quarta-feira, 10 de abril de 2019

A. A. De Assis (Trovas Brincantes) III, final


31
Com as gêmeas Gema e Clara
casou seus filhos... e o povo
diz agora quando o encara:
- Lá vai o sogro do ovo!

32
Pergunta a noiva ao rapaz,
temendo futura bronca:
- "Na cama o que é que tu faz:
tu ronca or not tu ronca?..."

33
Vira-bosta não trabalha;
põe ovos em ninho alheio...
Por isso é que se atrapalha,
e vira um troço tão feio!

34
Mico é o cara ir ao boteco
levando a esposa consigo
e ouvir já de longe o eco:
- De castigo!... De castigo!...

35
Rato-rato, rói o rato
um roto resto de pão...
Rente, rouco, rosna um gato,
come o rato e rouba o pão!

36
Um mais um, seja onde for,
são dois... mas, por sua vez,
um mais uma, havendo ardor,
ao nono mês serão três!

37
- Aceitas dar-me os deleites
da próxima contradança?...
- Aceito, desde que aceites
não me apertar contra a pança!

38
Se o cansaço o desconforta,
recolha-se ao quarto, tranque-o,
e ponha o aviso na porta:
Do not disturb... thank you.

39
Do Natal ao Ano Novo
a folga é pouca... O ideal
é deixar de folga o povo
do Ano Novo até o Natal!

40
Debulhando, debulhando,
se enchia o pilão de milho...
Depois, coisando, coisando,
se enchia a casa de filho!

41
Vô é um potro de brinquedo
que o filho soube amansar,
para que o neto, sem medo,
pudesse agora montar...

42
O lobo e o cordeiro, airosos,
vão comer juntos... Depois,
os homens, nem mais gulosos,
vão comer juntos os dois!...

43
Que bela ficas, mocinha,
se pões, por esmero e gosto,
ideias na cabecinha,
mais que pinturas no rosto!

44
Estranho cartaz colado
num carro que eu vi na esquina:
" Vendo a dinheiro ou fiado...
ou troco por gasolina!"

45
"Que delícia isso no espeto!",
diz faminto o gulosão,
quando ao pódio, no coreto,
sobe o touro campeão...

46
Fez-se o casório... no entanto,
o noivo não tinha o dom...
Por vingança, a noiva, em pranto,
foi reclamar no Procon!

47
Tanto encharcou-se em bebida,
que o boêmio, "alto" e em bom som,
ao despedir-se da vida,
pediu a conta ao garçom!...

48
Ao notar a Lua "cheia",
surpreso o Sol resmungou:
- Se um mês atrás eras "meia",
quem foi que te engravidou?...

49
O comilão, na cozinha,
cai de boca na penosa...
- Quem manda ela ser galinha,
e além de tudo gostosa!...

50
Trata o vovô com respeito,
ou logo o castigo vem:
- dele herdarás só o direito
de ficar velho também...

Fonte:
José Fabiano & A. A. De Assis. Trovas brincantes. 2007.

Monteiro Lobato (Os Dois Viajantes na Macacolândia)


Dois viajantes, transviados no sertão, depois de muito andar alcançam o reino dos macacos.

Ai deles! Guardas surgem na fronteira, guardas ferozes que os prendem, que os amarram e os levam à presença de S. Majestade Simão III.

El-rei examina-os detidamente, com macacal curiosidade, e em seguida os interroga:

— Que tal acham isto por aqui?

Um dos viajantes, diplomata de profissão, responde sem vacilar:

— Acho que este reino é a oitava maravilha do mundo. Sou viajadíssimo, já andei por Seca e Meca, mas, palavra de honra! Nunca vi gente mais formosa, corte mais brilhante, nem rei de mais nobre porte do que Vossa Majestade.

Simão lambeu-se todo de contentamento e disse para os guardas:

— Soltem-no e deem-lhe um palácio para morar e a mais gentil donzela para esposa. E lavrem incontinenti o decreto de sua nomeação para cavaleiro da mui augusta Ordem da Banana de Ouro.

Assim se fez e, enquanto o faziam, El-rei Simão, risonho ainda, dirigiu a palavra ao segundo viajante:

— E você? Que acha do meu reino?

Este segundo viajante era um homem neurastênico, azedo, amigo da verdade a todo o transe.

Tão amigo da verdade que replicou sem demora:

— O que acho? É boa! Acho o que é!…

— E que é que é? — interpelou Simão, fechando o sobrecenho.

