse medo dele.

Por isso, os barquinhos zombavam dos seus rompantes e brincavam sobre as ondas, e corriam tão ligeiros, tão graciosos, que era um gosto vê-los saltando nos cimos das vagas, e inclinando-se docemente com o fluxo da ressaca.

Às três horas e meia ouviu-se um tiro de peça e começou o páreo, que durou até cinco horas da tarde. Apesar de todos os contratempos que sobrevieram, havia um prazer e uma animação geral.

Todos os convidados se achavam reunidos no primeiro pavimento da casa do Sr. Teixeira Leite; e aí foi servido um excelente toast que a sociedade fizera preparar.

Sans pain et sans vin, l’amour n’est rien, diz Brillat Savarin, que é autoridade na matéria. Portanto não é de admirar que, depois do toast, todos os rostos se animassem, o sorriso se expandisse nos lábios, e a galanteria se tornasse mais amável e afetuosa.

Enquanto lançava um olhar sobre essas mesas carregadas de flores e de manjares, cercadas de tantas moças bonitas e de talhes tão delicados e tão mimosos, enquanto o Champanha espumava e as luzes cintilavam, fazendo brilhar o rubi líquido que tremia nos copos de cristal, vieram-me umas reflexões de filosofia gastronômica ou de gastronomia filosófica (como quiserem), que me envergonharam.

A minha poesia, a pouca que tenho, aproveitou o primeiro olhar que passou e foi refugiar-se nuns belos olhos que ela conhece, até que passassem as reflexões humorísticas que faziam trabalhar o meu espírito.

E ela tinha razão.

Numa mesa de jantar, a menos que não se tenha perdido a razão, declaro impossível a menor dose de poesia.

Neste lugar tudo se nivela, tudo se iguala. O rei e o mendigo, o rico e o pobre, a moça bonita e a mulher feia, todos têm fome.

Vedes aquela mulher bela e elegante; tem o corpinho tão mimoso, a cintura tão delicada, que julgais alimentar-se de perfumes e de essências do Oriente.

Admirai-lhe os olhos grandes que parecem refletir uma luz divina, os lábios feitos para o sorriso, a cercadura de pérola que ornam a sua boquinha, e que um beijo não ousaria profanar.

É uma flor, uma estrela, um anjo cercado de luz, que vive no meio de uma auréola celeste, uma fada que habita o palácio encantado de vossa imaginação.

Pois bem, chegai-vos a uma mesa bem servida, e olhai a vossa estrela, o anjo dos vossos sonhos.

Os dentes não são mais pérolas, porque mastigam como os vossos e como os de qualquer; os lábios rosados não sorriem, saboreiam tão bem uma iguaria como os de um consumado gastrônomo.

E daí a um momento, quando no meio do cheiro das iguarias e das fumaças do vinho, esta mulher vos disser que jantou bem, se ainda tiverdes um átomo de poesia na vossa alma, podeis gabar-vos de ser o maior poeta do mundo.

E assim como a mulher é tudo o mais.

O estadista profundo, que gasta a sua vida a resolver os grandes problemas sociais e políticos, que joga com as massas e com as nações, como um menino com a sua péla, senta-se à mesa e esgrime-se contra uma asa de peru, da mesma maneira que um estudante esfaimado no dia de um enterro de ossos.

A religião, a ciência, a glória, o amor, a arte, todas essas coisas grandes e sublimes do mundo, tudo num momento dado some-se pelo fundo de um prato, ou pelas bordas de um copo de vinho.

Deixemo-nos, pois, dessas veleidades, desses orgulhos todos e sem fundamento. Todos temos as mesmas misérias, todos saímos do pó, e um dia a ele tornaremos.

Bem razão tinhas tu, meu Brillat Savarin, quando dizias que a cozinha é a primeira e a única ciência deste mundo; e que os homens só se distinguem dos animais, porque estes comem, e nós saboreamos. 

Quantas da minha leitoras não terão amarrotado estas páginas e condenado o meu folhetim como a pior das revistas passadas, presentes e futuras?

