terça-feira, 16 de abril de 2013

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 5

CAPÍTULO XXVII / AO PORTÃO

No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.

--Sim, meu devoto!

--Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.

CAPÍTULO XXVIII / NA RUA

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era à rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.

CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.

--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..

--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?

-- Mamãe querendo.

-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO

Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.

--Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido, era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre que lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma cousa. Pádua solicitava do sacristão uma das varas do pálio. José Dias pediu uma para si.

--Há só uma disponível, disse o sacristão.

--Pois essa, disse José Dias.

--Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.

--Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha.

Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na paróquia, como José Dias. Assim fez, mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.

--Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu José Dias piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.

--Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.

Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.

Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam. fiquei comovido. Pádua roía a tocha amargamente.

É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.

A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quina ou dezesseis anos que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça, os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:

--Não chore assim!

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:

--Não ria assim!

Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distancia, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distancia menor, -- o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.

Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.

CAPÍTULO XXXI / AS CURIOSIDADES DE CAPITU

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a idéia da Europa, mostrou se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:

-- Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?

--Não marcou dia; prometeu que ia ver; que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um Capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.

--Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento- descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.

Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações em latim:

--César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércio!

--E quanto valia cada sestércio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:

--É o maior homem da história!

A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai, tinha um grande colar, um diadema e brincos.

--São jóias viúvas, como eu, Capitu.

-- Quando é que botou estas?

-- Foi pelas festas da Coroação.

--Oh! conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...

CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.

--Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.

Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:

--Há alguma cousa?

--Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?

--Eu bem. José Dias ainda não falou?

--Parece que não.

-- Mas então quando fala?

--Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...

-- Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.

--Teimo- hoje mesmo ele há de falar.

--Você jura?

--Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.

--Você?

--Eu mesmo.

--Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

--Se embaraçar, você desembaraça depois.

--Vamos ver.

––––––––––-
continua…

domingo, 14 de abril de 2013

Messody Benoliel (Poesias & Trovas)

NÃO MAIS SOZINHA
.
Após um show, o retorno
na madrugada fria e chuvosa.
perigosas encruzilhadas
calçadas tortuosas

 E o ônibus não chega,
o pavor se apodera de mim.
De repente, um atabaque
batendo forte
chamando por OGUM.

 Tento em vão descobrir
de onde vem aquele canto
em louvor ao dono do aço.

 Mas o ônibus chegou
o medo passou
passou o cansaço.

SOLIDÃO

Na total solidão dessa casa,
onde respiro atmosfera triste,
não restou, de um mundo de guerras,
nenhum adversário a combater.

 Agora o inimigo quer paz.
Pudera! Ganhou a guerra!
E a guerreira, ingênua,
querendo salvar o que já havia perdido.

 As lágrimas predominando,
traição e cinismo destruindo
todo um sentimento verdadeiro,
abafado no peito, transformando-se em ódio.

 Ódio de mim e de você
que, ao premeditar a fuga,
tentou deixar sem rumo
quem só tinha olhos para vê-lo.

 No canto dos pássaros há esperança...
que conforta, que é alento.
Levo comigo a lembrança
de um amor, que foi amor por muito tempo.

SE...

Se amar é devanear à luz do dia,
deixando arder a chama interior,
creio sentir a esplêndida euforia
de ter vivido intensamente o amor.

 Se amar é não sofrer melancolia
e nem sequer de leve um dissabor,
um outro sentimento eu não devia
deixar crescer, enfim, com tanto ardor.

 Se foi assim, culpo a você somente
que me esqueceu sem pena, sem demora
não sei se infeliz ou felizmente.

 E se hoje vivo uma saudade imensa,
recordo com tristeza o amor de outrora
e a cicatriz dessa ferida intensa.

IDENTIDADE

Eu sou assim, coberta de incerteza
e paradoxalmente incontrolável
creio, portanto, mais do que explicável,
ser sempre um mar em plena correnteza.

 Sou o que sou devido a natureza
que não me quer de forma controlável
vivendo em ansiedade insustentável
que me atiça com muita sutileza.

 Sou contraste, sou várias numa só
sou fêmea calejada por amar
sabendo dar um laço e dar um nó.

 Sou outras, não sou nada certamente
necessário será me apaixonar
Para ser muitas, de repentemente.

ESTRADA QUE EU QUERIA

Vim pela estrada, certa de encontrar
a presença de um ombro doce e amigo,
passei por cravos, rosas e bendigo
a beleza do sol a rebrilhar.

De repente parei meu caminhar
ouvindo vozes a cantar comigo
canções ao som de um realejo antigo,
suavizando assim, o meu penar.

Contemplando o painel da natureza,
queria mais estrada percorrer,
extasiada de ver tanta grandeza.

Mas esqueci que a tarde já se ia
e a noite escura a me surpreender,
afastou-me da estrada que eu queria.

INCERTEZAS

Olhando o céu em busca do infinito
nuvens garbosas querem me dizer
que nesse espaço que não é restrito
elas bem sabem como se esconder.

Rara beleza em coração aflito
traz incertezas ao amanhecer,
fazendo assim, de um sonho tão bonito,
cruel verdade em que não quero crer.

Como é possível tal transformação?
teus tons mesclados, róseos, me encantavam
e de repente, a imensa escuridão.

Deixei de apreciar tuas belezas,
pois hoje sei o quanto me enganavam,
nuvens em mim ficaram… incertezas…

TACACÁ COM BASTANTE CAMARÃO

E mamãe me chamava:
– Vem, filha, vem almoçar.
Sem dar resposta, permanecia no meu quarto.

Aos gritos então insistia:
– Você vem ou não vem?
– Não, estou sem fome.

À noite, quando papai chegou, ela disse:
Ramiro, esta garota está doente ou
está comendo na rua muita porcaria…
Apavorada me escondia para
ouvir o que papai dizia:

– Deixe a menina em paz
Vai ver comeu na casa da coleguinha.
Na verdade, verdade mesmo, ao sair
da escola, pertinho do Largo da Pólvora,
tomava meu tacacá na lanchonete do bairro.
Aquela goma fresquinha com tucupi
e jambu treme-treme, me satisfaziam
pelo resto do dia.

Sei não, o açaí não tinha vez
por falta absoluta de espaço.

E papai ao saber de tudo, disse orgulhoso:
Minha filha puxou a mim que,
além de tacacazeiro, não abro mão
de um tacacá fresquinho com bastante camarão!

TROVAS

Nas asas da liberdade
firmei meu corpo a voar,
pois ser livre é ter vontade
de não parar de sonhar.

Minha mãe não tem descanso
nem após sua partida,
pois de chamá-la não canso,
pelos caminhos da vida.

Fontes:
– http://messodybenoliel.tripod.com/curriculum.htm
– http://www.poetasdelmundo.com/detalle-poetas.php?id=3900
– http://acervodagraphia.wordpress.com/category/messody-benoliel/

Messody Benoliel (1933)

Messody Ramiro Benoliel, artisticamente conhecida como Messody Benoliel nasceu no Rio de Janeiro aos 26 de novembro de 1933.