— Não é nada. Uma macacalha… Macaco praqui, macaco prali, macaco no trono, macaco no pau…

— Pau nele — berra furioso o rei, gesticulando como um possesso. Pau de rachar nesse miserável caluniador…

E o viajante neurastênico, arrastado dali por cem munhecas, entrou numa roda de lenha que o deixou moído por uma semana.

Moral: Quem for amigo da verdade, use couraça ao lombo.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Um Gotejar Sem Chuva - Fumos e Névoas


UM GOTEJAR SEM CHUVA

Esse dia, meu pai apareceu em casa todo molhado. Estaria chovendo? Não, que o nosso telhado de zinco nos teria avisado. A chuva, mesmo miudinha, soaria como agulhinhas esburacando o silêncio.

      - Caiu no rio, marido?

      - Não, molhei-me foi por causa dessa chuva.

      - Chuva?

      Espreitamos na janela: era uma chuvinha suspensa, flutuando entre céu e terra. Leve, pasmada, aérea. Meus pais chamaram àquilo um “chuvilho”. E riram-se, divertidos com a palavra. Até que o braço do avô se ergueu:

      - Não riam alto, que a chuva está é dormindo...

      Durante todo dia, o chuvilho se manteve como um cacimbo sonolento e espesso. As gotas não se despencavam, não soprava nem a mais pequena brisa. A vizinhança trocou visitas, os homens fecharam conversa nos pátios, as mulheres se enclausuraram. Ninguém se recordava de um tal acontecimento. Poderíamos estar sofrendo maldição.

      Que houvesse um desfecho para aquela chuva: isso esperávamos com ansiedade. Nesse aguardo, eu me distraía olhando os milhares de arco-íris que luzinhavam a toda a volta. Nunca nenhum céu se tinha multiplicado em tantas cores. Dizia minha mãe, a chuva é uma mulher. Uma dessas viúvas de vaidade envergonhada: tem um vestido de sete cores mas só o veste nos dias em que sai com o Sol.

      A indecisão da chuva não era motivo para alegria. Ainda assim eu inventei uma graça: meus pais sempre me tinham chamado de pasmado. Diziam que eu era lento no fazer, demorado no pensar. Eu não tinha vocação para fazer coisa alguma. Talvez não tivesse mesmo vocação para ser. Pois ali estava a chuva, essa clamada e reclamada por todos e, afinal, tão pasmadinha como eu. Por fim, eu tinha uma irmã, tão desajeitada que nem tombar sabia.

FUMOS E NÉVOAS

      E passou-se um dia sem que a chuva descesse. Nos juntamos na varanda interrogando os céus. Sob o alpendre fazia muito silêncio. Meu avô, no assento de balanço, chefiava a vigília. Ao lado, a cadeira sagrada de sua falecida esposa, nossa avó Ntoweni. Desde que ela morrera, o assento nunca mais fora ocupado por ninguém.

      E agora ali estávamos nós, calados, incapazes de raciocínio e com medo de entender. Por fim, meu avô ousou falar.

      - Essa chuva traz água rio bico.

      Foi de repente, meu pai se ergueu e anunciou o pensamento: havia que bater naquela água, forçá-la a tombar. Deu uns passos por diante e, num gesto largo, comandou:

      - Tudo a remexer!

      Saímos todos com pás, vassouras e panos. Todos menos o avô que mal se erguia sozinho. E varremos o ar, socando as gotas como se agredíssemos fantasmas. Mas a chuva não tombava, as gotas viravolteavam no ar e depois, como aves tontas, voltavam a subir.

      Ao fim de um tempo, meu pai se afastou de nós para não vermos uma sombra pousar em seu rosto.

      - De onde vem isto? - perguntou ele em voz quase viva, não querendo ficar calado, mas evitando ser ouvido.

      - Deve ser feitiço - sugeriu o avô.

      - Não - disse a mãe. - São fumos que vêm da nova fábrica.

      - Fumos? Pode ser. sim, isto só aconteceu depois dessa maldita fumaça...

      - São esses fumos que estão a atrapalhar a chuva. A água fica pesada, já não aguenta ser nuvem...

      Estremecemos, aflitos: a chuva tinha perdido o caminho. Acontecia à água o que sucede aos bêbados: esquecia-se do seu destino. Um bêbado pode ser amparado. Mas quem poderia ensinar a chuva a retomar os seus milenares carreirinhos?

