sexta-feira, 15 de março de 2013

Império Serrano (Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna)

Compositores
    Aluizio Machado, Maurição, Carlos Sena, Lula e Elmo Caetano

Sol Inclemente
Vai Além da Imaginação
Sopro ardente árida terra
Desse poeta cantador
Sede de vida gente sofrida
Salve o Lanceiro e Guerreiro do amor

Cabra macho firmeza, que emoção
Liberdade, esperança, ressureição
A bondade e a maldade no coração
Amor, verdade eu encontro neste chão

Vem que tem

Tem azul tem encarnado tem
Numa comunhão de fé
Lança em punho ao som da luta
Desse sonho contra a dor
Resgatando o passado
Desse povo vencedor
Esses reis tão sertanejos
Descendentes de valor
E a cavalgada parte
Lá de Belmonte
Prá serra do Catolé
Tão linda minha corte sertaneja
Marco forte altaneira do sertão
Buscando na justiça a igualdade
Empunhando a bandeira da coroação

Hoje o império é a voz da razão
Onde reina a paz e a união
E é muito mais que uma paixão
Sou imperador lá do sertão

José Nêumanne (A volta de Quaderna, o Quixote da caatinga)

(Nêumane, Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.)
Pode até ter sido mera coincidência o escritor paraibano radicado em Recife Ariano Suassuna haver permitido, após um longo hiato de 31 anos a reedição de sua obra-prima em prosa de ficção, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, neste mesmo ano em que se comemoram os 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, a primeira novela da história da literatura mundial. Mas a verdade é que há muito mais coincidências entre a saga do cavaleiro andante e a do poeta-palhaço sertanejo que a primeira letra de seus nomes – Quixote e Quaderna.

Na nova e caprichada edição com que a José Olympio está substituindo agora, tendo afinal obtido a autorização do renitente autor, a velha, já ensebada e rara última edição ainda dos anos 70 do século passado, foi incluído o posfácio do grande escritor pernambucano infelizmente muito pouco conhecido no Sudeste Maximiano Campos (1941-1998). Em seu texto, esse expoente da Geração de 65 deu aquela que talvez seja a melhor definição do protagonista do romance: "Quaderna é um misto de Quixote e Sancho, com predominância de Quixote". Mas as semelhanças entre as duas obras não se limitam à inicial dos nomes de seus protagonistas. Assim como Cervantes glosou os romances de cavalaria na moda em seu tempo, Suassuna trabalha sua literatura no riquíssimo acervo da poesia de bancada das feiras nordestinas com conhecimento de causa e estro de poeta.

Nas veredas de Cervantes - Da mesma forma como Quixote, Quaderna é trágico e cômico, épico e picaresco. Aliás, da mesma forma como o cavaleiro da triste figura e como inúmeros heróis dos romances de cordel que ele cita ao longo do caudal de prosa poética em que o herói é criado e recriado e se mostra malcriado. Costuma-se comparar a prosa ao mesmo tempo clássica (de um classicismo de romance europeu, do qual também estão embebidos os folhetos de feira) e bárbara dessa obra-prima a dois outros momentos capitais da ficção em português das Américas: Os sertões, de Euclydes da Cunha (com ípsilon, como gosta de grafar Suassuna), e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Há com esses outros livros, sim, seminais semelhanças de porte, mas parentesco estilístico pode ser que haja mais com o primeiro que com o segundo. Como o registro da queda de Canudos, o percurso de Quaderna pelo sertão real e por seu universo de fantasia, susto e sombra se insere nas veredas, abertas por Cervantes e mapeadas por Jorge Luís Borges, da novela enciclopédica, não tanto na trilha "joyciana", preferida por Rosa nos sertões das Gerais: a da submissão da narrativa à lingüística.

Na prosa de Rosa em geral – e no "romance riverrão" em particular -, o autor pesquisa o miolo da palavra, partindo da raiz, mas buscando a universalidade em doses de erudição de laboratório. Essa foi a trilha perseguida por James Joyce na elaboração de Finnegans Wake, obra quase intraduzível em outras línguas precisamente por não pertencer apenas à original. Suassuna – mais até que em Euclydes e mesmo que em Borges, citados acima como expoentes da prosa enciclopédica – faz o trajeto oposto, partindo do ar para o substrato da língua, como o fizeram os colegas japonês Dogen Zenji (1220-1253), argentino Bartolomé Hidalgo (1788-1822), peruano César Vallejo (1892-1938) e chilenos Vicente Huidobro (1893-1948) e Pablo Neruda (1904-1973). Todos esses escritores, citados em brilhante ensaio do escritor argentino Juan José Saer, preferiram lidar com sua "língua materna" a fazê-lo com a "língua nacional". Assim como o mestre zen-budista Zenji impregnou-se de cultura chinesa, mas escreveu seus 95 sermões no próprio e tosco japonês, o irlandês (como Joyce) W. B. Yeats (1865-1939) elogiava o gaélico como língua de sua grei, mas escrevia sua poesia genial no idioma que aprendeu da mãe na infância, o inglês, e o florentino Dante Alighieri (1265-1321) inventou a poesia ocidental no grosseiro dialeto toscano, preterindo o latim que dominava muito bem, Suassuna recorreu ao ritmo, à graça e à picardia da língua que sorveu nas conversas íntimas da família, em funções de repentistas e nos romances de amor, aventura e presepadas dos heróis da cultura sebastianista medieval ibérica transportada para o sertão de origem de seu herói e pai, João Suassuna.

Colcha de retalhos - Na orelha da nova edição, Bráulio Tavares, poeta também paraibano, resumiu a escritura da obra-prima do mestre da literatura, antes consagrado e popularizado no teatro, de forma exemplar: "O Romance d’A Pedra do Reino é um livro onde o autor parece decidido a aproveitar-se de todas as liberdades concedidas hoje em dia ao gênero ‘romance’, como desaguadouro de elementos vindos da novela, do conto, do poema, do folheto de cordel, do monólogo dramático, do diálogo filosófico, da crônica de época, do memorialismo." Isso resultou, em sua opinião, numa "colcha de retalhos onde a prosa profética convive com o trocadilho, a iluminação mística é contrabalançada pelo versinho fescenino e longas citações de obras históricas são ilustradas por desenhos que lembram os ‘rébus’ ou enigmas figurados dos almanaques dos charadistas."

Ao mesmo Bráulio Tavares coube posfaciar outra obra-prima do autor, esta no teatro, O auto da Compadecida, relançada em edição comemorativa (revista pelo autor) dos 50 anos da peça pela Agir, com ilustrações não do autor (como no caso do romance), mas do filho Manuel Dantas Suassuna, além de outros textos do poeta Carlos Newton Júnior e do romancista Raimundo Carrero, ambos seguidores de Suassuna em seu Movimento Armorial, do qual o exemplo mais completo e perfeito em literatura é o Romance d’A Pedra do Reino. No posfácio Bráulio reproduziu uma anedota que o próprio Suassuna adora repetir em suas divertidíssimas aulas-espetáculo – a do crítico que lhe perguntou o que, afinal, era dele naquela peça que, conforme o próprio autor reconhecia, tinha o primeiro ato baseado no folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, o segundo inspirado no romance O Cavalo que defecava dinheiro e o terceiro em O castigo da soberba, todos compilados por Leonardo Mota em seu clássico Violeiros do Norte, cuja primeira edição data de 1925. "Oxente, eu escrevi foi a peça", respondeu-lhe o dramaturgo.

O "gênio" e o "quengo" - Se Quaderna, entre artimanhas, palhaçadas e quetais, revela seu projeto de se tornar o "gênio da raça brasileira", João Grilo, o "amarelo" do cordel tornado protagonista da peça que fez enorme sucesso no palco e, adaptada para a televisão e para o cinema, tem assegurado farto lucro para seus produtores, pode ser apontado como o protótipo do "quengo" (sinônimo de cérebro e, por extensão, de quem saiba usá-lo): o tipo covarde e desnutrido que consegue sobreviver a golpes de esperteza com os quais supera a truculência dos donos do poder no sertão sem lei.