A família da avó de seu pai veio de Tânger e, vinda para o Brasil, parte do clã fixou-se em Belém do Pará e parte em Manaus, no Amazonas. Filha única de Sol Cohen Benoliel (nascida em Itacoatiara, Amazonas) e Ramiro Benoliel (nascido em Cametá, Pará),

Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (velho casarão do Catete), em l956, tendo sido a primeira Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-Mulher, da 28º Subseção e durante 2 biênios, Presidente da Subcomissão de Direitos Humanos da OAB, também na 28º Subseção, na década de oitenta.

Como cantora, começou pelas mãos de Renato Murce, no Programa Papel Carbono, da Rádio Nacional, na década de cinquenta. Cantava músicas do repertório de Dinah Shore, Ella Fitzgerald, Doris Day e de outros cantores estrangeiros. Cantou com grandes orquestras nos bailes de formatura, como ainda canta, com grandes músicos brasileiros, o Clássico Popular, MPB e Sambas. Em francês, tem agradado muito a todos que a ouvem, tendo sido chamada de Edith Piaf brasileira, pelo saudoso cantor intérprete Ivon Cury.

Profissionalizou-se há muitos anos e canta em 5 idiomas.

Como compositora ficou conhecidíssima no Município de Saquarema, onde durante mais de dez anos, foi autora dos sambas para os blocos Reco-Reco e Grilo, os quais eram cantados por ela nos ensaios e durante os desfiles carnavalescos.

É também autora de toadas cantadas pela população. Em 85, recebeu o título honofífico de Cidadã Saquarenense, do qual muito se orgulha, das mãos do Juiz de Direito Dr. Leomil Pinheiro.

Como poeta começou a fazer poesia aos 14 anos de idade Foi Presidente fundadora da Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro (APPERJ) pertencendo a várias Academias de Letras, tendo sido a primeira mulher a ser Vice-Presidente da Federação das Academias de letras do Brasil, biênio 98/99, possuindo várias obras em Cordel, sendo Vice-Presidente da Sociedade Literária do Soneto, que se reúne mensalmente, no centro de Cidade do Rio de Janeiro.

Entidades a qual pertence:
– Presidente da Academia Brasileira de Trova,
– Assessora da Presidência da Casa do Compositor Musical (CCM).
– Fundadora e Assessora da Presidente da ALAP (Academia de Letras e Artes de Paranapuã),
– Fundadora do INBRASCI (Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais),
– Vice Presidente Vitalícia da Academia Brasileira de Literatura de Cordel,
– Presidente Fundadora da Sociedade Literária do Soneto (SOLIS),
– Membro Efetivo da ACLERJ (Academia de Letras e Artes do Rio de Janeiro do Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes ,
– Membro da APALA (Academia Pan Americana de Letras e Artes),
– Membro da Luso Brasileira de Letras e Artes,
– Membro Honorária da Academia Nacional de Letras,
– Membro do Pen Clube do Brasil,
– Membro do ARTPOP (Academia De Letras e Artes de Cabo Frio),
– Membro da UBE - (União Brasileira de Escritores),
– Membro Honorária da Academia Brasileira de Letras Mariana-MG,
– Membro da Sociedade Eça de Queiroz,
– Membro do Sindicato de Escriitores do Rio de Janeiro,
– Presidente Fundadora da APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro),

– Premio da Academia de Ciencias, Letras e Artes de Paris, fundada em 1915, tendo recebido em  2010 a Medalha VÈRMEIL das mãos da Presidente Jaqueline Vermére, em Paris, indicada pelo Consul da França, com incontáveis premios como poeta (sonetista, cordelista e trovadora) e também com versos livres.

2011 – Troféus Cecilia Meireles e Carlos Drummond de Andrade, em Itabira Minas Gerais.

Autora dos livros de poesia:
A Solidão Que Ficou;
À Flor Da Pele;
Sob Todas as Coisas;
Identidade em Noite de Coroação;
In Verbis e
FACES,
 
com várias obras em cordel:
Primórdios da Literatura Cristã,
Leonardo Motta sua vida e sua obra,
A Coisa Preta na Casa Branca, etc.

Fontes:
– A Autora
– http://messodybenoliel.tripod.com/curriculum.htm
– http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_messody.htm
– http://www.poetasdelmundo.com/detalle-poetas.php?id=3900
– http://acervodagraphia.wordpress.com/category/messody-benoliel/

sábado, 13 de abril de 2013

Orlando Woczikosky (Livro de Trovas)

A cantar, a minha vida,
eu canto em qualquer cidade,
mas minha terra querida,
eu não canto sem saudade!

Agora sou nau sem rumo,
Que zarpou da mocidade,
Para encalhar, eu presumo,
No banco duma saudade.

A mãe da gente é uma luz
que brilha, brilha e rebrilha:
dá-nos vida e nos conduz
pela mais sagrada trilha.

Amor que não tem saudade,
é planta que não dá flora;
amor que é amor de verdade,
na saudade é mais amor.

A mulher é diferente
no terreno da emoção:
- O homem diz sim e consente,
ela consente e diz não!

A nossa UBT querida
é meu verdadeiro amor,
faz parte da minha vida
como a um jardim, uma flor.

Às vezes, na multidão,
estou só sem ver ninguém,
porque a maior solidão
é estar longe do meu bem.

A vagar pela cidade
Hoje, bem longe de ti,
Vejo, através da saudade,
O tesouro que perdi.

Beba água mineral
e viva despeocupado,
porque água só faz mal
para quem morre afogado.

Cônscio de que nada valho,
quando te beijo, formosa,
eu sou uma gota de orvalho
que tremeluz numa rosa.

Convidei a minha sogra
pra passear no Butantã:
a velha mordeu a cobra,
e a cobra ficou tantã!

Curitiba, paraíso
Que mil encantos encerra,
Linda Cidade-Sorriso:
– Sorriso da minha terra!

Dezoito anos de idade
Completei no fim da guerra,
No fim da calamidade
Que tingiu de sangue a terra.

Dentro de certas pessoas
há duas forças latentes:
uma que as trona tão boas,
outra que as vira serpentes.

Desde que cedo me acordo,
Até que à noite me deito,
Com saudade te recordo,
Meu único amor perfeito!

Em noites de lua cheia,
no tênue alvor que se espraia,
minha alma foge e vagueia,
perambulando na praia.
 

É nobre quem não exalta
vitória já conquistada,
pois a nobreza mais alta
é vencer sem dizer nada.

É nos olhos que a pimenta
quando toca nos magoa:
quem tem sogra não a aguenta,
quem não tem diz que ela é boa.

Esta saudade é uma luz,
Na noite da minha vida,
O guia que me conduz
À tua imagem, querida.

Eu fui a tua metade
E foste a minha, porque,
Agora, só na saudade
Inteiro a gente se vê!

Eu não gosto de sorteio
Porque a sorte é contra mim:
Talvez porque eu seja feio,
De uma feiura sem fim.

Eu não troco uma jazida
De ouro puro e refinado,
Por uma hora vivida
Na saudade do passado.

Eu nasci pobre na vida,
no entanto sei quanto valho,
pois conheço a dor sentida
dos que tombam no trabalho.

Felicidade é a esperança
que está sempre em nós presente,
mas a gente não a alcança
e ela não alcança a gente!