      No poente, vimos o avô, o meu pai e os meus tios se encaminharem para o pátio do régulo. Assunto de chuvas é da competência dos deuses. É por isso que existem os samvura, os donos da chuva. São eles que falam com os espíritos para que estes libertem as águas que moram nos céus.

      Os homens grandes se juntaram durante toda a noite, um mau presságio lhes dava encosto. O que sucedia era um jamais acontecido. Ninguém poderia ter ousado demoniar a chuva. Na nossa terra, toda água é benta.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Caldeirão Poético 21


Desilusão

Qualquer dia, qualquer hora,
Ponho minha viola no saco,
Pego um par de chinelos e sapatos,
Arrumo a mochila e vou embora.

Não quero ficar pra assistir o final,
Esforçar pro filme não acabar mal,
Se não posso mudar o roteiro
Tenho direito de querer estar fora.

Minha bagagem é mesmo pequena.
Sou coadjuvante em qualquer cena,
E no fim, do longa, sempre alguém chora.

Nunca fui muito bom de comédia,
Virou drama e eu perdi as rédeas.
Substitua-me que eu quero ir embora.



Menino Pobre

O que vê o menino pobre
ao contemplar seu brinquedo,
– um carrinho, antes nobre -
de algum dia de folguedo?

É carrinho de criança,
agora sujo, sem roda,
que deixou toda esperança
de, sorrindo, andar na moda.

Olhando para o carrinho,
o bom menino nem chora.
É feliz pelo carinho
da pobre mãe que o adora.

Humilde é sua casinha,
o ambiente é familiar.
Sempre a alegria avizinha
do calor de um doce lar.

Em sua infância nem vê
que há tantos sonhos quebrados!
Dizem jornais que se lê:
Quantos sorrisos roubados!

Por esta infância tão dura,
que será do sue porvir?
Hoje, com sua alma pura,
a pobreza o vê sorrir.

Como será deu futuro,
neste país de apreensão?
Vê-se aqui tanto perjuro,
tanta injúria e corrupção.

Sem tanta oportunidade
de algum emprego decente,
esvai-se a felicidade
numa terra inconsequente.

A Pátria é cheia de dor,
e dor sem nenhum mistério…
Neste mundo há enganador
até lá no Ministério.

Mas n’alma desta criança,
mesmo que a pobreza a sagre,
há chance, muita esperança,
ainda que por milagre.


Paladino do Amor
(Tributo a Martins Fontes)

Gota a gota, sorveste as volúpias da Vida,
na embriaguez total de quem sonhos procura.
E em base de ideal, foste a ânsia incontida,
que arrasta e que arrebata aos vórtices da altura!

Paladino do amor! Foste, em missão cumprida,
a bondade que alenta! A esperança que cura!
Tié-fogo santista, a Glória é refletida
no perfil que deixaste esboçado em ternura.

Em teus rumos de luz, venceste, Martins Fontes,
com fúria de vulcão, as mais torpes campanhas!
E no céu da Poesia, além dos horizontes,

és astro a fulgurar, com brilho eterno e nobre!
Bem acima da inveja e suas artimanhas,
és Sol que não se apaga! A terra não te encobre!


Trilhos da Salvação

Os trilhos entram no túnel
como quem entra no quarto-escuro
no muro
impuro
das lamentações.

Os trilhos saem do túnel
como quem sai da fumaça
que abraça
não passa
embaça.

Agora é o sol raiando
o verde araucária
as pedras bem desenhadas
os parreirais azuis do vale
que saltam
que passam
que ficam.

Agora é a carga pesada
o sorriso aberto
o suor pingando
o maquinista feliz
que olha
que atende
que vai.

Agora é o progresso
que vos seguro
nos trilhos bem duros
de pensamentos modernos
mas ternos
eternos
visionários.

São trilhos de salvação
esses trilhos que teimam
e resistem cem anos
ao tempo e a tudo
levando as flores do progresso
aos jardins do mundo
sem nome
sem fome
com paz!


Rosto de Mulher

Por onde andei eu procurei teu rosto
na multidão passando na avenida.
Alguns olhos me falam de desgosto,
outros acenam numa despedida.

Não encontrei, embora bem disposto
aquela voz de amor, enternecida,
que me manteve vivo no meu posto
minorando as agruras desta vida.

A esperança renasce a cada aurora,
e enquanto a vida se fizer presente,
a procura também se faz mister…

Meu coração, cativo, ainda chora
querendo amenizar a dor pungente,
– a ausência deste rosto de mulher!


