quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Arquivo Spina 50: Ana Luzia Moura


 

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 45) Chá de panela

O CONVITE ENDEREÇADO à Felisbina Monteverde, estava sobre uma espécie de aparador de canto, sobressaindo, ao lado dele, um espelho oval enorme. Enfiado entre um monte de porta-retratos, um esquecido envelope branco, de tamanho grande, jazia silencioso, à espera de que alguém, ao menos, se lembrasse de que ele estava ali. Também marcando presença, no velho móvel, dois castiçais que ela havia trazido de uma viagem de fim de semana, numa excursão que fizera à Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo. Nessa peça, ficavam também, o telefone de linha, e, praticamente, todas as chaves das portas da casa. Enfeitando o rosto do envelope, um punhado de coraçõezinhos azuis e algumas rosas de cores às mais diversas, em cima do que parecia ser uma mesa com xícaras repousando sobre pires coloridos, destoando, entretanto, do bule que dava a impressão de ser de alumínio.

Também se destacavam quadrados brancos e pretos, como um tabuleiro de xadrez, com os guardanapos, ao lado, dobradinhos e à espera de serem usados. Felisbina pegou o curioso envelope, abriu e leu um bilhete que veio grampeado a um cartão-convite. Dizia o seguinte. “Amiga, finalmente vou desencalhar. Deixarei de ser solteira Meu casamento está marcado e será dentro em breve”. CONVIDO VOCÊ PARA O MEU CHÁ DE PANELA QUE DAREI NO DIA DE HOJE”. Abaixo, vinha o dia e a hora, sublinhados com uma caneta esferográfica vermelha, e, claro, o nome de quem promovia o tal encontro: “JULIETA”. Em seguida, o local onde aconteceria o evento. Terminando a singela convocação, uma frase simples, mas de certa forma impositiva: “CONTO COM A SUA PRESENÇA. NÃO FALTE!”. A seguir, um “EM TEMPO” e, na frente, uma pequena linha pontilhada onde a beldade que deixaria a solteirice colocou o que gostaria de ganhar.

E o que exatamente a Julieta gostaria de ganhar da amiga Felisbina Monteverde? Com a mesma caligrafia feia, de quem escreveu o nome dela, como anfitriã, porém, em letras garrafais, o desejo incontido: “ESCUMADEIRA PARA ARROZ COM CABO AZUL”, destaque, entre parentes, a loja e o endereço onde o tal apetrecho poderia ser encontrado. Casa dos Quebra Galhos. E uma observação de suma importância: “FAVOR DISFARÇAR O PRESENTE”. Terminava, por sinalizar o endereço da casa de festa onde aconteceria o encontro. “RUA DAS OLIVEIRAS, 1743 ao lado do EDIFÍCIO POLPA DE LARANJA. O referido prédio é uma torre alta e magra (dá a impressão de estar fazendo regime para se manter em pé), de trinta andares com pastilhas brancas desbotadas de ambos os lados. Em frente a ele, tem uma farmácia. Depois de passar a 100% DVD, uma loja que aluga fitas e bolachões antigos, verá a casa onde receberei as minhas convivas. Não tem como errar”.

Na verdade, o que fez a Felisbina lembrar do tal chá de Panela foi o telefone que, de repente, passou a tocar insistentemente. Ao atendê-lo, sem querer, topou com o convite. Tratou de se livrar do chato que estava do outro lado da linha, assim que leu o dia e a hora. Deu um tapinha na testa, apreensivamente apavorada:

— Caraca. É hoje. Tenho menos de uma hora!

Ligou imediatamente para uma vizinha que morava dois andares acima do seu.

— Malvina? Sou eu, Felisbina...

— Quem? Felisbina? Não conheço nenhuma...

— Do seu prédio, apartamento 405.

— Ah, Felisbina, claro, desculpa pela gafe. Esposa do falecido Carlos Bolinha. Que cabeça, a minha. O que você manda, amiga?

— Estou com um problema. Aliás, um problemão...

— Posso ajudar?

— Tenho de estar em um chá de cozinha, ou de panela, sei lá, qual a diferença, dentro de uma hora e ainda não comprei o presente...

— Calma. O que a pessoa quer ganhar?

— Espere. Deixa ver aqui... li e esqueci.

— Achei: uma escumadeira com cabo azul.

— Fácil, amiga. Vá até o centro, na Casa dos Quebra Galhos e encontrará o que precisa.

— Eu sei. O problema não é esse...

— E qual é?

— A Julieta...

— Quem é Julieta?

— A do chá...

— Ah!, tá bom. E ai?

— Ela quer que eu disfarce o presente. Como é que se disfarça uma porcaria de um presente?

— Qual é mesmo o bagulho que ela pediu?

— Uma escumadeira com cabo azul.

Silêncio momentâneo. Aflição de ambos os lados.

— Amiga, vou ligar para a Chiquinha. Ela deve saber. Nunca soube que alguém disfarçasse um presente...

— Nem eu! O que é que eu faço?

— Aguarde. Ligarei para ela e, em seguida, voltarei a falar com você.

Malvina desligou o telefone com um “tchau, não saia daí”. Menos de um minuto depois, retornou a ligação.

— Amiga, desculpe. Qual é mesmo o seu telefone?

— Malvina, você acabou de me ligar...

— É verdade. Desculpe. Que cabeça!

Felisbina estava a ponto de arrancar os cabelos quando o telefone gritou, de novo, dez minutos depois. Chegou a tomar um baita de um susto.

— Alô? Quem é?

— Sou eu.

— Eu quem?

— Malvina, sua amiga, dois andares acima do seu pavimento.

— Ah, desculpe. Fala minha amiga. Conseguiu contato com a Chiquinha?

— Sim.

— E o que ela falou com relação a disfarçar um presente?

— Ele me disse para você ser prática. Nada de ir em loja e gastar dinheiro com bobagens. Simplesmente se dirija  a  uma papelaria qualquer aí no centro e encomende uma caixinha de presente bem bonita e, dentro dela, não coloque nada.

— OK. E quanto a Julieta abrir?

— Ela não irá encontrar absolutamente nada, é evidente.

— Mas e a escumadeira de cabo azul?

— Diz a ela que, como pedido, você disfarçou.

— Ela vai saber que é sacanagem de minha parte. Poderá até cortar a nossa amizade...

— Qual o quê! Se ela reclamar, você alega que ela foi com tanta sede e afoiteza ao embrulho, na hora de abrir, que não notou a escumadeira azul no fundo da embalagem. Joga aquela balela do “você não olhou para o meu presente com os olhos da alma, e, sim com a visão da ganância desenfreada". Apimente a cena com umas gotinhas de “magoei”. Sempre cola...

E terminou, acrescentando:

— ...Precisa ter sensibilidade, amiga. Aprenda a ter sensibilidade que você verá a linda escumadeira de cabo azul que lhe trouxe.

— Sei não. Parece esquisito...

— Vai na fé. Dará certo. Confia.

Felisbina passou numa papelaria, comprou uma embalagem chamativa, pediu um embrulho caprichado com direito a lacinho e tudo e se mandou para o local indicado no bilhetinho.

Logo na chegada, por sorte, deu de testa com a Julieta recebendo a galera na porta de entrada. Assim que avistou a amiga, tremeu na base. Não poderia desistir. Já estava lá, carecia seguir em frente. Tentou se achegar à jovem o mais rápido possível e entregar o pacote lindamente preparado. Três ou quatro pessoas, todavia, ao mesmo tempo, se aboletaram ao seu entorno. Sem perder tempo, Felisbina passou-lhe o presente, ou seja, a caixa vazia, o que não causou nenhum alvoroço, de pronto, em face, claro, das demais criaturas que se abraçavam à felizarda, em jubilosa efusividade. Uma semana depois, o telefone tocou. Era a Julieta.

— Oi, Felisbina. Tudo bem? Desculpe, aquele dia quando me entregou o presente, não pude lhe dar muita atenção. Me perdoa, por favor.

— Nada a desculpar. Fique tranquila. E aí, gostou da escumadeira de cabo azul?

Nesse momento, Julieta começou a chorar copiosamente.

— O que foi minha amiga? Não gostou da escumadeira?

— Felisbina, você não vai acreditar. Em meio ao furdunço, alguém me roubou a lembrança que você tão carinhosamente me deu de coração...

— Credo, amiga, logo o meu presente que lhe dei com todo o amor do fundo de minha alma?! Como tal fato pode acontecer?

— Não faço a menor ideia. O sem vergonha ou a vagabunda, sei lá, teve a ousadia de levar o presente e deixar a caixa vazia...

Felisbina, por pouco, não caiu na gargalhada. Achou melhor conter o riso e se solidarizar às frustrações da amiga.

— Meu Deus, Julieta, que horror!

— Bota horror nisso, amiga Felisbina. Estou pasma!

— Eu idem. Você não imagina o meu espanto. A que ponto as pessoas chegaram.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da Vida na Privada”.

Barão de Itararé (Versos Diversos) 1

CUIDADO

A mútua simpatia, que nos liga,
Não deveria temer nenhum traidor.
Mas bem compreendo, minha doce amiga
Que é preciso ocultar o nosso amor.

Não quer isto dizer que não prossiga
A te amar, cada vez com mais ardor -
Mas... alguém nos vigia e alguma intriga
Pode toldar o céu, todo fulgor.

Evitemos, portanto, de nos ver.
Nós sabemos o quanto nos amamos,
A minha vida é tua, a tua é minha,

Paciência, pois, que havemos de vencer!
Por enquanto, somente, precisamos
Muita cautela e... caldo de galinha.
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JURAMENTO

Juro, por Deus, por tudo que é sagrado
E pela santa luz que me ilumina,
Que teu olhar me deixa transtornado
E, ao mesmo tempo, me fere e me fulmina.

Por causa desse olhar enfeitiçado,
Pelo feitiço da sua luz divina,
Nem Deus, que tudo vê, não imagina,
Por quantas privações tenho passado.

Basta de dor! Já chega o que hei sofrido!
Serás minha, aconteça o que aconteça,
Porque não será em vão que te contemplo.