Flavo sol que as flores pintas
com doce tonalidade,
empresta-me as tuas tintas,
quero pintar a saudade.

Minha avó, que já está morta,
queria tudo perfeito:
até fazendo uma torta,
fazia torta direito.

Não fosse a necessidade
De tanto, tanto te amar,
Sufocaria a saudade
Nas profundezas do mar.

Não me comove a riqueza,
E nem lhe adoro a conquista,
Pois, em saudade e pobreza
Também sou capitalista.

Não te incomodes, querida
Se o meu peito a dor invade,
Pois, são temperos da vida
A dor, o amor e a saudade.

Não vim para te dar um beijo,
vim pra te dar muito mais,
vim dizer que te desejo
O melhor dos teus Natais!

Natal é uma festa linda,
festa de luz e esplendor,
que nos rememora a vinda
De Jesus, Nosso Senhor.
 

Nesta vida de percalços
todo mundo tem defeitos,
mas entre honestos e falsos
todos se julgam perfeitos.

Neste ano, peça a Deus,
que a todos, como a você,
os mesmos tesouros seus,
aos seus semelhantes dê.

Ninguém proíbe que morras
nas tuas loucuras andanças,
mas dirigindo não corras
para não matar as crianças.

No dia dos namorados
fico triste, simplesmente,
por ver que há muitos coitados
sem ter a quem dar presente.

O amor é a coisa mais bela
deste mundo encantador!
E é você quem me revela
toda a beleza do amor!

O amor é igual à comida:
demais, não se dá valor;
quando falta em nossa vida,
dá-se a vida pelo amor!

Oh! doce mundo da infância,
todo em saudade tecido,
a recordar-te a distância,
eu choro por ter crescido.

Para trovar, certamente,
não bastam apenas rimas;
trovador inteligente
faz das trovas obras-primas.

Pela guerra não há glória:
- Perder, vencer, tanto faz!
- A verdadeira vitória,
só se alcança pela paz!

Por mais que hoje louve a vida
dos que fazem bem por lei,
trago n'alma a dor sentida,
dos males que pratiquei.

Pra me esquecer de você,
Tenho rezado à vontade!
Mas não te esqueço, porque
A minha reza é saudade.

Quando a trova justifica
sobejamente a valia,
- Rima pobre ou rima rica -
sempre é grande poesia.

Quando em meus braços te aperto,
todo o infinito sorri,
porque a vida é um céu aberto
quando estou perto de ti.

Quando tu fores velhinha
E eu também, da mesma idade,
Sentirás saudade minha,
Sentirei de ti saudade.

Quem diz que não tem saudade
e se é verdade o que diz,
não teve a felicidade
de já ter sido feliz.

Quem pratica a Medicina
espelhando-se em Jesus,
por certo Deus ilumina
com sua divina Luz.

Quem se afunda na bebida,
para afogar sua mágoa,
descobre, no fim da vida,
que a melhor bebida é água.

Que não valha a minha trova
por nada do que ela exiba,
senão por tudo o que prova
do valor de Curitiba.

Revivendo, na saudade,
a minha casa paterna,
Choro! Mas tenho vontade
que a saudade seja eterna.

Saudade é a lembrança viva
Daquilo que já morreu;
É fogo que inda se ativa
Das cinzas do escombro seu.

Saudade é coisa que nasce
À tona do pensamento,
E, por mais que o tempo passe,
Paramos nesse momento.

Saudade é lua que vaga
Nas sombras do sol do amor;
Quanto mais o sol se apaga,
Mais a lua traz langor.

Saudade é luz matutina
no crepúsculo da gente.
Sol que o passado ilumina
quando escurece o presente.

Se, à noite, chega o negror
E todo o meu ser invade,
Clareia-se o meu amor,
Dentro da luz da saudade.

Se eu de você fico ausente
e alguém os meus olhos vê,
lendo os meus olhos pressente,
no fundo deles, você!

Se partes, fica o desgosto
da minha alma sem a tua,
e eu pareço um rei deposto
perambulando, na rua.

Ser Presidente de Honra
da UBT, é, para mim,
mais do que uma simples honra,
é uma lisonja sem fim.

Sou feliz por te dizer,
em palavra comovida,
que minha vida é um prazer
se há prazer na tua vida.

Trocando sempre teus ares,
foges de mim com prazer;
mas apesar dos pesares
eu não te posso esquecer.

Tudo que é bom, nesta vida,
foge-nos celeremente,
somente a dor mais sentida
fica na vida da gente.

Vermelho igual ao tomate,
meu coração é um bife:
quanto mais alguém lhe bate,
mais amolece o patife.

Fonte:
José Feldman (org, sel, ed.). Trova Brasil numero 10 - abril de 2013

Olivaldo Júnior (Último Lampejo)

Quando se atravessa um deserto, espera-se encontrar um oásis. Ou não.

Uma lâmpada

Ficou acesa, quando devia ter ficado apagada.
Apagou-se, quando devia ter ficado candente.

Uma lâmpada, uma lâmina, uma luz guardada,
não uma busca, uma augusta chance presente.

Ficou à mesa, quando devia ter ficado velada.
Revelou-se, quando devia ter virado semente.

Uma lâmpada, uma lança, não uma luz parada,
mas uma luz, mas uma lua, grande e plangente.

Virou a presa, quando devia ter virado caçada.
Escondeu-se, quando devia ter virado nascente.

Uma lâmpada, uma lã, mina de luz, mais nada.

Moji Guaçu, SP, dezenove de março de 2013.

Cláudia Dimer (Não Serei Fim)

Fonte:
Facebook

Adelto Gonçalves (Ramalho Ortigão: vencido e vencedor da vida)

RAMALHO ORTIGÃO: UM MARCO NA LITERATURA PORTUGUESA, de Ednilo Soárez. 
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 382 págs., 2008.

I

No Brasil, entre os autores clássicos da Língua Portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) talvez só perca em popularidade para Machado de Assis (1839-1908). Já Ramalho Ortigão (1836-1915), que foi professor de Francês de Eça no Colégio da Lapa, no Porto, e deixou uma obra tão importante quanto a do ex-aluno, ainda é bem pouco conhecido.

Foi para ajudar a reparar esse desconhecimento e “por uma questão de justiça” que Ednilo Soárez, de 69 anos, diretor acadêmico da Faculdade Sete de Setembro, de Fortaleza, e membro da Academia Fortalezense de Letras, escreveu Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2008), que traz ainda prefácio assinado pelo professor doutor Ernesto Rodrigues, do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e textos de apresentação de Linhares Filho e Dimas Macedo.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto e estudou Direito na Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, dedicou-se ao ensino, dando aulas de Francês no Colégio da Lapa, do qual seu pai era diretor. Estabeleceu-se em Lisboa ao ser nomeado oficial da secretaria da Academia das Ciências, começando a colaborar em vários jornais e revistas. Fez várias viagens ao estrangeiro, idas que influenciaram o seu modo de ver Portugal, mas residiu durante a maior parte de sua vida na Calçada dos Caetanos, na freguesia da Lapa, em Lisboa.

Ortigão e Eça foram amigos da vida inteira e, inclusive, escreveram As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871. Na verdade, a publicação teve a colaboração de Eça de Queirós pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu como cônsul para as Antilhas espanholas.