A Vida

Quando as minhas pernas fraquejarem,
me ampara, me ajuda, me auxilia,
segura a minha mão, me ensina a guia,
se os meus olhos, cansados, se embaçarem.

Se todos os meus nervos mutilarem,
desculpa os meus stress, minha arrelia,
compreende-me, me afaga, dia a dia,
quando os meus instintos se acabarem.

Espero que ainda guarde na lembrança,
aquilo que eu lhe fiz, tão pequenino
e o quanto eu compreendi a meninice,

e se hoje sou um velho, uma criança,
dispensas as traquinices de um menino
com todos os contratempos da velhice!

Vinicius de Moraes (O Exercício da Crônica II)


Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado.

Alguns fazem-no de maneira simples e direta, sem caprichar demais no estilo, mas enfeitando-o aqui e ali desses pequenos achados que são a sua marca registrada e constituem um tópico infalível nas conversas do alheio naquela noite. Outros, de modo lento e elaborado, que o leitor deixa para mais tarde como um convite ao sono: a estes se lê como quem mastiga com prazer grandes bolas de chicletes. Outros, ainda, e constituem a maioria, "tacam peito" na máquina e cumprem o dever cotidiano da crônica com uma espécie de desespero, numa atitude ou-vai-ou-racha. Há os eufóricos, cuja prosa procura sempre infundir vida e alegria em seus leitores e há os tristes, que escrevem com o fito exclusivo de desanimar o gentio não só quanto à vida, como quanto à condição humana e às razões de viver. Há também os modestos, que ocultam cuidadosamente a própria personalidade atrás do que dizem e, em contrapartida, os vaidosos, que castigam no pronome na primeira pessoa e colocam-se geralmente como a personagem principal de todas as situações. Como se diz que é preciso um pouco de tudo para fazer um mundo, todos estes "marginais da imprensa", por assim dizer, têm o seu papel a cumprir. Uns afagam vaidades, outros, as espicaçam; este é lido por puro deleite, aquele por puro vício. Mas uma coisa é certa: o público não dispensa a crônica, e o cronista afirma-se cada vez mais como o cafezinho quente seguido de um bom cigarro, que tanto prazer dão depois que se come.

Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica "não baixa". O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: "É... não há nada a fazer com Fulano..." Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: "Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores!" E o negócio sai de qualquer maneira.

O ideal para um cronista é ter sempre uma os duas crônicas adiantadas. Mas eu conheço muito poucos que o façam. Alguns tentam, quando começam, no afã de dar uma boa impressão ao diretor e ao secretário do jornal. Mas se ele é um verdadeiro cronista, um cronista que se preza, ao fim de duas semanas estará gastando a metade do seu ordenado em mandar sua crônica de táxi - e a verdade é que, em sua inocente maldade, tem um certo prazer em imaginar o suspiro de alívio e a correria que ela causa, quando, tal uma filha desaparecida, chega de volta à casa paterna.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Vinicius de Moraes (O exercício da crônica I)



O cronista trabalha com um instrumento de grande divulgação, influência e prestígio, que é a palavra impressa. Um jornal, por menos que seja, é um veículo de ideias que são lidas, meditadas e observadas por uma determinada corrente de pensamento formada à sua volta. Um jornal é um pouco como um organismo humano. Se o editorial é o cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os pulmões; o artigo de fundo, o fígado; e as seções, o aparelho digestivo - a crônica é o seu coração. A crônica é matéria tácita de leitura, que desafoga o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho e uma certa disponibilidade dentro de um cotidiano quase sempre "muito lido, muito visto, muito conhecido", como diria o poeta Rimbaud.

Daí a seriedade do oficio do cronista e a frequência com que ele, sob a pressão de sua tirania diária, aplica-lhe balões de oxigênio. Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra - os chamados essayists - praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crônica moderna, com um zelo artesanal tão proficiente quanto o de um bom carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade, casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison, Stecle, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb – estes os dois maiores - fizeram da crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras.

Do último, a crônica "O convalescente" serviria bem para ilustrar o estado de espírito maníaco - lírico - depressivo do cronista de hoje, inteiramente entregue ao egoísmo de sua doença e à constante consideração de sua pessoinha, isolado no seu mundo de cortinas corridas, a lamber complacentemente as próprias feridas diante de um espelho pessimista. Num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer em ser também ele um doente; em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo sofrimento físico; na falta de segurança e objetividade dos enfraquecidos por excessos de cama e carência de exercícios. Sua obrigação é ser leve, nunca vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crônica é um copo d'água em que todos bebem, e a água há que ser fresca, limpa, luminosa para a satisfação real dos que nela matam a sede.