Entretanto não têm razão; porque, apesar de todas estas reflexões que me assaltavam, tive bastante força de imaginação para não descer do mundo da idealidade.

Quando via um rostinho bonito inclinado sobre a mesa, chamava em meu socorro todas as comparações dos poetas antigos e modernos, e assim conseguia salvar as minhas ilusões.

Então não era uma mulher que via a comer, era uma flor que absorvia os raios de luz e as gotas de orvalho da manhã, era uma falena que libava o mel e o perfume das flores.

E tanto  que, depois dessa hora de tortura, tive de acrescentar uma máxima aos aforismos tão conhecidos da Phisiologie du Gout: “O melhor meio de experimentar o amor que se tem a uma mulher é vê-la comer” 

É preciso, porém, que advirtam numa coisa, e é que não falo de um jantar a dois, de uma mesa à qual nos sentamos ao lado ou mesmo defronte de uma bela moça.

Não: isto é a quinta essência da poesia.

O que disse referia-se à posição crítica de um sujeito que está morrendo de fome, e que se acha condenado ao suplício de ver comer uma bela mulher: é esse caso especialíssimo que eu digo que o homem que é capaz de conservar as suas ilusões tem uma imaginação que eu respeito.

Voltemos à regata.

À noite improvisou-se um sarau nos salões do Sr. Leite, e todas as pessoas que se achavam na reunião da sociedade foram convidadas e instadas para subirem.

Havia moças, música e flores, esta trindade mística do prazer, e por conseguinte a festa foi soberba; completou-a a afabilidade dos hóspedes e a amabilidade com que todos eram recebidos.

Dançou-se, conversou-se, brincou-se, e às onze horas cada um retirou-se com a alma cheia das agradáveis impressões do dia.

Eu fui ler umas páginas de romance escritas na Revista dos Dois Mundos de 1º de março por...

Adivinhem por quem, senhores ministros presentes e futuros?

Por Guizot.

O grande estadista, o político profundo ainda se julga feliz em poder, depois dos reveses da fortuna, voltar à imprensa e entreter-se com a sua pena a traçar algumas cenas dramáticas e uma história simples do coração humano.

Entretanto no nosso país se diz que a imprensa é venal e corrompida, e se trata de desacreditar essa força civilizadora da sociedade.

Mas que importa?

Porque o homem num momento de humor se revolta contra a chuva, e desespera de apanhar sol, nem por isso os outros deixam de continuar o seu giro, e as estações de seguirem o seu curso regular.

Assim é a imprensa.

Obscura invenção de Gutenberg, simples maquinismo para escrever algumas palavras com pequenas formas de pau, cresceu, desenvolveu-se, foi-se estendendo por toda terra, e hoje está destinada a dominar o mundo, como a maior criação do homem.

Nela se concentram os dois mais poderosos elementos da civilização, os dois grandes agentes que fazem mover o mundo: a inteligência e o vapor.

Que poderá resistir a essa combinação do pensamento com a força, a essa união da palavra com a rapidez?

Tempo virá em que do obscuro gabinete do escritor a pena governará o mundo, como a espada de Napoleão da sua barraca de campanha.

Uma palavra que cair do bico da pena, daí a uma hora correrá o universo por uma rede imensa de caminhos de ferro e de barcos de vapor, falando por milhões de bocas, reproduzindo-se infinitamente como as folhas de uma grande árvore.

Esta árvore é a liberdade; a liberdade de imprensa, que há de existir sempre, porque é a liberdade do pensamento e da consciência, sem a qual o homem não existe; porque é o direito de queixa e defesa, que não se pode recusar a ninguém.

Mas esta bela idéia me levaria muito longe, tenho tanta coisa pequena de que falar, que não sei como me poderei sair desta dificuldade.

O melhor é cortar o nó górdio com a espada de Alexandre, e não falar de mais coisa alguma.

Sirva, pois, a pena de espada, e façamos ponto final.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.