Já a de Ramalho estender-se-ia ao longo de 11 anos. Para quem quiser conhecer o que foi esta colaboração a quatro mãos dos escritores, diga-se que saiu em 2004 uma nova edição de As Farpas - crônica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, livro editado sob coordenação-geral de Maria Filomena Mônica (Cascais, Principia).

Em Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa, Soárez traça um retrato da vida literária portuguesa do século XIX, indo do Romantismo, de Alexandre Herculano (1810-1877), ao Realismo, de Eça de Queirós, além de abordar as três principais obras do autor, A Holanda, John Bull e As Farpas, na impossibilidade de analisar uma obra imensa que reúne pelo menos 21 livros, dos quais três em dois volumes. Para o autor, esta obra é um reconhecimento pelo que o povo português fez pela nação brasileira, pois “foi graças a Portugal que temos essa dimensão territorial, essa miscigenação característica e essa diversidade de religiões no Brasil”.

II

Como observa Dimas Macedo num dos textos de apresentação, Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa não constitui uma biografia no sentido clássico de uma descrição cronológica dos fatos de uma vida, mas “um tributo à historiografia das ideias que determinaram a formação e a autonomia de voo de Ramalho Ortigão”. É, acrescente-se, mais uma “viagem sentimental”, um pouco à maneira de Laurence Sterne (1813-1868), em que o ensaísta percorre de maneira figurada o Portugal dos séculos XVIII e XIX para explicar como o país caiu na chamada “questão coimbrã” que resultou da reação de uma plêiade de jovens intelectuais, insatisfeitos com a situação de inferioridade à que estava reduzida a nação.

A essa época, Ramalho Ortigão surge, ao lado de Eça de Queirós, Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894) e Guerra Junqueiro (1850-1923), formados em Coimbra, como um dos espíritos mais lúcidos e representativos deste momento da literatura portuguesa. Foi contra a paralisia à que estaria relegado Portugal que esta geração turbulenta, a chamada Geração de 70, revoltou-se, voltando os olhos especialmente contra Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), que representava todo o status de tradição e autoridade que os jovens de então não queriam mais aceitar. Por isso, o grupo começou a idealizar um programa de reforma social e política.

Como disse Antero de Quental numa das famosas conferências do Cassino, em duzentos anos, a Península não produzira um só único homem superior, que se pudesse colocar ao lado dos grandes criadores da ciência moderna. Para Antero e para os seus companheiros de geração, enquanto as grandes nações européias fixaram sua riqueza na indústria e na agricultura, portugueses e espanhóis, com a conquista, teriam arruinado seu comércio, indústria e agricultura, propiciando as condições para o surgimento de gerações que haviam condenado Portugal ao atraso.

Como mostra Soárez, se essas conferências inflamadas serviram para incendiar o ambiente cultural e político de Lisboa, o foi por pouco tempo porque logo, com a passagem dos anos, esses jovens veriam que não seria possível, por meio da literatura, devolver a Portugal as glórias (ainda que hiperbólicas) das grandes navegações do século XVI. Frustrados, os antigos jovens de Coimbra formaram o grupo dos Vencidos da Vida, fixado em onze componentes porque Eça de Queirós, por pura superstição, não queria que fossem treze nem doze (para evitar qualquer associação com o número considerado fatídico).

III

Munido de vasta bibliografia, Soárez recupera os caminhos cruzados de Ortigão e Eça, detendo-se especialmente no ódio que ambos devotavam à classe política portuguesa do tempo que, como no Brasil, ainda não é muito diferente da de hoje– é bem provável que, tanto lá como cá, seja ainda pior. Lembra o autor que Ortigão criticava os políticos porque usavam frases de efeito, sem consistência prática, além de cometer muitos erros. “O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. Uma Câmara que fala mal é impossível que proceda bem”, dizia.

Quem quiser, por exemplo, usar esta frase, ao se referir ao Congresso brasileiro, por certo, não agirá mal. Ou ainda esta desta Eça de Queirós: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. (...) vem apenas a ser uma assembléia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim”.

Soárez, porém, não só louvaminha Ortigão e Eça, pinçando as suas melhores frases aqui e ali. Destaca também que Ortigão não escapou aos preconceitos de seu século, embora tivesse sido um dos espíritos mais lúcidos de uma geração brilhante, deixando-se trair pelo espírito machista, quando afirma: “(...) Nada a prende ao colégio: nem a serenidade da vida – porque é o sangue buliçoso e sacudido dos seus quatorze anos que aspira a repousar: nem o estudo – porque a mulher pela constituição de seu cérebro não adere aos interesses do estudo e da ciência”.

Para Soárez, a vida e a obra de Ramalho Ortigão representam uma síntese perfeita do que foi o século XIX, especialmente com As Farpas, que ocupam um capítulo especial no conjunto de sua produção literária, tal a mestria com que maneja a ironia. Um exemplo pinçado por Soárez é a maneira sarcástica como pinta os diplomatas portugueses de seu tempo, que passariam apertados em razão da pouca disponibilidade do erário régio para sustentá-los no exterior. “(...) E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais roast-beef para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. Lá fora sabe-se isto: e é sempre com terror que os donos da casa vêem entrar o embaixador português, à frente do seu pessoal esfomeado”.

IV

O livro de Soárez foi apresentado no dia 8 de novembro de 2008 na Reitoria da Universidade de Lisboa, em sessão que contou com a participação do professor Ernesto Rodrigues, autor do prefácio, e com a presença do reitor António Nóvoa, e do embaixador do Brasil, Celso Marcos Vieira de Sousa, abrindo o ano acadêmico da instituição.
Soárez é ainda membro da Academia Cearense de Retórica e sócio-efetivo do Instituto do Ceará e da Associação Brasileira de Bibliófilos. Escreveu o livro didático Idéias gerais para uma sala de aula feliz, a biografia Edilson Brasil Soárez, um marco na Educação, o romance A brisa do mar e o ensaio Miscigenação nos Trópicos.

Fonte:
Revista Storm

Alphonse Daudet (A Mula do Papa)

Entre todos os ditados, provérbios ou adágios com que os nossos camponeses da Provença entremeiam suas frases, não conheço nenhum outro mais pitoresco, nem mais original do que este. Numa extensão de quinze léguas ao redor do meu moinho, quando alguém se refere a um homem rancoroso, vingativo, costumam observar-lhe: “Cuidado com esse homem! É como a mula do papa, que guarda sete anos o seu coice”.

Durante muito tempo procurei a origem de tal provérbio, a fim de saber o que significava aquela mula papal e o coice guardado durante sete anos. Ninguém aqui soube esclarecer-me, nem mesmo Francet Mamai, tocador de pífaro, que conhece a fundo o legendário provençal. Francet supõe, como eu, que deve existir, envolvendo o ditado, alguma antiga crônica da região de Avinhão; mas não ouvira falar dela a não ser através do provérbio.

— O senhor só encontrará a explicação na biblioteca das Cigarras — observou o velho tocador de pífaro, rindo-se.

A idéia pareceu-me boa, e como a biblioteca das Cigarras fica perto de casa, lá me encerrei durante oito dias.