Num momento em que o grande mal de grande parte do mundo é o entreguismo, a timidez e a franca covardia, o exercício da crônica reticente, da crônica vaga, da crônica temperamental, da crônica ególatra, da crônica à clef, da crônica da cartola - é um crime tão grande quanto o de se vender, em época de epidemia, um antibiótico adulterado. A restauração da crônica, no espírito da dignidade com que a praticaram os essayists ingleses do século XVIII, deveria constituir matéria de funda meditação por parte de seus cultores no Brasil.

Monteiro Lobato (As Duas Cachorras)


Moravam no mesmo bairro. Uma era boa e caridosa; outra, má e ingrata.

A boa, como fosse diligente, tinha a casa bem arranjadinha; a má, como fosse vagabunda, vivia ao léu, sem eira nem beira.

Certa vez… a má, em véspera de dar cria, foi pedir agasalho à boa:

- Fico aqui num cantinho até que meus filhotes possam sair comigo. É por eles que peço…

A boa cedeu-lhe a casa inteira, generosamente.

Nasceu a ninhada, e os cachorrinhos já estavam de olhos abertos quando a dona da casa voltou.

- Podes entregar-me a casa agora?

A má pôs-se a choramingar.

- Ainda não, generosa amiga. Como posso viver na rua com filhinhos tão novos? Conceda-me um novo prazo.

A boa concedeu mais quinze dias, ao termo dos quais voltou.

- Vai sair agora?

- Paciência, minha velha, preciso de mais um mês.

A boa concedeu mais quinze dias; e ao terminar o último prazo voltou. Mas desta vez a intrusa, rodeada dos filhos já crescidos, robustos e de dentes arreganhados, recebeu-a com insolência:

- Quer a casa? Pois venha tomá-la, se é capaz…

 Moral da Estória:  Para os maus, pau!

domingo, 7 de abril de 2019

Roberto Pinheiro Acruche (Lenda da “Bailarina” Ana em Versos)

* veja a lenda na postagem abaixo



Ana, linda bailarina,
nasceu, só para dançar;
foi desde muito menina
que começou a bailar!

A todos ela encantava
com a sua arte e beleza
e quando ela bailava...
seduzia... a natureza...

Os pássaros gorjeavam,
era só raiar o dia
as borboletas voavam
fazendo coreografia...

Tudo, no tempo parava
para fazer cortesia,
até o vento abrandava
quando a Ana aparecia...

Por inveja e por despeito,
foi vítima da maldade...
Desapareceu de um jeito
que ninguém sabe a verdade...

Dizem que foi na floresta,
mas nunca foi encontrada,
por isso, há quem atesta,
que a floresta foi cortada...

Vingando-se... certo dia,
a floresta reagiu,
onde a floresta existia
a bailarina surgiu...

Uma árvore de beleza
sem que outra igual exista,
assim fez a natureza
uma estátua da artista…

Fonte:
O trovador

Roberto Pinheiro Acruche (Lenda da “Bailarina” Ana)


A chuva caia fina e persistente, era uma tarde de sábado em plena primavera; o clima era agradável; e pela vidraça da janela avistava-se o campo verdejante. O Jardim que ficava na frente e em uma das laterais da casa, estava lindamente florido, multicolorido e esbanjando um aroma gostoso, que estimulava aspirá-lo profundamente, num suspiro suave, prolongado e repetido. Naquele momento, não se avistava os colibris, presença continuada nos dias claros e ensolarados, pairando sobre as rosas, dálias, crisântemos, girassóis, margaridas e tulipas, nem as borboletas, sempre numerosas, uma das criaturas voadoras mais belas, que vinham colorir ainda mais a paisagem; mesmo assim o panorama era espetacular; as folhagens encharcadas pela chuva branda, levemente soprada pelo vento, faziam jorrar as águas acumuladas, como se fossem lágrimas de felicidade. No interior da residência, o casal, ainda moço, que havia contraído núpcias um pouco além da adolescência, conversava e assistia alegremente seus quatro filhos e filhas, três lindas meninas e o primogênito, que brincavam; dedicando, no entanto, atenção especial para a caçulinha, que bailava enquanto seus irmãos entoavam cantigas infantis, o que fazia desde os seus primeiríssimos passos. Tudo parecia perfeito naquele lar, que fora constituído sob as inspirações do amor. Durante os mais diversos assuntos que o casal tratava, especulava-se sobre o futuro das crianças. – Dizia a D. Marta: - Vou cuidar para que minhas filhas sejam bastante prendadas; elas vão saber pintar, bordar, marcar, costurar e cozinhar... Enquanto o Senhor Herculano profetizava... -nosso filho, Hermínio vai pra cidade estudar, vai ser veterinário, para cuidar do gado e continuar os serviços da propriedade.

Assim começou esta história, contada pelo Senhor Arivaldo e D. Rutinha, casal que morava numa propriedade vizinha, amicíssimos da família e que nesse dia ao passar pelas proximidades da residência dos sitiantes, resolveu dar uma chegada, para se abrigar das chuvas, que nessa hora era mais intensa.

O Senhor Herculano, homem de respeito e querido na região, a despeito de ser o mais novo proprietário, entre os outros, era reconhecido como trabalhador, honesto, cumpridor de seus deveres e muito prestativo; gostava de reunir com os amigos para prosear, falar das suas experiências na lavoura, com o gado e falar do sonho que alimentava de ver o filho, formado, prestando assistência aos criadores da região e dedicando-se a terra.

Enquanto isso, o menino, que estava para completar onze anos de idade, acordava todos os dias, bem cedinho, e caminhava até a escola rural que ficava aproximadamente uns três quilômetros de distância de onde morava; na volta dos estudos, ainda ajudava o pai a complementar a ração dos animais e recolhe-los ao curral. Como todo menino, gostava de montaria e nos fins de semana juntar-se a garotada para jogar futebol.

O tempo passava, e com muito trabalho, dedicação e perseverança, os planos do Senhor Herculano pareciam ser mais ambiciosos; e toda família se reunia nas atividades diárias de plantação, colheita, tratamento dos animais. D. Marta ensinava às filhas, as prendas domésticas; Rosália, a filha mais velha já costurava e bordava com muita habilidade, além de usar muito bem a arte de pintar; Isolda, sua outra filha, também muito dedicada, já executava lindos pontos de marca e preparava temperos excepcionais; com exceção da mais jovem, a Ana, que bailava o tempo todo, desde muito pequena, bastava ouvir uma música, o cantarolar da mãe, dos irmãos, ou dela mesma, entoando sons para movimentar os braços, os passos e executar os rodopios; até mesmo quando escutava a passarinhada gorjeando e no silêncio de suas caminhadas a caminho da escola, ou outro qualquer, por onde passava. Apesar da influência da mãe e das irmãs, não conseguia aprender, nem mesmo, prender um botão ou costurar uma bainha. Isso incomodava demais os seus pais, que preocupados, não entendiam a fascinação pela dança e conter o desejo incontrolável de bailar da bela filha, que no passar dos dias, crescia mais formosa, mais encantadora, cuja beleza chamava a atenção de todos que a avistava.

No teatrinho improvisado da escola, lá estava a Ana sendo aplaudida pela plateia entusiasmada; da mesma forma, nas festinhas de aniversários, quando era convidada para exercer a sua arte. Os seus passos pareciam leves como a pluma, seu equilíbrio era perfeito, seus movimentos tinham graça e precisão; as poses e passos eram primorosamente combinados; e a admiração maior, de todos que a conhecia, era saber que ela nunca esteve numa escola de Balé e, no entanto executava com perfeição o cambre, batterie, battement, glissê, deboulés, fouetté e tantos outros passos do balé clássico.

Toda essa sua paixão pela arte de dançar e a beleza com que fazia, foi se tornando cada vez mais conhecida, e essa informação ia chegando aos teatros, às companhias e as escolas de danças.

A curiosidade a respeito, e o desejo de conhecer tão magnífica dançarina, foram crescendo, despertando o interesse dos coreógrafos, de importantes e consagrados diretores de teatros da época. Ao mesmo tempo, que crescia a fama, também crescia a inveja, o despeito, a ciumeira de outras jovens e a intolerância de algumas dançarinas que não conseguiam por mais que esforçasse, se apresentar com o mesmo encanto e perfeição; e chacoteavam dizendo: Como pode uma bailarina da roça, que nunca frequentou uma academia de dança, ter a petulância, a audácia de se denominar bailarina.

Ana, a majestosa dançarina, não se importava com esses comentários desairosos. O seu sonho de dançar era cada vez mais fluente; o importante era bailar, flutuar pelos palcos, passear entre os cenários, flores, luzes e encantar as plateias. O seu gosto de menina, foi se transformando em aspiração; enquanto as apresentações imaginadas não aconteciam, continuava bailando pela casa, pelo jardim, fazendo com as borboletas, que sobrevoavam as plantas, coreografias ritmadas por numerosos pássaros, que pareciam conhecer os seus anseios, daí formando uma orquestra canora de sonoridade esplendorosa, verdadeiramente indescritível. Nesses momentos, a natureza postava-se para apreciar o espetáculo; às arvores, os animais ficavam completamente silentes e os ventos brandeavam; as águas de um pequeno córrego que ficava nos arredores, magicamente se continham.

O mistério de Ana, assim passou a ser murmurado o fato de tão encantadora jovem, que nasceu e residia em área rural, afastada da cidade, e que tinha gestos suaves, singelos, gentis, além de inexplicavelmente dominar a arte de dançar de maneira perfeita e de exuberante beleza.

Um belo dia, ensolarado, ainda pela manhã, Ana seguida por uma nuvem de pássaros que sobrevoavam em sua volta, bailava por um dos caminhos, da propriedade onde morava, o que não era novidade, pois muitas vezes assim procedeu, adentrou a uma pequena floresta onde costumeiramente dançava contemplando a natureza.

Como demorava muito para retornar a casa, nunca havia se afastado por tanto tempo, a sua mãe, já aflita, pediu ao filho que estava chegando para que fosse procurar a irmã, e este ao ouvir o relato do que estava ocorrendo, imediatamente retomou a montaria e saiu a sua busca; porém foi inútil, não a encontrou em nenhuma parte, assobiou, gritou e não recebeu resposta.

Como o sol já se escondia no horizonte, e o filho também não retornava, a D. Marta, desesperada, acompanhada de suas outras filhas, saiu pela redondeza pedindo ajuda para que os procurassem e os encontrassem, pois temia que algo muito grave pudesse ter acontecido.

O Seu Herculano, que tinha ido à cidade próxima, tratar de interesses da família, chegando a casa, já anoitecendo, e não encontrando ninguém, ficou com o pressentimento de que algo muito estranho estava acontecendo; o jantar não estava pronto, o fogão apagado, os bordados que suas filhas estavam fazendo encontravam-se desarrumados na mesa da sala, o que não era comum; acendeu o lampião, pois a casa estava totalmente às escuras e diante da demora da mulher e dos filhos, também retomou a montaria, que ainda não havia retirado os arreios, e levando em uma das mãos um lampião aceso, a noite já estava bem escura, saiu a procura dos seus, quando em uma das propriedades vizinhas, uma senhora que permaneceu em casa, relatou o que estava ocorrendo e que todos saíram a procura da jovem desaparecida.

Abatido pela preocupante notícia, Seu Herculano partiu rapidamente para se juntar aos demais, e depois de muito caminhar, encontrou a D. Marta, as duas filhas mais velhas, todos os seus vizinhos, empregados das propriedades próximas, que com fachos de luz, lampiões vasculhavam todos os lugares sem encontrar a ditosa moça. Cansados, pelas horas de incessante procura, ninguém admitia desistir de dar continuidade as buscas, estavam determinados, mesmo sabendo que teriam de enfrentar a escuridão e outros riscos por ela proporcionados.

Ainda sem saber explicar o que aconteceu, pois de nada recordava, Hermínio, que foi encontrado caído, sem sentidos, ao lado de sua montaria, que permanecia ali, parada,como se estivesse protegendo a sua integridade, era um dos mais abatidos, pois passou quase todo o dia, sem água e se alimentar, a procura da talentosa irmã. Com as forças abaladas, também insistia para que as buscas não fossem interrompidas.

Varou-se a noite, o dia já estava clareando, os primeiros raios de sol chegavam, ainda que timidamente, e não se tinha o menor vestígio da bailarina.

Cada espaço, cada parte da propriedade foi minuciosamente averiguado, sem sucesso. O que teria ocorrido? Como alguém poderia desaparecer assim, tão estranhamente, sem vestígios, sem uma razão aparente? Não havia estranhos, que se tinha conhecimento, o lugar era pacato, todos se conheciam e eram amigos e jamais ouve um caso de desaparecimento naquele local, que se tivesse notícia.

O ocorrido passou a ser de conhecimento de toda a região, auxílios foram solicitados, mais pessoas se integraram aos grupos de buscas que foram formados.

Continuava o mistério!... Nenhuma informação que pudesse ajudar, e cada hora que passava, maior era o desespero dos familiares. Onde a Ana poderia estar? Perdida... Não seria o caso, pois conhecia bem todo o local!... E se tivesse ferida, não pudesse caminhar, ou se algo pior aconteceu? Aumentava o drama! O medo de não encontrá-la salva, com vida afetava o coração de todos, principalmente dos seus pais.

D. Marta, que muito havia chorado, sob os cuidados de algumas amigas, ainda em lágrimas, dizia: Meu Deus, onde está a minha filhinha, tão bonita, tão feliz?

Depois de longa busca por toda a região, sem nenhum sinal da filha tão querida, Seu Herculano resolveu derrubar toda a mata que tinha na propriedade; acreditava ser aquela a última medida a ser tomada para encontrar a jovem Ana.

Tomou todas as providências, contratou pessoal, fez mutirões e a floresta, antes tão preservada, foi definitivamente cortada, não restou uma árvore de pé.

Nem deste jeito foi encontrada a bailarina ou qualquer vestígio seu!

No local da bela floresta, ficou um descampado, que por longo tempo não brotava um mato qualquer.

Da Ana, só restava a saudade, a lembrança da linda jovem, alegre, sorridente e que vivia dançando.

Seu Herculano pensava em vender a propriedade e ir para bem longe dali, pois, para cada direção que olhava, vinha na memória, a imagem da Ana, dançando, sorridente e feliz... Com o que discordava D. Marta, mesmo tendo passado tanto tempo, continuava com a esperança, que sua filha, a caçulinha Ana, iria voltar.

Anos depois, no descampado, onde existia vistosa floresta, brotou uma única árvore, que foi crescendo, tomando forma, ficando a cada dia mais bonita... Ali, estava a bailarina, de braços suspensos num passo mavioso do balé clássico.

Fonte:
O Autor 

Roberto Pinheiro Acruche (1944)

Roberto Pinheiro Acruche, nasceu em 1944, em São Francisco de Paula, hoje São Francisco de Itabapoana, no Estado do Rio de Janeiro. 

Escritor, historiador, poeta, trovador e compositor, detentor de premiações em concursos de âmbito nacional de Trovas, Poesias e Crônicas. 

Autor dos Livros: 
“Apontamentos para a História de São Francisco de Itabapoana” 
“Minha Terra Também Faz Parte da História do Brasil” (ambos com edição esgotada); 
e “Mangue da Moça Bonita”. 

Tem vários de seus poemas inseridos na  “ A Verve de Sete Poetas e Escritores de Campos-RJ” números 01, 03, 04, 05, 06, 07 e 08. Participou da VERVE DA SAUDADE – Tributo ao Poeta Antônio Roberto Fernandes em 2009. 

Tem mais de 1400 (POESIAS) nos modelos Poemas, Sonetos e Trovas publicados em revistas, jornais e em vários sites e blogs; 

Criou o Blog Literário Roberto Pinheiro Acruche www.robertoacruche.blogspot.com; e LUZ DOS MEUS SONHOS (Facebook). 

Criou o Informativo digital “Trovas e Poemas”. 

Prêmios e honrarias:

Recebeu do Congresso Sociedade de Cultura Latina – Seção Brasil – A Medalha e Diploma como autor do melhor Livro de Prosas de 2007 

Em 2009 recebeu a Medalha e Diploma “Hors Concours” pelos grandes serviços prestados a cultura nacional; 

Recebeu da Academia de Letras e Artes de Paranapuã, em 2009 a medalha de Mérito Cultural Austregésilo de Athayde.  

Autor do Hino Oficial do Município de São Francisco de Itabapoana/RJ; recebeu da Sociedade de Cultura Latina – Senadoria do Estado do Rio de Janeiro, o título de Intelectual do Ano de 2014. 

Entidades a que pertence:

Academia Pedralva Letras e Artes, Cadeira nº 31, 
Academia Campista de Letras, Cadeira nº 24, 
Academia de Letras do Brasil – Campos dos Goytacazes/RJ, Cadeira nº 13; 
Delegado da UBT – União Brasileira de Trovadores em São Francisco de Itabapoana.

Vários de seus Poemas e Trovas foram publicados no blog “Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes”; no blog e no almanaque “Florilégio de Trovas”; "Almanaque “O Voo da Gralha Azul”;  no “Falando de Trova” ; “Oceano de Letras” . etc.

Fonte:
O Autor