E, por fim, para quem quiser conhecer o processo racional do qual são extraídas a prosa, a poesia e o teatro do morador do Poço da Panela a José Olympio também reeditou o livro no qual ele reuniu seus ensinamentos do curso que deu sobre Estética na Universidade Federal de Pernambuco: Iniciação à Estética. Nele trouxe para seus alunos e, depois, para seus leitores diversas visões - de Platão e Aristóteles aos escolásticos e a Kant, de Kant a Hegel e a Bérgson, entre outros pensadores - na linguagem clara, concisa e saborosa que domina como poucos. E reconhece sem disfarces sua adesão à escola da Estética filosófica pelo mesmo motivo com que colando cacos da literatura popular das feiras livres amalgama a cerâmica sofisticada de sua obra literária variada: "é a mais aberta de todas e incorpora ao estudo do campo estético as contribuições trazidas por todas as outras."

Fonte:
http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/jneumanne/jn0017.htm

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 2

Pegadinha 4
Gostaria de colocar minha opinião.

Opiniões não se colocam, se expõem ou se dão. Há também quem gosta de, ao final de um discurso, fazer uma colocação em vez de fazer uma exposição, que é muito mais coerente e elegante. O correto seria escrever:

Gostaria de expor minha opinião.

ou

Gostaria de dar minha opinião.
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Pegadinha 5

Vou explicar nos mínimos detalhes.

Veja como, às vezes, o excesso atrapalha.

Há expressões, em nossa língua, classificadas como pleonasmos viciosos, que revelam a precariedade linguística de quem os escreve ou assim fala. Nesta dica de português, estamos diante de uma dessas excrescências. Pleonasmo é a repetição de palavras ou expressões de mesmo sentido. A expressão viciosa "nos mínimos detalhes" equivale a aberrações como "subir pra cima", descer pra baixo, chutar com os pés etc. Em detalhe já está contida a ideia de mínimo. Detalhe significa pormenor, minúcia, no mínimo. Se se pretendesse fazer a explicação em suas mínimas partes, seria suficiente fazê-la em detalhes, ou em seus pormenores, ou ainda em minúcias. Então escrevamos corretamente:

Vou explicar em detalhes.

– ou –

Vou explicar detalhadamente.
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Pegadinha 6

Inglaterra confirma invasão ao Iraque.

Jamais poderá ocorrer invasão a lugar algum. Porém, o que é possível acontecer é invasão de algum lugar. Escreve-se com correção, assim:

Inglaterra confirma invasão do Iraque.

Veja, a seguir, outros exemplos corretamente escritos:

Invasão de privacidade.

Invasão de domicílio.

A invasão do estádio pela polícia deu-se às 20 horas de ontem.
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Pegadinha 7

O acidente aconteceu porque o motorista dormiu no volante.

Para que alguém consiga dormir no volante, é necessário que este seja, no mínimo, do tamanho de uma cama. Convenhamos, volantes desse tamanho ainda não foram fabricados. Então, melhor seria dormir no banco do automóvel ou, mais adequadamente, em uma cama com mais conforto. Quem dorme bem, dorme em algum lugar. Já "dormir próximo" ou "junto" significa dormir a (preposição) com o respectivo artigo (o ou a). O correto seria escrever:

O acidente aconteceu porque o motorista dormiu ao volante.

A seguir, outros exemplos de frases corretamente grafadas:

A moça dormiu ao computador.

O marinheiro dormiu ao timão.

Romeu dormia à janela de Julieta.
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Pegadinha 8

Marcos é um parasita da mulher.

Parasita, com a final, é denominação exclusiva de certas plantas. Para pessoas e animais, usa-se parasito. O correto seria escrever:

Marcos é um parasito da mulher.

Eis outros exemplos de frases corretamente grafadas:

Raquel age como um parasito da mãe.

Há sujeitos que são autênticos parasitos da sociedade.

A pulga é um parasito, como também o é o carrapato.

Precisamos exterminar as parasitas que estão nessa árvore.

As parasitas debilitaram nosso pomar.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte IX – O Inquérito

Mal chegado de São Paulo, depois daquele sucesso imprevisto da Independência, que abreviara a viagem de d. Pedro, o Satanás tratou de averiguar ocaso misterioso da rua do Conde.

Remordia-o principalmente o remorso no relativo à Branca e ao abandono em que a deixara. Nem mesmo podia compreender como ele, o homem impassível e calmo, já afeito às vicissitudes da sorte e bem afamado pela imperturbável presença de espírito, que conservava durante os transes mais arriscados da vida, se tinha tornado quase doudo, irrefletido e imprevidente.

A nada concluíam entretanto as suas primeiras pesquisas. Lá, na rua do Conde, a casa de Branca conservava-se impenetrável e quieta, com essa lúgubre fisionomia dos prédios misteriosos que foram o teatro de um crime. E, pela vizinhança, diziam-na apenas mal-assombrada, percorrida durante a noite por fantasmas alvadios de almas penadas, que vinham gemer a sua dor na encenação espetral das crendices populares.

Ninguém sabia de mais nada, e ninguém conseguira esbater luz sobre a treva apavorante daquele crime.

Mistério, mistério!

De Branca nem se ouvia falar. Talvez que ela tivesse remontado para o céu na compostura angelical de suas purezas.

E o Satanás debatia-se, cego e louco, apaixonado e fúnebre, na grande noite das idéias. Lembrou-se, entretanto, de d. Bias. Fora ele quem viera chamá-lo à bodega do Trancoso. E o magro fidalgo das Espanhas bem devia conhecer alguma cousa desse drama sanguinolento e inexplicável. Se ele nada pudesse dizer sobre a sorte de Branca, relataria pelo menos o princípio dessa luta a que assistira, e que prostrara em terra o cadáver de Paulo de Andrade.

E o Satanás dirigiu-se para a tasca da rua do Piolho.

D. Bias lá estava.

Ninguém lhe dissera sobre a chegada do príncipe e sua comitiva. E ele supunha-se muito seguro, longe da espada de Pallingrini.

Ria a bom folgar.

A Domitila, recusando-se embora a pagar-lhe imediatamente os mil cruzados prometidos, recheava-lhe a bolsa, de constante, e permitia-lhe algumas diabruras, que o arredassem por momento da vigilância sobre a prisão de Branca.

E d. Bias fazia-se agora de pagador, e falava alto e fanfarronava à vontade entre aquela gente que lhe ia escorropichando os pichéis.

Fez-se branco, pois, trêmulo como um esqueleto de museu agitado pelo vento, quando o Satanás bateu-lhe ao ombro fortemente.

Mas recuperou logo a presença de espírito. Estava diante do inimigo. E se lhe faltava a coragem de desembainhar a nunca desembainhada durindana, compreendia a necessidade de esgrimir a mentira - a única arma que ele sabia manejar.

- Bem hajas pelo teu regresso! disse. Tu desapareceste de repente, e eu tinha, entretanto, importantes comunicações a fazer.

- E eu ando à procura dessas comunicações, fez o Satanás com a voz soturna, sentando-se do outro lado da mesa e esvaziando um copo que ali estava.

- Então, pergunta. As minhas idéias, assim, se concatenarão melhor e com mais vantagens para ti.

- Pois bem! O que é feito de Branca?

- Que Branca?

- A minha filha! Aquela moça loura que desapareceu bruscamente depois do crime da rua do Conde.

- Era tua filha!

- Sim.

- Pois não sei! afirmou d. Bias resolutamente.

Descobrindo que a sua encarcerada era filha do Satanás, o magro fantasma de d. Quixote teve ímpetos de revelar-lhe tudo. Perpassou-lhe no cérebro a idéia de ajoelhar-se, de rojar-se ao chão, de dizer ao escultor:

- Tua filha! Sou eu quem a tem prisioneira. Mas perdoa-me. Eu, só eu te a posso restituir. Vem comigo. Vem buscá-la. Mas perdoa-me. Conserva-me a vida. E dá-me os mil cruzados que a Domitila me prometeu.

Mas d. Bias amava Branca. A meiga e triste filha do Satanás deixava que ele a abraçasse. Sorria numa alegria infantil de louca. E muito baixinho dizia-lhe ao ouvido uma suave cantilena de amores: - Paulo! meu Paulo!

Por isso ele afirmou:

- Não sei.

O Satanás não lhe permitiria com certeza o prolongamento desses idílios de prisão. E d. Bias amava Branca.

Também o outro não insistiu.

Não eram essas propriamente as revelações que esperava. Perguntara por perguntar, para dar saída a essa idéia que o obsedava, que lhe fazia o mais forte e o mais insistente das preocupações. E, sem mais referir-se ao caso, continuou o inquérito relativamente aos pródromos do drama.

- Como soubeste que lá em cima, na minha casa, havia gente a se matar?

- Eu te conto, Satanás. Eu conto.

- E toma tento em ti. Fala a verdade. Por que se não...

E um grande murro sobre a mesa completou-lhe o pensamento.

D. Bias começou assim:

- Naquela noite, sabia de uns amores misteriosos, que não te relatarei nem por quinhentos milhões de diabos, nem que venha o inferno todo inteiro em guerra aberta contra mim, porque sou fidalgo das Espanhas e nunca meus lábios traíram o segredo da reputação de uma mulher.

O Satanás olhou-o muito sério, com a força violenta do seu olhar de fogo.

- Escuta! d. Bias. Trata de dizer-me a verdade e deixa-te dessas retóricas.

- Mas...

- O melhor é perguntar. O que fazias tu na rua do Conde por aquelas horas da noite?

D. Bias, então, sentiu uma grande necessidade de expandir-se, de dizer a verdade toda inteira àquele homem que ele se habituara sempre a temer, que o dominava com todo o prestigio da sua força, e que estava ali, defronte dele, a crestá-lo com a chama insistente do seu olhar de fera.

E disse tudo. Disse como d. Pedro o chamara para uma empresa amorosa, como eles se tinham ido postar diante da casa de Branca, como o tinham visto a ele, Satanás, entrar e sair, como tinham entrado depois, como tinham garrotado e amordaçado d. Emerenciana, como o príncipe subira e estivera lá em cima a sós com Branca como a casa tinha sido assaltada pelo valente capitão das guardas, como ele, d. Bias, tinha fugido e vindo lhe pedir socorro.

- Miserável! praguejou o Satanás.

E, para saciar logo a sua sede de vingança, para dar aos músculos nessas grandes tempestades de idéias que lhe espatifava o cérebro, o escultor suspendeu d. Bias pela cintura e atirou-o com durindana e tudo para o meio da sala.

Depois saiu, possesso, louco de raiva, qual fera bravia em cio de vinganças.

D. Bias levantou-se, a mão aos copos da espada, numa compostura honesta de homem insultado, que exige uma reparação imediata e sanguinolenta.

- Por S. Tiago de Compostela! Os fidalgos não fazem assim! Brigam lealmente e não fogem como este Satanás de todos os infernos.

Lá fora Pallingrini foi-se acalmando com a frialdade da noite.

O vento caía-lhe sobre as faces como uma ducha, chamando-o à realidade da vida. E ele fez-se mais quieto, diminuiu o passo, que trouxera acelerado até então, e pôs-se a meditar.

Queria uma vingança, vingança completa, vingança de italiano.

Branca! Ela deveria estar em poder do príncipe. E era preciso reavê-la. Para isso não havia brutalidades e violências que produzissem resultado. Ele tinha necessidade de fazer-se manhoso e hipócrita. D. Pedro seria agora o seu mestre. Ele soubera tão bem compor a fisionomia traidora e fazer-se amigo e confidente naquela recente viagem a Santos, que bem valia a pena imitá-lo.

E, depois... depois, quando à força de vigilância e de astúcia ele tivesse descoberto o esconderijo onde o príncipe lhe guardava a filha, quando tivesse abraçado Branca, quando readquirisse a posse daquele amor imaculado e puro, ideal e santo de pai, depois... viria a luta, luta de gigantes, para a qual ele traria toda a energia do seu temperamento e toda a audácia nunca desmentida do seu viver.

Não lhe bastava a morte de d. Pedro. D. Pedro era valente. E, para ele, a morte era apenas esse fatal desenlace da vida que não assusta aos fortes e que o homem procura muitas vezes.

Para que matá-lo?! Embora o horóscopo fatídico da cigana aí estivesse a dizer que um dos dous devia morrer pela mão do outro, ele não queria matar o príncipe. Queria-o miserável e vencido, morto no seu orgulho, arrastando uns dias infaustos de vilipêndio, martirizado por essa angústia de abatimento que é o suplício dos fortes.

E, horrivelmente calmo, como o espetro sinistro das vinganças, ele cortou as trevas da noite com um gesto largo de ameaça.
––––––––––––-
continua

terça-feira, 12 de março de 2013

A. A. de Assis (A Trova na Imagem - 7)


Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 19. Embriaguez

Viajou hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto, no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interrogá-lo, ver porque não descia. Sacudiu-o. "Ó amigo, já chegamos! Ó amigo..." O bêbedo abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-atombar de novo sobre o peito. "Ó amigo! então não desce? Ó amigo..." O ébrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca o bonde." -"Mas olhe que tem de pagar outrapassagem! Ó cidadão! está ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" -"Sim!" berrou o homem.

"Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto você quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez tostões.

Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já manso, fez um gesto trêmulo de repulsa amigável. "Guarde para você, guarde lá... ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande tocar maisdevagar nas curvas... sim? É só o que eu lhe peço. Mais devagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as mãos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo.

Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapidez nas curvas: é que já havia levado um meio trambolhão do bonde abaixo, numa delas. Assistiam à cena dez ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca há maior divertimento do que ver um homem em situação degradante, e "risível", que por via de regra é risível porque seria própria para entristecer.

E porque o estado de bebedeira é degradante? Já sei: é pela mesma razão por que é risível, é que diminui o homem ex abrupto, o reduz à condição de autômato, de um autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero de embriaguez que passa como se não fosse degradante nem ridículo! Por que?

Os efeitos são os mesmos: um homem sem a posse completa de si próprio, sem sequer essa espécie de dignidade animal que consiste na harmonia espontânea dos movimentos com as "finalidades" naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem de ser aturado nas suas importunações, ou carregado como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, dá escândalo e faz desordem.

Há a bebedeira de morfina, éter e similares, e das paixões políticas, profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico; há a embriaguez moderna da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma a natureza do homem. E há a embriaguez da sensualidade que se desdobra nesta epidemia universal de ostentação, de festas e de fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.

O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezes duvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando as doses. Para encurtar, não tarda que seja um viciado. Torna-se um automobilimaníaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com períodos lúcidos de mais em mais breves, em que trata de seus negócios e participa da vida íntima de sua família.

Quando está em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio descaído e branco. A pequena velocidade é a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico, dirige pilhérias aos guardas. A velocidade média é a fase da provocação e do "leve o diabo". A velocidade máxima média é o estado delirante: a consciência acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agônico, em que a personalidade tem a abafada impressão de se libertar das prisões materiais e voar no vento e na luz.

Embriaguez detestável como qualquer outra. Mais do que qualquer outra produz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os dias revelam as crônicas. E, como muitas outras, deixa suas heranças à descendência.

Entretanto, não se cogita de uma lei seca para esse flagelo.

A verdade é que o homem é um ser que se embriaga. Não importa a maneira: o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin, vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notoriedade, glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora à custa do desbarate e da quebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção humana.

Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimento do Eu consciente. E é verdade. Mas o álcool e o tabaco não são os únicos mananciais dessa felicidade mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindo efeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veículo atirado como um buscapé ou de uma paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porção de vozes que balbuciam dentro de nós, prevenir um mundo de preocupações e de angústias possíveis, apequenar a nossa humanidade, pôr entre nós e o cariz oceânico da vida um véu que o esfume e nos tranqüilize.

Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos de nós. Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyám: Sonha que já não és, e sê feliz.

És que? Homem, cá para o nosso caso.

Fonte:
Domínio Público

Alberto Figueiredo Pimentel (Desânimo)


Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XVI)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

A ÁGUA CHIA NO PÚCARO QUE ELEVO À BOCA

A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.

A CRIANÇA

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

A ESPANTOSA REALIDADE DAS COUSAS

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

A GUERRA

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por conseqüência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza
os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

A NEVE

A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.

A NOITE DESCE


A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) Parte 1

Pegadinha 1

Desculpem o transtorno.


O verbo desculpar é transitivo direto e indireto, isto é, ele possui dois objetos: um direto e outro indireto. A ordem em que esses objetos figuram na oração é indiferente.  Pode vir primeiro o objeto direto, depois o indireto, ou vice-versa. Trocando em miúdos, quem desculpa, desculpa alguém por alguma coisa. O objeto direto é sempre uma pessoa e o indireto é alguma coisa. Seria muito desagradável, neste caso, procurar o transtorno para desculpá-lo por alguma coisa que tenha feito de errado. Será que foi o transtorno quem escreveu essa frase?