É uma maravilhosa biblioteca, admiravelmente instalada, aberta aos poetas dia e noite, e atendida por pequenos bibliotecários munidos de címbalos, que tocam música o tempo todo. Lá passei alguns dias deliciosos. Após uma semana de incessantes buscas, acabei descobrindo o que desejava, isto é, a história da mula e do famoso coice guardado durante sete anos. É um bonito conto, embora um tanto ingênuo, e vou experimentar narrá-lo tal como o li ontem de manhã num manuscrito cor do tempo, que rescendia a alfazema seca e tinha grandes fios da Virgem [1] como sinetes.

Quem não viu Avinhão no tempo dos papas, nada viu. Não havia cidade que se lhe comparasse em animação, no esplendor das festas. De manhã à noite eram procissões, peregrinações, ruas juncadas de flores, forradas com longas tapeçarias, recepções de cardeais que chegavam pelo Ródano, flâmulas ao vento, galeras embandeiradas, soldados do papa que cantavam nas praças em latim, matracas dos irmãos mendicantes; depois, nas casas que se comprimiam, zumbindo em redor do grande palácio papal como abelhas em torno da colméia, ressoavam, de cima a baixo, o tique-taque dos teares de renda, o vaivém das lançadeiras tecendo o ouro das casulas, os pequenos martelos dos cinzeladores de galhetas, as pranchas de cordas afinadas nas oficinas dos fabricantes de instrumentos musicais, os cânticos das fiandeiras; e, acima de tudo, o badalar dos sinos e o rumor dos tamborins que vinha lá do outro lado da ponte. Pois entre nós, quando o povo está satisfeito, precisa dançar; e como nesse tempo as ruas da cidade eram demasiadamente estreitas para servir de palco à farândola, tocadores de pífaros e de tamborins postavam-se na ponte de Avinhão, e à fresca aragem do Ródano o povo dançava.

Ah! que bons tempos! que ditosa cidade! Alabardas que não feriam, prisões do Estado onde o vinho era colocado para refrescar. Nem carestia, nem guerra! Aí está como os papas do condado sabiam governar o povo; e aí está por que o povo tanto lamentou a ausência deles!

Havia sobretudo um, o bom velho chamado Bonifácio... Oh! quantas lágrimas foram derramadas em Avinhão, quando ele morreu! Era um príncipe tão amável, tão agradável! De cima de sua mula ele sorria para todos. E quando alguém passava a seu lado — fosse um pobre e insignificante apanhador de garança ou o importante juiz da cidade — dava-lhe a bênção com tanta cortesia! Um verdadeiro papa de Yvetot [2], mas de um Yvetot provinciano, com algo malicioso no riso, um galhinho de manjerona no barrete e nenhuma Jeanneton [3]. A única preferência que se lhe conhecia era por sua vinha — uma pequena vinha que plantara com suas próprias mãos, a três léguas de Avinhão, entre as murtas de Châteauneuf.

Todos os domingos, ao sair das vésperas, o digno homem ia prestar-lhe homenagem; e lá, sentado ao sol, ao lado da mula, rodeado pelos cardeais estendidos junto aos troncos, ele mandava desarrolhar uma garrafa de vinho recente, do belo vinho cor de rubi, que foi chamado mais tarde Châteauneuf-du-Pape, e saboreava-o aos pequenos goles, fitando a vinha com ternura. Ao declinar do dia, esvaziada a garrafa, ele regressava alegremente para a cidade, seguido pelo capítulo. Quando passava pela ponte de Avinhão, no meio dos tambores e das farândolas, a mula, animada pela música, tomava uma andadura miúda e saltitante, enquanto ele marcava o compasso da dança com o barrete, o que muito escandalizava os cardeais, mas fazia o povo exclamar: “Ah! que bom príncipe! Ah! que ótimo Papa!”

Depois da vinha de Châteauneuf, o que o papa mais amava no mundo era a sua mula. Bonifácio era louco pelo animal. Todas as noites, antes de deitar-se, ia verificar se o estábulo estava bem fechado, se faltava alguma coisa na manjedoura, e nunca se levantava da mesa sem que mandasse preparar sob as suas vistas uma grande tigela de vinho, à francesa, com bastante açúcar e drogas odoríferas; e malgrado as observações dos cardeais, ele mesmo a levava para a mula.

É preciso observar que o animal merecia tais cuidados. Era uma bonita mula negra, mosqueada de vermelho, passo firme, pêlo brilhante, ancas largas e cheias, que sabia erguer altivamente a cabecinha fina, toda ajaezada de borlas, de laços, de guizos de prata e de fitas. Além disso, mais mansa do que um anjo, com olhos ingênuos e duas longas orelhas sempre em movimento, que lhe davam um ar bonacheirão. Avinhão inteira a respeitava, e quando ela passava pelas ruas não havia cortesias que não recebesse; pois todos sabiam que era a maneira mais segura de obterem favores na corte, e que, com o seu ar inocente, a mula do papa conduzira mais de uma pessoa aos braços da fortuna; aí estão Tistet Védène e sua prodigiosa aventura, para prová-lo.

No início, Tistet Védène era um rapazinho atrevido, a quem o próprio pai, o ourives Guy de Védène, fora obrigado a expulsar de casa, porque se recusava a trabalhar e desencaminhava os aprendizes. Durante seis meses viram-no perambular por todos os cantos de Avinhão, mas principalmente pelos lados do palácio papal; pois havia muito tempo que o patife deitara as vistas sobre a mula do papa, e veremos com que intenções malignas. Certo dia, quando Sua Santidade passeava sozinho no seu animal, sob os muros do pátio, Tistet Védène aborda-o e observa, juntando as mãos num gesto de admiração:

— Ah, meu Deus! Grande papa, que bela mula vós possuís! Permiti que a olhe um pouco... Ah! meu papa, que linda mula! nem o imperador da Alemanha tem outra igual!

E Tistet acariciava o animal e falava-lhe suavemente, como se fosse uma moça:

— Minha jóia, meu tesouro, minha pérola preciosa.

E o bom papa, comovido, dizia consigo mesmo: “Que bom rapazinho! Como é amável com a minha mula!”

E sabem o que aconteceu no dia seguinte? Tistet Védène trocou o velho paletó amarelo por uma alva de rendas, uma opa de seda violeta, sapatos de fivelas, e entrou no coro papal, onde antes dele só os filhos dos nobres e os sobrinhos dos cardeais tinham sido recebidos. Vejam só quanto pode a intriga!

Mas Tistet não se deu por satisfeito. Depois de entrar no serviço do papa, o malandro continuou a fazer o seu jogo, que tão bons resultados produzira. Insolente com todos, só reservava suas atenções e cortesias para a mula. Era sempre visto nos pátios do palácio, tendo nas mãos um punhado de aveia ou um molho de feno, cujas pencas cor-de-rosa delicadamente ele sacudia, enquanto fitava o balcão do Santo Padre, como se dissesse: “Então? Para quem é isso?”

Tanto fez, que finalmente o bom papa, que se sentia envelhecer, lhe deu a incumbência de cuidar do estábulo e de levar a tigela de vinho à francesa para a mula. Mas dessa vez os cardeais não acharam graça.