Mas se não for por ti correspondido,
Juro que meto um tiro na cabeça,
Na cabeça... de um prego, por exemplo.
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MALCRIADA

Essa jovem que vês — um anjo louro —
Já foi o alvo do meu sincero afeto.
Morava com a avó, o mais completo
Modelo de mulher, talhado em ouro.

Mas a avozinha achava um desaforo
A perspectiva de um futuro neto.
Por isso mesmo, nem por um decreto,
Queria consentir no tal namoro.

Quando me via, a avó lhe perguntava:
"Quem é aquele rapaz impertinente,
Que anda contando as lajes da calçada?”

E ela, séria, pois nada a perturbava,
Respondia com cara de inocente:
"Esse rapaz é o noivo da criada!..."
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PROPOSTA

Um rapaz serio, esplêndido estudante,
Já cansado da vida de solteiro,
Considerando a crise apavorante,
Quer casar-se com moça de dinheiro.

Esse rapaz sou eu... Quero primeiro
Ver vil metal e ver papel "sonante"...
Depois... detalhes á posta restante,
Pois não tenho confiança no carteiro.

Um casamento assim é um jugo brando...
Prisão perpétua, que, de quando em quando,
Pode aceitar uma ordem de "habeas-corpus".

Se a deidade é de idade já avançada,
Tenho uma condição estipulada:
— União de bens, separação de corpos.
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TRAGÉDIA

Eram dois entes que o amor um dia,
Com ternos laços, sólidos, ligou.
Ele — de coração a estremecia;
Ela — jamais por outro suspirou.

Viveriam eles numa paz eterna,
Se um dia não surgisse grossa briga
A sogra foi meter-se na baderna
E levou uma facada na barriga.

A rapariga ao ver a sua mãe morta
Espichada no chão, de boca torta,
Caiu também, de lágrimas coberta...

E o pobre do rapaz, alucinado,
Atirou-se do alto do sobrado,
Deixando a sogra e... a janela aberta…

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.  (II Parte – Cobras e Lagartos)

Visconti Coaracy (A Máscara de Gesso)

O conto publicado em 1873, foi convertido para o português atual pelo editor do blog.
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Uma noite estávamos quatro reunidos no gabinete de uma das nossas mais festejadas artistas. Noêmia, a sedutora atriz, acabava de desempenhar no teatro um desses papéis criados pela fantasia do poeta, impossíveis sem dúvida na realidade da vida, mas que produzem sempre efeito no ânimo das plateias.

No último ato do drama, Noêmia tivera de aparecer aos espectadores vestida de negro, pálida, desgrenhados os cabelos, as faces cavadas, e fundos e empanados os olhos, como uma visão de além túmulo, mais sombra do que mulher, mais ficção do que realidade.

Naquela cena desenvolvera Noêmia tamanho talento, que o efeito fora completo: a atriz desaparecera; representara o espectro.

Findo o espetáculo, acompanharam-na à casa, Estanisláo Pimentel, o ator consciencioso tão justamente aplaudido, e tão cedo roubado á vida, M..., o mimoso folhetinista, e eu.

Noêmia fizera servir o chá em seu gabinete, onde permanecemos depois, entretidos em uma dessas variadas palestras que eram ali habituais. A conversação voltara naturalmente sobre o gênero da peça em que a interessante atriz conquistara-o aquela noite novos louros para o seu diadema de glória.

Negava M... com pertinência e cerrada lógica a possibilidade do personagem representado por Noêmia. A espirituosa atriz, com aquela linguagem fácil, tão singela quanto graciosa, e que fazia uma das mais brilhantes seduções que possuía, sustentava a verdade do papel.

Durava já alguns minutos a discussão, quando Noêmia, voltando-se para o ator, que até então conservara-se silencioso a fumar no canto de um divã, e como alheio ao que se falava no gabinete, perguntou-lhe sua opinião.

— Eu creio no espectro - respondeu Estanisláo, dando à voz uma harmonia lúgubre e tal acentuação de verdade, que não ousamos rir.

Apenas o folhetinista fez um gesto de negação.

— Creio, porque vi - acrescentou o ator.

E depois, com voz mais lobrega ainda e certo tom cavernoso, ajuntou como sob a pressão de uma dolorosa reminiscência:

— E senti!...

Seguiu-se um momento de silêncio.

Passados, porém, aqueles primeiros instantes, a espirituosa atriz prorrompeu em estrepitosa gargalhada, em que a imitamos, M... e eu.

Mas o ator, erguendo-se hirto, bradou:

— Riam-se de mim, que não minto!...

Aí então fitamos os olhos nele.

Estava terrível    de ver-se.

O semblante decompusera-se-lhe, cobrindo-se de estranha lividez, seus cabelos estavam ouriçados. Nos olhos tinha aquela expressão assustadora do pavor, e a boca, entreaberta e deixando aparecer os dentes alvos, contraía-se-lhe em franzimentos angustiados e dolentes.

Ele erguera-se de um só movimento, como se fora impelido por estranha força, e conservara-se de pé.

Nenhum de nós três ousou aproximar-se-lhe; ninguém ousou rir, nem se atreveu a falar-lhe. Após alguns momentos de completa imobilidade, Estanisláo estendeu o braço, tomou de sobre a mesa um copo d'água e esvaziou-o com devoradora ansiedade. Em seguida sacudiu os vastos cabelos negros e pôs-se a cruzar silencioso o gabinete.

Nós olhávamos para ele, e não procurávamos sequer com a palavra, com o menor gesto, pôr um termo àquela agitação. Parecia que recebíamos no ânimo a contra-pancada da emoção, qualquer que ela fosse, que daquele modo operava no espírito do ator.

Alguns minutos decorreram assim. Finalmente Estanisláo pareceu ir serenando, aproximando-se do grupo que formávamos a um canto do gabinete, sentou-se junto de nós, e disse com certa irritação na voz:

— Ouçam!

Depois como fazendo um esforço sobre a própria vontade, começou a falar assim:

“—Há cinco anos que isto foi. Passara a tarde na oficina do Querino, o hábil escultor que todos nós conhecemos, e ali impressionara-me a mascara de uma mulher, vazada em gesso, que pendia entre outras na parede escura.

“Olhara distraidamente para todas aquelas figuras, mas a minha atenção fixava-se com irritante pertinência na máscara de mulher. Não sei se pela posição por que ao acaso fora pendurada ali, não sei se pela gradação frouxa da luz que recebia, ela sobressaia às outras.

“Deveria ter sido formoso o semblante    morto sobre o qual fora moldada aquela máscara. A morte, gelando-lhe a fronte ampla, não conseguira apagar de todo o sorriso com que a sua vítima acolhera-lhe talvez a aproximação. E naquele sorriso que sobrevivera havia um certo tom de escárnio, ou antes uma pungente ironia que lhe crispava os lábios, arregaçando-os no canto da mimosa boca. A tudo isto notava eu, e vezes havia que a imaginação por tal modo se me prendia a expressão gravada na máscara, que chegava a supor viva e como que entrevia movimentos vagos, indecisas contrações naquele semblante de gesso.

« Querino notou a persistência com que eu fixava o molde, e em uma das vezes em que mais presa eu tinha nele a atenção disse-me o escultor :

“— Era uma linda mulher.

“— Era? – perguntei eu.

“— Pois se morreu!

“ — Ah!1

“Passaram-se alguns momentos, durante os quais não afastei o olhar da máscara, e tornei a perguntar;

“— Aquela mulher morreu?

“— Já te disse que sim. Ha seis meses.

“ — É pena!  – murmurei.

“Entraram então algumas pessoas na oficina, e eu logo após saí.

“Durante o resto da tarde, à noite, durante o espetáculo, não se me afastava da ideia a lembrança daquele rosto.

“Era uma perseguição desesperadora, a que não podia esquivar-me.

“Tínhamos tido essa noite espetáculo no Lírico. Eu entrara no último ato, até a ultima cena, e demorara-me no camarim lavando-me e vestindo-me, de modo que fui talvez o último a sair. Dirigia-me para casa, quando ao deixar o campo, descendo para a cidade, distingui a pouca distância de mim e caminhando à minha frente, no mesmo sentido que eu. um vulto de mulher.

“Moço, ardente, impetuoso, apressei o passo e aproximei-me dela.

“A noite era de luar: mas naquele momento uma ampla nesga de nuvens sombrias ocultava a lua. Não obstante, havia claridade bastante para eu adivinhar uma mulher moça naquela que caminhava perto de mim.

“Trajava de negro. Era esbelta. De estatura elevada, delgada e flexível, mais a resvalar do que caminhando, cingia-se como de uns tons vaporosos e sutis, o que realizava aquela ideia da conhecida gravura da Virgem da noite, onde há a luta da sombra com o corpo, em que a forma some-se na nuvem, em que a nuvem desenha a forma. Espécie de sonho através da invisibilidade.

“O semblante não lhe podia eu distinguir. Denso véu da cor do vestido caia-lhe ao longo das faces em espessas pregas.

“Mas devia ser bela. Que o era, sentia-o eu.

“Caminhei a seu lado em silêncio durante alguns minutos, e notei que nenhum gesto de esquiva ela fizera.

“Aquela indiferença, ao mesmo tempo que impunha-me respeito, incitava-me o espírito. Mas era moço, já disse, e o sangue nessa idade desconhece a razão. Falei-Ihe. Disse não sei que trivialidade dessas que são tão comuns em condições idênticas. Não obtive resposta. Mas, se ela não respondeu, não se mostrou também esquiva. Insisti.

“Sempre o mesmo silencio. E deste modo, ela calada, eu continuando a falar-Ihe, descemos juntos até o Rocio. Aquele silêncio pertinaz, aquela calma sombria, produziram em mim nervosa irritação.

“Entrevira uma aventura fácil, encontrava a indiferença, a resistência mais difícil de vencer. Entendi que devia romper. E, pois, disse-lhe despeitado, mas disfarçando o despeito com certo tom displicente :

“— Ora tenho sido parvo! Gastar o tempo em fazer a corte a uma mulher feia!... Que estupidez!...

“Havia brutalidade nesta frase. Esperava eu que ela se agastasse e seguisse direção oposta. Pois não foi. Parou e endireitou-se com a altiva imponência de uma doida. Depois, com a mesma graça e altivez no gesto, ergueu de um só movimento o véu.

“As nuvens tinham-se espalhado no céu, descortinando a lua, e os raios daquela luz refletida cabiam obliquamente sobre o lugar onde paráramos.

“Ao movimento feito por ela eu me aproximara. Apenas, porém, fitei os olhos no seu semblante, recuei horrorizado e trêmulo, curvando-me para o chão.

“Sobre aquele corpo gentil, sobre aquele colo onde eu sonhara a mais faceira e graciosa cabeça, repousava a máscara de gesso.”

Estanisláo calou-se. Limpou o suor que lhe corria da raiz dos cabelos, e depois de passados instantes continuou:

“— E era bela aquela mulher, prosseguiu ele.

“Foi há cinco anos, e tenho ainda nos recessos da memória gravados aqueles traços puros e corretos da sua divinal formosura.

“Suponham um semblante de mármore, e essa alvura aumentada ainda pelo clarão do luar. Nesse semblante de ideal beleza imaginem uns olhos negros, mas de um brilho aveludado e frouxo, como o dos olhos que ainda não extintos parecem estar olhando já para a vida de além. Depois a boca contraída em um sorriso entre irônico e pungente, mas em lábios descorados, quase sem vida.

“E era belo aquele semblante; mas da beleza da morte! Havia nele não sei que angélica candura que atraía, ao mesmo tempo que despertava a ideia do cadáver!

“Ao ver aquela mulher, por semelhante hora da noite, trajada de negro, acreditava-se na sombra fugida de alguma tumba!

“Tinha o encanto da mulher que seduzia, mas revestia o fúnebre prestigio da visão que afastava. Parecia feita de um raio de lua e envolta em uma dobra de nuvem. No clarão que a iluminava adivinhavam-se fogos fátuos.

“Não sei quanto tempo durou aquela fascinação. Quando ousei erguer novamente os olhos, ela afastava-se ao longe.

“Apoderara-se de mim estranha vertigem. Sentia arrastar-me para ela, como a atração que experimenta-se à borda do abismo. Eu não exercia uma vontade: obedecia. Mulher ou sombra, estátua ou cadáver, cumpria que fosse minha.

“Havia nesta irritação uma animalidade feroz.

“Segui após ela. Momentos depois eu a tinha alcançado. Ela voltara à rua dos Inválidos, e parara em frente de uma porta que se conservava fechada. Ao aproximar-se, voltou-se para mim e disse-me:

“— Persiste ?

“Era a primeira palavra que pronunciava. Nunca mais ouvi falar assim. A voz saia-lhe como sumida e coada. Era mais sopro que voz. Tinha à vezes acentuação de gemidos, mas graduada com esquisita harmonia. Ao mesmo tempo que encantava o ouvido, produzia no ânimo sepulcral impressão. Parecia vir através de mortalhas.

“A sua voz participava daquele pavoroso prestígio do cadáver, que lhe marcava o semblante lívido.

“— Persiste? – perguntou ela.

“— Sim! - respondi, procurando disfarçar no laconismo da frase o calafrio que aquela palavra fez-me coar nas veias.

“— Sabe a quanto se expõe?

“— Não, mas não importa. Aceito tudo!

“— E se no fim houvesse a morte?

“— A morte! – repeli com um novo estremecimento.

“— Sim.

“— Morrerei!

“Ela pareceu contemplar-me por alguns segundos; meneou tristemente a cabeça, e murmurou em uma daquelas acentuações dolentes do gemido:

“— Mas o senhor é tão moço....

“— E tu és tão bela !

“A amargura acrimoniosa (amarga) do sorriso, que então franzia-lhe o lábio, não se descreve. Sente-se-lhe o efeito doloroso pungir no coração.

“— O senhor tem um futuro....

“— Quero que seja o teu.

“— O meu!....

E seus lábios fizeram um desses movimentos que traduzem a displicência.

“— O meu futuro é…  o desmanchamento do cadáver!

“Estas palavras foram ditas com uma acentuação tão lúgubre, que percorreu-me o corpo um estremecimento de morte. Mas a decisão estava tomada. Não vinha de mim. Era estranho poder que me impunha. Assim, respondi:

“— Embora ainda que eu te sinta cadáver desfazendo-te em meus braços; ainda que eu me decomponha contigo, aceito! 

“— Pois segue-me! – disse ela com voz incisiva.

“E penetrou na casa, cuja porta abriu-se sem que eu visse como. Entrei após ela. Subimos longa escada e paramos afinal em uma vasta sala, iluminada por quatro grandes candelabros; mas cuja luz amortecia-se, coada frouxamente através de espessos véus. Ao tom suavizado daquela luz os móveis tomavam aspecto pesado e sombrio, e nas cortinas do leito, levantado era meio do aposento, desenhavam-se figuras estranhas, que moviam-se com desesperador capricho à mais    leve agitação do estofo, ao tremor mais sutil da chama das velas.

“O ar ali dentro era quente e saturado de um perfume sutil, e que se entranhava no olfato com dolorosa suavidade, de modo que, em vez do langor, que habitualmente produzem os cheiros melindrosos, causava uma acerbada irritação no cérebro. A minha fantástica visão sumira-se por momentos, deixando-me a sós. Vinham-me então ímpetos de fugir. Chegara mesmo a erguer-me; mas sobrenatural atração prendia-me e obrigara-me a ficar.

“Tudo estava silencioso. Apenas o movimento do pêndulo de um relógio denunciava vida naquela sala. Entretanto esse relógio, que era o único a romper o silêncio ali, tinha o ponteiro persistentemente fixo na hora da meia-noite.

“Afinal consegui fazer um esforço sobrehumano, ergui-me e dirigi-me para uma porta que me pareceu ser aquela por onde houveramos entrado. Ia transpo-la, quando a mais sedutora visão conteve-me o passo.

“Era ela.

“Estava em frente de mim, sem o véu que lhe tapava o rosto, sem as roupas negras que amortalhavam-lhe o corpo, tal como a primeira mulher aparecera ao primeiro homem, como Phrynéa mostrara-se aos velhos juízes no tribunal de Atenas.

“Recebi-a nos braços, ébrio, febril e convulso, apesar do frio que ao seu contato me arrepiava os lábios, tocando nos lábios dela!”

O ator interrompeu-se, derreou a cabeça no respaldo da cadeira, e, semi-fechando os olhos, entregou-se por momentos à intima meditação, como se a memória lhe estivesse reproduzindo as emoções todas daquela noite.

Ele falava com tamanha impressão de verdade, a sua fisionomia revelava tão ao vivo os sentimentos que exprimia com a palavra, que a nossa atenção estava presa, e nenhum de nós se atrevia a interrompe-lo.

Depois prosseguiu, enxugando a fronte suada:

“— Foi uma noite infernal! Todos os prazeres, todos os sonhos, todas as doces agonias, tudo experimentei naquela noite de febre e delírio!

“Ela sentia! Naqueles estremecimentos, naqueles espasmos soluçados, naquelas contorções do gozo arfava-lhe o seio túmido, e os ossos estalavam-lhe nas vibrações da sensualidade. Ao recebe-la nos braços estava pálida e fria. Depois... a febre incendera-se, formara-se a vida, fervera o sangue e o cadáver gozava.

“Era uma cobra que se enroscava nas sensações cruentas do prazer, e que sugava a vida no próprio veneno que nos consumia a ambos! Quando, lânguido e exausto, seu corpo desprendeu-se dos meus braços, e a cabeça rolou-lhe no travesseiro, quis com os lábios sedentos ainda cevar nos lábios dela os últimos ressalvos de volúpia. Nesse momento, porém, desprendeu-se o véu de um dos candelabros, e ao clarão, que de súbito iluminou o aposento, vi de novo. pronunciados, distintos, em vez daqueles lábios quentes e úmidos de lascívia, os amargurados e descorados lábios da máscara de gesso; em vez daquele semblanle divino, de olhos lânguidos e negros, o semblante lívido e olhos cavados da máscara do cadàver!

“Ergui-me horrorizado e fugi.

“No dia seguinte despertei em minha casa. De nada me recordava. Sentia apenas o corpo cansado e o semblante pálido e desfeito. Querendo ver a hora, em vão procurei o meu relógio. Ou me o haviam roubado, ou eu o tinha perdido.

“Dirigi-me à outra sala, onde havia um pêndulo. Estava parado, e o ponteiro marcava as doze horas.

“Então acudiu-me de súbito à memória toda a ocorrência da noite antecedente. Vesti-me e saí. No caminho encontrei o escultor meu amigo.

“— Aquela mulher é morta? – foi a minha primeira pergunta.

Querino parou, fitou-me com sorriso irônico que lhe é habitual, e por sua vez me perguntou:

“— Que mulher?

“— A da máscara de ontem.

“— Ah! Pois como queres que te o diga?

“— Mas tens a convicção de que ela morreu?

“— Afirmo-lhe que sim. Há seis meses. Eu próprio moldei a máscara que viste.

“— Pois eu afirmo-te que te enganas!
 
“— Oh! – exclamou o escultor encarando-me admirado. E que razões tens para afirma-lo?

“— Vi-a ontem.

“— Viste-a?

“— Ainda mais: passei a noite em seus braços.

“Querino olhou-me fixamente, sorriu com desdém, encolheu os ombros e afastou-se lentamente, murmurando:

“— Estás doido!

“Tinha ele dado alguns passos quando o tornei a chamar. Aproximei-me e perguntei-lhe:

“— Diga-me uma coisa. Onde morava? Aonde foste tirar-lhe a máscara?

“—A casa onde ela morreu, na rua dos Inválidos.

“— Oh! Então não morreu, é ela!

“— Decididamente estás doido – repetiu Querino.

“A opinião que ele formava de meu espírito não me ofendia. De nenhuma informação mais eu carecia. Deixei-o, pois, e segui para a rua dos Inválidos. Ao chegar à casa, onde passara a noite, deparei com a porta fechada. Bati. Ninguém me respondeu.

