quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Arthur de Azevedo (O Cuco)




Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.

A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.
* * *

O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.

As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.
* * *

Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses (cantoras), uma gommeuse (janota) e outra excentrique.

Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.

Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!

Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.

O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.

Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.

Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo:

- Sebo! lá acordei minha mulher!

Ela perguntou:

- És tu, Roberto?

- Sim, sou eu, sinhazinha.

E o marido acrescentou para si:

- Felizmente não sabe que horas são.

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

- Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

- Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo!

E começou a despir-se.

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Uma Cabeça)

Era uma vez um homem e uma mulher, que teve um filho depois de sete anos de casada; porém o filho era apenas uma cabeça. Passaram mais sete anos, e a cabeça completou catorze. Quis então ter por esposa a princesa, pelo que solicitou ao pai que lhe pedisse a mão em seu nome.

— Diz a verdade — recomendou-lhe. — Explica como sou, não mintas.

O pai procurou o rei e disse-lhe:

— Majestade, o meu filho deseja a princesa para esposa.

— Que espécie de pessoa é? — quis saber o monarca.

— Não passa de uma cabeça.

— Se, até amanhã, ele me trouxer cinco raposas vivas, talvez lhe conceda a mão de minha filha.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer, rapaz.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco raposas vivas. Então, talvez te conceda a mão da filha.

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta! — rogou o filho, que ficou fora de casa até à manhã seguinte.

Nessa altura, quando os outros se levantaram, havia cinco raposas vivas diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-as ao rei e pede a mão da princesa em troca.

O pai assim fez e disse ao monarca:

— Agora, suponho que concederá a mão de sua filha?

— Só se, até amanhã, o teu filho me enviar cinco ursos vivos.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco ursos vivos.

E o jovem voltou a dizer:

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta!

O pai apressou-se a comprazê-lo.

Na manhã seguinte, quando os outros se levantaram, havia cinco ursos vivos diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-os ao rei e pede a mão da princesa em troca. O pai assim fez e reiterou o pedido da mão da princesa, ao que monarca respondeu:

— Bem, já que ele é um homem capaz de conseguir o que se propõe, diz-lhe que construa um palácio como o meu, e poderá então vir buscar a moça.

O velho regressou de novo a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Tens de construir, ate amanhã, um palácio como o dele, que contenha tudo o que é próprio de um imperador.

— Leva-me lá fora, querido pai — pediu o jovem.

Enquanto o velho obedecia, o filho acrescentou:

— Se ouvirem muito barulho durante a noite, não se levantem ver de que se trata. Continuem deitados.

Os operários não tardaram a iniciar os trabalhos, e o pai queixou-se:

— Que barulho tão esquisito está a fazer o rapaz, lá fora! Vou ver o que se passa.

Mas a mãe advertiu-o:

— Não ouviste o que ele nos recomendou, esta tarde? Disse que não fôssemos ver.

No entanto, passados alguns momentos, admitiu:

— De fato convinha ver de que se trata.

Agora, todavia, foi o pai que lhe lembrou:

— E o que o rapaz nos recomendou?

Foram, assim, dissuadindo-se mutuamente de ir espreitar. Quando, de manhã, se levantaram, o velho desceu a escada e, ao assomar à porta, ia desmaiando de pasmo. Viu que se encontrava num palácio que resplandecia de ouro e prata. Então, o filho disse-lhe:

— Prepara um tiro de três cavalos, pai.

Aparelharam três cavalos, montaram o jovem na respectiva carruagem e dirigiram-se ao palácio real, a fim de recolher a noiva. O rei manteve a palavra dada e concedeu a mão da filha ao jovem.

Os esponsais realizaram-se pouco depois e comeu-se e bebeu-se com abundância. No entanto, a noiva tinha uma madrasta. Organizou-se a seguir um suntuoso baile a que a princesa compareceu. E a cabeça do noivo também. O jovem disse então à noiva:

— Ficaste a saber como sou, mas não o divulgues. Não entrarei no salão, pois ficarei no outro, contíguo, à janela. Não penses sequer em revelar a minha natureza, repito. Se o fizeres, partirei a janela e voarei como um pombo, rumo ao Sul.

A princesa compareceu ao baile e, ao vê-la só, a madrasta perguntou-lhe:

— Então, que espécie de homem é o teu esposo?

— Não passa de uma cabeça.

Levou-a consigo para um canto do salão, embriagou-a e continuou a fazer-lhe perguntas. E, já totalmente alheia ao que dizia, a infortunada jovem referiu:

As pernas são de prata até aos joelhos
e os braços de ouro até aos cotovelos.
Na risca do cabelo, há uma estrela, um sol na fronte
e uma lua na nuca.
Quando fala, brotam-lhe flores douradas da boca e do nariz.

No momento em que o jovem ouviu estas palavras, quebrou a janela e partiu a voar em direção ao Sul. Quando a embriaguez se dissipou, a princesa começou a procurá-lo, mas ele tinha desaparecido. Resolveu então tentar localizá-lo e viajou sete anos num único.

Chegou finalmente a uma pequena casa, entrou e deu os bons-dias.

Os que se encontravam dentro retribuíram a saudação, e ela perguntou:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há sete anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Foram buscá-la e, em seguida, ela continuou a sua viagem durante catorze anos, no final dos quais chegou de novo a uma pequena casa, entrou, apresentou saudações, que lhe foram retribuídas, e tomou a perguntar:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há catorze anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Na primeira, havia grande variedade de comida e bebida e, na segunda, todo o vestuário de mulher que se pudesse desejar.

Antes que ela se retirasse, as pessoas da casa aconselharam-na.

— Dirige-te à cidade e aguarda no primeiro cruzamento de ruas, onde o verás. É um excelente caçador.

A jovem procedeu como lhe indicaram e postou-se no cruzamento referido. Quando o avistou ao partir para a caça, dirigiu-se-lhe e perguntou:

— E agora, que será de nós, querido amigo? Que faremos, depois de eu vir de tão longe à tua procura?

Ao vê-la, ele abraçou-a e respondeu:

— Querida jovem, não te posso responder até enviar cartas a todos os reinos do mundo a perguntar que matrimônio devo conservar: o atual ou o antigo.

Escreveu a todas as partes do mundo e obteve respostas similares: "Deves conservar o primeiro matrimônio."

Em face disto, ele informou a nova noiva:

— Podes voltar para de onde vieste, pois fico com a minha antiga noiva.

A seguir, empreenderam a viagem — primeiro durante catorze anos e depois sete — até regressarem à pátria. Uma vez aí, voltaram a celebrar os esponsais e encarregaram-me de divulgar todas estas mentiras.

Fonte:

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 179


Antonio Roberto de Paula (O Sábado e suas Casualidades)


Vem sempre aqui?
Não. É a primeira vez. E você?
Segunda. Não gosto. Muito apertado.

– Achei legal. Muita gente bonita.

– E mal educada. Ninguém respeita fila. Olha aí, ó, o cara entra pega a cerveja e sai na boa.
Não adianta esquentar. É coisa de Brasil.
Mas é um saco você ser obrigado a entrar numa fila para comprar ficha e em outra para a cerveja. Quebra o embalo, entende?
Não. 
Você tá com o seu pessoal bebendo. Aí seca o copo e você tem que buscar.
Sabe que eu não tô ligando muito hoje. Vim com uma turma que é um pé no saco.
Vim com duas irmãs e um amigo. Você não quer ir à nossa mesa?

– Não, acho chato deixar o pessoal.
Chato é ficar num lugar que a gente não tá a fim e fica só pra não ser indelicado.
Mais tarde dou uma passada na sua mesa.
Passa sim. Como é o seu nome?

– Nalva.

– Nalva?
 
– O certo é Edinalva, mas gosto que me chamem de Nalva. E o seu?
Manoel Augusto, mas a turma me conhece por Nezão. Apelido de criança.

– Tua cara não é estranha.

– A tua também não é. Faz tempo que você mora aqui?

– Nasci aqui.

– Uns 18 anos atrás?

– Assim você me deixa vermelha. Quem me dera ter 18 anos...

– Mas não tem muito mais do que isto.
Pode crer que tenho.
Se você tiver uns 23 é muito,
Acho que você tá querendo me gozar.

– Palavra que não. Quantos anos você tem?
Faço 28 em setembro.
Não acredito. Não parece.
Tenho três mais que você. Mas não adianta querer ser boazinha comigo. Tenho certeza que você imaginou que eu tinha muito mais.

– Que é isso, Neisão?
Neisão, não. É Nezão.
Desculpe, Nezão. Você tem o jeito de um cara de 30. Nem mais nem menos.
Mas de onde a gente se conhece?
Onde você trabalha?
Sou autônomo!

– Vende o que?
 
– Produtos de limpeza. Nossa firma representa uma multinacional.
Você deve ser bom de conversa!
Sou tímido pra caramba. Acho que só estou conversando com você porque já tomei umas três. E porque hoje é sábado. Reparou que no sábado a gente se solta mais?
É verdade. Parece que todo mundo deixa os problemas de lado no sábado. Tira a preocupação da cara e fica mais sociável. É o dia da liberdade e a felicidade é saber que o dia seguinte é domingo.
Me deixa pegar as cervejas. Dá tuas fichas, eu pego pra você.
Pega dois guaranás.
Ufa, que sufoco. E você faz o que?

– Cabeleireira.

– Onde fica o salão?

– Faço o trabalho em casa.

– Salão unissex?

– Não, só atendo mulheres.
Não dá pra abrir uma exceção?
Engraçadinho. Vou ter que ir pra mesa.
A gente vai se ver de novo?
Claro. Quer meu telefone? Tá aqui no cartão o meu nome, endereço e telefone. Mandei fazer para as clientes.
Posso te ligar amanhã?

– Vou ficar esperando.

– Quer o meu telefone?

– Não, prefiro que você me ligue.

– Gostei de você.

– Eu também. E eu que achava que a noite ia ser um tédio.

– Quer que eu te leve'?

– Não, vou voltar com o pessoal. Me liga?

– Pode esperar por isso, Nalva,

– Foi um prazer, Nezão.
Prazer foi meu. Escuta, você é casada?

– Já fui. E você?

– Mais livre impossível. Posso te dar um beijo no rosto de boa noite?

– Deve. Conhece esta música que está tocando?

– Qual?

– Presta atenção.

– Hum, tema do Ghost, Bonita.

– Adoro ela. É a minha música.

– Agora é minha também.

– Coincidência, não?

– O quê?
Tocar esta música justamente no momento em que estou me despedindo de você, uma pessoa que acabei de conhecer.
Espero que não seja coincidência. O cara morre logo no começo do filme e depois fica pentelhando aquela gostosa da Demi More até o final.

– Insensível...

– Tô brincando. Realmente a música é muito bonita. Toda vez que ouvir vou lembrar de você.

– Sério?

– Pode botar fé.

– Legal te conhecer. Tchau.

– Isto é que eu chamo de "valeu o sábado". Tchau.

Com um guaraná em cada mão, Nalva vai saindo da visão de Nezão. No rosto, instalou um sorriso entre feliz e vitorioso. Ela também considera ganho o sábado. Nezão dá a última golada e encara a fila novamente. Gravou Nalva na mente e já começou a contagem regressiva para telefonar. "É o dia da liberdade e a felicidade é saber que o dia seguinte é domingo". Nezão lembra das palavras de Nalva, ditas tão docemente. Com ela todos os dias devem ser sábado, sonha, enquanto espera mais uma cerveja.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) VII


A estrela do firmamento
da grandeza é o brasão;
nossa glória esvai-se ao vento
feito bolha de sabão.
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A hortência está no horto,
onde há flores por vintém;
tanto quer, pra seu conforto,
o aroma que ela não tem.
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A justa sabedoria
despreza vis aparências;
triunfa a Filosofia
no universo das essências.
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Além do bem e do mal
não se contempla ninguém;
jamais nascerá um tal
que seja um "super alguém".
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Apesar de algum espinho,
levo à frente o caminhar;
os tropeços do caminho
não me impedem de sonhar.
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A rica mata florida
vê a vida massacrada;
por um cruel homicida,
a natureza é linchada!
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As árvores da natura
têm a beleza cativa;
a brisa suave e pura
faz a aurora mais festiva.
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A verdade é que nos diz:
Não há maior decepção
que ver o povo infeliz
com tanta retaliação.
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A vida, neste interior,
reflete feliz bonança;
a natureza em vigor
renova toda esperança.
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Destruam toda floresta,
desprezem valores certos,
mudem o clima que resta
e verão novos desertos.
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Dizem que o mundo sorri
e seu sorriso é de artista;
há muita ilusão, ali,
naquela voz de sofista.
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É o refulgir da evidência,
que ao conhecer dá firmeza;
forte alicerce da ciência
é o critério da certeza.
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Leva desprezo maior
o torpe réptil traidor;
não pode haver coisa pior
que trair seu benfeitor.
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Merece o trabalhador,
após jornada sem fim,
ser do seu tempo senhor,
bem aposentado enfim.
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Motosserra na floresta
destrói o nosso futuro;
é ação vil e funesta
que nos traz fim prematuro.
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Na letra desta poesia,
há sonho com muito ardor.
Que bom alcançar, um dia,
a doce paz interior!
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Na minha vida em percurso,
perante ofensa velada,
prefiro usar o discurso
do meu silêncio e mais nada.
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Não morrerá a esperança
pra quem a tem por preceito;
quem trabalha sempre alcança
o bom fruto e o seu efeito.
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Nas mornas noites de outono,
com este lindo luar,
muitas vezes, perco o sono,
por um bem além do mar.
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Neste mundo de surpresa,
conservo a minha coragem;
na abundância ou na pobreza,
hei de sempre seguir viagem.
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O amor que vibra em meu peito
já não tem mais dimensão:
é chama de sumo efeito
e delícia em explosão.
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Observo, sem compreender,
hipócritas em ação;
o que sempre mostram ser
é tudo o que eles não são.
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O tirano prepotente,
por ter feito tanto mal,
mesmo na vida presente
terá desprezo total.
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Por vez, quem perde eleição
quer, ao eleito, insucesso;
instiga só insurreição,
é contra o bem e o progresso.
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Pouco importa o que eu escrevo
no discurso, em cada linha;
certas coisas só me atrevo
declarar nas entrelinhas.
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Quando a palavra se cala,
pode inda haver advertências:
Nem só a palavra fala...
há vozes nas reticências...
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Riqueza não compra tudo,
nem mesmo a tranquilidade;
compra o dinheiro, contudo,
amigos com falsidade.
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Se eu pudesse, te daria
grande presente de escol,
e você se assentaria
num trono acima do Sol.
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Torna-se, às vezes, o amor
só lenda de dicionário,
que não tem mais resplendor
nem nas letras de um hinário.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.

Manuel Antonio de Almeida (Uma História Triste)


Dois passarinhos tinham tido na primavera uns amores muito inocentes e muito ternos. Começaram por um trinado alegre nos ramos da mesma árvore, depois fizeram juntos um voo para a árvore vizinha, depois chamaram-se um ao outro nuns pios muito doces para o denso da mata, depois um deles baixou à terra, e ergueu-se levando no bico uma palhinha seca.

Sobre o rio que ali perto corria debruçava-se o ramo de uma grande árvore, e com suas folhas beijava quase a superfície das águas.

Para esse ramo foi levada a palhinha seca que deu começo ao ninho.

Por cima havia a copa da árvore, por baixo as águas do rio. O ninho ficou naquele meio voluptuoso de sombra e de frescura.

Durante alguns dias passaram-se ali ao pôr do sol alguns mistérios que a solidão escondeu; ouviam-se uns chilros entrecortados, o sussurro de umas asas que se debatiam, o ramo que se agitava. Depois a aragem, passando pela copa da árvore, desfolhava sobre o ninho as flores que haviam desabrochado naquela mesma aurora.

Um dia, ao despontar do sol, os dois passarinhos cantaram mais do que nunca, esvoaçaram alegres em torno do ramo, pousaram em todas as grimpas da árvore, e de cima de cada uma delas cantaram, trinaram, chilraram.

De dentro do ninho partiram uns pios que mal se ouviam, e começaram a agitar-se umas asas pequeninas cobertas de penugem.

Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, os céus cobriram-se de nuvens, e as águas do rio tornaram-se turvas.

De noite caiu a tempestade.

Ao amanhecer, um dos passarinhos, tendo ficado a noite inteira com as asas abertas sobre o ninho para protegê-lo, cedeu o lugar ao outro, e foi nos ramos mais altos esperar um raio de sol que lhe enxugasse as penas úmidas da chuva.

Debalde esperou, o sol não veio nessa manhã.

No entanto, as águas do rio, engrossadas pela chuva da noite, começaram a crescer com um ruído longínquo e surdo.

Já as últimas folhas do ramo se achavam mergulhadas, e este começava a balançar com o movimento da corrente.

Os infelizes pressentiram o perigo que iam correr as premissas do seu amor, e começaram a esvoaçar inquietos em torno do ninho.

As águas continuaram a crescer, e já se não via a extremidade do ramo.

A inquietação dos malfadados crescia com eles; continuavam a esvoaçar soltando uns gemidos rápidos, mas repetidos, único meio por que podiam manifestar a sua aflição. Quando cansavam, pousavam num ramo vizinho, mas só por um instante, e recomeçavam logo a esvoaçar e a gemer.

As águas cresciam sempre, e já grande parte do ramo estava mergulhado na corrente.

Os infelizes redobravam os voos e os gemidos.

Depois o ramo vergou com a força da água, estalou e partiu-se. Preso às plantas marinhas ficou alguns instantes no mesmo lugar; depois começou a correr levado pela corrente.

O ninho ficara fora da água, e dentro dele os recém-nascidos agitavam medrosos suas asas de penugem para os pais que acompanhavam o ramo, disputando no voo a velocidade da corrente.

Correram assim por muito tempo, o ninho sobre as águas, os pássaros cortando o ar.

Quando encontravam alguma raiz ou planta, ou quando nalguma volta do rio a corrente menos rápida demorava o ramo, os infelizes tentavam pousar nas bordas do ninho; mas este ameaçava submergir-se com o peso: eles erguiam-se de novo, e começavam, voando, a descrever em torno dele círculos tão estreitos, que muitas vezes suas asas se encontravam.

Fatigados da luta inútil, já o seu voo era rasteiro, trêmulo e incerto. Pousando em qualquer árvore da margem poderiam cobrar novas forças, mas durante esse tempo onde teriam ido o ninho, e os filhinhos que pipitavam de fome!

Continuaram a voar, e o ninho a correr.

Afinal um deles caiu numa vertigem da fadiga sobre a corrente; quis erguer de novo o voo; abriu as asas na superfície das águas; pesaram-lhe porém as penas molhadas; e sumiu-se num redemoinho que fazia o rio.

O companheiro continuou a seguir ainda por algum tempo o ninho; mas venceu-o também o cansaço; abateu-se trêmulo sobre um ramo da margem, donde caiu desfalecido na corrente.

No entanto era já de tarde; o céu tinha-se tornado limpo, aparecera o sol, as águas do rio tinham baixado.

O ninho encalhou por fim no remanso da areia, onde os infelizes filhinhos de um amor tão inocente e tão puro morreram de fome, de orfandade e de abandono, não tendo vivido duas auroras!

Pois sobre aqueles seres tão inocentinhos, tão inofensivos, que parecem não ter sido criados senão para adorno da criação, pesará também a fatalidade da desventura?

Pois nem aquele amor que fora tão puro e tão breve deixou de pagar ao infortúnio o seu tributo de dores?

Ou será que a Providência que rege os destinos do homem deixa o dos outros seres à lei do acaso?

Se não tivesse medo que se rissem de uma questão de passarinhos, havia de apresentar estes problemas aos grandes pensadores, a ver se os resolviam.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 178


Gracéli Maria (A Chinesinha)


Comprei o jornal, como de costume, na banca do Sr. Juvenal. Mas, aquele dia estava apressado demais para dar uma paradinha no café. Todas as manhãs minha rotina era a mesma; comprava o jornal, trocava algumas palavras com Sr. Juvenal, acendia meu primeiro cigarro do dia, caminhava até a esquina, onde costumava tomar um cafezinho bem forte, enquanto lia as notícias e, em seguida, voltava calmamente para casa.

É bem certo que duas ou três vezes por semana, Dona Samira varria a calçada em frente ao seu velho sobrado e me dirigia algumas perguntas.

- Como vai sua menina, mandou notícias já, foi?

- Não, Dona Samira, ela não telefonou esta semana, nem a passada. Está em época de provas - respondi apressado.

- Ah! Sim! Uma sobrinha de meu marido estava a estudar na Europa, mas a pobrezinha...

- Já conheço a estória - interrompi, antes que ela continuasse. - Desculpe-me, mas tenho de ir. Preciso dar uns telefonemas - acrescentei.

Entrei o mais rápido que pude no prédio. É bem verdade que ela continuou a balbuciar algumas coisas, mas eu já me encontrava na porta do elevador.

Mal toquei no trinco e o telefone tocava. Atendi.

– Alô!

- Sr. Fernando, é da lavanderia La Maris.

- Pois não! - respondi

- A respeito do seu terno azul-marinho, ele já está pronto faz dias.

- Mas, estou sem tempo - eu disse

- O senhor passe hoje aqui faça o favor, ou daremos seu terno - disse ela, batendo o telefone na minha cara.

Acabei saindo apressado.

Chegando á lavanderia deparei com uma jovem atrás do balcão, que eu nunca vira antes. Atendia pelo nome de Dolores. Usava um penteado esquisito, mascava um chiclete estrondoso e parecia ter um imenso prazer em deixar as pessoas esperando.

A lavanderia estava cheia, pelo menos umas dez pessoas.

Ela, a tal Dolores, me chamou.

– Até que enfim o senhor apareceu - disse ela.

- Desculpe, mas eu não tive tempo de vir antes. Trabalho demais! - disse eu.

- Esta insinuando que eu não trabalho demais? - perguntou ela.

- Não, senhorita. Me referia à minha falta de tempo. - respondi - Bem, pode me trazer meu terno, por obséquio? - acrescentei.

Ela não me respondeu e arregalou os olhos para a porta. Então, virei - me para olhar.

Uma jovem de baixa estatura, olhos puxados e vestindo um traje oriental, estava parada à porta da lavanderia. Dolores correu para dentro, voltou com um embrulho e o entregou à jovem.

A figura lembrava uma frágil boneca chinesa, tinha pele de porcelana, usava um chapéu chinês. Ela pegou o embrulho, agradeceu numa espécie de reverência oriental. E saiu em movimentos rápidos.

- Sr. Fernando, vou buscar o terno - disse Dolores.

Enquanto esperava, recordava-me da figura que saíra há pouco. Olhei para fora, o tempo estava feio, parecia que ia chover. Dolores voltou e me deu o terno.

- Obrigado! - respondi.

Ao sair, pisei num envelope caído à porta, olhei para trás, Dolores havia desaparecido por detrás do balcão.

Peguei-o e resolvi correr para escapar da chuva.

Entrei no carro e abri o envelope. Era uma passagem com um nome quase ilegível. Destino: Xangai. Só então liguei as coisas, devia ser da jovem chinesinha, ela estava apressada. A data da passagem era vinte e três e estávamos no dia vinte e dois.

Olhei à volta e nem sinal dela. Desci do carro e tentei caminhar em direção ao metrô, talvez ainda pudesse encontrá-la.

Da escada rolante, olhei a multidão na plataforma e avistei-a. Pequena, ela se desviou entre as pessoas. E quando quase consegui alcançar seu braço, ela sumiu de novo, com a multidão que se apertava metrô adentro.

Pensei em como iria achá-la.

Resolvi, no maior sacrifício, voltar à lavanderia. Indaguei sobre a chinesinha com a antipática figura de Dolores. Mas a má vontade dela, quase me desanimou.

- Dolores, trata-se de uma passagem. Com data marcada e para amanhã - disse eu.

- Está bem! Mas antes tenho de dar um telefonema.

- Santo Deus! - pensei comigo.

Ela fez a tal ligação, parecia que falava com alguém muito íntimo, pois se escancarava de rir ao telefone e se não ria, estourava uma bola de chiclete enorme.

Esperei uns quatro ou cinco minutos até que ela desligasse o telefone.

Voltou. Me deu um nome. Akitami.

- Como? - repeti - Akitami?

- É surdo?

- Tem sobrenome?

- Na ficha não diz.

– É ela?

- Não sei.

- Tem um telefone?

- Só endereço: Rua Chamoios, 557.

Anotei o endereço e saí.

Voltei pra casa e olhei num mapa da cidade. O tal endereço ficava num bairro muito afastado.

Chamei Amanda, uma amiga, para me acompanhar.

Fomos com meu carro. Durante o trajeto, Amanda dormiu.

Depois de entrar em algumas ruas sem nome, desertas, e sem vermos uma pessoa sequer para dar informações, achamos o dito endereço.

Em frente à casa com o referido número havia uma placa gigante de neon onde estava escrito "Boite Lumière".

Descemos do carro, toquei a campainha. Um jovem, também oriental, abriu a porta.

- Boa tarde, procuro por Akitami - disse eu.

O jovem fechou a porta na minha cara. Mas resolvi bater novamente. Ele abriu-a outra vez dizendo: - Não conheço ninguém Akitami.

- É uma jovem de baixa estatura, traços chineses.

- Espere aqui.

Veio uma garçonete nos atender. 

- Vocês procuram uma jovem oriental?

- Sim, uma chinesinha.

– Ela saiu.

- Podemos esperar?

- Entrem! - disse a moça.

Lá dentro havia uma penumbra perturbadora, mal podíamos enxergar as mesas.

A garçonete nos ofereceu drinques, e uma mesinha num canto.

Vieram as bebidas. Os copos eram compridos, saindo deles uma estranha fumaça colorida. Ficamos ali, bebendo e conversando.

De repente, tudo começou a girar. As luzes da boate acenderam-se, um globo no centro da sala começou a rodar. Uma estranha fumaça, tomou conta do recinto. E começaram a surgir algumas figuras bizarras.

Amanda ria e se divertia, achando tudo normal.

Alguém me convidava para dançar, mas em meio à penumbra, mal vi seu rosto.

Quando olho para os lados, Amanda havia sumido!

Chamei o garçom, e indaguei sobre ela, mas ninguém a vira.

Uma dançarina aproximou-se de mim, tinha um rosto pálido e imensos olhos castanhos. Em sua boca, um batom marrom escuro.

Perguntei se ela conhecia a chinesinha.

- Somos amigas - respondeu. - O que deseja com ela? - perguntou em seguida.

- Tenho algo para entregar-lhe.

A dançarina se aproximou de meus ouvidos e disse:

– Não devia ter vindo aqui. Em seguida desapareceu.

Fiquei angustiado, solitário ali na mesa.

Comecei a gritar pelo nome de Amanda. Então, a dançarina reapareceu.

– Acalme-se - disse ela. - Há algo que o senhor precisa saber.

- Preciso entregar a passagem, a data é para amanhã, entende? Amanhã! - gritei.

- Deixe que eu entrego a passagem.

- Eu quero entregar pessoalmente!

- O senhor não sabe de nada. Não se envolva.

~ Qual o problema?

– Amanda? Akitami? Chinesinha? O senhor está louco! - disse ela, agarrando-me o braço e acrescentou: - Encontre-me agora na rua do canal. Você deve sair já daqui!

Levantei-me meio cambaleante e saí da boate. Lá fora, o luminoso estava apagado. Ninguém na rua, meu carro não estava mais ali. 

Lá na esquina, de um táxi, saltava alguém. Aproximei-me, era a chinesinha.

Gritei seu nome. Mas ela dobrou a esquina e foi em outra direção.

Eu gritava e comecei a correr... correr...

Senti o suor descendo em meu rosto. Até que tudo se apaga. Ouço um som estridente, que parece um telefone, mas não é...

Acordo! Que alívio! Não existia boate, nem chinesinha, nem lavanderia.

Levantei-me. No rádio anunciavam um dia muito quente.
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Gracéli Maria nasceu em Curitiba, bacharelou-se em letras na UFPR. Contista. Trabalhou como atriz de teatro. Apaixonada por arte, dedica-se à dança.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. 
Curitiba: JM, 2008.