Também a mula não achou graça... Agora, à hora do vinho, ela assistia à chegada de cinco ou seis pequenos sacristães do coro papal, que se metiam no meio da palha com suas opas e suas rendas. Pouco depois, um cheiro gostoso de caramelo e de especiarias enchia o estábulo, e Tistet Védène surgia trazendo com precaução a tigela de vinho à francesa. Então começava o martírio do pobre animal.

Tinham a crueldade de levar à sua manjedoura o vinho perfumado, que ela tanto apreciava, e de fazê-la cheirá-lo; depois, quando as suas narinas se impregnavam do aroma — adeus! O belo líquido cor de chamas rosadas descia inteirinho pela garganta daqueles patifes. Se apenas se limitassem a roubar-lhe o vinho... Porém, depois de terem bebido, os pequenos sacristães se transformavam em verdadeiros demônios: um lhe puxava as orelhas; o outro, a cauda; Quiquet montava-lhe nas costas; Béluguet punha-lhe o barrete na cabeça. E nenhum desses malandros imaginava que com um golpe de flanco, ou um coice, o pacífico animal poderia enviá-los à Estrela Polar, e até mais longe. Nada disso! Nunca se esquecia de que era a mula do papa, a mula das bênçãos e das indulgências.

Por mais que a atormentassem, ela não se zangava. Se guardava rancor, era apenas contra Tistet Védène. Quando percebia que este se encontrava à sua retaguarda, sentia cócegas no casco, e na verdade sobravam-lhe motivos para tanto. Aquele tratante Tistet pregava-lhe bem boas peças. Tinha invenções cruéis depois de beber... Pois não se resolveu um dia a obrigá-la a subir ao pequeno campanário do coro, lá em cima, bem em cima, no alto do palácio?

O fato que lhes relato não é anedota, dois mil provençais presenciaram-no. Imaginem o terror da desgraçada mula quando, após ter dado voltas durante uma hora inteira numa escada de caracol, quase às cegas, e tendo subido não sei quantos degraus, subitamente se encontrou numa plataforma ofuscante de luz. A mil pés abaixo, avistou um Avinhão fantástico, onde as barracas do mercado não eram maiores do que avelãs; os soldados do papa, postados diante da caserna, pareciam formigas vermelhas; e lá longe, sobre um fio de prata, equilibrava-se uma ponte microscópica, cheia de gente que dançava, dançava... Ah! Pobre animal! que pânico!

Todos os vidros do palácio tremeram com o berro que soltou.

— Que aconteceu? que lhe fizeram? — exclamou o bom papa, precipitando-se para o balcão.

Tistet Védène, que já regressara ao pátio, fingiu que chorava e arrancava os cabelos:

— Ah! Grande papa, o que aconteceu! Aconteceu que a vossa mula... Meu Deus! que será de nós?... Aconteceu que a vossa mula subiu ao campanário.

— Sozinha?!

— Sozinha, sim, grande papa... Vede! Olhai para cima. Não vedes aparecendo lá a ponta de suas orelhas? Dir-se-iam duas andorinhas!

— Misericórdia! — exclamou o pobre papa, erguendo os olhos. — Mas ela enlouqueceu! vai matar-se... Não quer descer daí, minha pobre!...

Ai dela! Não pedia outra coisa senão descer. Mas como fazê-lo? Não podia pensar na escada. Fora-lhe possível subir por uma coisa daquelas, mas se fosse descer, arriscava-se a quebrar cem vezes as pernas. A pobre mula afligia-se, e enquanto vagueava pela plataforma com seus grandes olhos cheios de vertigem, pensava em Tistet Védène: “Ah bandido! Se eu escapar desta, que coice você levará amanhã cedo!”

A idéia do coice dava-lhe um pouco de firmeza às pernas, sem o que ela não se agüentaria. Enfim, depois de um sem-número de peripécias, conseguiram retirá-la lá de cima. Foi preciso descê-la com um guindaste, cordas, uma padiola. E imaginem que humilhação para a mula de um papa ficar suspensa de tamanha altura, agitando as patas no vácuo, como um besouro na ponta de um fio... E Avinhão inteira que a contemplava!

O infeliz animal não dormiu nessa noite. Estava sob a impressão de continuar a dar voltas na maldita plataforma, enquanto a cidade se ria lá embaixo. E também pensava no infame Tistet Védène e no belo coice com que ela o brindaria na manhã seguinte. Ah! meus amigos, que coice! Até em Pampérigouste avistariam a fumaça.

Ora, enquanto a mula preparava a Tistet Védène uma bela recepção no estábulo, sabem o que fazia ele? Descia o Ródano numa galera papal, cantando, em direção à corte de Nápoles, em companhia dos jovens nobres que a cidade enviava todos os anos para junto da rainha Jeanne, a fim de exercitarem-se na diplomacia e nas boas maneiras. Tistet não era nobre, mas o papa fazia questão de recompensá-lo pelos cuidados que prodigalizava à mula, e principalmente pela atividade que ele desenvolvera durante o salvamento da mesma.

Bem que a mula ficou desapontada no dia seguinte. “Ah! bandido! Desconfiou de alguma coisa! — ponderou ela, sacudindo violentamente os seus guizos. — Não importa, malvado! Ao regressar, você encontrará o seu coice. Vou guardá-lo”. E assim o fez.

Depois da partida de Tistet, a mula da papa voltou à sua rotina tranqüila e retomou os antigos hábitos. Nem Quiquet nem Béluguet apareciam na estrebaria. Os belos dias do vinho à francesa retornaram, e com eles o bom humor, as longas sestas e o passinho de gavota ao passar pela ponte de Avinhão. Contudo, após a aventura do campanário, a cidade esfriara um pouco em relação à mula. Cochichavam quando ela passava, os velhos balançavam a cabeça e as crianças riam, apontando o campanário. O próprio papa não depositava em sua amiga a mesma confiança. Quando se permitia um cochilo às suas costas, ao regressar da vinha, fazia-o com certa prevenção: “Se eu fosse acordar lá em cima, na plataforma!” A mula observava tudo isso e sofria, sem nada dizer. Apenas, quando pronunciavam na sua frente o nome de Tistet Védène, suas compridas orelhas estremeciam, e com um risinho mau ela aguçava no calçamento o ferro dos seus cascos.

Assim transcorreram sete anos. Ao cabo desse tempo, finalmente Tistet Védène regressou da corte de Nápoles. Ainda não concluíra o seu estágio, mas soubera que o primeiro mostardeiro do papa acabava de falecer subitamente, em Avinhão. E como o posto lhe parecera bom, embarcara às pressas a fim de incorporar-se à fila dos candidatos.

Quando o intrigante Védène entrou no salão do palácio, o santo padre mal o reconheceu, tanto ele crescera e encorpara. É preciso dizer que o bom papa envelhecera bastante, e já não enxergava tão bem. Tistet não se intimidou:

— Como! Santo papa, não me reconheceis? Eu, Tistet Védène...

— Védène?

— Sim, bem sabeis... O rapaz que levava o vinho francês à vossa mula.

— Ah! sim... sim... lembro-me. Um bom rapazinho, esse Tistet Védène. E agora, que desejais de nós?

— Oh! pouca coisa, santo papa. Vim pedir-vos... A propósito, a vossa mula ainda está viva? E vai bem? Ah! tanto melhor! Eu vinha pedir-vos o lugar do primeiro mostardeiro, que acaba de morrer.

— Primeiro mostardeiro, tu! Mas és muito jovem. Que idade tens?

— Vinte anos e dois meses, ilustre pontífice, justamente cinco anos mais que a vossa mula... Ah! senhor, que bom animal! Se soubésseis como eu gostava da vossa mula, como senti saudades dela na Itália! Ser-me-á permitido vê-la?

— Sim, meu filho, tu a verás — respondeu o bom papa, comovido. — E já que estimas tanto esse bravo animal, não quero mais que vivas longe dele. De hoje em diante ficas a meu serviço na qualidade de primeiro mostardeiro. Meus cardeais protestarão, mas tanto pior, estou habituado. Vem procurar-nos amanhã, à saída das vésperas. Nós te entregaremos as insígnias da tua nova dignidade, na presença de nosso capítulo. Depois eu te levarei para ver a mula, e nos acompanharás à vinha. Ah! ah! ótimo!

Não preciso dizer-lhes se Tistet Védène estava contente ao sair do salão, nem com que impaciência aguardou a cerimônia do dia seguinte. Contudo, havia no palácio alguém mais feliz e mais impaciente do que ele: era a mula. Desde o regresso de Védène até as vésperas do dia seguinte, o terrível animal não cessou de empanturrar-se de aveia e de bater na parede com os cascos traseiros. Também se preparava para a cerimônia.

E no dia seguinte, após terem sido rezadas as vésperas, Tistet Védène fez sua entrada no pátio do palácio papal. Todo o alto clero se encontrava presente: os cardeais em trajes vermelhos, o advogado do diabo vestido de veludo negro, os abades do convento com suas pequenas mitras, os provedores de Saint-Agricol, o coro com opas violetas, e também confrarias de penitentes, os eremitas do monte Ventoux com suas fisionomias fechadas, o pequeno clérigo atrás carregando a campainha, os irmãos flageladores, nus até a cintura, os sacristães vestidos com togas de juízes — todas, todos, até os doadores de água benta, e aquele que acende, e aquele que apaga, não faltava um só. Ah! Era uma bela ordenação! Sinos, foguetes, sol, música, e sempre aqueles danados tamborins que marcavam a dança, lá na ponte de Avinhão.

Quando Védène apareceu no meio da assembléia, seu garbo e sua bela presença fizeram perpassar um murmúrio de admiração. Era um magnífico provençal, dos louros, com longos cabelos de pontas frisadas e uma pequena barba caprichosa, que parecia feita com as lascas de metal precioso caídas do buril de seu pai, o ourives. Corriam rumores de que os dedos da rainha Joana tinham brincado algumas vezes com aquela barba loura; e efetivamente o senhor de Védène ostentava o ar glorioso e o olhar distraído dos homens que foram amados por rainhas. Nesse dia, a fim de honrar a sua terra, ele substituíra os trajes napolitanos por uma jaqueta com debruns cor-de-rosa, à provençal, e no seu chapéu tremulava uma grande pena de íbis de Camargue.

Depois de ter entrado, o primeiro mostardeiro cumprimentou com galhardia e dirigiu-se para o alto patamar onde o papa o aguardava para entregar-lhe as insígnias da sua nova dignidade: a colher de buxo amarelo e o hábito cor de açafrão. A mula permanecera ao pé da escada, toda ajaezada e pronta para seguir para a vinha. Ao passar perto dela, Tistet Védène sorriu-lhe amavelmente e deteve-se para dar-lhe dois ou três tapinhas amigáveis nas costas, enquanto observava com o canto do olho se o papa o estava vendo. O momento era propício. A mula tomou impulso: “Toma, bandido! Faz sete anos que o guardo para você!”

E deu-lhe um coice tão violento, tão terrível, que até em Pampérigouste foi vista a fumaça, um turbilhão de fumaça loura onde voltejava uma pena de íbis, tudo quanto restava do infortunado Tistet Védène.

Habitualmente os coices das mulas não costumam ser tão fulminantes. Mas era uma mula papal, e além disso, pensem bem: ela o guardava havia sete anos!
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NOTAS:
1 - Fils da la Vierge — fios escapados do fuso de Maria, segundo a imaginação popular. São produzidos por diversas aranhas nômades e que não fazem ninhos.
2 - Yvetot — vila da França que foi antigamente capital de um pequeno reino. Em virtude de uma canção popular, o rei de Yvetot ficou na literatura como o tipo do rei bonacheirão.
3 - Jeanneton — termo de gíria. Significa criada de albergue, de costumes fáceis.

Fonte:
Alphonse Daudet, Lettres de mon moulin. In http://contosbemcontados.blogspot.com.br/

Lino Mendes (Baú de Memórias: Quinta-Feira da Ascenção)

É uma “data” que ainda se festeja em várias terras do País, creio  que há dois anos em Lisboa, os “ raminhos de esperança”, assim lhe chamavam, eram vendidos a um euro e meio.”Trata-se de um ritual pagão e religioso, que tem como objectivo benzer os primeiros frutos primaveris e levar para casa um ramo florido que simboliza a fartura e a harmonia para a família”(DN).

Em tempos idos, também por aqui a “Quinta-feira da Ascensão” era tempo de festa com piqueniques e bailaricos, sendo o Pinhal das Lourenças um dos lugares de que me falam. E, claro , na parte da tarde toda a minha gente ia apanhar a espiga. Hoje, alguém se lamentava, é que tudo acabou…

Este dia de quinta-feira, corresponde ao da Ascensão de Cristo aos Céus quarenta dias após a ressurreição, por isso o dito popular de que “ da Páscoa à Ascensão quarenta dias vão”. Não se sabe no entanto, quando a mesma passou a coincidir com o “dia da espiga”, determinando que ao fator litúrgico se aliasse a componente pagã. Litúrgico , porque então e nesse dia, nos templos católicos e do meio dia à uma se celebrava a reza da hora; pagã, por toda uma série de actividades ligadas ao campo e ao camponês para quem, segundo Mircea Eliade (antropólogo e historiador) a terra era entendida como a Grande Mãe.

Há hábitos que se vêm perdendo com o decorrer dos tempos e funcionavam mesmo com um sentido apelativo à protecção, como colocar ramos de oliveira por cima das portas e das janelas para dar sorte, para combater as trovoadas. Hábitos que hoje seria interessante recordar e manter como tradição, acredite-se ou não, por exemplo, que” quem tem trigo da Ascensão todo o ano terá pão”.

“Tradicionalmente, no Alentejo deve-se colher o Ramo da Espiga do meio-dia à uma hora da tarde e consta que o ramo seja constituído por cinco folhas de oliveira, cinco espigas de trigo e o maior número possível de flores amarelas e brancas. Por vezes, e segundo as devoções de cada um, esta “apanha” era acompanhada pelo rezar de cinco Pai-Nossos, cinco Avé Marias e cinco Glórias, ”sendo “ que o número e a espécie de elementos constituintes do Ramo varia de terra para terra, de grupo para grupo, de família para família”. (Rui Arimateia—Diário do Sul-7/5/97).

Em MONTARGIL, e tanto quanto sabemos, para dar sorte, para não se acabar o dinheiro, era feito um ramo com três ou cinco espigas de centeio , trigo e cevada, um raminho de oliveira e flor do campo (papoila e malmequer), que depois se guardava em casa, pendurado até ao ano seguinte.

Fonte:
O Autor

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXVII)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

024

Está se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.

125

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.

109

Eu cantei já, e agora vou chorando
o tempo que cantei tão confiado;
parece que no canto já passado
se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta: —Quando?
—Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
contentamentos não, mas confianças;
cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

111

Eu vivia de lágrimas isento,
num engano tão doce e deleitoso
que em que outro amante fosse mais ditoso,
não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tão contente e alegre estado,
e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem só me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me à memória o bem passado.

065

O Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télefo temido,
por aquele que n'água foi metido,
a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia
conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura
que, ferido de ver vos, claramente
com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,
que fico como hidrópico doente,
que co beber lhe cresce mor secura.

091

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!

066

Fiou se o coração, de muito isento,
de si cuidando mal, que tomaria
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto tem na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hipólito casto, que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito:

em mim vingou o amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito.

087

Foi já num tempo doce cousa amar,
enquanto m'enganava a esperança;
O coração, com esta confiança,
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem aventurança,
tanto menos se crê que há de durar!

Quem já se viu contente e prosperado,
vendo se em breve tempo em pena tanta,
razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,
não o magoa a pena nem o espanta,
que mal se estranhará o costumado.

126

Fortuna em mim guardando seu direito
em verde derrubou minha alegria.
Oh! quanto se acabou naquele dia,
cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito
que a tal bem, tal descanso se devia,
por não dizer o mundo que podia
achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a Fortuna o fez por descontar-me
tamanho gosto, em cujo sentimento
a memória não faz senão matar-me ,

que culpa pode dar-me o sofrimento,
se a causa que ele tem de atormentar-me,
eu tenho de sofrer o seu tormento?

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem formatada obtida na internet, sem identificação do autor.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 4

CAPÍTULO XIX / SEM FALTA

Quando voltei casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomendações de Capitu: "Preciso falar-lhe, sem falta. amanhã; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras e parei.

Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. "E Capitu tem razão, pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado... Jeitoso é, pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o plano de mamãe."

CAPÍTULO XX / MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS

Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: "Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o seminário".

A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.

"Mil, mil", repeti comigo.

Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações de menino te enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...

CAPÍTULO XXI / PRIMA JUSTINA

Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera.

--Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim?

--Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.

A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha.

Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:

--Vida de padre é muito bonita.

-- Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou rindo.

--Eu gosto do que mamãe quiser.

--Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça.

--Quem é?

--Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu também não.

--José Dias? concluí.

--Naturalmente.

Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada Prima Justina completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a promessa antiga.

--Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e que a vida de padre é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde falou como você não imagina...

--Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro com a vizinha.

Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa que não podia dizer. Novamente me recomendou que não me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:

--Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa?

--De quê?

--Era capaz de... Suponha que eu gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mamãe...

--Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra cousa, não peço, Se ela me consultasse bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, você que acha?", a minha resposta era: "Prima Glória, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar". É o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.

CAPÍTULO XXII / SENSAÇÕES ALHEIAS

Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era com o gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.

CAPÍTULO XXIII / PRAZO DADO

--Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me.

Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá. José Dias vinha andando cheio de leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saíam maiores da boca dele, os lagos tinham mais água e a "abóbada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas centelhantes. Nos diálogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação a ternura e a cólera.

Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:

--Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei a mamãe. É dia de lição?

--A lição foi hoje.

--Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave e pura.

--Sim, senhor.

--Até amanhã.

Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma altercarão; minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.

--Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio Público.

CAPÍTULO XXIV / DE MÃE E DE SERVO

José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira cousa que consegui logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da desinência exata, ele a corrigia, meio sério para dar autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda Ajudava assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele assistia às lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha depressa?" Chamava-me "um prodígio"; dizia a minha mãe ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade, possuía já certo número de qualidades morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio.

CAPÍTULO XXV / NO PASSEIO PÚBLICO

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim:

--Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.

--Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?

--É verdade, mas foi tão de passagem. . .

--Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.

--Mas eu andei algumas vezes...

--Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...

--Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia. não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas camaras."

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:

--Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.

Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.

--Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns instantes.

--Pois que outra cousa, Bentinho?

--Neste caso, peço-lhe um favor.

--Um favor? Mande, ordene, que é?

--Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.

--Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

--Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.

José Tobias endireitou-se pasmado.

--Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser, mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado natural mente, peremptório, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

--Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:

--Mas que posso eu fazer? perguntou.

--Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...

--São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais, por quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitíssimo Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um,--é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.

--Há de ser também o de proteger os amigos, como eu.

--Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a ambição e O sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter Bentinho no seminário".

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde.

--Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.

-- Se eu quiser? Mas que outra cousa quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão que seja feliz, como merece?

--Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto: para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para S. Paulo...
Machado de Assis (Dom Casmurro) 5

CAPÍTULO XXVI / AS LEIS SÃO BELAS

Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, -- uma idéia que o alegrou extraordinariamente. Calou se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:

--É tarde, disse ele, mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são belas; meu querido... Pode ir a S. Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo, fale também a seu tio.

--Hei de falar.

--Pegue-se também com Deus,-- com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu apontando para o céu.

O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés, na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me:

--Deus fará o que o senhor quiser.

--Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer na teologia que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa...

Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja: Podemos ir juntos, veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são belíssimas!

--Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?

--Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo! Ah! você não imagina o que é a Europa; Oh! a Europa...

Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos.

--Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
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continua

Ditados Populares do Brasil (Letra U, V, Z)

Um dia é da caça, outro do caçador
U

Um burro carregado de livros não é doutor
Um dia a terra cobrirá o teu orgulho.
Um ranchinho , teus carinhos e nada mais.
Um dia é da caça o outro do caçador
Um é pouco, dois é bom, tres é demais.
Um gambá cheira o outro.
Uma andorinha só, não faz verão
Uma mão lava a outra.

V
 
Vai ocioso, a formiga que lhe diga
Vão-se os anéis, fiquem os dedos.
Vaso ruim não se quebra.
Veja seus erros, depois corrija os meus.
Velho não se senta sem “ui”, nem se levanta sem “ai”.
Venha sorrindo, mas limpe os pés.
Viajar sem carga afrouxa o carro e aperta o dono.
Vida sem religião é viagem sem rumo.
Vinho, ouro e amigo, o melhor é o mais antigo.
Vinte e três pessoas falam de mim; só falta você.
Vitamina de chofer é carinho de mulher.
Vitamina de Chevrolet é poeira de Ford.
Viúva é como café requentado.
Viúva é como lenha verde: chora, chora, mas pega.
Viva e deixe os outros viverem.
Viver com sogra é fazer vestibular para o céu.
Vivo correndo para não morrer devendo.
Velho e cesto se acabam pelo fundo.
Vender o peixe pelo preço de fatura.
Vintém poupado, vintém guardado.
Vivendo é que se aprende.

Z
 
Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades .