quinta-feira, 13 de maio de 2021

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 13

LONGE

"Longe é um lugar que não existe" (Richard Bach)

Ante a força do amor.., a distância inexiste!
O longe é o tal lugar, sem sol, que não existe
para alguém, confiante, à espera de outro alguém!
Quem sente o coração pulsar de amor, no peito,
bem sabe o que é sonhar e entende esse preceito
que o poeta, em seu verso, explica muito bem!

Longe!... Estranho lugar... Tão triste se existisse!
Bendito seja o amor, que anula essa crendice
de que a distância é algoz e afasta enamorados!
Quem ama tem o amado, em qualquer tempo, perto!
E todo instante é o instante ansiado e sempre certo,
que une dois corações, num só... se apaixonados!

Mesmo a enfrentar a dor de uma cruel partida...
partida que se estenda a extremos do além vida,
o abraço da saudade a nos ligar insiste!
E a força da ternura deste abraço traz
uma força que acalma,,, e concordar nos faz
que esse Longe é um lugar… que, afinal, não existe!
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CORDA AFINADA

Meu coração, tu sempre foste amigo,
nas horas de alegria ou de amargura,
a dividir as emoções comigo,
a pulsar no meu peito com ternura!

E agora sabes, meu viver eu ligo
a uma corda bem frágil, mal segura!
Caso eu não possa mais contar contigo,
largo a corda e... me espera a sepultura!

Sacode a inércia que ao teu sono alenta…
Reage, coração! Pulsa! Desperta!
Se não consegues... pelo menos, tenta!

Torna a afinar as cordas, "meu violão"...
pois para quem o ritmo e o tom acerta,
a vida há de ser sempre uma canção!
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ROTA FINAL

Há de chegar a minha vez! Um dia,
o Supremo Juiz hei de enfrentar,
E minha alma, de mágoas não vazia,
dos passos dados, contas há de dar.

Se pela vida, às vezes, maltratada,
sorri, bebendo o pranto que chorei,
também amei... e muito fui amada!
E tanto amada fui, o quanto amei!

Não importa o que diga a inveja fria,
que meus passos procura macular,
minha alma se reflete na Poesia,
exposta à luz, sem véus e sem corar.

A Deus entregarei, humildemente,
erros e acertos, glórias e cansaços!
E, na certeza de ter sido gente,
me atirarei, confiante, nos Seus braços!
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PAZ

Eu quero a Paz de amar a toda a gente...
de ter leais amigos e, amplamente,
poder cantar e não sentir vergonha
por ver ao meu redor o amargo tédio
dos sonhos, que agonizam, sem remédio,
no pranto que se esconde numa fronha!

Não quero a Paz do ilhado que, em si mesmo,
enterra o espinho recolhido a esmo...
nem quero a Paz das dúvidas caladas!
Desdenho a Paz cruel feita de medos,
que amarra pulsos... tranca em vis segredos
os anseios das almas conformadas!

Quero a Paz conquistada a todo instante!
A Paz estímulo que diz: – Avante!
Não a Paz das renúncias doloridas...
Paz da omissão covarde que se oculta
no rictus de um sorriso, Paz que insulta
os passos sem porquês de tantas vidas!

Não quero a Paz, tristonha e silenciosa,
da derradeira pétala da rosa
que entregue à brisa, sem destino, seca.
Eu quero a verde Paz das verdes folhas,
que sombra distribuem, sem escolhas,
ao pobre, ao rico, ao justo... e ao que mais peca!

Desejo a Paz do mar que beija a areia...
A Paz de crer que a vida não é feia!...
A doce Paz, com gosto de esperanças,
que se partilha e jovialmente rola
de mão em mão - qual colorida bola
de um irrequieto jogo de crianças!

Anseio a Paz serena do poeta!
Utópica e total! A Paz completa
que vai além da vida, sem ser morte.
A Paz que desconhece desenganos,
que valoriza os méritos humanos
e ao trabalho enobrece e dá suporte!

Paz de crer que o Amanhã ainda existe!
E que o mundo é feliz... e não mais triste,
o irmão abraça o irmão, fraternalmente!
A Paz fruto do Ideal, o mais sagrado,
de ver o mundo inteiro congraçado:
- a PAZ feita de AMOR... de AMOR, somente!...
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Prêmio Literário Internazionale "Nova Sociale"
Medaglia di Mérito Internazíonale - Poesia "PAZ"
Conferisce alla Poetissa Carolina Ramos - Santos - SP - Brasile
Nocera Superiore - Salermo - ITÁLIA - 03/10/2010
Versão livre, para o idioma italiano, de Giuliana Russo


Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Somerset Maughan (O Dr. Sabe-tudo)

Estava disposto a antipatizar com Max Kelada antes mesmo de conhecê-lo.

Terminara a guerra e era grande a afluência de passageiros aos navios de carreira. Dificilmente se conseguia acomodação e quem desejasse viajar tinha que se conformar com o que as agências ofereciam. Ninguém pensava na possibilidade de ocupar sozinho um camarote, e me senti feliz quando me deram um onde havia apenas duas camas. Mas quando me disseram o nome do companheiro, a minha satisfação se desfez. Era como uma sugestão de vigias rigidamente fechadas, ausência de ar no camarote, durante a noite.

Já era desagradável compartilhar de um camarote durante quatorze dias (eu viajava de São Francisco para Yokoama); mas a partilha ter-me-ia parecido menos desalentadora se o passageiro se chamasse Smith ou Brown.

Quando embarquei já estava no camarote a bagagem do Sr. Kelada. Desagradou-me o aspecto; rótulos em excesso nas malas de mão e demasiado grande a mala de camarote.

O Sr. Kelada já retirara do estojo os objetos de toucador, e observei que era cliente do maravilhoso Mousieur Coty, pois no lavatório o seu perfume, a sua loção e a sua brilhantina. As escovas do Sr. Kelada, em suportes de ébano com o monograma em ouro, eram o que havia de melhor na matéria.

Antipatizei inteiramente com o Sr. Kelada.

Dirigi-me para a sala de fumar. Pedi um baralho e pus-me a jogar "paciência". Mal começara, aproximou-se alguém, perguntando-me se o meu nome não era esse mesmo.

— Eu sou o Sr. Kelada — acrescentou, com um sorriso em que mostrava uma fila de dentes brilhantes; e sentou-se.

— Ah, sim, creio que estamos no mesmo camarote.

— É o que chamo de sorte. A gente nunca sabe com quem vai no camarote. Fiquei contentíssimo ao saber que você era inglês. Gosto muito que nós, ingleses, fiquemos juntos, a bordo, está entendendo?

Pestanejei.

— É inglês? — perguntei, talvez sem habilidade.

— Totalmente. Acha-me parecido com um americano? Sou inglês até a medula.

Para prová-lo, o Sr. Kelada tirou do bolso um passaporte e, ufano, agitou-o junto ao meu nariz.

O Rei Jorge tem muitos súditos estranhos. O Sr. Kelada era baixo e de construção vigorosa, moreno e escanhoado; possuía um nariz carnudo e adunco, e uns olhos muito grandes, brilhantes e límpidos.

Os cabelos negros e longos eram reluzentes e encaracolados. Falava com uma fluência nada inglesa e os gestos eram exuberantes. Tinha a íntima convicção de que um exame mais detido naquele passaporte britânico me revelaria que o Sr. Kelada nascera sob céu mais azul do que se vê geralmente na Inglaterra.

— O que vai tomar? — perguntou-me.

Olhei-o hesitante. A lei seca estava em vigor e, segundo todas as aparências, o navio estava integralmente seco.

— Quando não estou com sede, não sei se o que me desagrada mais é "ginger ale" ou limonada.

Mas no rosto do Sr. Kelada um sorriso oriental.

— Uísque com soda, ou Martini seco, é só dizer a palavra.

De cada um dos bolsos posteriores das calças retirou um frasco, colocando-o sobre a mesa, diante de mim. Escolhi o martini. Ele chamou o garçom e pediu gelo e dois copos.

— Um ótimo coquetel — disse eu.

— Pois há em quantidade na fonte de origem, e se você tiver amigos a bordo, diga-lhes que descobriu um indivíduo que dispõe de todo o álcool do mundo.

O Sr. Kelada era loquaz. Falou de Nova Iorque e de São Francisco. Discutiu peças de teatro, filmes, política. Era patriota. O pavilhão britânico é um impressionante pedaço de pano, mas quando é enfeitado por um homem de Alexandria ou Beirute, não posso evitar a impressão de que perde um quê de sua dignidade. O Sr. Kelada era íntimo. Não gosto de me fazer importante mas julgo sempre inconveniente que uma pessoa totalmente estranha não me conceda o tratamento de senhor. O Sr. Kelada certamente para me deixar à vontade, não usava tal formalidade. Não gostei dele. Deixei as cartas de lado quando ele se sentou: mas, achando que para a primeira vez a nossa conversa já se estendera demais, continuei com a "paciência".

— O três no quarto — disse o Sr. Kelada.

— Nada há demais desesperante quando estamos jogando paciência do que nos dizerem onde devemos por a carta que viramos, antes de termos tempo de olhar por nós mesmos.

— Está andando, está andando — gritou: — O dez no valete.

Com o coração cheio de ódio, terminei o jogo. Neste momento ele segurou o baralho.

— Gosta de truques com cartas?

— Não; detesto truques com cartas, respondi.

— Bem, vou mostrar-lhe só este.

Mostrou-me três. Depois, disse que ia descer para o salão de refeições e escolher um lugar.

— Oh, não se incomode — disse ele. Já reservei um lugar para você. Achei que, como estávamos no mesmo camarote, bem podíamos sentar-nos à mesma mesa.

Sim, eu não gostava do Sr. Kelada. Não somente eu compartilhava o camarote com ele e fazia três refeições por dia na mesma mesa, como também não podia passear pelo convés sem que se juntasse a mim. Era inútil fingir que não o via. Nunca lhe ocorria que não era desejado. Tinha a convicção de que os outros ficavam tão contentes de vê-lo como ele de os ver. Se estivéssemos em casa, poderíamos empurrá-lo escada abaixo, batendo com a porta, sem que surgisse no seu cérebro a suspeita de que não era uma visita desejada. Era muito sociável e, em três dias, já se dava com todo o mundo a bordo.

Dominava tudo. Arranjava apostas, dirigia leilões, organizava subscrições para os prêmios nas competições esportivas, inventava partidas de chinquilho, promoveu o concerto e o baile à fantasia. Estava sempre em toda a parte. Sem dúvida, era o homem mais odiado do navio. Chamavamos-lhe o Dr. Sabe-tudo, mesmo diante dele. O Sr. Kelada considerava-se elogiado. Mas, nas horas das refeições era que se tornava ainda mais intolerável. Então, durante a melhor parte de uma hora, tinha-nos à sua mercê. Era jovial, veemente, loquaz e questionador. Sabia tudo melhor do que qualquer pessoa; e afrontava a sua vaidade presunçosa quem discordasse dele. Não abandonava um assunto, por menor importância que tivesse, a não ser quando conseguisse reduzir o interlocutor ao seu ponto de vista. Nunca lhe ocorria a possibilidade de que pudesse estar equivocado. Era o homem que sabia.

Sentavamo-nos à mesa do médico. O Sr. Kelada sem dúvida manteria pacificamente a hegemonia, pois o médico era preguiçoso e eu, frigidamente indiferente; mas havia também um homem chamado Ramsay como companheiro de mesa. Era tão dogmático como o Sr. Kelada e irritava-se amargamente com a inabalável firmeza do levantino (oriental). As discussões que travaram eram ardentes e intermináveis. Ramsay estava no serviço consular dos Estados Unidos em Kobe. Era um americano do meio oeste, grande e pesado. A gordura esticava-lhe a epiderme, e por sua vez esticara-lhe seus ternos de confecção. Viajava de volta para o seu posto, depois de uma rápida visita a Nova Iorque onde fora buscar a mulher, que estivera passando um ano em sua terra.

A Sr.ª Ramsay era uma mulher miúda e linda, de maneiras agradáveis e portadora de senso de humor. O serviço consular é mal pago e ela vestia com simplicidade, mas sabia tirar partido de seus vestidos. O efeito que causava era de serena distinção. Não teria lhe prestado atenção particular se ela não tivesse uma qualidade que poderá ser bastante comum nas mulheres, mas que hoje não é comum no comportamento delas. Não era possível olhar a Sr.ª Ramsay sem notar desde logo a sua modéstia. Fulgia na sua pessoa como uma flor na lapela. Uma noite, durante o jantar, a conversa casualmente recaiu sobre o tema pérolas.

Os jornais vinham noticiando a cultura de pérolas pelos hábeis processos dos japoneses e o médico observou que as pérolas cultivadas diminuiriam o valor das verdadeiras. Aquelas já eram ótimas; em breve seriam perfeitas. O Sr. Kelada, como era de seu hábito, embrenhou-se no novo tema. Disse-nos tudo o que havia sobre pérolas. Creio que Ramsay soubesse pouco sobre elas, mas não pôde resistir à oportunidade de zombar do levantino e, em cinco minutos, estávamos numa discussão exaltada.

Eu já assistira a outros gestos de impetuosidade e volubilidade do Sr. Kelada, nunca, porém, o vira tão impetuoso e volúvel como agora. Finalmente, estimulou-o qualquer coisa que Ramsay disse, porque ele deu um soco na mesa e gritou:

— Bem, acho que entendo do que estou falando. Vou ao Japão exatamente para tratar desse negócio de pérolas. Estou no ramo e não há qualquer homem no ramo que não lhe afirme que o digo sobre pérolas é lei. Conheço as melhores pérolas do mundo e o que não conheço não vale a pena conhecer.

Eram novas para nós, porque o Sr. Kelada, apesar de toda sua loquacidade, não dissera a ninguém qual a sua ocupação. Sabíamos apenas vagamente que ia ao Japão a negócios. Olhou a volta da mesa, triunfalmente.

— Os japoneses jamais conseguirão uma pérola cultivada que um perito, como eu, não conheça, olhando-a com o canto do olho. — Apontou para o colar que a Sr.ª Ramsay usava: — Pode confiar na minha palavra, Sr.ª Ramsay: "este colar que a senhora está usando nunca valerá um centavo menos do que vale agora."

A Sr.ª Ramsay, à sua maneira modesta, corou um pouco e empurrou o colar para dentro do vestido. Ramsay inclinou-se para a frente. Olhou para nós todos. Um sorriso brincava nos seus olhos.

— É um belo colar, esse da minha mulher, não acha?

— Notei-o logo — respondeu o Sr. Kelada — Hanhan, disse cá comigo; essas pérolas são verdadeiras.

— Não fui eu quem as comprou, naturalmente. Gostaria de saber quanto calcula que custaram.

— Oh, no comércio em grosso devem ter andado em quinze mil dólares. Mas se forem compradas na Quinta Avenida, não me surpreenderia se dissessem que o preço andou pelos trinta mil.

Ramsay sorriu com crueldade.

— Pois vai surpreender-se ao saber que a minha comprou esse colar no balcão de bijuterias de uma loja de departamentos na véspera de nossa saída de Nova Iorque por dezoito dólares.

O Sr. Kelada ruborizou-se.

— Tolice! O colar é legítimo; é, pelo tamanho, um dos mais belos que eu já vi.

— Quer fazer uma aposta? Aposto cem dólares como é imitação.

— Aceito.

— Ora Elmer, você não pode apostar numa certeza — disse a Sr.ª Ramsay.

Trazia um leve sorriso nos lábios e o tom de sua voz era levemente súplice.

— Acha? Se tenho uma oportunidade como esta de ganhar dinheiro facilmente, seria um tolo se não aproveitasse.

— Mas como vamos provar? — continuou ela. — é apenas a minha palavra contra a do Sr. Kelada.

— Permita-me examinar o colar; se for imitação, hei de lhe dizer logo. Posso perder cem dólares.— Disse o Sr. Kelada.

— Tire-o querida. Deixe o Sr. Kelada examiná-lo à vontade.

A Sr.ª Ramsay vacilou um momento. Levou as mãos ao fecho. — Não posso abrir — disse — O Sr. Kelada terá de contentar-se com a minha palavra.

Invadiu-me a súbita suspeita de que estava para acontecer qualquer coisa infeliz, e não me ocorreu nada para dizer. Ramsay levantou-se bruscamente.

— Eu abro.

Entregou o colar ao Sr. Kelada. O levantino retirou do bolso uma lupa e examinou-o atentamente. Um sorriso de triunfo espalhou-se pelo rosto liso e trigueiro. Devolveu o colar. Ia falar quando subitamente reparou no rosto da Sr.ª Ramsay. Estava tão pálido que parecia que ela ia desmaiar. Encarava-o de olhos muito abertos, aterrorizados. Transmitia um desesperado apelo; tão claro que estranhei que o marido não o notasse. O Sr. Kelada ficou silencioso, a boca entreaberta. Enrubesceu violentamente. Quase podia ver-se o esforço que fazia sobre si mesmo.

— Enganei-me — disse — É uma excelente imitação, mas naturalmente, quando examinei o colar com a lupa, vi que não era legítimo. Creio que vale dezoito dólares, no máximo.

— Talvez isso o ensine a não ser tão auto-suficiente de outra vez, meu jovem amigo — disse Ramsay tomando a nota.

Notei que as mãos do Sr. Kelada tremiam.

A história espalhou-se pelo navio, como sucede sempre com as histórias e, naquela noite, ele teve de enfrentar a zombaria de muitos. Era um grande motivo para hilariedade o ter sido apanhado em erro o Dr. Sabe-Tudo. Mas a Sr.ª Ramsay se retirou para o camarote com uma dor de cabeça.

Na manhã seguinte, levantei-me e pus-me a fazer a barba. O Sr. Kelada permanecia deitado, fumando. Subitamente, ouvi um pequeno roçar, e vi uma carta deslizando por baixo da porta. Abri a porta e olhei para fora. Não havia ninguém. Tomei da carta e vi que estava endereçada para o Sr. Kelada. O nome estava escrito em letras de fôrma. Entreguei-lhe.

— De quem é? — Abriu-a. — Oh!

Tirou do envelope não uma carta, mas uma nota de cem dólares. Olhou para mim e tornou a enrubescer. Rasgou o envelope em pedacinhos e os pôs na minha mão.

— Quer fazer o favor de atirar pela vigia?

Fiz o que me pedia e depois olhei-o com um sorriso.

— Ninguém gosta de passar por um perfeito idiota — disse ele.

— As pérolas eram legítimas?

— Se eu tivesse uma linda mulher, não a deixaria passar um ano em Nova Iorque, enquanto eu estivesse em Kobe... — disse-me.

Nesse momento, não antipatizei de todo com o Sr. Kelada. Ele estendeu a mão, tirou a carteira, e nela colocou cuidadosamente a nota de cem dólares.

Fonte:
W. Somerset Maugham. Contos (Collected Stories). Publicado em 1924.

Festival Virtual de Poesias Inéditas da Estância da Poesia Crioula (Prazo: 28 de maio)


DOS OBJETIVOS


Art. 1º- O Festival Virtual de Poesias Inéditas é uma promoção da Estância da Poesia Crioula e consiste em um concurso artístico-literário de poesia, declamação e acompanhamento musical com temática gauchesca regionalista, ou seja, aquela que expressa os “Usos e costumes do povo gaúcho”, que visa à valorização e difusão da cultura gaúcha, contribuindo, desta forma, para a preservação do patrimônio cultural do Rio Grande do Sul e promovendo o intercâmbio cultural com todos os povos, divulgando e valorizando o trabalho dos poetas, declamadores e amadrinhadores.

Art. 2º- A coordenação do Festival Virtual de Poesias Inéditas será exercida por sua Comissão Executiva que cuidará da divulgação, organização, avaliação dos poemas finalistas e premiação.

DO CONCURSO

Art. 3º - Poderão participar do Festival Virtual de Poesias Inéditas poetas, declamadores e amadrinhadores de todas as querências.

- Parágrafo único – É vedada a participação de poetas componentes da diretoria da Estância da Poesia Crioula.

Art. 4º - Somente poderão participar poemas inéditos, ou seja, não publicados e/ou gravados e que estejam relacionados aos objetivos do evento.

Art. 5º - As inscrições serão efetuadas mediante envio da ficha de inscrição devidamente preenchida. Os poemas deverão ser digitados em texto Word, constando o titulo, sem a identificação do autor. Cada poema deverá ter uma ficha de inscrição e uma cópia em anexo no e-mail:
1aestanciadapoesiacrioula@gmail.com

Art. 6º - Não serão aceitas inscrições de poemas entregues diretamente a membros da comissão avaliadora.

Art. 7º - Cada autor poderá inscrever até 03 (três) poemas, onde poderá vir a ser classificado somente 01 (um).

Art. 8º - As inscrições terão início dia 01 de maio de 2021 e encerram-se dia 28 de maio de 2021, às 23h59m, conforme envio no e-mail: 1aestanciadapoesiacrioula@gmail.com

Art. 9º - Encerrado o prazo para as inscrições, serão selecionados 10 (dez) poemas finalistas, podendo haver desclassificação em caso de comprovações duvidosas ou em desacordo com este regulamento.

Art. 10º – Após a triagem, os poemas classificados serão divulgados na página da Estância da Poesia Crioula no facebook e mídias sociais até 04 de junho de 2021.

Art. 11º - Após a divulgação da triagem, os autores dos poemas finalistas, terão o prazo de 05 (cinco) dias corridos, para indicar os interpretes e amadrinhadores e até o dia 18 de junho de 2021 para envio dos vídeos gravados dos poemas.

Art. 12º - O Festival Virtual de Poesias Inéditas será realizado em 27 de Junho de 2021, as 10 h, quando serão apresentados os 10 poemas finalistas na página da Estância da Poesia Crioula no facebook.

Art. 13º - Cada declamador poderá interpretar somente 01 (um) poema dos finalistas ou na forma de dueto e cada instrumentista poderá acompanhar, no máximo, 02 (dois) poemas finalistas.

Art. 14º - Os declamadores dos poemas finalistas e amadrinhadores, deverão estar pilchados com indumentária gaúcha.

Art. 15º - As apresentações dos poemas finalistas serão por vídeos, enviados antecipadamente, conforme Art. 11º.

Art. 16º - Os vídeos gravados deverão ter boa qualidade de imagem e áudio. Se for por celular deverá ser na horizontal. A gravação poderá ser rejeitada se julgada de baixa qualidade e deverá ser regravada em tempo hábil para o evento.

Art. 17º - O Festival Virtual de Poesias Inéditas não oferece ajuda de custo para custeio de gravações dos vídeos, que deverão ser gravados de forma remota e individual, conforme a vontade dos artistas.

Art. 18º - Todas as inscrições efetuadas, automaticamente, aceitam os termos deste regulamento e autorizam a publicação dos vídeos e imagens na página da Estância da Poesia Crioula no facebook e mídias sociais.

DA PREMIAÇÃO

Art. 19º - Após a apresentação dos vídeos dos poemas finalistas, serão divulgados os vencedores do Festival Virtual de Poesias Inéditas, que receberão as seguintes premiações de participação:

POEMA: 1º, 2º e 3º Lugar
Troféu e Antologias da Estância da Poesia Crioula

INTÉRPRETE - 1º, 2º e 3º Lugar
Troféu e Antologias da Estância da Poesia Crioula

AMADRINHADOR - 1º, 2º e 3º Lugar
Troféu e Antologias da Estância da Poesia Crioula

Melhor vídeo de apresentação: Troféu

Melhor indumentária de apresentação: Troféu

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 20º - Casos omissos e ou eventuais dúvidas surgidas no decorrer do Festival Virtual de Poesias Inéditas 1ª Estância da Poesia Crioula serão resolvidos pela Comissão Executiva.

COMISSÃO EXECUTIVA

Maxsoel Bastos de Freitas
Léo Ribeiro de Souza
Cândido Brasil
 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Varal de Trovas 500

 


Coelho Neto (Esperança)

Será crível que ainda resistas ou dar-se-á que haja fantasmas de ilusões?

Serás tu mesmo que ficaste à flor do túmulo, flutuando na morte, e que assim me apareces como sombra do que já não existe?

Serás tu mesma, Esperança, que vens a mim do fundo da noite perpétua?

Contam-se estrelas no céu, mortas há milênios, cuja luz, entretanto, ainda nos deslumbra e guia.

Serás tu como tais astros?

Se és, em verdade, a Esperança, por que me martirizas, tu, que sempre nos socorres como incentivo; tu, que nos manténs as forças para que prossigamos e, na tarde da desdita, promete-nos a manhã da felicidade?

Se és tu, benéfica, porque te fazes cruel acordando-me a alma no coração com o timbre da sua voz, com o rumor dos seus passos como se o trouxesses do além em visita à minha saudade?

A tais ruídos ilusórios, que se levantam no silêncio, encolho-me em mim mesmo, atento, e ouço-te que me dizes em segredo: “Ei-lo aí”. Volto-me comovido, certo de que o vou encontrar, e só, então, me convenço de que fui vítima do teu sortilégio, quem quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.

Por que zombas de mim?

Não! Não podes ser tu, Esperança. Tu morreste com ele, foste com ele enterrada, desapareceste para todo o sempre com a sua mocidade.

E como me rondas anunciando-me a sua presença, como se fosse possível realizar o milagre dos milagres de arrancar do poder da morte a presa que ela arrebatou?

Não! Não podes ser tu, deve ser o teu espectro que me obsidia, porque tu, Esperança, ainda que sejas mentirosa, as tuas mentiras têm sempre um fundo de verdade — são como as teias de aranha que, parecendo soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos ou folhas de árvores, ou como as miragens que espelham visualidades no horizonte, mentiras que, entretanto, são projeções do real.

Mas como podes tu reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar o que jaz na terra?

Não! Não és a Esperança, deves ser alguma adversa.

Vou caminhando descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto como se saísse de mim próprio. Escuto e dizes-me que ele ainda vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que costumava frequentar.

Aguardo-o, busco-o na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o. É ele! É o seu corpo senhoril, é o seu andar garboso.

Reconheço-lhe o traje.

Adianto-me com o coração contente e os olhos rasos de água e a ilusão, de súbito, desfaz-se.

Só, então percebo o logro, lembrando-me da impossibilidade do seu retorno, porque ao destino para onde ele partiu vai-se por uma ponte estreita, que só dá passagem a um por um, e a fila não se interrompe como o curso dos rios.

E como poderá ele regressar se, até hoje, desde que começou na vida a marcha para o abismo, nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza perene?

Se sei que mentes por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo de que é falso tudo quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda contando com o que me prometes?

Por que hás de insistir na tortura? Por que assopras o cineral se não há nele centelha que reanime o lume?

Que nos enganes com a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes iludir com a morte, é crueldade.

Que posso eu esperar de onde tudo é nada?

E, todavia, espero. Não me conformo com a ideia de que ele não tornará mais, nunca mais! ao meu afeto.

Espero em vão, bem sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te porque manténs a ilusão em minha alma.

Se a Saudade não tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras, devorava-nos o coração.

Bendita sejas, pois, Esperança, doce e triste alívio de desventurados.

Fonte:
Coelho Neto. Mano – livro da saudade. Publicado em 1924.

Cecília Meireles (Antologia Poética) V

CANÇÃO I


Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só si aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CANÇÃO II

No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.

Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

FIM

Ó tempos de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sobre a lua
e o vento passou pelas hastes.

Vinde ver meu jardim sem flores
no presente nem no futuro,
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!

Vinde ouvir a história da vida
no sopro da noite deserta.
Caíram as sombra das vozes
dentro da última estrela aberta.

Ai! tudo isto é letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MURMÚRIO

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem sequer sonho — amor!
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SOLIDÃO

Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrelas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Sílvio Romero (Manoel da Bengala)

Uma vez um rei teve um filho que nasceu logo muito grande e robusto. No fim de oito dias já o menino comia um boi inteiro. O rei ficou muito assustado e mandou chamar os conselheiros para lhe dizerem o que se havia de fazer, pois aquele filho lhe acabava com toda a fortuna.

Os conselheiros foram de opinião que o rei mandasse o filho procurar a sua vida. O príncipe pediu que lhe mandasse fazer uma bengala de ferro muito grossa e pesada, um machado e uma foice também grandes e pesadas, e partiu.

Chegando na casa de um senhor de engenho, pediu serviço, e o dono da casa o aceitou. Foi o moço derrubar uma roça e deitou com três ou quatro foiçadas quase todas as matas do engenho abaixo. O dono ficou muito assustado, e não o quis mais no seu serviço. Além disto, na hora de jantar, o príncipe não quis comer o que lhe deram por não chegar nem para o buraco de um dente, e pediu um boi e um alqueire de farinha. O senhor do engenho, pensando que ele não pudesse comer tudo, mandou dar-lhe para o experimentar, e ainda mais espantado ficou quando o viu devorar tudo, e o despediu.

Voltou o príncipe para o palácio de seu pai. Aí esteve alguns dias, até que o rei mandou de novo reunir os conselheiros, que foram de opinião que o rei mandasse o príncipe pegar seis leões bravos nas matas. Isto era para ver se os leões davam cabo dele.

O moço pediu um carro e uma junta de bois. Chegando nas matas dos leões passou lá seis dias. Em cada dia matava um boi do carro e pegava um leão, botava no lugar, e o amansava. Depois cortou umas árvores muito grandes e botou no carro e largou-se para trás.

Quando o rei o viu foi aquela zoação que parecia que queria vir tudo abaixo. Era o barulho das árvores e dos leões que vinham com Manoel da Bengala. Assim se ficou chamando o príncipe, por causa da bengala de ferro.

Afinal o rei ordenou-lhe que ganhasse o mundo e não lhe voltasse mais em casa. O príncipe partiu.

Chegando adiante, viu um homem passando um rio cheio, mas sem se molhar, e disse:

– Alô, Passa-vau.

– Alô, Manoel da Bengala.

– Passa-vau, você quer andar na minha companhia?

– Quero.

– Pois então me passe para banda de lá.

Passa-vau o passou e seguiram juntos. Mais adiante encontraram um homem cortando muito cipó e emendando para fazer um laço, e Manoel da Bengala disse:

– Alô, Arranca-serra.

– Alô, Manoel da Bengala.

– Arranca-serra, você quer andar comigo?...

– Pois não, Manoel da Bengala!

– Então vamos.

E partiram.

Cada dia um dos três ia buscar comida para todos. Quando foi uma vez, Passa-vau foi buscar mantimento e encontrou no caminho um moleque muito preto, de carapuça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Passa-vau não quis dar, e o moleque trepou-lhe o cachimbo na cabeça e o derrubou no chão, como morto. Daí a muito tempo é que ele veio a si, voltou e contou aos companheiros o que lhe tinha acontecido.

Arranca-serra disse:

– Ora, Passa-vau, você é muito mofino; amanhã quem vai sou eu.

Assim foi. Quando andava ao longe, apareceu-lhe aquele moleque da cabeça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Ele não quis dar, e travaram luta. O moleque acertou-lhe com o cachimbo na cabeça e o deitou por terra. Daí a muito tempo é que ele acordou e voltou para os outros.

Manoel da Bengala o debicou muito, chamando-o de mofino, e no dia seguinte quando foi buscar mantimento foi ele. Lá bem longe encontrou o moleque da cabeça de latão, que lhe disse:

– Como vai, Manoel da Bengala?

– Vou bem. Você como está?

– Bom; muito obrigado, Manoel da Bengala, você me dá fogo para o meu cachimbo?

– Não te dou, moleque; sai-te daqui.

E meteu-lhe a bengala e o moleque meteu-lhe o cachimbo. Travaram uma briga desesperada. Afinal Manoel da Bengala arrumou-lhe uma cacetada na cabeça, e arrancou-lhe a carapuça de latão. O moleque, então, dizia:

– Manoel da Bengala, me dê minha carapuça.

– Não te dou, moleque.

E assim foram andando, até que Manoel da Bengala lhe disse:

– Só te dou a carapuça se me deres as três princesas que tu tens presas.

Aí o moleque, que era o cão, respondeu:

– Isto não, porque não são minhas.

E foram andando até que o moleque entrou por um buraco a dentro, e Manoel da Bengala seguiu atrás. Lá dentro foram dar num palácio muito rico, onde havia um engenho em que estavam trabalhando muitas pessoas. Era o inferno. E sempre o moleque a pedir a carapuça de latão, e o príncipe a pedir as princesas.

O cão, que conheceu que não podia com a vida dele, deu-lhe as moças, mas o príncipe lhe disse:

– Agora só lhe dou a carapuça se me botar lá fora no meu caminho.

O moleque não quis e ele meteu-lhe a bengala. Afinal consentiu. Mas os companheiros, que tinham ficado do lado de fora do buraco, logo que viram sair as três moças que o cão tinha levado para fora, fugiram com elas, querendo enganar Manoel da Bengala, que as queria para casar com uma, e dar aos outros a cada um a sua.

Quando ele chegou do lado de fora, deu a carapuça de latão ao demônio, e este sumiu. Procurou as moças, mas não as encontrou, e ficou desapontado. Os dois companheiros de Manoel da Bengala tinham ido com elas, que eram princesas, para as entregar ao rei, seu pai, e dizerem que eles é que as tinham salvado, e por isso deviam se casar com elas.

O rei ficou muito alegre com a chegada das filhas que não via há muito tempo, mas as moças muito tristes e a chorar, disseram ao pai que não tinham sido aqueles que as tinham salvado.

Manoel da Bengala tinha três lenços que as moças lhe tinham dado. Pegou num deles e disse:

– Voa e vai cair no colo de tua dona.

O lenço virou um papagaio e voou e foi cair no colo da princesa mais velha e lá virou-se no lenço outra vez. A princesa ficou muito contente e disse:

– Eu só me caso com o dono deste lenço.

Manoel da Bengala pegou no outro lenço e disse:

– Voa e vai cair no colo de tua dona.

O lenço virou um papagaio e foi cair no colo da princesa do meio. Ela ficou muito contente e disse:

– Eu só me caso com o dono deste lenço.

Manoel da Bengala então pegou no terceiro lenço e disse:

– Voa e bota-me na casa das três princesas.

De repente lá se achou. Houve muita alegria. Ele se casou com a mais bonita das moças, e os outros dois foram expulsos, depois de muito castigados, e as duas princesas se casaram com outros príncipes.
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Nota do Blog:
Conto de origem europeia, popular no Sergipe.
Há uma versão deste conto no livro Histórias da Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, em 1937. Postado neste blog em abril de 2011, em https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/04/monteiro-lobato-historias-de-tia_12.html


Fonte:
Sílvio Romero. Folclore brasileiro: cantos e contos populares do Brasil. 
RJ: José Olympio, 1954.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 41) A preciosidade ocultada

BELINHA ERA UMA CRIATURINHA encantadoramente sensual. Seu perfil de menina do interior, com seu sorriso terno e maroto, deixava os homens endoidecidos, principalmente os mais avançados na idade. Não à toa, desde que viera de Araguarí, em Minas Gerais, para trabalhar no Rio de Janeiro, na casa de tolerância de dona Rosa (por indicação de uma ‘amiga’ de infância que vivia, há tempos, no meio libertino), a freguesia masculina aumentara de forma assustadora.

Em razão disto, em menos de três meses, dona Rosa, a cafetina, começou a ver, com olhos esbugalhados, seus negócios passarem de um simples comércio capenga para deslanchar, de vento em popa, numa escala de progressão incrivelmente estonteante e meteórica. A rapaziada, a cada noite, aumentava mais e mais o rebuliço, fazendo com que a cáften enchesse as burras e saísse do vermelho à passos de Golias.

De repente, dona Rosa trocou de carro, aumentou a casa de alvenaria onde funcionava a muvuca, acrescentando mais de uma dúzia de quartos aos treze existentes. Mudou de uma residência relativamente simples, em Pedra de Guaratiba, para um condomínio de luxo, na avenida das Acácias, na Barra da Tijuca. Da noite para o dia, se firmou a alimentar uma conta bancária com numerários vultuosos, num banco onde, meses atrás, mantinha na conta corrente, o suficiente para os gastos com a manutenção e o sustento de suas ‘colaboradoras’ na requintada morada de prostituição.

A mineirinha Belinha se tornara a mais solicitada e a que contribuía com o maior acréscimo de programas para que os rendimentos do rendez-vous triplicassem num abrir e fechar de olhos. Caminho paralelo, a rapaziada só queria a Belinha e havia até uma fila de espera bastante significativa para conseguir subir com ela para o andar superior, onde ficavam dispostos os aposentos dos prazeres mais envolventes.

As outras partícipes da fratria da carne fraca, e fresca, não permaneciam ociosas. Pelo contrário, não davam conta, tamanha a movimentação que varava das cinco da tarde (hora em que o ‘inferninho’ abria) só terminando o tráfico do ‘entra e sai’ dos usuários, quase às primeiras horas de um novo amanhecer. Apesar da Belinha ser a ‘número um’, a azeitona da empada na preferência da plebe dos machos simpatizantes, as demais do grupo de ninfetas, num total de dezoito rameiras, careciam trabalhar dobrado.

Todas, sem exceção, se viravam literalmente nos trinta, para darem conta dos tresloucados que desembolsavam uma nota violenta por algumas horas de sexo e prazer regadas a bebidas importadas da zona franca de Manaus e até uns produtos diferenciados vindos diretamente da Cracolândia Paulista. O fato é que, entre trancos e barracos, altos e baixos, em pouco tempo, a Belinha igualmente fez seu pé de meia. Comprou um apartamento no bairro do Leme, um carro quase zero quilômetro e abriu uma conta poupança para, num futuro próximo, largar de vez daquela vida que ela, de antemão, sabia de cor e salteado, não a levaria muito longe.

Os caminhos da perdição são largos e desafogados, lucrativos e vantajosos, contudo, os passos dados, não permitem que se vá muito longe. Vida de quenga tem dia certo para começar, às vezes se vê interrompido, num abrir e fechar de olhos. Além da grana fácil (a maior parte vinda dos jovens em busca de aventuras), existiam os tais ‘coroas e idosos tarados’ que, por algumas horas de prazer, lhe abarrotavam de presentes os mais diversos, lembrancinhas generosas que ela, não se desfazia, ao contrário, guardava à sete chaves e com esmerado carinho.

Foi numa destas, que um velhusco conhecido no pedaço como ‘seu Perdulário Porreta’, de setenta e lá vai fumaça, os bolsos abarrotados e etc e tal, ao provar da fruta viciosa, se assanhou de vez com os deleites e arroubos da deidade. Os mimos, a cada encontro, se tornavam mais audaciosos até que, num final de semana, ganhou do ilustre senhorzinho, um colar de ouro puro, cujo valor (mandado à verificação depois, numa loja de comercialização de joias), descobriu que, se tivesse que comprar uma igual àquela, precisaria vender o apartamento, o carro, fechar a poupança e, ainda assim, não cobriria o valor da ‘prenda’ que lhe viera em troca de algumas horas em cima de uma cama redonda de um prostíbulo de segunda.

Flávia, a sua melhor amiga e confidente, em face da amizade nascida desde os tempos de Araguari e, como sempre, a primeira a tomar conhecimento das proezas do sessentão, aconselhou, com um sorriso mais escancarado que futricagem de vizinha de língua solta:

— Que legal, Belinha. Como você bem viu, na avaliação que fizemos em duas joalherias conceituadas aqui no Barra Shopping, este adorno vale uma pequena fortuna.

— Sei disso, Flavinha. Quando a vendedora revelou o valor, quase tive um piripaque... faltou pouco...

E completou, colocando o valioso presente em volta do pescoço, enquanto explicava que fim daria ao aparatoso tesouro:

— Por isto, vou colocar esta relíquia naquele lugarzinho do meu corpo (como um talismã da sorte) para me lembrar sempre de como esta coisa maravilhosa veio mudar a minha vida. Posso até parar de fazer programas amanhã, se eu quiser...

Flavinha saltou da cadeira, num gesto impensado e quase teve, de fato, um chilique:

— Tá louca, amiga? Pirou o cabeção?

E se fazendo, inteira, numa espécie de alegria falsificada e repleta de inveja, completou, enfática:

— Se você fizer isto, sua bobinha, só os seus clientes é que poderão ver, tocar e... apreciar...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Rubem Penz (Revisor de Plantão)

Há uma regra não escrita, mas que parece ter validade mundial ontem, hoje e sempre: quando o leitor esbarra em um erro ortográfico ou de gramática, o livro inteiro desce um degrau no conceito. Milhares de palavras íntegras e orações perfeitas são maculadas por um deslize. Ou, o que é pior: as ideias expostas, a história contada, as teses defendidas sofrem um abalo sísmico. Quando a compreensão é atingida pelo erro, vá lá, estamos diante de muitos graus na Escala Richter. Porém, na maioria acachapante dos casos, a falha passa despercebida por muita gente, e em nada afeta o conteúdo. O que minimiza o fato, mas não destrói a questão de que haverá desmerecimento.

Por isso sempre fui e sempre serei um fã incondicional dos revisores. Eles estão ali para garantir a saúde do texto oferecendo uma segunda opinião. Os brilhantes, e não são muitos, leem palavras, frases e parágrafos permanecendo vigilantes ao sentido. Manuseiam as vírgulas com a delicadeza de um ourives; notam os acentos como um maestro a escutar cada detalhe da orquestra; caçam falhas de digitação como a tricotadeira que não perde um só ponto. São atentos como o analista, seguros de que o discurso poderá trair o desejo do escritor (para o bem ou para o mal). Então, apontando a falha no ato, darão ao autor a rara oportunidade de pensar melhor antes de o livro ser impresso.

Sei que não é fácil receber o original de volta da revisão. É triste ver que poucas páginas escapam virgens – o que exige muita humildade no momento de aceitar ou recusar as modificações sugeridas. A primeira reação é um enorme "não é possível, eu redijo bem, o revisor quer escrever por mim". Depois, aos poucos, domamos a fera e baixamos a crista, reconhecendo que a vaidade sempre foi péssima conselheira. Quando redator publicitário, eu implorava por revisão considerando o próprio autor o menos qualificado para o trabalho. Em uma agência consegui que a coordenadora de produção lesse os textos, e muita dor de cabeça foi evitada. Desconfie dos que odeiam revisores; achar-se infalível é a primeira de muitas falhas. E a maior delas.

Pena que na vida não tenhamos essa figura tão útil a marcar em vermelho nossas palavras e atitudes. Para muitos, revisor de plantão seria luxo. Para outros, porém, necessidade. O problema é que o revisor acabaria mal visto ou mal interpretado justamente por quem mais precisa dele.

- Olha, lá, que linda! Vou chegar nela e dizer "Que tal darmos as mãos para mim dançar contigo"?

" O certo seria "eu dançar contigo".

- Eu dançar com você? Jamais!

- Não, você não entendeu: é "eu" com ela.

- Nada disso! Vi primeiro. Além do mais, sou o autor da cantada. Você, no máximo, revisa.

- Tá bom, tá bom. Vou sugerir outra forma, já que você não alcançou; "que tal dançarmos juntos".

- Ih, olha aí o cara! Só pode estar de brincadeira. Homenagem atroz, só comigo e duas mulheres, compreendeu?

- Ménage à trois. É francês.

- Só podia ser mesmo: coisa de fresco. Levo outro homem para cama e, quando vejo, a vaca torce o rabo.

- É a porca quem torce o rabo. A vaca vai para o brejo.

- Bem isso. Olha lá: outro cara pegou a menina na frente de eu.

- Na minha frente.

- Que seja, então, na frente de nós dois. Ei, espera, aonde você vai ?

- "Mim" precisa de um uísque…

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. 
Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

A. A. De Assis (88 Poeminhas) – 4, final


67.
Serra-serra,
será dor.
Cessa a serra,
será flor.

68.
Tem começo,
não the end,
o filme da vida.
Que responsabilidade.

69.
Ismo, ismo, ismo...
Experimentem lirismo,
que talvez
dê certo.

70.
Um pingo de luz
no topo do arranha-céu.
Brincando de estrela.

71.
A partilha é a senha.
Alarga o furo da agulha
e o camelo passa.

72.
The simpler, the better.
Sereno e sem risco segue
aquele que segue à risca
esse ditadinho.

73.
Ninguém é grande
sozinho.
Mesmo o Amazonas,
gigante,
de afluentes precisou.

74.
Curvada a vovó
cata a caca do cãozinho.
Civilização.

75.
In excelsis Deo.
Girassóis em oração
namorando o céu.

76.
Fantástico evento:
 o fascinante momento
em que o botão
vira rosa.

77.
Longindo-se vai,
suminte,
o barquinho a vela.
Quem será com quem?

78.
Saudade?
Ela é assim
como se fosse
uma ex-felicidade.

79.
Apressados
passos
passam.
Por que
não passeiam?

80.
Vaga
o vaga-lume.
Vaga luz
num vago mundo
procurando
vaga.

81.
Ostras
e palavras.
Conteúdo:
pérolas.

82.
E agora, vovô?
– Agora,
nas mãos dos netos,
sou que nem ioiô.

83.
Chocados os ovos,
há o choque
dos seres novos.
E a vida prossegue.

84.
Cada tique-taque
leva um tiquinho da gente.
Para o céu, espero.

85.
Terra prometida.
A fé abre ao meio o mar
para o amor passar.

86.
Simplesinho assim:
Eu creio que Deus existe
porque Deus existe.

87.
Levinhas,
levinhas,
voam as garças em V.
Vitória da paz.

88.
Um tempo de luz virá.
Se depender dos poetas,
começa esse tempo é já.

Fontes:
Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, 
em 21 de abril de 2021.
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 17: Banguela

LOGO QUE Furdelungo Gonozor deu a dentada certeira no pedaço de filé que estava em seu prato, o dente de cima, exatamente o do meio, foi junto, de roldão, com o naco de carne. Furdelungo fechou a boca correndo, segurou a carne para não engolir e se levantou como que impulsionado por um par de molas. Correu ao banheiro, com a mão direita tampando a boca, enquanto com a esquerda, fingia tirar alguma coisa movimentando um palito invisível.

Os amigos não entenderam bem seu pedido de desculpas balbuciado às carreiras, dito à boca torta, mas como estavam todos à deriva e entregues aos vapores do álcool, continuaram com seus copos bebendo tranquilamente como se nada de anormal tivesse acontecido.

Na verdade não aconteceu mesmo. O fato de Furdelungo ter mordido a carne e, na mesma abocanhada deixado ir junto o dente, o problema era dele, só dele. Os amigos de farra não tinham nada a ver com o problema. Desta forma, ao galgar o reservado, se trancou na primeira privada que viu aberta. Em seguida, depois de se certificar de que não havia ninguém estranho por perto, se aproximou do espelho a fim de analisar o tamanho do estrago.

Cuspiu nas mãos a carne mastigada e procurou, no que restara dela: o pedaço do dente. Só então se propôs a encarar diretamente a lâmina de cristal diante de si. Arregalou os olhos. Ficou assustado com a cratera aberta. Parecia maior que o buraco deixado pelo Word Trade Center em Nova York, depois dos operários terem retirado a última viga de concreto que pertencera às saudosas Torres Gêmeas.

O que fazer? Não poderia retornar à mesa daquele jeito. Jamais! Nem encarar os colegas. A não ser que ficasse de boca fechada, mudo, feito uma porta mal humorada o resto do dia. Não daria certo. Lembrou-se de um tubo de Super Bonder que pegara a mania de carregar na bolsa junto com os documentos pessoais, depois que levara um coice de um cavalo num acampamento onde fora passar um final de semana com alguns colegas e seus óculos, nessa ocasião, devido ao incidente com o quadrúpede, foram parar longe, quebrados e amassados, com as lentes cada uma para um canto, mais sobressaltadas que a própria armação.

O negócio, agora, era ir até o carro, discretamente pegar a bolsa no bagageiro e tentar colar o pedaço no lugar de onde se soltara. Antes de deixar o WC, lavou bem lavado o valioso caquinho, assoprou e enxugou cuidadosamente em seu lenço, e então seguiu até seu automóvel. Passou a mão na bolsa e retornou ao lavatório.

Gastou quase uma eternidade para fazer a operação “tapa buraco” improvisando uma espécie de restauração paliativa que, pelo menos, aguentasse até o dia seguinte, segunda-feira e não o fizesse passar uma vergonha maior diante da galera. Se os amigos dessem com ele, daquele jeito e, pior, naquele estado desesperador, sem o dente da frente, certamente iriam cair na gargalhada e a gozação seria inevitavelmente fulminante. Dentinho colado e reposto novamente no lugar de origem, voltou a se olhar no vidro metalizado.

Sorriu largamente. O trabalho ficara perfeito. Ninguém notaria a diferença. Precisaria agora, ter só um pouco de atenção, mastigar devagar e pausadamente os alimentos e não abusar muito da sorte. Qualquer descuido seria fatal, inclusive se não tomasse o mínimo de cuidado, poderia vir a engolir o pedaço de dente e aí sim, até que um profissional moldasse outro, obviamente ficaria uns dias em seu quarto trancafiado e longe de todos. Tudo pronto, tudo em cima, tudo legal, como mandava o figurino. Guardou a cola salvadora e se dispôs a sair.

O diabo quando não vem, manda o secretário. Dito e feito. No que chega à porta vai e vem, eis que, sem esperar, surge a rapaziada em sentido contrário (os amigos que ele deixara na mesa) que, embora tivessem bebido um pouco além da conta, acabaram sentindo a ausência um tanto prolongada de Furdelungo Gonozor. O que encabeçava a frente do grupo, estabanadamente, empurrou com toda a força as duas bandas da portinhola, e o fez com vontade e sem nenhum tipo de aviso. Também, avisar a quem?  

Desta sorte, o troço, ao ser aberto, foi de encontro à boca de Furdelungo, que sem esperar, recebeu literalmente uma pancada igual, ou pior que o coice do quadrúpede do acampamento. Pego de surpresa pela segunda vez, escorregou e voou diretamente para o chão caindo de boca no piso ladrilhado.  

Um pequeno filete de sangue pôs-se a escorrer intermitentemente. Os amigos se dignaram indignadamente a socorrê-lo, apavorados, gritando, espavoridos, alarmados, boquiabertos e, de certa forma, apatetados diante daquela cena inesperada. Sem saber exatamente o que acontecia, um dos rapazes pisou nos óculos de Furdelungo. Um segundo que se posicionara logo atrás, calcou (sem querer, claro), a sola de seu tênis em cima de uma chusma de sangue, exatamente onde caíra o caquinho de dente recém-colado.

— Furdelungo, meu brother... você está bem? Foi mal! Acabei de quebrar seus óculos.

“Minha Santa Luzia Protetora dos olhos, e agora???...” — resmungou intimamente Furdelungo Gonozor. Queria sumir, escafeder, virar purpurina. Ser abduzido, morrer, se pudesse optar por uma escolha. Acabara de perder seu precioso pedacinho de dente. Os óculos, os óculos que se danem pra lá.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Adega de Versos 20: Olivaldo Júnior (SP)

 

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro de
Leandro Bertoldo Silva. "Entrelinhas contos mínimos".

Silmar Böhrer (Caderno de Versos) – 3

A CONDOREIRA

É manhãzinha e a pequena
já está em louvação,
a corruíra em bom tom
numa cantiga açucena.

Acordo junto com a corruíra
nesta manhã sabatina,
e como canta essa menina
ali no pé de guajuvira.

A condoreira sempre feliz
cantando como quem diz,
voltei forte ao tabuleiro

Ali na cumeeira do rancho,
apenas eu - nada de ancho,
é quem manda no terreiro.
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CANETA NOVA

Eis que surge um versinho
para inaugurar nova caneta,
verso pobrete do esteta
recebido com carinho.

O verso pobrete do esteta
tem sido o meu diapasão,
os dias vêm, os dias vão,
vou tentando cobrir a meta.

Os dias vão, os dias vêm,
no versejar itinerante
estou vivendo como ninguém,

Caneta nova entre os dedos
é realmente contagiante,
tecemos versos sem arremedos.
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MANHÃ DOMINICAL
             
Nos páramos infinitos do nascente
emerge a primeira alva do arrebol,
trazendo em si a panda luz do sol
que evolve no belo céu do Oriente.

Para dar um toque bucólico ao dia
surge o doce responso de cantigas
em acorde com as sinfonias amigas
dos pássaros a trissar na ramaria.

Emana um contaminado olor agreste
das ervas enquanto a aura celeste
esparge do orvalho o último pingo.

A natureza em modelar consonância
impregna nos ares leve fragrância
nesta evangélica manhã de domingo.
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OH SORTE !

As rimas andam ausentes
nestas primícias de agosto,
estarão - será - descontentes
ou mesmo com algum desgosto ?

Não consigo os mais saborosos
dos meus versos companheiros,
por isso andam desgostosos
aqueles versinhos brejeiros.

Um versejador de paus-quebrados
não pode querer assim tantos
mais do que uns mal rimados,

Mas oh sorte, a Poesia tem benevolência
me borrifando com seus encantos
algum bálsamo pura essência.
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PORFIA

Desafiei-me um certo dia
a rabiscar alguns sonetos,
dois quartetos, dois tercetos,
lançando-me então à porfia.

E o versejador giramundo
pensando ter destreza
ergueu com toda a rudeza
o soneto mais vagabundo.

É que, amigo das musas,
eu vivo fazendo alaúzas*
pensando saber rimar...

São tantas chances preciosas
delas, as minhas formosas,
e não aprendo a sonetar.
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TARDINHAS

Andam ventos ventantes
a ventar nesta noitinha,
até os versos, coisa minha,
são versos ventarolantes.

Os tico-ticos ali no fio
parecem todos gordinhos,
são mesmo emplumadinhos
na boca-noitinha com frio.

Viajam chumaços ao léu
perambulando de déu em déu
as nuvenzinhas passageiras,

E vou em liturgia gostosa
versejando sem rebordosa
nestas tardinhas fagueiras.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Alaúzas – algazarras, balbúrdias, celeumas.

Marcelo Spalding (Um exímio pianista)

Quando certa manhã Wesley acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um exímio pianista.

Não se deu conta de imediato, afinal nunca gostara muito de música, sequer violão, nos tempos de adolescente, conseguira aprender. Mas foi só sentar-se à mesa com a fatia de pão em frente que sentiu seus dedos se movimentarem e logo percebeu estar dedilhando na toalha. Deve ter permanecido ali por alguns instantes, pois quando se deu conta a mulher gritava: presta atenção, traste, tô atrasada e hoje é teu dia de levar as crianças!

Wesley ergueu as mãos, olhou seus dedos, depois virou-se para a esposa e assentiu com a cabeça. Ela, antes de sair, ainda perguntou alguma coisa sobre o irmão de Wesley, se ele já tinha aparecido, mas agora um assobio melódico saía dos lábios do homem, que irritou-se menos com a porta batendo do que com o grito estridente e desafinado da mulher.

Caminhou até a escola das crianças assobiando, e elas se divertiram, ainda que não conhecessem as músicas ou as melodias. Bom não terem perguntado: nem Wesley saberia responder. Seguiu da escola para a parada de ônibus, e agora eram ambas as mãos se movendo pelo espaço, como a seguir um maestro invisível e nervoso.

No caminho para o trabalho, deparou-se com uma loja de instrumentos musicais. Ficou pensando se ela sempre estivera ali e ele nunca notara, mas o fato é que dessa vez as teclas brancas e pretas o atraíram de forma irresistível, e quando se deu conta estava sofregamente executando uma bela e difícil sinfonia, ouvindo os acordes de olhos fechados, suor na testa. A mão esquerda alternava com energia as notas, enquanto a direita dedilhava com elegância. Sequer notou que o teclado estava desligado da tomada, ali exposto por alguns dinheiros. E só voltou a si quando um enorme segurança lhe deu um safanão, e depois, com a ajuda de um vendedor, o tirou carregado da loja. Ouviu alguma ameaça sobre chamar a polícia, pensou até ter ouvido alguém chamá-lo de macaco. Mas preferiu virar as costas para aquelas teclas brancas e pretas, em êxtase pela brilhante apresentação feita só para si, em si.

Já no trabalho, sua desconcentração era evidente. Ao invés de ficar parado com braços cruzados e cara de mau, sorria para quem entrasse no prédio, virava-se a qualquer assobio e por vezes não conseguia evitar seus próprios assobios e o movimento dos dedos. Não demorou para o supervisor o fazer de posto, e ele foi para a frente do monitor. Depois de alguns minutos olhando aquela tela dividida em 12 pequenas imagens, Wesley esfregou os olhos, esfregou mais uma vez: via teclas no lugar do movimento ritmado dos que entravam e saíam, não distinguiu a senhora entrando com um cachorro, o rapaz com um skate. O tal supervisor chamou Wesley para conversar: são as normas, são as normas, você não tá bem, vai pra casa descansar hoje, mas se amanhã fizer isso de novo vai ser difícil segurar os caras, é capaz de te botarem na rua que nem fizeram com o Zé.

No caminho de volta, aproveitou o ônibus quase vazio para escolher um toque melhor para seu celular. Nunca se incomodara com os estridentes toques padrões, mas agora analisava com calma cada uma das opções e, sem saber, optou por uma versão eletrônica da As quatro estações.

O caminho até a casa fez pensando em quanto custaria um daqueles pianos com tomada. Não chegou a reparar no preço, mas sabia não ser esse tipo de coisa para homens como ele. Talvez para o irmão, que tinha ar-condicionado e computador. Mas não para ele.

Chegou em casa ainda antes das crianças e da mulher, foi até a cozinha, abriu gavetas, escolheu garfos, colheres, facas, alinhou-os sobre a mesa e experimentou o dedilhar no cabo dos talheres. Gostou da sensação dos dedos encontrando as teclas, mas achou o som abafado e estava tirando a toalha da mesa quando ouviu batidas fortes na porta. Ficou com medo de que sua música estivesse repercutindo fora da casa, atrapalhando a sesta de algum vizinho nervoso. Mas a voz era inconfundível: porra, mano, eu vi que tu tá sozinho aí, abre a porta pelamordedeus.

Wesley suspirou, olhou para os talheres alinhados na mesa sem toalha e foi abrir a porta. Dessa vez iria reclamar do irmão, sempre aprontando das suas. Mas não teve tempo: mal girou a maçaneta e ouviu um ranger de pneus arrastado, cinco estouros secos e ritmados e um grito agudo da voz inconfundível. Num impulso, Wesley escancarou a porta e abraçou o corpo do irmão, observando o carro preto se afastar roncando o motor. Mas depois viu o mesmo carro preto parar, dois homens olharem para trás e o carro dar ré até parar diante de si, sem dó.

Eu juro não falar nada, não vi nada, eu juro, Wesley dizia e as mãos nervosas, erguidas sobre a cabeça, dedilhavam.

Olhos fechados, não viu quando o homem ergueu a pistola e, jurando voltar se alguém fosse atrás deles, deu um tiro em cada mão de Wesley, acertando em cheio a palma da enérgica mão esquerda e os elegantes dedos da mão direita.

Estante de Livros (A Bela e a Fera)

“A Bela e a Fera” é um romance adulto originalmente escrito pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot, em 1740.

Em 1956, uma versão mais simplificada foi escrita por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, em que ela encurtou transformando em conto e direcionado para crianças.

Devido ao sucesso dessa versão, o conto resultou na produção do musical “a Bela e a Fera” para o cinema.

"A Bela e a Fera", na versão original, contêm elementos que foram omitidos por Beaumont. O que ela fez foi retirar detalhes que eram considerados insignificantes para a estória e diminuiu o número de personagens.

Na versão escrita por Gabrielle-Suzanne Barbot, a Fera era um príncipe que perdeu o pai logo cedo, e sua mãe o largou para ir lutar em uma guerra.

O príncipe ficou aos cuidados de uma fada malvada que enquanto ele crescia tentou seduzi-lo, mas por ter sido recusada o transformou em uma fera.

Enquanto Bela, não era a filha de um mercador, mas a descendente de um rei. A mesma fada tentou matá-la para se casar com esse rei. Para se proteger, Bela assumiu a posição da filha de um mercador.

RESUMO DA VERSÃO ADAPTADA PARA O TEATRO E CINEMA

Era uma vez um jovem príncipe que vivia em seu luxuoso e lindo castelo. Contudo, era egoísta e por isso não tinha amigos.

Em uma noite muito chuvosa, recebeu a visita de uma velhinha que pediu abrigo durante a tempestade. Mal-humorado, recusou ajudá-la.

Mas ele não sabia que aquela velhinha era, na verdade, uma feiticeira disfarçada e que já sabia do egoísmo daquele príncipe.

Sendo justa, lançou um feitiço transformando-o em uma fera monstruosa. O encanto apenas poderia ser desfeito no dia em que ele recebesse um beijo de amor verdadeiro.

Enquanto isso, em uma vila distante dali, vivia um comerciante com suas três lindas filhas. Contudo, a mais caçula, era a que mais se destacava não somente pela sua beleza, mas pela bondade e humildade.

Diante tamanho beleza, era chamada de Bela. Ela gostava muito de ler e contava histórias para as crianças da vila.

Em uma das diversas viagens que seu pai fazia para vender os seus produtos, perguntou para as filhas o que elas queriam de presente. As mais velhas pediram coisas luxuosas, enquanto Bela apenas uma rosa.

Durante viagem, o pai da Bela enfrentou uma tempestade e encontrou um castelo que parecia abandonando e se abrigou durante o temporal.

No dia seguinte, quando estava de partida, avistou uma árvore com muitas rosas e resolveu pegar uma para a sua filha Bela. Mas ele não sabia que o palácio era a morada do príncipe que fora transformado em fera.

Enfurecido, a Fera o prende como seu prisioneiro, mas ele pede para se despedir de suas filhas, e a Fera deixa. Ao retorno para despedida, Bela insiste em voltar ao castelo com seu pai.

No castelo, devido as condições de saúde do pai, ela propôs a Fera que o deixasse ir e que ficaria no lugar dele como prisioneira. O príncipe enfeitiçado acata o pedido, enquanto o comerciante vai embora, mas promete voltar para resgatar a filha.

A Bela se tornou prisioneira da Fera, mas não era mantida dentro de uma sela. Ela podia circular pelo grande palácio, foi acomodada em um dos melhores quartos e tinha acesso à biblioteca, local que amava, pois adorava ler.

Após o pedido de casamento feito pela Fera, ela recusa e oferece bondosamente a sua amizade, e ele aceita.

Com o passar do tempo, a Bela e a Fera foram se tornando amigos, enquanto ele se encantava com sua beleza, inteligência, gentileza e bondade, ela percebia que a Fera, apesar da feiura, era uma criatura bondosa e a tratava muito bem.

Apesar dos dias agradáveis que  Bela passava no castelo, sentia saudade de seu pai. Então, ela pede a Fera permissão para visitar o comerciante e ele concede o pedido.

A viagem de Bela durou dias, pois seu pai tinha adoecido. Mas ao retornar ao castelo encontra também a Fera doente, pois ele achou que a tinha perdido para sempre.

Nesse momento, Bela percebe o quanto é amada e que também sentia algo muito forte pela Fera. Amizade, amor, compaixão.

E chorando, pede que a Fera não morra e se case com ela. Então, ela o beija e o feitiço é desfeito. A Fera volta a ser o belo príncipe, eles se casam e vivem felizes para sempre.

MORAL DA ESTÓRIA

O resumo feito acima é uma das versões contada sobre “a Bela e a Fera”. Ou seja, há vários detalhes e situações que são diferentes de uma versão para a outra, mas todas são focadas em uma única base: o amor verdadeiro.

O enredo é sobre a verdadeira beleza que se encontra no coração. O amor não escolhe aparência, pois, apesar da aparência monstruosa, a Fera foi amado por Bela.

Na mitologia grega havia uma rainha e um rei que tinham três filhas, a mais caçula era a mais bela e perfeita, chamada de Psiqué.

Ela era tão bela que chamou atenção e inveja da Deusa Afrodite, deusa do amor e da beleza. Enfurecida, Afrodite quis se vingar fazendo Psiqué se casar com um monstro e prendendo-a em um castelo no alto das montanhas.

O monstro com quem Afrodite a fez casar era tão horrível que somente aparecia à noite para o rosto não ser visto. Ao passar dos dias, Psiqué percebe que o marido era gentil e tinha um bom coração, e resolve dar uma espiadinha enquanto estava dormindo.

Ao se aproximar do rosto do monstro com uma vela, descobre que não se casou com um monstro, e sim com um cupido, o próprio deus do amor, Deus Eros.

Essa estória de Eros e Psiqué deu origem aos mais diversos contos e lendas em que envolvia uma pessoa e um monstro. Assim, dessa tradição surgiu “A Bela e a Fera”.

O conto de amor entre Eros e Psiqué entrou para posteridade após um romano chamado Lúcio Apuleio incluir a estória dentro do romance “O Asno de Ouro”.

Por conta desse registro o romance de Eros e da Psiqué foi imortalizado em todo tipo de obra de arte, de todas as épocas, do renascimento até a atualidade.

ADAPTAÇÕES

“A Bela e a Fera” foi encenado, filmado e adaptado diversas vezes, sendo que cada uma com versões diferentes.

A mais famosa é a produção da Walt Disney, que produziu o musical de animação em 1991. Desde então, o conto “a Bela e a Fera” ficou conhecida, tornando-se umas das estórias de amor mais bonita das animações.

A mais recente das versões foi o filme live-action da Disney, estreado em 2017. Com a Bela sendo interpretada pela famosa atriz Emma Watson, mundialmente conhecida pelo personagem de Hermione Granger da saga Harry Potter.

 VERSÃO ESCRITA X VERSÃO CINEMATOGRÁFICA

Na versão clássica dos livros não há o personagem do “Gaston”, um belo príncipe que busca o amor de Bela, mas não consegue. Ele representa a beleza exterior que esconde uma monstruosidade de alma.

Na versão cinematográfica existem personagens que são transformados em mobílias falantes e apenas uma fada. Já na versão escrita existiam duas fadas e não tinham as mobílias.

Fonte:
A Bela e a Fera. Disponível em Guia Estudo. Acesso em 10 de maio de 2021.

domingo, 9 de maio de 2021

Varal de Trovas 499

 

Emílio de Meneses (O Poliglota)

Estava Emílio de Menezes numa roda na Paschoal, quando chegou um amigo e lhe apresentou um rapaz que vinha em sua companhia:

— Apresento-te Fulano: é nosso patrício e tem corrido o mundo inteiro. Fala corretamente o inglês, o espanhol, o italiano, o alemão e o francês.

O rapaz sorria modesto ante os elogios, e a palestra prosseguiu.

Ao fim de uma hora, durante a qual apenas proferira alguns monossílabos, o viajante despediu-se e se foi embora.

— Que tal o camarada? — perguntou a Emílio um do grupo.

— Inteligentíssimo e, sobretudo, muito criterioso, opinou o rei dos boêmios.

— Mas ele não disse um níquel.

— Pois é por isso mesmo, — tornou Emílio.

E rindo:

— Você não acha que é ter talento saber ficar calado mais de uma hora em seis línguas?

Fonte:
Emílio de Meneses. O último boêmio (seleção e organização Iba Mendes). 
São Paulo: Projeto Livro Livre, 2019.

Therezinha Dieguez Brisolla (Trovas com Humor)

Ao pai dela, o cafajeste
Explica: – "Foi num pagode"...
O velho é um "cabra da peste"
e a moça lhe diz: – "Deu bode"!
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Ao ver que estava em perigo,
fechou, a Jane, a matraca...
É que o Tarzã, sempre amigo,
hoje "tava com a macaca"!
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A peruca e a dentadura
ele tira e perde o viço...
Ela pergunta e ele jura
que o resto... não é postiço!
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A porquinha se casou
e chora o tempo inteirinho!...
Bem que a mãe dela avisou;
– Não case com porco-espinho.
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Cai da escada (algo o sustenta)
– Francisco de Assis... tô frito!...
O santo o solta e lamenta:
– Perdão... sou São Benedito.
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Cai no trilho e a triste sina
maldiz tanto o beberrão:
– Essa escada não termina
e é tão baixo o corrimão!
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Deita e fala em natação!
A esposa, recém-casada,
num sufoco espera em vão...
E o marido... nada... nada...
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Desdentado, velho e fraco,
toda noite "deita e rola",
mas não acerta o buraco...
Triste fim... de um tatu-bola!
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"Deu bode" a vaidade dela...
A plástica a esticou tanto
que agora só faz novela,
que exige... cara de espanto!!!
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Diz sem olhar pro cliente:
–  Você tá sendo traído...
Só que a cigana "vidente",
leu a mão... do seu marido!
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Eu não mandei a criada
tirar a roupa na rua.
Ela contava a piada
e eu só disse: - Conti... nua!
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"Eu quero uma bênção" diz
o andarilho, no convento.
Com a mão tampando o nariz,
o monge lhe diz: – Sê bento!
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Foi, de corrida, ao local
pensando em bumbuns... artistas...
"Noite do Fio Dental"
era um curso... pra dentistas!
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Gera corrida e surpresa
notícia mal pontuada:
"A mulata Globeleza
visita a Serra... Pelada".
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Gritei "Pare, seu Joaquim"
quando o trem apareceu.
Ele ainda olhou pra mim,
falou "ímpare"... e morreu!
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Já velho, o Sansão estrila:
– Minha mulher tá caduca...
Mal cochilei e a Dalila
tosou a minha peruca!
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"Meu anjo corre comigo"...
Na curva ele foi direto
sem ler a placa "Perigo".
Seu anjo?... era analfabeto!
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Na "guerra" pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam "com unhas e dentes".
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Não sobrou uma peninha!!!
E o galo, machão, despista:
– Saio pelado da rinha
quando é verão... Sou nudista.
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Pensei no jogo "e deu galho"
quando ela gritou: – Tarado!
Só disse, ao ver o baralho:
– Mocinha, você tem dado?
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Pergunta o "maitre", polido:
(no prato, a vespa... tostada!!!)
– E qual foi o seu pedido?
– O prato da vez passada.
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- "Qualquer santo... eu tenho fé"!
grita ao cair de uma grade,
– "Eu te ouvi, mas sou Tomé...
Só vim ver se era verdade"!
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Quando a vida se distrai
ou dá tudo ou tudo nega:
– Rico... pega o carro e sai
~ Pobre sai... e o carro pega!
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Querendo ver o acidente
ele abriu caminho a murro...
Foi dizendo: – Sou parente...
Mas, quem morreu... foi um burro!
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"Quero algo que me deleite"!
diz, ao leiteiro... e o panaca:
– Vista a roupa... não se deite...
que eu vou buscar minha vaca.
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Um remédio envenenado
e a Julieta morreu.
O Romeu foi condenado
porque ela disse: - Erro... meu!
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Vamos, ao circo, sozinhos
e, por favor, fiquem calmas...
E as mães dos dois mosquitinhos:
– É que o povo... bate palmas!
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Vendo a fera, fica um "gelo"...
retira a cruz do pescoço...
Mas, o leão ante o apelo:
- Só rezo depois do almoço,
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– Venha, tigresa, pra cama...
(o velho rico resvala)
e a garota de programa:
– Mais um tigre... de Bengala.

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas. 
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.

Leon Eliachar (O segredo)

Jorge chegou da rua irritado, descarregou em cima da mulher:

— Não aguento mais as despesas. O ônibus subiu, o cigarro aumentou, os impostos se multiplicam, o cafezinho não para, só o meu lucro não cresce.

A mulher simplificou tudo:

— Por que você não faz greve?

Ele quis rir, mas a vontade era pouca, acabou gritando:

— Se eu fizer greve, Ester, morremos os dois de fome. Não vê que a minha profissão é liberal? Se eu não trabalhar, não ganho nada. Ainda não inventaram o sindicato particular pra defender os direitos individuais. Além do mais, greve particular não pega, se a gente não trabalha, perde a clientela.

Ester virou o rosto, começou a abrir os embrulhos de compras:

— Olha, você se queixa, mas as costureiras estão cobrando os olhos da cara. Esse vestidinho aqui, simples, simples, só de feitio foi quinhentas pratas, fora a fazenda. E esta sandália italiana, feita no Brasil, foi seiscentos e cinquenta, a italiana mesmo custa mil e quinhentos, pra fazer economia comprei duas nacionais. E esta bolsa, olha aí, sem nada, nenhum enfeite, novecentos e um, tive de implorar pro homem deixar por novecentos, você me conhece, passo qualquer vexame pra fazer poupar o seu dinheirinho. E esta calcinha de lycra...

— Chega! Não quero ver nem ouvir mais nada. Me arrebento feito um cão pra fazer frente à inflação e você me aparece com esse luxo todo. Cadê a mesada que lhe dei?

Ester abriu a bolsa e contou as notas:

— Está aqui. Ainda tem duzentos e vinte cruzeiros e oitenta centavos. E ainda estamos no dia 15.

Jorge se queimou:

— E onde é que você vai arranjar o resto? Ela fez ar de superioridade:

— Pode deixar que me ajeito. Nunca lhe pedi mais do que você me dá, pedi?

Jorge não se conteve:

— Então me explica esse milagre que o papai aqui também quer fazer, tá, meu bem?

Ester deu uma gargalhada, foi pro quarto com os embrulhos, meteu tudo dentro do armário. Jorge ficou andando de um lado para o outro, impaciente. Chamou várias vezes, a mulher não respondeu. Duas horas depois, ela apareceu, elegantemente vestida, cercada de perfume por todos os lados. Jorge impediu sua passagem:

— Aonde é que você vai assim toda bacana? Ela ajeitou o broche de ouro, piscou os olhos com os cílios postiços, falou com voz pausada:

— Vou buscar o resto da mesada, meu caro. Você não queria saber o milagre? Pois fique sabendo que o santo de casa também faz milagre. Entra aí no quarto, tem um vestido que é o seu tamanho exato, por que não tenta?

Ester bateu a porta e deixou Jorge trancado no seu silêncio e na sua humilhação. Pegou uma garrafa de uísque e durante muito tempo passou bebendo, diante do vestido vazio. Duas horas depois, abriu a porta do apartamento com dificuldade. Quando ia entrar no elevador tropeçou e caiu em cima da vizinha que chegava:

— Que é isso, Dr. Jorge? Com salto sete e meio o senhor precisa andar com mais cuidado. Além disso, anágua não se usa mais e a sua está aparecendo.

Morto de vergonha, Jorge voltou pra casa e foi se olhar no espelho. Tinha esquecido de raspar o bigode.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.