“Um homem que passava fez-me ver que a casa estava para alugar, chamando-me a atenção para os escritos que tinha às janelas, e que na minha perturbação eu não vira. Um outro escrito na porta indicou-me onde estava depositada a chave. Guardava-a um padeiro da vizinhança.

“Dirigi-me a ele e perguntei-lhe pela pessoa que na véspera morava ali. Respondeu-me que a casa achava-se vazia havia seis meses. Insisti; ele persistiu. Fiz-lhe ver que eu passara a noite lá. O homem sorriu compadecidamente e voltou-me costas.

“Pedi-lhe então a chave, e ele não só me a entregou, como acompanhou-me à casa. Subimos. Em uma grande sala, que ficava no centro da casa, reconheci aquela onde passara a noite. Somente estava despida de móveis.

“A duvida, porém, não podia subsistir, nem para mim, nem para o padeiro. No chão, em meio do aposento, no lugar onde deveria ter estado o leito, deparamos com o meu relógio. O relógio, para mais convencimento nosso, estava trabalhando. Apenas os ponteiros tinham ficado fixos na hora da meia-noite.

“Saí dali verdadeiramente louco e dirigi-me à casa. Mais tarde ganhou-me uma febre impetuosa, e pela manhã do dia seguinte eu estava morto!”

Quando Estanisláo pronunciou esta ultima palavra quisemos rir. Mas seu semblante revestira tal aspecto cadavérico, que nos contivemos e instintivamente recuamos dele, aproximando-nos um dos outros.

Depois de gozar por alguns momentos ainda da nossa estupefação, o ator soltou estrepitosa gargalhada, acrescentando:

— Não se assustem: foi um sonho. De real em tudo isto há apenas a máscara de gesso.

Fonte:
Diversos Autores. Mosaico n.2. Rio de Janeiro: Typ. Academica, agosto 1873.

Estante de Livros (O Homem que Adivinhava, de André Carneiro)


(texto de Marcello Simão Branco)
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Lançado originalmente em 1966.

André Carneiro faleceu em novembro de 2014, em Curitiba e nos deixou uma obra das mais significativas dentro da ficção científica brasileira. Muito atuante ainda antes de seu ingresso na FC, como jornalista e poeta, Carneiro tornou-se a partir dos anos 1960 no principal nome do gênero no país, e o mais publicado e reconhecido no exterior.

Três obras estabeleceram sua reputação a partir desta época. As coletâneas  O Diário da Nave Perdida (1963) e O Homem que Adivinhava (1966), ambas publicadas pela editora EdArt, e seu ensaio pioneiro Introdução ao Estudo da “Science-Fiction”, de 1967.

Em O Homem que Adivinhava, o autor retoma alguns dos temas de seu interesse já vistos em Diário da Nave Perdida. Mas longe estão de meras variações sobre os mesmos temas, pois ele os explora sob novos ângulos e pontos de vista, sobretudo a questão da incompreensão entre as pessoas e as várias formas com que essa incompreensão se manifesta.

A ficção científica de André Carneiro é sobretudo humanista, preocupada com os impactos que a ciência e a tecnologia podem ter sobre a sociedade e a cultura. Em O Homem que Adivinhava, somos expostos a níveis refinados de observações sobre a condição humana, mostrando mais uma vez como o autor é um crítico sensível sobre a ambiguidade do comportamento humano.

A coletânea apresenta oito histórias que se equilibram em termos de qualidade, o que é difícil em se tratando de um conjunto de trabalhos tão diferentes entre si. Talvez porque, além da semelhança no subtexto das narrativas, a prosa seja segura, fluente, com um estilo já maduro quando o autor tinha 46 anos, e que seria ainda mais desenvolvido nas décadas posteriores — ainda que o rico impacto de suas ideias e reflexões tenha obtido melhor resultado no conto e na novela, do que nos seus dois romances, Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991).

A questão principal que permeia os contos de O Homem que Adivinhava são as dificuldades de comunicação, relacionamento e compreensão entre as pessoas. Se é verdade que esta dimensão ganharia contornos ainda mais complexos na sua coletânea Confissões do Inexplicável (2007), livro de notável riqueza psicológico-existencial, já nos anos 1960 Carneiro possuía pleno domínio da palavra e do que queria transmitir ao leitor ao contar-lhe uma história.

Alguns contos são aparentemente esquemáticos, como “Um Casamento Perfeito”, “Um Caso de Feitiçaria”, “Planetas Habitados” e “O Relatório Secreto”, mas a previsibilidade das ações não esconde o tratamento sutil a respeito das situações humanas, nem a afirmativa de que a vida moderna e tecnológica, ou a busca e a prática de rituais sobrenaturais, não conduzem à felicidade ou paz interior às pessoas. Ou então, que o que consideramos como certo ou normal guarda estreita — e nem sempre aceita — relação com um certo relativismo moral, trazendo ao primeiro plano virtudes esquecidas ou subestimadas, como humildade ou modéstia em relação tanto ao desconhecido no plano externo (“Planetas Habitados”), quanto no interno à mente (“O Relatório Secreto”), também deixando nas entrelinhas que não devemos nos levar tão a sério.

Duas histórias abordam mais de perto a questão do preconceito e desajuste social. Em “O Homem que Adivinhava”, um sujeito tem o dom da clarividência — enxerga o futuro de outras pessoas, mas isto acaba por conduzi-lo ao caminho fácil e traiçoeiro da fama rápida. Da mesma forma que as pessoas o bajulam, também o discriminam quando seus poderes começam a falhar. Já em “O Mudo”, o talento que diferencia o protagonista é mais sutil e mesmo discutível. Ele não fala e não ouve, mas tem uma sensibilidade apurada em lidar com as plantas. Vive num mundo marginalizado e particular, até que se apaixona e descobre o que as pessoas verdadeiramente pensam dele. As duas histórias trabalham com o preconceito da sociedade e a dificuldade dos personagens em lidar com suas diferenças; e Carneiro não é nem um pouco otimista quanto aos desdobramentos.

Duas noveletas estão mais próximas de temas tradicionais da ficção científica: “A Espingarda”, uma história de pós-holocausto nuclear, e “A Invasão”, sobre o contato com seres extra-terrestres.

“A Invasão” é uma curiosa história de fc ufológica e mostra como seria a reação da imprensa, dos políticos, dos militares, das pessoas do povo e dos cientistas ante a aterragem de dois gigantescos discos voadores numa floresta. O país destinatário do contato é Calamar, nome de um Brasil fictício, que não por coincidência vive sob uma ditadura militar. Assim, o autor pode se sentir mais livre para criticar a falta de transparência, a censura e a truculência dos militares no poder, e, sob o caos, lidar com um evento de interesse a toda a humanidade. O texto é narrado como se fosse apresentado em recortes, com flagrantes de comentários e noticiosos a respeito do evento, e mostra novamente como a questão do preconceito e da luta pelo poder está enraizada no comportamento das pessoas, ainda mais numa circunstância tão especial.

Carneiro é mais feliz, porém, com “A Espingarda”, um dos melhores textos de sua carreira. Incluída em Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica, antologia organizada por Roberto de Sousa Causo em 2007, é um relato angustiante sobre um sobrevivente do pós-holocausto que vaga à procura de comida, abrigo e, sobretudo, companhia humana, que resgate algum sentido à sua vida. A certa altura ele encontra uma pessoa, mas o contato não é pacífico, pois o outro vive cercado em uma casa de muros altos e brada para que o visitante vá embora, pois ele teria trazido a praga do sul do país. Como notou M. Elizabeth Ginway (in Ficção Científica Brasileira; 2005), há uma referência sutil à clivagem entre o Sul desenvolvido e industrializado e o Norte miserável e rural. Embora o Brasil tenha mudado desde então, a desigualdade regional continua significativa.

“A Espingarda” é um flagrante de um mundo que se desfez e deixou apenas restos aos sobreviventes. Tanto é que a imagem do homem com sua espingarda e a estrada como destino, não comunica um sentido de esperança, mas antes de solidão e incerteza sobre o que virá.

Publicado há 49 anos, O Homem que Adivinhava foi premiado como “Livro do Ano”, pela Câmara Municipal de São Paulo em 1966, e ilustra o destaque que o autor trouxe à fc brasileira, ao mostrar que, se realizada como literatura de qualidade, a questão do preconceito literário recua a um plano secundário. Ainda mais se o autor reflete de forma despojada e madura sobre temas importantes da condição humana, seja em que época, conjuntura tecnológica ou tipo de sociedade que estivermos inseridos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Versejando 76

 

Martins Pena (Minhas aventuras numa viagem nos ônibus)

Depois de um baile, o que eu gosto mais é de uma viagem nos ônibus. Lá, como em marmota animada, veem-se cenas sérias, ridículas, engraçadas, enfim tudo que pode acontecer entre pessoas de diferentes condições. O modesto cruzado faz o que não tem podido fazer a imensidade de livros e sermões, pois nivela as condições, e estabelece uma completa igualdade entre todas as pessoas que o possuem e querem fazer uma viagem nos ônibus. Abençoados ônibus!

Fiquei tão entusiasmado que estou quase fazendo uma minuciosa pintura deles... porém, não; isto levaria muito tempo; vou antes dar a relação da minha última viagem.

Eu fui um domingo pela manhã às Laranjeiras com a intenção de voltar à tarde em um ônibus, assim o fiz. Às 6 horas já eu caminhava para comprar o meu bilhete, porém o ônibus ainda não tinha chegado, e eu tive de esperar com mais dois sujeitos que lá estavam.

"Ó compadre, dizia um deles para o outro, o ‘ônis’ não chega, já é muito tarde, e a comadre já deve estar arrenegada."

"Não faça caso... Oh! Ele ali vem!"

O compadre tinha razão, o ônibus vinha chegando.

"É desaforo! — dizia um deles — estas surpresas (empresas) públicas devem ter horas certas, e não fazerem a gente esperar. Há mais de um quarto de hora já nós devíamos estar assentados!"

Enfim o ônibus chega, e cada um de nós comprou o seu bilhete. Depois que as pessoas que vinham dentro saíram, eu e os dois compadres entramos, e nos assentamos. Daí a cinco minutos chegou uma bela menina acompanhada de seu paizinho, e fui tão feliz que ela se assentou junto de mim. Oh! Que deliciosa coisa é estar no ônibus assentado junto de uma bela moça! sobretudo quando ela não traz chapéu!!...

Em menos de dez minutos o ônibus estava com as pessoas que podia levar, e entre elas (ainda me lembra com zanga) estava um rapaz que me pareceu o namorado da minha vizinha, e que se tinha assentado defronte dela. Eu estive quase furando-lhe os olhos com a bengala, porém contive-me.

Já íamos principiar a nossa viagem, quando vimos um embrulho rolando pela estrada em direção a nós, e em pouco tempo percebemos que era uma pobre mulher gorda como uma baleia, que corria a botar os bofes pela boca, para poder achar ainda um bilhete. Coitadinha! Ficou lograda! Que caretas que fez! Como eu tive pena dela, aconselhei-a que viesse rolando até a cidade, e em troco deste bom conselho deu-me uma descompostura formal. E deem lá conselhos!

"O Senhor Juca ainda não pagou", disse o recebedor, dirigindo-se para o namorado de minha vizinha.

"Aqui está o dinheiro!", e puxando por uma nota de 5$ que ele teve o cuidado de fazer que a sua amada visse, entrega ao recebedor.

"Eu já lhe dou o troco."

"Não é preciso, não é preciso, eu não faço caso de 5$." E depois de mostrar este heroico desprezo, olhou impavidamente para a sua amada. Bravo, bravíssimo, disse eu, isto vai às mil maravilhas! Assim é que se namora!

Por mais esforços que fizesse o recebedor para que o nosso namorado recebesse o troco, não foi possível.

Enfim partimos com grande satisfação dos dois compadres, e ainda não tínhamos dado vinte passos, quando o ônibus passando por uma vala deu um forte salto, e a minha vizinha com o solavanco caiu por cima de mim! Se eu fosse administrador dos ônibus, mandava fazer valas por todo o caminho, e morava dentro de um deles.

Logo que principiamos a nossa viagem, eu senti que me pisavam o pé, Em princípio pensei que seria acaso, porém eu recuava o meu pé, e o outro acompanhava-o sempre pisando. Por fim, estando já um pouco zangado com a teima, olho e vejo que era o nosso namorado que porfiava a pisar no meu pé, pensando pisar no da sua amada! Na verdade, tive vontade de dar uma risada, porém achei que era mais divertido desfrutá-lo um pouco, e logo que tive esta ideia, arrumo o pé que estava livre em cima do pé do sujeito. Oh! se vissem o prazer que brilhou nos seus olhos! Ele fazia trejeitos, revirava os olhos, lambia os beiços, enfim todas as asneiras que é capaz de fazer um namorado. O brinquedo já não me ia agradando muito, porque os calos principiavam a doer-me, e o namorado, achando pouca sensibilidade no pé, pisava cada vez mais forte. Por fim, já não podendo aturá-lo por ter machucado o meu melhor calo, disse-lhe muito arrebatadamente: "O senhor pretende alguma coisa? Se me quer falar, não é preciso pisar-me."

Todos olhavam espantados para mim, o sujeitinho ficou branco como a cal, e a minha vizinha olhou para mim com tanta raiva que quase lhe disse: “Minha bela senhora, ainda que eu tenha muita sensibilidade nos pés, pode pisar neles todas as vezes que quiser.” Porém como não queria envergonhá-la, e como também o paizinho já olhava de través para mim, calei-me, e no meio de seus arrufos, e das ameaças que me fazia o namorado, chegamos ao Largo do Machado. Aí principiou uma contestação entre os dois compadres.

"Ó compadre", dizia um deles apontando para uma bandeira holandesa que estava em um mastro, "sabes que bandeira é aquela?"

"Sei, respondeu o outro, é bandeira francesa."

"Pois não é! A bandeira francesa é perpendicular, e esta é às avessas."

"Às avessas! Ah! Ah! Essa não é má! – replica-lhe o outro - Assim não é que se diz, compadre. Você deve dizer: a bandeira francesa é perpendicular, e a holandesa oriental (horizontal)."

Uma risada geral apoderou-se de todas as pessoas que vinham no ônibus, e os dois compadres, desconfiando, por isso saíram, e continuaram a sua viagem a pé, fazendo deste modo esperar a comadre.

"Para! para!" gritaram de uma porta na Rua do Catete. O ônibus para, e entra uma mulher velha e feia como uma bruxa. Ela se assenta a meu lado, mas enfim havia compensação, se tinha uma velha de um lado, tinha uma moça de outro.

"O senhor gasta?" diz-me a velha puxando pela manga de minha casaca.

Eu calado.

"O senhor tem tabaco?" torna a insistir a bruxa.

Ora, como desta vez eu podia mostrar a minha vizinha que eu não era nenhum tolo, e que sabia meu bocado de francês, respondo em voz alta: Je n'en ai pas.

"Eu não peço jenipapo, eu peço tabaco", responde-me a velha.

Desta vez fui o alvo das risadas, O nosso namorado, achando ocasião de vingar-se, ria como um doido, e a minha vizinha fazia coro.

No meio destes e outros muitos acidentes, chegamos ao Largo do Rocio. Cada um tomou para seu lado. A minha ex-vizinha deu o braço ao paizinho, e encaminharam-se para a Rua dos Ciganos, e o namorado, que tinha talvez que fazer, e não podia acompanhá-la, ficou olhando com olhos de lula, até que ela desapareceu.

Eu fui para casa, jurando passear nos ônibus todas as vezes que pudesse.

Fonte:
Periódico Correio das Modas. Rio de Janeiro, RJ: 26 de janeiro 1839, pp. 30-32. Disponível em O Poeteiro.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVIII

“CLAREIA CINZENTA A NOITE DE CHUVA”

 
Clareia cinzenta a noite de chuva,
Que o dia chegou.
E o dia parece um traje de viúva
Que já desbotou.

Ainda sem luz, salvo o claro do escuro,
O céu chove aqui,
E ainda é um além, ainda é um muro
Ausente de si.

Não sei que tarefa terei este dia;
Que é inútil já sei...
E fito, de longe, minha alma, já fria
Do que não farei.
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“COMEÇA, NO AR DA ANTEMANHÔ
 
Começa, no ar da antemanhã,
A haver o que vai ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã.
Mais tarde, quanto é a manhã
Agora é nada, noite fria.

É nada, mas é diferente
Da sombra em que a noite está;
E há nela já a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.
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“COMO ÀS VEZES NUM DIA AZUL E MANSO”
 
Como às vezes num dia azul e manso
No vivo verde da planície calma
Duma súbita nuvem o avanço
Palidamente as ervas escurece
Assim agora em minha pávida alma
Que súbito se evola e arrefece
A memória dos mortos aparece…
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“COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA”
 
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
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“COMO NUVENS PELO CÉU”
 
Como nuvens pelo céu  
Passam por mim.
Nenhum dos sonhos é meu  
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?

Figueiredo Pimentel (A Princesa dos Cabelos de Ouro) parte III, final

 III – NOVAS FAÇANHAS DO PAJEM FORMOSO

– Consentirei em me casar com o príncipe Frederico, se me trouxeres um pouco da água da gruta Tenebrosa. É uma gruta que existe perto daqui, com dez léguas de circunferência; sua entrada é guardada por dois dragões que impedem a aproximação de qualquer mortal, deitando fogo pela boca e pelos olhos, de sorte que não pode escapar da morte quem se aventura a ali penetrar. Quando se desce à gruta vê-se a duzentos passos um único buraco, que é ao mesmo tempo entrada e saída. Esse buraco está cheio de serpentes, cobras, lacraias, em suma, toda a espécie de bichos venenosos. No fundo dele é que está a fonte da Beleza e da Saúde. É essa água que eu quero. Quem se lavar com ela se é velho, fica moço; se é doente, são; se é feio, torna-se bonito; e se é bonito torna-se lindo como os amores. Compreendes, Formoso, que não posso deixar meu reino sem ter essa água. Vai e traze-me um frasco cheio dela.

– Princesa, disse o pajem, sois tão bela que esta água vos é inútil. No entretanto, seja feita a vossa vontade: irei buscar o que deseja embora na certeza de não voltar.

A princesa dos Cabelos de Ouro, não mudou de resolução e o pajem partiu no dia seguinte em direção à gruta.

Sabendo do destino que levava, dizia toda a gente:

– É pena que um moço tão bonito, tão amável, vá à fonte dos Dragões. Nem que fossem mil soldados cada qual mais valente, lá ficariam, quanto mais ele, que vai só. Para que anda a princesa a pedir impossíveis?

O pajem, entretanto, caminhava sempre. Chegando ao alto de uma montanha, sentou-se para descansar. Deixou o cavalo pastando e Sultão começou a seguir alguns pássaros. Formoso sabia que a gruta era por ali perto, e olhava para ver se distinguia alguma coisa.

Descobriu afinal um rochedo, negro como tinta de onde saía fumaça. Após dois minutos, viu um dragão que deitava fogo pelas goelas, com o corpo malhado de preto e amarelo, e uma grande cauda que se enroscava numa infinidade de voltas.

O cachorrinho latiu, assim que avistou tão medonho bicho, e não sabia onde se esconder, tanto era o medo que tinha.

O pajem, estando resolvido a morrer, apanhou a garrafa que a princesa lhe dera para encher. Com a outra mão segurou na espada, dirigiu-se para a entrada da gruta, e disse ao cãozinho:

– Tudo está acabado para mim. Nunca poderei apanhar esta água, guardada por dois dragões. Quando eu morrer, meu leal Sultão, enche a garrafa com o meu sangue, e leva-o à princesa, para que ela veja quanto custou o seu capricho. Volta em seguida para o reino do nosso senhor e conta-lhe a minha desgraça.

Havia apenas acabado de proferir tais palavras, quando ouviu:

– Formoso, Formoso!

– Quem me chama? indagou. Olhando em torno viu por acaso no buraco de uma velha árvore, uma coruja, que lhe disse:

– Há tempos livraste-me de um laço que caçadores me tinham armado. Salvaste-me a vida. Quero te pagar essa dívida. Dá-me a garrafa que irei buscar a água da fonte da Beleza e da Saúde.

Formoso deu-lha, e, em menos de um quarto de hora, viu a coruja de volta com o vaso cheio.

Montou a cavalo, e apressadamente cavalgou para o palácio da princesa, depois de agradecer muitíssimo ao pássaro aquele favor que lhe fizera, livrando-o da morte.

Apresentou à moça a garrafa; e ela agradecendo, deu ordem para que se preparasse tudo para a sua viagem.
***
No entanto a princesa achava Formoso cada vez mais amável, e dizia:

– Se quisesses eu te teria feito rei, e não teríamos partido do nosso reino.

Ele, porém, respondia:

– Nem por todos os reinos da terra, eu seria capaz de trair meu amo, conquanto vos considere mais linda que o sol.

Passados alguns dias, a comitiva chegou, enfim à grande cidade do rei Frederico, que sabendo da vinda da princesa dos Cabelos de Ouro, foi ao encontro, levando os mais belos e ricos presentes do mundo.

Semanas após, casou-se o rei com a princesa. A moça, entretanto, que amava Formoso do fundo de seu coração, só estava satisfeita quando o via, e vivia sempre a louvá-lo.

– Eu não seria tua esposa, Frederico, se não fosse Formoso, que fez coisas impossíveis. Por minha causa, deves ser-lhe grato. Se não fosse a sua intrepidez, eu não possuiria a Água da Beleza por meio da qual nunca envelhecerei, e serei eternamente bela.

Os intrigantes, que ouviram a rainha, disseram um dia ao rei:

– Vossa real majestade não é ciumento, e tem contudo bastante motivos para o ser: a rainha gosta tanto de Formoso, que não come no dia que não o vê. Elogia-o a todo o momento; diz que lhe deve muitas obrigações; que ele é um herói como se outro qualquer que fosse designado a embaixada não fizesse tanto como ele.

– Na verdade, previno-me a tempo. Prendam-no na torre com ferros nos pés e nas mãos, ordenou ele.

Os intrigantes e invejosos, que não viam com bons olhos as atenções e honras que os soberanos prestavam a Formoso, apressaram-se em cumprir a ordem real.

Encarcerado nos lôbregos e úmidos subterrâneos da torre, Formoso vivia isolado e esquecido, exceto pelo carcereiro que, assim mesmo, lhe atirava por um buraco um pão duro e lhe dava água numa caneca de ferro.

Todavia, Sultão, o seu fiel cão, não o abandonou. Todos os dias vinha visitá-lo, e contava-lhe as novidades ocorridas no palácio.

Quando a princesa soube da desgraça que acontecera ao pajem, lançou-se aos pés do rei, pedindo o perdão do corajoso mancebo. Frederico, porém, enfurecido pela proteção de sua mulher ao pajem. maltratava cada vez mais o pobre moço.

Torturado de ciúmes, julgando que não era bonito, a ponto de não saber fazer-se amar pela esposa, o rei resolveu lavar o rosto com a preciosa água da Fonte da Beleza, que se achava numa garrafa sobre a toilette da rainha, onde ela própria a guardava, para melhor a vigiar.

Aconteceu, porém, que uma das criadas, indo uma vez espanar o lavatório, desastradamente atirou a garrafa ao chão, quebrando-a, e perdendo assim todo o precioso líquido.

Amedrontada, foi aos aposentos do rei Frederico, e apanhou uma garrafa, em tudo semelhante à que quebrara e substituiu-a.

A água que essa outra encerrava tinha a particularidade de matar a pessoa que lavasse o rosto com ela.

Frederico, que não sabia da troca feita pela criada, lavou-se na água e morreu pouco depois.

O cãozinho, assim que soube da morte do rei, chegou perto da rainha e disse-lhe:

– Linda rainha, não vos esqueçais do pobre Formoso.

A rainha, lembrando-se das penas e maldades que por sua causa o pajem sofrera, correu à torre, e com as suas próprias mãos tirou os ferros que torturavam o pajem.

Depois, colocando-lhe uma coroa de ouro sobre a cabeça e o manto real sobre os ombros, exclamou:

– Vem, amável Formoso, faço-te rei e tomo-te para meu esposo.

Os invejosos e perversos cortesãos que tanto haviam intrigado o ex-pajem, foram condenados à pena última, e subiram à forca.

Um ano depois, findo o luto, a princesa dos Cabelos de Ouro celebrava o seu casamento com o valente Formoso, realizando-se imponentes festejos que duraram sete dias e sete noites, toda uma semana de folguedos, luminárias, bailes públicos, espetáculos gratuitos, e mil festejos diversos.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Adega de Versos 45: Gilson Faustino Maia


 Curiosidade: Como surgiu a expressão "Cabra da peste"

    Existe mais de uma versão para a origem da expressão, que até hoje possui duplo sentido. "Em geral, é usada para designar o sujeito destemido, mas também pode ser dita em tom de ofensa, quando a valentia vira prepotência", diz o linguista Flávio de Giorgio, da PUC-SP.

No Dicionário do Folclore Brasileiro, o folclorista Luiz da Câmara Cascudo afirma que "cabra" era como os navegadores portugueses chamavam os índios que "ruminavam o bétel", uma planta com folhas de mascar.

Com o passar do tempo, o bicho pode ter virado sinônimo de homem forte por causa de seu leite, considerado mais denso e nutritivo que o da vaca. Tudo indica que a associação com "peste" surgiu por causa da má fama da cabra, considerada um animal simpático ao diabo na tradição sertaneja. Vale lembrar que os nordestinos também usam a palavra "peste" para nomear doenças graves.

Assim, o "cabra da peste" seria o sertanejo que sobreviveu superando todos os sofrimentos, "da dentição difícil, do sarampo certo, da caxumba, da desidratação inevitável, da catapora, da coqueluche, da maleita e do amarelão, e de tudo mais que atormenta a vida de um cristão nascido no Nordeste", como sugere o folclorista Mário Souto Maior no livro Como Nasce um Cabra da Peste.

"Por tudo isso, a expressão completa só deve ter surgido por volta do século 17", afirma Flávio. Mas alguns especialistas defendem outra hipótese.

A expressão seria uma variação de "cabra-de-peia", também usada para indicar a valentia do nordestino, que apanhava sem reclamar. "Depois de açoitada com a peia (chicote), a vítima era obrigada a beijar o açoite na mão do seu algoz", diz o etimologista Deonísio da Silva, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).

Fonte da Imagem e da explicação: Blog do Arretadinho (Joaquim Dantas)

Sammis Reachers (Ei, você, me dá esse dinheiro aí)

A dupla da linha 49-2 (Fonseca x Icaraí circular) Antônio Marcone e Gilberto "Infernal", circulando num moderno veículo 'piso baixo', automático, avançava tranquilamente pela praia de Icaraí, em Niterói.

Ao aproximarem-se daquele que é o segundo ponto da praia, o motorista Marcone, homem tranquilo e boa praça, percebeu algo inusitado. Um indivíduo, notando de relance a  aproximação do ônibus, tirou sua mão do bolso da calça para fazer sinal. Ao arrancar bruscamente a mão, uma nota saiu desapercebidamente de seu bolso e caiu ao chão. Marconi comentou o fato com o 'cobra' Gilberto, apenas a título de curiosidade.

Pois bem: ao parar a viatura e abrir a porta para o embarque do cidadão, por sinal o único passageiro do ponto, Marcone fez menção de avisar ao mesmo sobre a nota. Mas, quando ia abrir a boca, Gilberto (que estava em sua roleta bem ao lado da porta dianteira, como é comum nesses veículos 'piso baixo') se antecipou e disse para o cidadão, com a maior das caras de pau:

- Por favor cidadão, você pode pegar aquela nota ali pra mim?

O coitado do indivíduo, pego de surpresa, simplesmente apanhou a sua própria nota que caíra e entregou de mão beijada a Gilberto...

Detalhe: eram míseros dois reais...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Concurso de Trovas da ATRN e UBT Seção Natal/RN (Trovas Premiadas)

ATRN – Academia de Trovadores do Rio Grande do Norte
UBT – União Brasileira de Trovadores


NACIONAL/INTERNACIONAL
VETERANOS

Tema: Tapera (l/f)

1º Lugar
De uma tapera caindo,
chega uma voz aos pedaços.
Canta o milagre mais lindo,
a mãe e o filho nos braços.
Albano Bracht
Toledo/PR

2º Lugar

Do que restou da tapera
sinto pesar nos meus ombros;
e a esperança ainda espera
soterrada nos escombros!
Edmar Japiassu Maia
Miguel Pereira/RJ

3º Lugar

Vai-se no tempo a quimera...
e a juntar reminiscências,
a saudade é uma tapera
habitada só de ausências!
Antônio de Oliveira
Rio Claro/SP

4º Lugar

Uma tapera, um roçado,
a rede, a viola, um cão...
e um caboclo apaixonado
num retrato do sertão...
Cipriano Ferreira Gomes
São Paulo/SP

5º Lugar

Mil prédios pela cidade
e em nenhum, porém, impera
a régia hospitalidade
que há numa humilde tapera!...
Cléber Roberto de Oliveira
São João de Meriti/RJ

6º Lugar

Minha tapera, a viola
e essa morena querida,
é tudo que mais consola
um seresteiro, na vida.
Márcia Jaber
Juiz de Fora/MG

7º Lugar

A tapera em pé resiste,
se é um reino de amor e paz.
Mas é uma ruína triste,
se é de um lar que se desfaz!
Jaime Pina da Silveira
São Paulo/SP

8º Lugar

Pelo sertão resplandece,
o predomínio, absoluto,
do intenso amor que enriquece,
a tapera de um matuto!...
Ailto Rodrigues
Nova Friburgo/RJ

9º Lugar

Na meninez, quando eu lia,
tudo ficava mais belo;
e a tapera em que eu vivia
transformava-se em castelo.
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão

10º Lugar

Não fosse a seca-megera
matar meus sonhos, meu gado,
o meu rancho - hoje tapera -
não seria abandonado!
Maria Madalena Ferreira  
Magé/RJ

11º Lugar

Se é palácio, se é tapera...
Afinal, importa o quê?
Que haja alguém à minha espera
e esse alguém seja você!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP

12º Lugar

Nessa tapera sem teto,
que de barro... eu mesmo fiz,
vivi recebendo afeto,
na pobreza, mas feliz!
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT

13º Lugar

Para o espanto dos ateus
numa tapera sem glória,
nasceu um Menino-Deus
para dividir a história!
Luiz Antônio Cardoso
Taubaté/SP

14º Lugar

A riqueza genuína
da tapera ou da mansão
vem do amor que predomina,
não se mede com cifrão.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO

15º Lugar

Dos castelos de quimera
que eu, em livros, tanto vi,
nenhum, ah, nenhum, supera
a tapera onde eu nasci!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo/SP

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NACIONAL/INTERNACIONAL
NOVO/A  TROVADOR/A

Tema: Tapera (l/f)


1º Lugar
A vida toda estivera
procurando a tal Ventura.
Foi numa humilde tapera
que encerrei minha procura.
Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas/MG

2º Lugar

Tapera linda e singela,
obra-prima do pintor.
A saudade em aquarela,
com cena do interior.
Ademarcos Santana
Nossa Senhora Aparecida/SE

3º Lugar

Eu quero a serenidade
de uma tapera escondida...
Entre as heras da saudade,
lembranças de minha vida!
Maurício Moura Maranhão da Fonte Filho
Recife/PE

4º Lugar

A tapera mais simplória,
mas cheia de puro amor,
contém a infinita glória
de um palácio em esplendor!
Vera T. Rolim Chyczy
Curitiba/PR

5º Lugar

Naquela humilde tapera
tem um tesouro guardado:
um lar, onde a paz impera
na família lado a lado.
Maria Aparecida Ferreira Lima
Campinas/SP

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NACIONAL / INTERNACIONAL
VETERANOS/AS

Tema: Espanto (Humor)


1º Lugar
Zé corre à maternidade...
- Que espanto!  A cegonha o logra!
Sua filha, na verdade,
era uma cópia da sogra!!!
Carolina Ramos
Santos/SP

2º Lugar

Vendo o filho no hospital
se espanta o corno freguês:
"Agora é internacional,
tem cara de japonês."
Olympio da Cruz Simões Coutinho
Belo Horizonte/MG


3º Lugar

Vendo o velho centenário,
seu espanto sobressai:
- Vive o senhor solitário?
- Não, eu moro com meu pai!
Renata Paccola
São Paulo/SP

4º Lugar

- Amor, sou feia?  - Nem tanto;
dá pra amenizar o efeito,
mas... essa cara de espanto...
nenhum cirurgião dá jeito!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP

5º Lugar

Operada a catarata,
outro espanto sobreveio:
passei a ver – coisa chata! –
o quanto estou velho e feio!...
Antonio Augusto De Assis
Maringá/PR

6º Lugar

O caipira se casou,
sua esposa era um frangalho;
lá na roça ela virou
- sem espanto - um espantalho!
Geraldo Trombin
Americana/SP

7º Lugar

Nada mais me causa espanto
e nenhum medo me logra
após ver um pai-de-santo
incorporar minha ex-sogra!...
Maria Madalena Ferreira  
Magé/RJ

8º Lugar

Lembra o baile à fantasia
com raiva e espanto o gaiato:
a sogra usou no outro dia
o batom da Mulher-Gato.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO

9º Lugar

Espanto teve a "sogrinha",
assim que abriu a janela...
viu meu sogro, de calcinha,
provando o sutiã dela.
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT

10º Lugar

Mistura de raiva e espanto,
a voz da sogra... um castigo!
- Eu me ajeito em qualquer canto,
não se preocupe comigo!
Silvia Maria Svereda
Irati/PR

11º Lugar

Barulho no elevador...
Espanto! O povo assustado...
Mas vem logo um certo odor
e o barulho está explicado...
Antônio de Oliveira
Rio Claro/SP

12º Lugar

Ela era feia, era tanto
que, toda vez que surgia,
tamanho era o meu espanto
que, amedrontado, eu corria.
Julimar Andrade Vieira
Aracaju/SE

13º Lugar

Flagrou a filha, espantada,
e o namorado com ela...
Parecia arquibancada
os vizinhos na janela!
Edmar Japiassu Maia
Miguel Pereira/RJ

14º Lugar

Relaxando a compostura,
provoca espanto em meu filho,
ver vovó sem dentadura,
comendo espiga de milho.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

15º Lugar

Na foto ela é puro encanto,
belo rosto, maquiada.  
Ao vivo, tremendo espanto,
toda a pele repuxada.
Jessé Fernandes do Nascimento
Angra dos Reis/RJ

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NACIONAL/INTERNACIONAL
NOVO/A TROVADOR/A

Tema: Espanto (Humor)


1º Lugar
Pensa do morto, o coveiro:
Nem me espanto... Fico alerta!
"Vivo", o morto, mais ligeiro:
Durma e deixe a cova aberta...
Rosângela Caron Bastos
Curitiba/PR

2º Lugar

Minha sogra foi ao poço   
dos desejos e caiu.   
Fiz o maior alvoroço...     
mas, que espanto: ela saiu!
Carla Alves da Silva
Curitiba/PR

3º Lugar

Com a preguiça, eu me espanto,  
que nem sei como contar.  
Começa quando levanto,  
finda, quando eu vou deitar.
José Airton Mellega
Piracicaba/SP

4º Lugar

Há um ano longe de ti,
depois do beijo às escuras,
com espanto percebi
a troca das dentaduras!
Lothar Antenor Bazanella
São Paulo/SP

5º Lugar

Vi moça bonita à frente,
sempre máscara no canto,
esconde a face da gente...
quando tira, causa espanto!
Júlio Augusto Gurgel Alves
Fortaleza/CE

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ESTADUAL

Tema: Andarilho (l/f)


1º Lugar
Sou andarilho do vento,
e a solidão me transporta.
Nas asas do pensamento,
o caminho não me importa.
Marcos Antonio Campos

2º Lugar

Na estrada da vida, assumo!
Meu coração sofredor...
É um andarilho sem rumo,
vagando em busca do amor.
Lucélia Santos

3º Lugar

Sem meus sonhos, perco o brilho
e, à luz da vida apagada,
sou apenas andarilho,
sem ver meus passos na estrada!
Mara Melinni

4º Lugar

Sou andarilho e, sem dores,
contorno os caminhos tortos,
procurando enxergar flores
nas cinzas dos galhos mortos.
Francisco Gabriel

5º Lugar

A trilha de um andarilho
é feita de solidão,
num caminho sem ter brilho,
só bolhas de pés no chão...
Plácido Ferreira do Amaral Júnior

6º Lugar

Pobre andarilho sem nome,
figura desconhecida;
um tangerino da fome
tangendo a fome da vida.
Carlos Alberto

7º Lugar

Sou andarilho dos sonhos
nas terras mais perigosas,
venço os dramas enfadonhos
das jornadas tenebrosas.
Marciano Batista de Medeiros

8º Lugar     

Teus chinelos andarilhos,
cuido, pai, de todos eles!...
Levaste os pés de teus filhos
junto aos teus pés, presos neles!
Professor Garcia

9º Lugar

Andarilho segue errante
carregando solidão,
procurando a todo instante
abrigar seu coração.
Aída Maria de Faria

10º Lugar
Andarilhos somos todos
na travessia terrena...
Ora mediante engodos,
ora consciência plena.
Ieda Lima

11º Lugar

Nessas esquinas do tempo,
todo andarilho conduz,
uma vida em contratempo,
sob o céu que é sua luz.
Rozanni Garcia

12º Lugar

Noite escura traz o brilho
do manto estelar distante,
mostrando ao velho andarilho
o que, de fato, é importante...!
Magnus Kelly

13º Lugar

Vaguei feito um andarilho
a procura do amor certo,
qual um cego, olhar sem brilho,
não via este amor tão perto.
Antônio Fernandes do Rego

14º Lugar    

Todo andarilho carrega
mil angústias, frustrações,
desapegado, se nega,
a viver das ilusões.
Edson de Paiva

15º Lugar

Na longa estrada, da vida,
quantas cenas, envolveu,
o andarilho, em sua lida,
em busca, de um sonho seu...
Fabiano de Cristo M. Wanderley

Trova “hors concours”
No quarto, entre as várias trilhas
do fogo da sedução,
minhas mãos são andarilhas,
mas sabem para onde vão.
Manoel Cavalcante
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ESTADUAL

Tema: Espanto (Humor)


1º Lugar
Num velório, usando um manto,
um fantasma apareceu…
Foi tanto grito de espanto
que até o morto correu.
Francisco Gabriel

2º Lugar

Seu desespero foi tanto,
quando um leão encarou
que, com seu grito de espanto,
o leão quem se borrou.
Aline Ribeiro

3º Lugar

A sogra, tem muita classe,
me espanto, com seu requinte.
Se a minha mulher, deixasse,
eu já teria, umas vinte!
Fabiano de C. M. Wanderley

4º Lugar

Para o meu maior espanto,
hoje eu vi um senador
dando esmola para um santo!
Era um cheque ao portador...
Plácido Ferreira do A. Júnior

5º Lugar

Pelo espanto da galinha,
de ciúme, o galo morrendo,
viu que na ninhada, tinha
um patinho se escondendo.
Professor Garcia

6º Lugar

Supermercado... que espanto!
Será que, agora, emagreço,
com a metade do tanto
custando o dobro do preço?!
Magnus Kelly

7º Lugar

Tem medo de quem morreu?
Pergunta um moço a velhinha,
que espantada respondeu:
Quando eu era viva tinha!
Marciano B. de Medeiros

8º Lugar

O espanto maior do mundo,
tive, quando mergulhado;
nadando num poço fundo
peguei na mão de um finado.
Professor Maia

9º Lugar

No espanto, ao ver meu portão,
o motorista embriagado,
em vez do freio de mão,
puxou o botão errado!
Mara Melinni

10º Lugar

Não se calcula o espanto,
quando alguém na procissão,
disse ter visto que o santo,
tinha balançado a mão.
Edson de Paiva
 
Magnus Kelly

Figueiredo Pimentel (A Princesa dos Cabelos de Ouro) parte II

II – AVENTURAS DO PAJEM FORMOSO NO REINO DE GABOR

Formoso tinha pressa de chegar ao reino da princesa dos Cabelos de Ouro para dar conta de sua embaixada.

Dois dias depois de sua última aventura, aportava à capital. Pediu que lhe ensinassem onde ficava o palácio, e disseram-lhe:

– Siga por esta rua, em frente, quando chegar ao fim, encontrará uma praça muito grande que tem um chafariz de mármore, o qual em vez de jorrar água, jorra leite para os pobres que a princesa manda dar. Em frente a este chafariz fica um palácio muito bonito; é aí que mora a princesa Mirtes.

O pajem seguiu pela rua que lhe haviam ensinado, ficando maravilhado ao chegar em frente ao edifício.

Nunca vira nem mesmo imaginara em sonho um palácio tão rico. Era um grande castelo todo de mármore cor-de-rosa, com portas e portais de ouro maciço. Ao redor via-se um gradil de prata lavrada de uma riqueza maravilhosa.

Vestiu-se com a roupa mais rica que tinha e dirigiu-se para o palácio levando consigo um cachorrinho que comprara à entrada de um bosque a alguns meninos que queriam atirar o animalzinho no rio.

Como dissemos, Formoso era um lindo rapaz. Apresentou-se aos guardas do palácio da princesa, dizendo-lhe o que queria, e os soldados acharam-no tão bonito, simpatizaram tanto com ele que o deixaram passar.

Lacaios foram avisar a princesa que o Formoso, o pajem de um rei vizinho, desejava uma audiência.

Mirtes ao ouvir o nome do pajem disse:

– Formoso é um nome que significa alguma coisa; não foi à toa que lhe deram esse nome. Aposto que é um pajem bonito e que me vai agradar.

– É verdade, princesa, disseram as damas de honra; é um rapaz de uma beleza extraordinária. Nós o vimos através das persianas e ficamos tão admiradas de sua beleza, que não saímos da janela enquanto ele falava com os guardas do palácio.

Mirtes mandou então buscar o seu vestido mais rico e depois de desatar os seus cabelos louros da cor do sol, foi sentar-se no trono, dizendo:

– Quero que esse pajem tão bonito diga que sou verdadeiramente a princesa dos Cabelos de Ouro.

As damas estavam com tanta curiosidade de ver Formoso, que não sabiam mais o que faziam.

A princesa, depois de pronta, sentou-se no trono e mandou que começassem a tocar vários instrumentos e cantassem baixinho, de modo que não interrompessem a conversa.

Conduziram Formoso à sala das audiências e, ele, ao entrar, ficou admirado, tão admirado de ver uma moça tão linda, a ponto de perder a voz. Encorajando-se adiantou-se um pouco, e comunicou à princesa o fim de sua embaixada.

– Formoso, respondeu ela, todas as razões que me dás para me casar com teu rei são muito aceitáveis, e eu as aceitaria de bom grado se não fosse o seguinte. Há um mês, indo eu tomar banho no rio, sem saber como, por descuido mesmo, caiu dentro d’água o anel que trazia ao dedo, com um enorme brilhante. A perda desse anel foi para mim maior que a do meu trono. Fiz um juramento de não aceitar proposta alguma de casamento, se o embaixador que para isso viesse ter comigo, não trouxesse o meu anel. Vê, portanto, o que te compete fazer. E não há nada neste mundo que me faça mudar de resolução.

Formoso ficou admirado de ouvir tal juramento e retirou-se para casa muito triste, sem saber que fazer.

Dizia o pobre rapaz.

– Onde irei achar o tal anel, e como posso encontrá-lo no fundo do rio? A princesa inventou esse juramento para me colocar na impossibilidade de reiterar o pedido de sua mão para o rei Frederico. É até uma loucura empreender encontrar uma jóia que caiu no rio.

O cachorrinho, que se chamava Sultão, lhe disse:

– Meu senhor, não desespereis assim de vossa fortuna; tendes sido muito bom, para não serdes feliz. Vamos amanhã cedinho à beira rio.

Formoso afagou o animalzinho e nada respondeu.

Sultão, assim que rompeu o dia, tanto gritou, tanto latiu, que acordou o amo e lhe disse:

– Meu amo, vesti-vos e vamos até ao rio.

O rapaz vestiu-se e caminhou insensivelmente para a margem do rio. Passeava muito triste, pensando como fazer a vontade da princesa, e já planejando o dia de sua partida, quando ouviu uma voz que dizia:

– Formoso, Formoso!

Olhou para todos os lados e não viu pessoa alguma.

Pensou que fora uma ilusão e começou a passear quando ouviu de novo:

– Formoso, Formoso!

– Quem me chama? disse ele.

Imediatamente apareceu a piaba, que lhe disse:

– Salvaste-me a vida, Formoso, um dia à beira de um rio, muito longe daqui. Prometi pagar essa dívida. Aqui tens o anel da princesa dos Cabelos de Ouro.

O pajem abaixou-se, apanhou da boca do peixe o anel, agradecendo muito. Em vez de voltar para casa, dirigiu-se imediatamente ao palácio da princesa, com Sultão, que estava muito satisfeito de ter conseguido seu senhor ir até à beira do rio.

Disseram à princesa que o jovem pajem pedia para lhe falar.

– Coitado! O pobre rapaz, disse ela, veio se despedir de mim, pois viu que o que eu quero é impossível, e vai dizer isso ao seu rei.

Fizeram entrar o pajem que disse:

– Princesa aqui está o seu anel e, portanto cumprida a sua ordem. Quer agora receber meu rei por esposo?

Quando Mirtes viu o anel ficou tão admirada que pensava sonhar.

– De fato, é preciso que sejas protegido por alguma fada, porque, sozinho, não acharias esta jóia.

– Princesa, não conheço nenhuma fada, porém, o desejo que tenho de obedecer é grande.

– Já que tens tanta vontade de me servir, faze-me outro serviço, sem o que não me casarei. Há um príncipe vizinho do meu reino que tem vontade de se casar comigo. Fez-me sabedora disso por meio de ameaças temíveis que se eu não me casar com ele desgraçará meu reino. Assim, qualquer dos meus vassalos que entra no seu país é logo morto e comido por ele. Esse príncipe é o gigante Baltasar, tão alto como a mais alta torre. Quando vai à caça, serve-se de canhões como se fossem pistolas. É o meu maior inimigo, por isso se queres que me case com o teu rei, vai matá-lo e traze-me a sua cabeça.

Formoso amedrontou-se ouvindo tanta coisa de um gigante e mais ainda quando a princesa comunicou querer que ele trouxesse a cabeça do seu inimigo.

Ficou muito tempo pensativo e depois disse:

– Pois bem, princesa, eu vou combater com Baltasar. Com certeza morrerei, porém, serei um herói.

Arranjou armas e partiu em direção ao palácio do gigante.

No caminho, todos que encontrava diziam-lhe que desistisse da empresa. Tanto falaram do gigante, contaram tantos horrores que Formoso já estava desanimado.

Nisto disse o cachorrinho:

– Meu amo, vá sem susto. Eu mordo-lhe os calcanhares, e quando o gigante se abaixar para ver o que é, meta-lhe a espada.

Enfim, chegou perto do palácio de Baltasar, onde encontrou ossos, caveiras de corpos humanos que tinha sido comidos pelo gigante.

Começou a ouvir um estrondo que mais parecia trovoada.

– Onde estão os pequenos homens para eu trincar nos dentes?

Era o gigante que aparecia mais alto do que as árvores.

Formoso respondeu:

– Aqui estou para com minha espada quebrar teus dentes.

Quando Baltasar ouviu aquilo, olhou para todos os lados e viu o pajem mais baixo que os seus joelhos. Arremessou com fúria uma bengala de ferro muito grossa, que trazia consigo, como se fosse uma varinha, e teria esmagado Formoso, se nessa ocasião não aparecesse um corvo, que, com o bico, lhe furou os dois olhos. Este, ao sentir a dor, e vendo-se cego, começou a bater a torto e a direito sem nada conseguir.

Formoso, começou a ferir as pernas do gigante, que cada vez mais se enfurecia. Tanto sangue perdeu o gigante que afinal caiu por terra; e Formoso, aproveitando, cortou-lhe a cabeça para levá-la à princesa.

O corvo que fora se empoleirar numa árvore assim que viu o gigante sem cabeça, dirigiu-se ao pajem desta maneira:

– Não me esqueci do serviço que me fizeste há tempos, salvando-me das garras de uma águia. Não te lembras, Formoso? Agora estamos pagos.

– Eu é que te devo ainda, corvo, disse o pajem. Se não fosses tu, estaria agora reduzido a migalhas.

Montou o cavalo levando na garupa a cabeça do gigante.

Assim que o pajem entrou na cidade, o povo começou a gritar:

– Venham ver o bravo Formoso que matou o gigante Baltasar.

A princesa, ouvindo aquela enorme gritaria pensou que vinham lhe comunicar a morte do pajem.

Ficou admiradíssima ao saber que trazia a cabeça do gigante.

Formoso lhe disse:

– Agora princesa, nada lhe resta senão consentir em desposar o meu amo, o poderoso rei Frederico, já que o nosso inimigo está morto.

– Consentirei em ser a esposa do teu rei, intrépido e corajoso pajem. Para isso é preciso no entanto que me prestes um último serviço. Desde já previno-te que é o mais arriscado de todos. Queres assim ou preferes dizer ao teu rei que nada conseguistes?”

– Princesa, já que comecei irei até ao fim, disse Formoso, falai que estou ao
vosso serviço.

– Pois, então, ouve:
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Nota do Blog: O autor cometeu um equívoco no original, a princípio deu o nome de Peri ao cão, mas na sequência usou Sultão. Para o leitor não se perder, optei por usar somente Sultão.
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Continua… III – Novas façanhas do pajem Formoso

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.