O correto seria escrever:

Desculpem-nos pelo transtorno.
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Pegadinha 2

Agradecemos a preferência.


Vamos aprender a agradecer em bom português. Muita gente boa agradece mal aos seus clientes por falta de conhecimento de transitividade verbal. O verbo agradecer, nessa construção, possui outra regência, que o transforma num transitivo indireto acompanhado de um adjunto adverbial de causa. Na frase errada, acima, o agradecimento é dirigido à causa (= a preferência) e não ao seu agente (= o cliente ou os clientes).

Para agradecer, corretamente, deve-se escrever assim:

Agradecemo-lhes pela preferência.

ou

Agradecemos aos nossos clientes pela preferência.
––––––––––––––––––––

Pegadinha 3

São os banqueiros que acabam lucrando.


Neste tópico de dicas de português para concursos, a expressão é que não é genuinamente um verbo. Trata-se simplesmente de uma locução de realce, que a usamos, evidentemente, para dar destaque à ideia expressa na frase. Por tratar-se de um mero adorno frasal, essa locução é totalmente dispensável sem prejuízo para o sentido da oração. Exemplo:

É os banqueiros que acabam lucrando. = Os banqueiros acabam lucrando. (A igualdade é de significação, é lógico.)

Mais exemplos:

Só nós dois é que sabemos o quanto nos queremos bem. (Letra de canção portuguesa.)
Seria ridículo dizer: Só nós dois somos que sabemos o quanto nos queremos bem. A frase original pode ser escrita, sem nenhum prejuízo para a sua significação: Só nós dois sabemos o quanto nos queremos bem.

É eles que representarão o presidente. Essa frase está correta. Estaria incorreta se fosse escrita assim: São eles que representarão o presidente. Se eliminarmos do contexto a expressão de realce é que, veremos que o sentido é o mesmo: Eles representarão o presidente.

Muito cuidado! Nas questões de português, sobre concordância verbal, as organizadoras de vestibulares e concursos públicos costumam usar, de vez em quando, frases desse tipo, induzindo o vestibulando ou concursando a considerá-las incorretas.

Concluindo, indicamos como escrita correta da frase do topo a seguinte construção:

É os banqueiros que acabam lucrando. - ou

Os banqueiros é que acabam lucrando.

Lembrar: é que – é uma locução de realce.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Leonilda Yvonneti Spina (Trovas para Luiz Otávio)

Luiz Otávio é fundador
do movimento da trova,
que nunca perde o fulgor,
cada dia se renova.

Luiz Otávio, o Trovador,
é fonte de inspiração
aos que trazem com amor
a trova no coração.

Luiz Otávio, o Trovador,
homenagem bem merece.
Ele fez trovas de amor
que a gente jamais esquece.

Com Luiz Otávio surgiu
a trova neste país.
Quem o segue já sentiu
que hoje é muito mais feliz!

Fonte:
A autora

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte VIII – O Grito Auriverde

Naquele tempo fazia-se a viagem de Santos a S. Paulo, através do mato virgem. A serra que a Estrada Inglesa hoje corta, e por onde sobem os vagões bufando, só podia ser galgada a cavalo, dificilmente, penosamente. A jornada de d. Pedro fez-se por um dia magnífico. A serra inundada de sol encrespava a sua vegetação prodigiosa, de um lado e de outro do estreito caminho, aberto na mata, por onde os cavalos trotavam enchendo as grotas de ecos prolongados.

A frente da comitiva, o príncipe cravava de instante a instante as esporas no animal. Ao seu lado, seguia o comandante do regimento. O Satanás vinha mais para trás, com a capa voando ao vento, na impetuosidade do galope. Depois, atropelado e veloz, - num grande estrupido, o regimento de cavalaria abalava a serra, voando.

Ninguém falava. O príncipe seguia preocupado, por aquele novo aspecto que tomavam as cousas, impondo-lhe agora um procedimento cujas conseqüências ainda não se podiam prever. Esquecera-se já dos tristes sucessos da casa da rua do Conde. A princípio, o remorso lhe apuara o coração, vendo-se o causador daquela grande desgraça. Branca resistira com uma tenacidade, que ofendera a sua vaidade de conquistador irresistível. Era a primeira mulher que opunha um obstáculo à satisfação de um desejo seu. Ferido no amor próprio, não recuou diante de uma violência. Nenhuma das outras recusara aquela honra, nenhuma! - estas, por amor, cedendo-se com paixão àquele belo fidalgo que governava o maior país da terra, e cujos lábios e cujas mãos tinham carícias tão novas, afagos tão doces; aquelas, por vaidade, amando-o por luxo, dando-se a ele pela satisfação de se sentirem princesas no breve espaço de um espasmo de gozo; outras, por imposição de maridos e pais ambiciosos, fazendo do corpo de uma esposa ou do corpo de uma filha sólidos degraus para a subida gloriosa do poder... Nenhuma das outras recusara aquela honra, nenhuma!

E era aquela criança tímida e fraca, era aquele pedacinho de gente, que lhe vinha cravar os olhos na face, atrevidamente, corajosamente, e dizer-lhe sem tremer: - Não te quero, não te desejo, não serei tua, porque não te amo, porque amo um outro que é mais belo, que é mais amante, que é mais forte do que tu!
Depois, quando vira entrar no quarto Paulo de Andrade quando compreendera que era aquele o seu rival, o príncipe esperara-o a pé firme, olhando-o face a face, num ímpeto daquele seu belo temperamento, tão seu e tão nobre, que o faria afrontar todos os perigos, que o fez uma vez, mais tarde, sozinho, em S. Cristóvão, esperar na rua um homem que o ofendera, e retalhar-lhe o rosto a chicote.

Mas, Paulo recusara, preferindo matar-se a erguer a mão contra ele.

E vendo-o morto, o príncipe, compreendendo que ia haver um escândalo, saiu daquela casa, fugindo do lugar onde fora procurar um gozo passageiro e onde ganhara um remorso terrível.

Agora, porém, essa preocupação fora sufocada por outras mais sérias. O homem desaparecera. Em seu lugar ficava apenas o príncipe, com toda a grave responsabilidade de uma conspiração política.

Era possível recuar? A guerra estava declarada. A tropa portuguesa capitulara no Rio e não tardava muito que capitulasse também em todo o resto do Brasil. O senado conferira ao príncipe o título de Defensor Perpétuo do Brasil; não lhe impunha esse titulo o dever de resistir a tudo e a sacudir de uma vez o jugo da metrópole? Não era defender o Brasil e, mais do que isso, salvá-lo, fazer com que ele se constituísse nação independente?

Quanto ao Satanás, a sua preocupação era de outra natureza; o desgraçado pensava na filha, de quem não sabia, de quem já não queria saber, atolada na desonra, roubada ao seu afeto.

O desejo de vingança enchia-lhe a alma de rancor; poderia numa hora de júbilo supremo, roubar a vida a quem lhe roubara a felicidade? conseguiria enfim satisfazer a sua única preocupação de agora, deitando a mão ao verdadeiro culpado?

D. Pedro interrompeu-lhe a meditação, chamando-o para junto de si.

- Dize cá, Satanás! tens confiança no futuro?

- Por que não? é tão bom esperar, mesmo quando só há motivo para desespero!...

- Duvidas então do êxito da minha última aventura?

- Não! não duvido... Era do meu futuro que falava e não do seu. O seu futuro é garantido: que motivo teria eu para duvidar dele?

- Também me parece isso. Demais não foi só a minha ambição que trouxe os acontecimentos ao pé em que estão: foi também a fatalidade que preparou tudo, dando-me este papel, que não posso recusar, porque há muito tempo que o desejava e pedia a Deus. Agora é caminhar.

D. Pedro alongou a vista pelo horizonte. Agora, galgada a serra, rasgavam-se as planícies verdes, cheias de tufos de árvores, arrepiadas de outeiros, circuladas de montanhas.

- Será talvez o primeiro do mundo, este país que Deus me quis dar, na sua justiça infinita. Desgraçado de quem, chegado ao meio do caminho, tem medo do desconhecido e dá as costas ao que tem de vir. Eu já não posso parar. Vencerei o futuro, ou serei vencido por ele. Mas serás meu, país abençoado...

E, parado, sofreando a carreira ao cavalo, de cabeça erguida, belo e transfigurado, o príncipe teve um largo gesto que varreu todo o horizonte.

E abalou de novo, ato do galope, pela planície afora, como se quisesse chegar mais depressa a esse futuro que lhe sorria e que o chamava, acenando-lhe com uma coroa e com a glória da fundação de uma grande nacionalidade.

Depois de um longo silêncio, foi o Satanás o primeiro a falar.

- E já não é possível reprimir o ódio entre brasileiros e portugueses, senhor. São conflitos constantes, rixas de todos os dias. E só o que se deve recear. Se a população portuguesa reagir? se mesmo a população brasileira recuar?

- Não recuará. Pois não foi o próprio povo quem me pediu que ficasse, exigindo que eu rompesse com meu pai?

- Não há que fiar no povo, senhor. O povo quer uma cousa hoje e outra amanhã. De mais, mesmo confiando no povo, não se devem recear as alternativas da guerra?

- Mas as últimas noticias são boas. Labatut, na Baía, caminha de vitória em vitória. Venceremos.

E não falou mais, senão quando, no vale do Ipiranga, às margens do rio que se acachoeirava, espumando, entre ribas de verdura, ordenou que se fizesse um pequena parada de descanso, antes de entrar na cidade.

Todos se apearam.

Na serenidade da tarde, as palmeiras bracejavam no ar. Havia uma grande suavidade no céu muito azul, limpo de nuvens, cortado de asas. Os cavalos saíram pelo campo, a pastar. Os soldados estenderam-se na relva, prostrados por aquela caminhada longa, ao sol forte de setembro. Abriram-se as garrafas de cana, acenderam-se os cigarros.

D. Pedro e Satanás falavam de Marta, da peixada de escabeche, da beleza de Maria.

- Homem, por falar em peixada... fez d. Pedro, e disse uma cousa que fez o outro rir muito.

O príncipe riu também, e levantando-se, entrou numa moita.

Mais longe, na entrada do vale, levantou-se uma nuvem de poeira. Ouvia-se um galope. E, em breve, um cavaleiro apareceu. Ao chegar perto da comitiva, apeou-se, e deixou-se cair no chão, sem fala, coberto de pó, extenuado.

Tinham chegado a Santos, logo depois da partida do príncipe, novas notícias, ainda mais graves, ainda mais aterradoras.

Era ele quem as vinha trazer. Tinha viajado sem parar um instante, num galope louco pela serra acima.

O comandante do regimento foi procurar o príncipe. Encontrou apenas o Satanás, sentado numa pedra, cotovelos sobre os joelhos, face sobre os punhos, pensando.

- Onde está o príncipe?

O Satanás levantou os olhos e disse gravemente:

- Espere um pouco. Está ocupado. Foi apanhar uma parasita.

Quando o príncipe veio, não o surpreenderam as notícias. Confirmava-se o consta de terem sido os deputados brasileiros obrigados a fugir de Lisboa. Esses deputados eram Antônio Carlos de Andrade e Silva, Cipriano Barata, Lino Coutinho e Diogo Feijó. Antônio Carlos, em plena sessão das cortes interrompido num discurso, bradara num belo assomo de indignação: - Silêncio, canalha! Quando fala um brasileiro ninguém o interrompe!

O governo português, diziam mais as notícias, dispunha-se a mandar uma esquadra para o Brasil, para reprimir a revolução. Era preciso agir, com a máxima urgência.

D. Pedro não pestanejou. Chamou o comandante.

- A cavalo! forme o regimento!

E arrancou do chapéu o pendão azul e branco. Depois, tirou de uma árvore uma folha verde, listrada de amarelo, e, substituindo-a ao pendão, montou também a cavalo.

O regimento esperava, em linha, a voz de marchar. O príncipe estendeu o braço:

- A caminho!

E, com uma voz que ecoou longamente, na tarde radiante, pelas quebradas da serrania, soltou o seu grito de guerra - Independência ou morte!
–––––––––––-
continua

Cassiano Ricardo (Desejo)


Machado de Assis (O Rei dos Caiporas)

Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1870.

Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram? Questão é esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante. A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a ambos.

O que vou contar alude a esta questão de fatalidade e destino. O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.

João das Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.

Choveram-lhe desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo. É mister ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.

Foi-se buscar à pressa uma ama. Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras. A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do Norte todo o santíssimo dia.

Parece que esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês. Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil-réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.

Aqui temos nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo. Felizmente a prima que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este aplicara no filho. João encaminhou-se para lá.

— Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a D. Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.

— Fica João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.

Marianinha apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo. Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá. Marianinha, que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica. D. Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho. Bem sabia ela que João das Mercês não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em casa.

Gaspar aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma coisa. Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. D. Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a fidelidade de um romancista sincero que D. Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.

A boa velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou D. Angélica com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar, que trazia a barba toda, desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era produção de D. Angélica.

Aqui temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês. Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. D. Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o sobrinho. Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da Guerra. Pediu-lhe um emprego. Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre acompanhara o ministério atual. Obteve o emprego.

João das Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no Arsenal de Guerra, tendo obtido antes consentimento do pai. Marianinha amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês, que era estouvado e mal educado, não deixava de ter igualmente um coração digno de apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor. D. Angélica alimentava esta chama que, segundo ela, devia ser legitimada na igreja.

João das Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.

— Quando formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.

— Casados?

— Sim.

— Quando há de ser?

— Um dia, quando eu tiver mais idade.

— Ah! se fosse já!...

Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.

— Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu, meu pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem! Marianinha tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:

— Oh! senhora dona Angélica!

— Que temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.

— Queira vir ate cá, respondeu o marido com voz macia.

— Não me faltava mais nada! venha cá você.

Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.

— E que tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.

Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas forcas caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da cena.

— O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável D. Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...

— Deixe-se de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.

— Foi seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.

Tudo favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.

André das Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com a irmã para obter a volta de João das Mercês. D. Angélica opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com todas as conseqüências dele.

André era tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente. Em caminho refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.

— Talvez ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.

Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.

— Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções...

— Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...

— Não contesto.

— A mana está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...

— Acha então que eu...

— Sem dúvida, venha comigo.

— Vamos. Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências... Deixe-me falar só.

— Estou por tudo; eu não desejo brigar com ela.

— Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão. Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.

— Eu vou também.

— Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três minutos.

Gaspar voltou à esquina e meteu-se em um corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.

— Aqui só veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.

André ficou furioso, mas compreendeu tudo. Sabia que a irmã dominava o marido, mas não calculava que chegasse a tanto. Resolveu, portanto, fazer as coisas por si.

No dia seguinte apareceu em casa de Angélica (não ouso dizer em casa de Gaspar) e de novo insistiu na entrega do pequeno; a missão não teve nenhum efeito. André resolveu ir esperar à porta do Arsenal de Guerra que o pequeno saísse e deitar-lhe a mão em cima.

João das Mercês não escapou ao laço.

Nesse mesmo dia foi morar para casa do pai com ordem de não sair nem para o emprego nem para casa da tia. Imaginem o furor de D. Angélica e a dor de Marianinha. Gaspar fez cem projetos de vingança, sem que a mulher lhe aceitasse nenhum.

Separado da jovem namorada, João das Mercês ficou entregue ao mais profundo desespero. Correram os meses sem que se avistassem os dois. Ao cabo de um ano, André arranjou para o filho um emprego, e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar a rua. Seu primeiro cuidado foi ir à casa da tia.

Achou-se na sala toda a família e mais um rapaz de casaca e luvas brancas. Marianinha empalideceu um pouco, mas logo lhe passou essa manifestação de remorso. Remorso digo, porque o sujeito de luvas brancas e casaca, como o leitor há de ter percebido, vinha pedir a moça em casamento.

D. Angélica acabava um discurso acerca dos deveres do casamento e do amor das mães aos filhos, discurso que Gaspar ouvia com aprovação de cabeça, e o noivo com abrimentos de boca.

João das Mercês não resistiu à dor. Saiu furioso acusando os céus e a terra das suas desgraças. Complicaram-se estas com a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo sozinho. Era preciso trabalhar; o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.

Houve entretanto não sei que pretendente ao lugar dele; parece que o pretendente tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã o chefe da repartição mandou chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia de que estava demitido.

Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer. O estômago é engenhoso e tem boa memória. João lembrou-se que havia, em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil-réis em ocasião em que se achava desempregado. Correu para lá.

O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.

O caixeiro era bom rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do freguês.

Ao fim de duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu décimo-quinto almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.

— Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com tanta confiança que parecia estar à espera de algum legado. Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia na véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens.

Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.

Foi demitido.

Tentou João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho. O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no caiporismo. Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.

O caiporismo é a hidra de Lerna.

O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.

João das Mercês ficou em casa só.

Mas os dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com uma letra de quinhentos mil-réis. Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à polícia; mas nem por isso escapou da correção.

Foi solto depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.

Não tinha as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil-réis.

— Que tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo. Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei? Aqui teve uma dessas inspirações que salvam impérios.

— Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil-réis de resto compro um quarto de loteria.

Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.

Assim fez.

Depois de comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a Rua da Quitanda e comprou o bilhete.

— 1441, disse ele, bom número; tenho fé.

Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na esperança dos vinte contos.

Casualmente encontrou o tio Gaspar.

— Como estás? perguntou-lhe o tio.

— Bom.

— Já te livraste do processo?

— Já.

— Tão depressa?

— Acha que foi depressa?

— Sim, essas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia, que é uma senhora de muito bem pensar, disse: “— Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu, Gaspar?” “— Que hei de pensar, mulher? Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto”.

— Faz bem.

— Onde estás agora?

— Aqui na rua.

— Mas qual é o teu emprego?

— Passear.

— Que dizes?

— A verdade.

Gaspar, que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não ousava.

— Já comeste?

— Hoje comi; amanhã não sei.

— Olha, disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez mil-réis.

João das Mercês aceitou os dez mil-réis e abraçou o tio.

— Bem! disse ele, a sorte começa a ceder. Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.

Era não contar com o caiporismo e D. Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o procedimento que tivera. D. Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era simplesmente mortificar o marido. Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez mil-réis.

Esse alguém foi o sobrinho.

João das Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.

— Nada, disse Gaspar.

— Alguma coisa tem meu tio; vamos, diga o que é.

Gaspar não disse palavra.

Então lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez mil-réis.

— Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez mil-réis por engano.

João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.

Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos. Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil-réis, quando D. Angélica, franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.

— Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez milréis ao rapaz que nem comer tinha?

— Mas tu...

— Eu, o quê? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.

— Onde o encontrarei agora?

Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar os dez mil-réis como pôde.

João das Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.

— Tenho um pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.

Chegou; dez minutos depois o nº 1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.

João das Mercês desmaiou.

Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete. Graças a este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.

— Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.

Foi prontamente obedecido. Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não prestavam para nada. Mas naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.

Acabava ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:

— Com que então tirou a sorte grande?

— É verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.

— Por quê? disse o sujeito, levantando-se com a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.

— Porque fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei...

— Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000. Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.

— Sim? Quando foi isso?

— Foi há seis meses.

— Um quarto ou bilhete inteiro?

— Meio bilhete. Recebi dez contos.

— Talvez não precisasse deles...

— Quase que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ainda que não viessem os dez contos, tinha com que passar. Acontece-lhe o mesmo?

— Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.

— Mais uma razão para que eu o felicite.

O desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.

— Estes charutos daqui não prestam, tome este.

João das Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.

Ao fim de uma hora saíram de braço dado. O desconhecido disse chamar-se Viana; João das Mercês deu também o seu nome. Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o tempo; Viana levou a benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no Carceller.

Perto da noite, disse Viana para João das Mercês:

— Vou levá-lo até à sua casa.

João das Mercês fez uma careta.

— Isso agora há de ser mais difícil, disse ele depois de alguns instantes.

— Por quê?

— Porque...

— Seja franco.

— Pois bem, meu caro, eu não tenho casa!

— Não tem casa?

João das Mercês contou fielmente ao amigo a sua posição. Viana ouviu a narração com visíveis sinais de simpatia.

— Pois se isto o não incomoda nem ofende, ofereço-lhe por hoje um hospício. Amanhã já não será preciso porque receberá o dinheiro.

— Aceito.

Dirigiram-se para a Rua da Misericórdia. Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com algum asseio.

— A casa não está arranjada, disse ele, mas é porque eu mais me entendo com a desordem que com a ordem.

— Está excelente, disse João das Mercês. Ah! meu caro senhor Viana, creio que sou agora verdadeiramente feliz. No dia em que me entra o dinheiro pela porta, entra-me um amigo pelo coração. Pela porta é metáfora, acrescentou ele rindo.

Viana apertou-lhe a mão comovido.

— Tive um amigo da sua idade; era a mesma alma franca e aberta aos sentimentos generosos; permita-me a ilusão de que o encontrei agora...

— Espero que não seja ilusão, exclamou João das Mercês.

Conversaram até alta noite. À uma hora João das Mercês disse que estava com sono.

— Eu também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho sempre esta outra cama pronta para o que der e vier. Olhe, gosto de acordar cedo.

— Homem, nestas alturas não se me dera acordar mais tarde, respondeu João das Mercês que, como sabemos, adquirira de uma das suas amas o modo de dormir demais.

— É que eu tenho de sair cedo, para levar um papel à estrada de ferro. Às nove horas estarei de volta.

— A minha madrugada será às nove horas.

— Veja lá se perdeu o bilhete.

— Nada, cá está no bolso do colete.

Dormiram.

No dia seguinte, seriam onze horas quando João das Mercês abriu os olhos. Viana ainda não tinha voltado. O rapaz costumava estar na cama acordado ainda um quarto de hora. Ao fim desse tempo levantou-se, lavou-se e vestiu-se. Não tendo relógio não sabia que horas eram. O sol estava encoberto. João das Mercês chegou à janela a ver se via o dono da casa. Não viu ninguém.

Pouco depois deram os sinos meio-dia.

— Meio-dia, disse ele. Onde estará este homem.

Começou a sentir fome e a arrepelar-se com a demora, quando instintivamente levou a mão ao bolso do colete. Não achou o bilhete!...

— Roubado! exclamou ele com desespero.

Chegou à janela, gritou, acudiu gente à porta que o deram por maluco. Do segundo andar desceram algumas pessoas, e depois de ouvirem as queixas do mísero rapaz, foram chamar a autoridade.

Quando o rapaz conseguiu achar-se na rua eram já duas horas. Seu primeiro pensamento foi ir à casa de loteria. Correu para lá.

Ó desgraça! todos os quartos da sorte grande estavam pagos. Deu os sinais de Viana e eram os mesmos de um sujeito que lá fora cobrar um quarto. Não se pode descrever o desespero de João das Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais terrível que todos, o de ter a fortuna na mão e senti-la voar como um pássaro esquivo.

Não hesitou; a idéia de morrer entrou-lhe na cabeça como uma solução às suas desgraças. No fundo do bolso ainda achou um cartão de barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem para S. Domingos. No meio da viagem, aproveitou o descuido das pessoas que se achavam perto dele e atirou-se ao mar.

Houve logo a bordo o rebuliço que um caso destes produz. A barca parou e a bordo se empregaram todos os esforços para salvar o infeliz. João das Mercês veio à tona d’água quando lhe atiraram uma corda; ele repeliu-a com energia.

Seu pensamento era morrer.

Não contava com o caiporismo.

Os esforços empregados em favor de uma criatura que não queria nada da vida, foram coroados de sucesso, João das Mercês foi salvo.

Passado esse triste acontecimento, João das Mercês dispôs a lutar violentamente com a sorte; pareceu-lhe esta sorrir. Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que viver pobremente. Alugou uma casinha na Cidade Nova, e assim passou alguns meses.

Um dia reparou que havia defronte uma velha que não deixava de sorrir quando ele entrava ou saía de casa. João das Mercês cumprimentava-a cortesmente, mas não julgava que o riso fosse com ele. A casa da velha era a melhor casa da rua, e a moradora passava por ser rica.

Quando João das Mercês descobriu que o riso era com ele, começou a prestar maior atenção à vizinha. Esta redobrou de demonstrações e seria enfadonho contar aqui miudamente os acontecimentos que se deram depois. Basta saber que João das Mercês entrou a freqüentar a casa da vizinha, e esta declarou-lhe francamente o amor que o moço lhe havia inspirado.

Não devendo esperar que a própria velha oferecesse aquilo que era um favor para ele, João das Mercês exclamou um dia:

— E se nós nos casássemos?

— Essa é a minha intenção, disse Margarida, se acha que eu o posso fazer feliz.

— Oh! mais que feliz!

A velha tinha duzentos contos.

Era mais que a sorte grande.

Marcou-se o dia do casamento, correram os pregões, João das Mercês mandou fazer a roupa nova e convidou Gaspar para ser padrinho.

— Sem dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas quem é a madrinha?

— Eu tinha-me lembrado de minha tia...

— Conta com ela; vou agora mesmo avisá-la.

Margarida não cabia em si de contente; dizia que apesar da idade que tinha, sentia em si mais amor do que nunca tivera ao defunto marido.

João das Mercês disse a mesma coisa. Amara muitas vezes, mas nunca com tanta força.

— Sei o que é, acrescentava ele, é que eu amei sempre a umas deslambidas sem gravidade nem as graças que só se podem ter em certa idade.

Margarida não tinha parente nenhum com exceção de um primo remoto, que fez todos os esforços para impedir o casamento, e que nada tendo alcançado, resolvera aceitar o convite para ser padrinho, não podendo brigar com a parenta rica.

Raiou enfim a véspera do casamento.

Por conselho da noiva, João das Mercês tinha desistido do emprego, aliás com repugnância, porque não queria parecer que ia viver às sopas da mulher. A coisa era isso mesmo, mas ele não queria a aparência da coisa.

Terníssimos foram os adeuses dos noivos na véspera do casamento. João das Mercês já tinha fechado a porta, e Margarida ainda acenava com o lenço. Alta noite foi João das Mercês acordado por violentas pancadas na porta.

Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era. Era um escravo de Margarida. Vinha dizer que a senhora estava mal; e que o mandava chamar.

A primeira frase de dor do rapaz foi toda egoísta: Ah! meu caiporismo! exclamou ele enfiando as calças.

Margarida estava realmente às portas da morte. Quis ver o noivo; este chegou; ela apertou-lhe a mão com ternura. Depois chamando o primo declarou que desejava fazer o seu testamento, mas ainda não tinha acabado de falar que expirou.

João das Mercês teve um ataque.

Quando voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se outra vez de morrer. Mas tantos sucessos lhe tinham embotado a energia.

Nunca raiou dia de felicidade para este infeliz. Tem sido sucessivamente agente de procurador, copista de advogado, porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria, negociante de charutos, sempre perseguido pela fatalidade.

Ele mesmo diz com resignação evangélica:

— Sou o rei dos caiporas!

Fonte:
http://www2.uol.com.br/machadodeassis/

3º Concurso Literário Internacional Castro Alves (Resultado Final)

Internacional
POESIAS

1° lugar:
VESTIMENTA
Maria Cristina Drese -Buenos Aires/ARGENTINA

2° lugar:
POEMETO A CASTRO ALVES
Edweine Loureiro da Silva - Saitama/ JAPÃO

3° lugar:
O MEU SORRISO
Neila Maria de Aguiar Wilson – Durban/ ÁFRICA DO SUL

Internacional
CONTOS

1° lugar:
O SERVENTE DE DEUS
Maria Cristina Drese – Buenos Aires/ARGENTINA

2° lugar:
AS INSONIAS
Victor Manuel Capela Batista - Barreiro/PORTUGAL

3° lugar:
A CONFISSÃO DE GREGÓRIO MATOS AO PADRE ANTÔNIO VIEIRA
Edweine Loureiro da Silva – Saitama/JAPÃO

Membros Correspondentes
POESIAS

1° lugar:
NOITE ENLUARADA
António José Barradas Barroso – Parede/ PORTUGAL

2° lugar:
NOVO DIA
Maria Romana da Costa Lopes Rosa – Faro/Algarve/PORTUGAL

3° lugar :
UM MOMENTO
Irenilda Paranhos de Castro – São José do Norte/RS

Membros Correspondentes 
CONTOS

1° lugar:
FLOR NO CABELO
António José Barradas Barroso – Parede/ PORTUGAL.

Nacional
POESIAS

1° lugar:
PINTAR, TECER E BORDAR
Eloisa Antunes Maciel – Santa Maria/ RS

2° lugar:
MEU LAMENTO
Deise Brandão Torres Leal – Rio Branco/AC

3° lugar:
MINHA ALMA
Maria Apparecida S. Coquemala – Itararé /SP

Nacional
CONTOS

1° lugar:
A FACE DOS MORTOS
Maria Apparecida S. Coquemala - Itararé /SP

2° lugar:
A PERGUNTA
Gustavo Barbosa Rossato - Jundiaí /SP

3° lugar:
O FANTASMA DO RIO CAMAQUÃ
Maria Islair Duarte Lages - Rio Grande/RS

Municipal
POESIAS

1° lugar:
NA ESTRADA
Héctor Mário Vasques de Almeida. - Rio Grande/RS

2° lugar:
DE SANTA FÉ E TORRÃO
Gargione Ávila - Rio Grande/RS

3° lugar:
POEMA CIBERNÉTICO
Almira Lima – Rio Grande/RS

Municipal
CONTOS

1° lugar:
A FLOR DAS RUAS
Maria Lucilene Zafalem Garcia – Rio Grande/RS

2° lugar:
A CHANCE
Elaine Maria Goulart Nunes – Rio Grande/RS

3° lugar:
UMA HISTÓRIA DE SOLIDÃO
Maria Helena Rodrigues Fuão – Rio Grande/RS

Solenidade de premiação do 3° Concurso Literário Castro Alves, que fará parte das comemorações do seu 32º aniversário de sua fundação
 
dia 23 de março do ano em curso, às 16:00 h, no Sobrado dos Azulejos, sede da Secretaria de Município de Cultura da cidade do Rio Grande. (rua Marechal Floriano Peixoto).

Dalva Leal Martins - Presidente
Marcos Costa Filho - Coordenador

domingo, 10 de março de 2013

Nemésio Prata (Uma Poesia (bem) Feminina!)

Desenho a carvão, por J. B. Xavier/SP
Nemésio é de Fortaleza/CE
–––––––––––––––––––––-
De tudo que Deus criou
nada se iguala em beleza
ao par que a Adão doou:
a Mulher; tenham certeza!

De tudo que Deus criou
nada se iguala em ternura
ao par que a Adão doou:
a Mulher; cria mais pura!

De tudo que Deus criou
nada se iguala em amor
ao par que a Adão doou:
a Mulher; que pare em dor!

Beleza, ternura e amor
traz, dentro do coração,
a Mulher; do Criador
Sua maior criação!

Fonte:
O Autor

Olivaldo Junior (Um trovador)

Todas as horas são horas extremas!
Mário Quintana, in Pequeno Poema Didático
 

            Era uma vez um trovador que se perdeu quando tentou atravessar a própria sombra. Não sabia (coitado) que os trovadores não tem que perguntar, nem se indagar, mas, simplesmente, retratar o que eles veem pelo caminho. O caminho de um trovador não é mais o mesmo de antigamente. E mente quem diz outra coisa. Salvem Jorge, mas também os trovadores, que um trovador tem trovas onde antes não havia quase nada.

            Um trovador, distraído de tudo e de todos, perdeu-se quando foi atravessar a própria sombra e nunca mais voltou de lá. Lá é onde se perdem os que se põem a querer testarem o sim e o não de Deus. Deus não é de brincadeira, embora tenha muito senso de humor. Basta olhar o que Ele cria, sim, pois que o mundo não foi criado, o mundo é criado. Esse trovador sabia disso, e é por isso que ele ia ter com Deus assim que tudo ficasse mesmo insuportável. Leve, como se flutuasse, um trovador, sem cavalo, nem magrela, mesmo sendo gordo, flutuava pelo céu da consciência e não achava quem o trouxesse de volta: Deus. Se bem que teve aquela vez... Não, melhor que isso fique em segredo. O segredo é a alma do negócio, e o negócio é mesmo a alma. Um trovador, voando atrás de Deus, pensava que, finalmente, houvesse ganhado as asas que queria!

            Passado um tempo, depois de muito voar e de mais um tanto pensar sobre o que havia feito ao se atrever a ver além da própria sombra, um trovador resignou-se e pôs-se, enfim, a fazer trovas. Tem uma que ele fez que é bem assim, eu bem me lembro:

Ao perder a minha sombra,
me perdi na minha vida,
pois a morte só me assombra
quando a vida é dividida.

Pondo-se a escrever, ele esquecia um pouco de toda a dor que acumulara. Porém, como tudo tem fim (em todos os casos e sentidos), um trovador, tão jovem quanto um sonho não vivido, ao ver o reflexo dele nas águas de um lago (eram seis horas da tarde) tal e qual Narciso, pulou no sonho que teve, pois vira a sombra, a sombra dele ali. Lírios brancos, indicando a paz sem a virem, soluçaram baixo. E uma libélula, tarde, pousou.





Fonte:
O Autor
Sombra criada por J. Feldman a partir de imagem (colorida) obtida na internet

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XV)

Primeiro Fausto

Dois Diálogos

I
— Febre! Febre! Estou trêmulo de febre
E de delírio...]
Ancião, não podes tu
Arranjar-me um remédio para a vida?
Quero vivê-la sem saber que a vivo
Como tu vives.
Atordoar-me-á isto a alma toda,
Toda, até dentro, muito dentro, velho?
— Não teentendo], mas se é esquecer
Que queres, bebe...
— Quero, quero, vamos....
Esqueçamos-nos. Tens algo de mais forte
P'ra] mais do que esquecer? depressa, diz...
— Mal te compreendo, mas não tenho.
(FAUSTO bebe sofregamente)
Estranha e horrível criatura!
Não é vício
Nem crime, nem tristeza, nem pavor
Propriamente pavor, o que obscurece
Como uma escuridão de dentro d'alma
Toda a vida e expressão de sua face.
E essas palavras de que usou — "esquecer
A vida"; "mais do que esquecer"; "em mim
Acabará então parte de mim" —
Que significam?
Não sei, mas sinto
Que condizem, secreta e intimamente,
Com esse íntimo ser que eu não conheço;
Qualquer que seja essa desgraça, estranho,
Dorme e ou esquece ou aconteça em ti
Isso que semelhante ao esquecer
Desordenadamente me disseste
Desejar no teu íntimo...
Dorme, e que o filtro opere no silêncio
Da tua alma obra interior de paz
E ao descerrares para mim os olhos
Eu lhes veja a expressão já transmudada
Para compreensível e humana
Expressão de um humano sentimento.
Te adormeça a existência intimamente
E ao escuro desejo que tu tens.
(Vai para o levantar mais retrai-se)
Não; dorme onde caíste
Eu sou outro que os homens, ó ancião,
O teu filtro de paz e esquecimento
Não me faz esquecer e só a sombra
De uma possível paz me entrou na alma.
Para a paz que eu queria, isto que tenho
É como archote para a luz do sol.
Intimamente nada se passou.
Paralisaste em mim a engrenagem
Do pensamento e sentimento antigos
Não tornaria, eu sinto-o, a sentir
O que sentia antigamente. Foi-se
Não sei como o interior do meu ser
Com suas intuições, mas não se foi
A memória terrível do horror
Da minha vida antiga...]
Não fales mais. Eu vou...
(pondo-se em pé)
Eu vou, não sei aonde ... Como...] treme,
Com que debilidade e sentimento
De estarmudado] o corpo todo. Velho,
Adeus; quisera ter achado em ti
podia ter achado. nada valem. Eu
Deveria ao pedir tê-lo sabido;
Mas... Não tens outro, diz-me... Tu que filtras
venenos mais subtis
Para a existência?
— Há um filtro
Diferente daquele que tomaste;
Diverso na intenção com que obra n'alma,
Mas parecido no fazer esquecer.
— Como diverso na intenção?
— Em vez
De apagar extinguir], adormecer,
Faz — com terrível excitar de vida —
Nascer n'alma um conflito de desejos
Um desejo de tudo possuir,
De tudo ser, de tudo ver, amar,
Gozar, odiar, querer e não querer,
Reunir vícios e virtudes — tudo
Como que na ânsia férvida dum trago
Da taça do existir.
— Tu vendes-mo... Ah! não, que eu nada tenho
Nem sei se tive ou poderia ter.
Tu dás-mo, velho. Não te servirá
De nada ...]
Quem o fez?
Por que o fez? Onde o tens? Repete mesmo
O que de seus efeitos me disseste...
Que me decida ou não a beber dele,
Esse filtroque a ti] de nada serve
Dá-mo, pois.
— Não to dou.
— O filtro, velho.
Não me enfureças, vá; o filtro!
— Não to dou.
— O filtro!
— Não to posso dar.
— O filtro...
— Para que avanças? Eu que mal te fiz?
— O filtro; dá-me o filtro.
— Mas não posso
— Velho, repara em mim. Há na minh'alma
Uma ira calma e fria! Foge que ela
Na ação te mostre o que é.
— Não posso dar-te.
Em verdade to digo, o filtro. Eu
Fiz-te o bem que pude; porque então
Avançando assim calmo para mim
No horror de qualquer outra intenção
Te vejo o mesmo sempre. Poupa-me isso
Terrível que há em ti e que não trais
Em movimento ou vaga intimidade
Do olhar... Piedade, piedade...
Piedade, senhor!, Eu dou-te o filtro,
Eu dou-te o filtro. Piedade, eu dou...
(FAUSTO estrangula-o ...])
(após matar)
Nem sinto horror, nem medo, ou dor, ou ânsia,
Nem qualquerforma] de estranheza sinto
Pelo que fiz por mais que tente querer
Sentir ...]
É uma alma morta ante um corpo morto
Compreendo bem o que sentir eu devo
Mas não consigo mesmo imaginar-me
Sentindo-o ...]
quanto é de horror
A morte, um ente morto, e o mistério
Disto tudo. Sim, sinto-lhe o mistério...
Mas este sentimento de mistério
Não se me liga a um sentimento
Queuna] esse corpo a mim, que fiz
O que de misterioso está ali.
Tremo ao sentir quanto é mistério a morte...
Procuremos o filtro...]

II

Reza por mim, Maria, e eu sentirei
Uma calma d'amor...] sobre o meu ser,
Como o luar sobre um lago estagnado...
Dize: Fazei feliz a quem eu amo,
Cujos olhos não choram por não ter
Na alma já lágrimas para chorar;
Que tendo erguido o seu pensar ao cume
Do humano pensar.... Não, não importa,
Não digas nada, reza e que a tua alma,
Compadecendo-se de mim, encontre
Os termos, as palavras que na prece
Murmurará... Choras? Fiz-te chorar?
— Sim... Não... Eu choro apenas de te ver
Triste ...], sem que eu compreenda
Tua tristeza, meu amor. Vem ela
De alguma dor — oh, dize-me! partilha
Comigo a tua dor, que eu te darei
O meu carinho, porque te amo tanto...
— Tu amas-me, tu amas-me, Maria?
— Ah, tu duvidas? Meu amor, duvidas?
Se te amo, por que hás de
Tu duvidar de mim? Ah, se palavras
Podem levar a alma nelas, Fausto;
Se o amor, este amor como eu o sinto
Pode dizer-se sem o duvidar;
Se o que eu sinto em minh'alma se] te vejo,
Se sinto o teu pavor, quando penso
Em ti, amor, em ti; se olhares, beijos,
Podem mostrar o amor, todo o amor —
Crê, que as minhas palavras, os meus beijos,
O meu olhar têm esse amor.
Eu não sei dizer mais; não aprendi
Como o amor falar, não ...] aprendi
Porque o amor não fala e] não pode
Dizer-se todo, senão não seria
Amor...]
Mas eu amo-te, Fausto! Ah, como te amo!
(à parte)
— Aquilo é amor... eu, pois, nunca amarei
Não posso
Fazer erguer em mim um sentimento
Que dê as mãos àquele. E, de o não poder,
Eu mais frio me sinto, mais pesado
N'alma, na minha desconsolarão.
Como me sinto falso, falso a mim...]
Falso à existência, falso à vida, ao amor!
(alto)
Perdoa, amor...
(à parte)
Amor! Como me amarga
De vazia em meu ser esta palavra
Como de isso assim ser me encolerizo!
(alto)
Perdoa, meu amor!
Cedo aprendi a duvidar de tudo
Por duvidar e mim, sem o querer,
Sem razão de o querer ou de o pensar
Mas eu creio em ti, Maria,
Eu creio em ti... Como és bela!
Não, não chores
Quero falar ternura e não o sei.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm