terça-feira, 28 de setembro de 2021

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 4 – Zé Pelintra


Seu Zé vem muito faceiro,
cheio de ginga e molejo...
Com seu jeito feiticeiro,
não dispensa um bom festejo...


O negro Zé, subia o morro, cantarolando: “Chora viola para saudar a malandragem que chegou aqui agora... Malandro sobe e desce o morro para dar o seu recado, é melhor andar sozinho do que mal acompanhado”.

Dono de uma irreverência indissociável a sua elegância, dentro de um palácio, de um bordel ou na favela, fazia questão de manter-se sempre bem alinhado, com seu terno e chapéu branco, de costura bem-feita. Cigarro entre os dedos, gestos gentis e palavras agradáveis, também faziam parte das marcantes características do negro mais charmoso da Providência/RJ.

Zé Pelintra, como costumava ser chamado por muitos amigos. Era sem dúvida, um sujeito muito amigável, mas na presença de qualquer gesto de covardia, uma personalidade à parte o transformava, ora em um bravo guerreiro, ora em um safo e esperto malandro. Devido a essas peculiaridades, para alguns ele era tido como um justiceiro, para outros, não passava de um vilão em trajes de bom moço.

Num dia ensolarado, próximo ao seu nobre barraco, uma imagem corta–lhe o canto. Era Pedrito, o bandido chefe do morro, com sua cara ruiva e magra, cheia de cicatrizes, apontando uma arma para a cabeça do garoto Joãozinho, mais conhecido pelo codinome Feijão, devido ao seu tom de pele que era tão enegrecido quanto a pele de uma pessoa nascida no seio da África.

Pelintra conhecia bem a fama de Pedrito. Um assassino asqueroso que não costumava ter dó de ninguém, nem mesmo de crianças. Alma dominada pelo demo. Difícil de ser dobrada. Mesmo perante a dificuldade, sentia–se no dever de fazer alguma coisa para livrar o menino das garras daquele monstro. Precisava ser hábil. Caso contrário, a vida do Feijão e, quem sabe a dele também, estaria perdida.

Pisando firme, mas sem perder a leveza no olhar, Zé se aproxima e uma espécie de batalha santa se inicia.

- Camarada Pedrito, o porquê de tanta fúria?

- Virei a noite trabalhando. E, hoje cedinho, ao chegar em casa cansado, louco de sono, dou de cara com esse moleque sem eira nem beira assaltando meus armários. Todo mundo aqui sabe que não importa se é menino ou homem feito, mexeu comigo tá ferrado – disse o bandido com os olhos vermelhos pelo consumo de drogas.

- Calma, Pedrito. O garoto não deve ter feito por mal, provavelmente estava com fome. Só isso. Vai dizer que nunca fez o mesmo.

- Já roubei dinheiro e comida pra matar a fome sim. Mas de companheiro meu nunca roubei, não senhor.

- Não vale a pena sujar as mãos por motivo pequeno – disse Zé com voz mansa.

- Vá cuidar das suas negas, Zé. Vá! Me deixa terminar o serviço. Gosto do amigo e não quero que o seu terno todo branquinho fique respingado pelo maldito sangue desse moleque.

- Me...me...sal...va ...va, seu Zé – pedia o garoto gaguejando.

- Agradeço a preocupação do amigo por não querer sujar a minha roupa, mas peço–lhe em nome das coisas boas que já vivemos juntos, solte o menino. Olha para ele. Está roxo de medo com essa arma apontada para seus miolos. Ele já aprendeu a lição.

Nesse momento surgem os pais do Joãozinho.

– Pelo amor de Deus não mata meu filho – diz a mãe aos prantos.

O pai, sabendo da fama do bandido Pedrito, logo diz:

– Eu fico no lugar dele.

- Mas quem tem que pagar pelo erro é quem comete.

- O que ele fez? – perguntou o pai.

- Tava assaltando comida na minha casa.

- Releve. A miséria se abateu sobre nós. Ele não queria roubar nada. A fome o induziu ao erro. Perdoe. É só uma criança – implora a mãe do garoto. - Larga mão disso, homem. Se cometer um assassinato vai ter que ficar um bom tempo foragido, com grandes possibilidades de ser pego pela polícia. Vamos aproveitar a vida. E festar por aí...

- Sei não. - A mulata Jandira ficou de aparecer. E não será por minha causa. Está querendo ver você. Pedrito se para pensar...

– Mas nunca deixo um serviço pela metade.

Zé, ao perceber que a raiva nos olhos do bandido cedera lugar ao desejo de farrear com a mulata mais bela que o morro da Providência já tinha visto, toma-lhe a arma da mão. Na breve confusão, Feijão escapa e corre para os braços dos pais.

- Qual é cara! Devolve minha arma.

- Ela está segura comigo.

- Tudo bem. Vocês venceram. Mas fiquem certos de que não dei o assunto por encerrado.

- Esquece o caso, homem.

- Tem pra mais ano que não vejo Jandira. Sou louco por aquela mulher – diz Pedrito com um risinho maledicente.

- Agora vá descansar. Passou a noite em claro.

- Trabalhando... Preciso dormir umas doze horas. Mas antes, me devolve a arma.

- Claro – diz Zé calmamente ao entregar a pistola calibre 12.

O bandido pega a sua arma e sobe o morro como se nada tivesse acontecido. Zé Pelintra, senta numa pedra, puxa o cordão com a medalha de são Jorge que costumava guardar por dentro da camisa, com devoção beija a imagem e olhando para o firmamento celestial agradece ao santo pela proteção e pela batalha ganha.

Meia hora depois, vai até o barraco do Pedrito verificar se ele foi mesmo dormir. E o encontra deitado sobre a cama com os braços e as pernas abertas, roncando feito um porco. Com a situação sob controle, retorna para casa, apanha um pouco de leite, café, pão e vai até a moradia daquela família sofrida.

- Trouxe para vocês – diz ele, alcançando a sacola com os mantimentos para a mãe do menino Feijão.

Zé desce o morro relembrando a sua infância. Quando tinha a idade do Feijão, teve que afanar o único bem que a família tinha, um violão. Herança do seu avô paterno. Era relíquia de família, mas vez ou outra pedia licença aos pais para tocar o instrumento no quintal de casa. Com seresta e violão, aquele cenário de seca, fome e morte lhe parecia menos cruel. Cedo, partiu. E junto de si, levou a viola. Precisava ganhar o mundo e passando o seu chapéu, foi juntando tostão a tostão.

Mais tarde, já um homem feito, no centro de Ilhéus/BA - sempre bem vestido, fez de tudo um pouco, trabalhou como engraxate, foi feirante, auxiliar de armazém etc. Depois conheceu a boêmia, e virou o rei da malandragem. Vivendo à noite e com as arteirices que acontecem pelas madrugadas afora, arranjou muita confusão.

- Pra mais de cem... Às vezes, por causa de jogo.

Era mestre no carteado e isso gerava desavenças entre os quais perdiam pra ele no vício e no bolso... Mas na grande maioria das vezes as confusões eram geradas por causa de mulher. Zé se orgulhava por fazer sucesso com as damas... Tanto com as solteiras quanto com as comprometidas. Vilão ou bom moço, a verdade é que o rapaz, em momentos difíceis nunca fugia da raia. E costumava ser brilhante em tudo o que se propunha a fazer. Por estar sempre bem vestido, muitos o chamavam de doutor.

Reza a ladainha que por motivos de dívidas de jogo, Zé Pelintra foi atocaiado e morto à porta de um cabaré. E que hoje vive no mundo astral trabalhando em prol das pessoas viciadas em jogo e bebida. Protegendo também, pessoas indefesas. Se ele foi bom moço, vilão ou as duas coisas não se sabe ao certo. A verdade é que Zé Pelintra, o rei da malandragem, virou lenda.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

V Concurso de Trovas da UBT – Seção São José dos Campos/SP (Prazo: 1 outubro a 15 de novembro)


Tema: Mudança

A União Brasileira de Trovadores, Seção de São José dos Campos, Estado de São Paulo, Brasil, tem a honra e o dever de vir comunicar e convidar a todos, em continuação, para a 6ª Etapa do Concurso do Projeto de Trovas Para Uma Vida Melhor, cujo objetivo sempre foi e continua sendo a divulgação de princípios e valores universais e humanitários, por meio desta modalidade poética: a Trova que os senhores trovadores tão bem têm demonstrado.

Nessa 6ª ETAPA, o quinto item – MUDANÇA irá compor o V Concurso de Trovas desta UBT, desenvolvendo e fortalecendo princípios e valores que falam sobre o que há nos cotovelos da vida. Não apenas nos cotovelos da rua de cada um, como as surpresas, as crises, os desafios, que pedem criatividade, compromisso, mudança, tudo dentro  do respeito.

Atenciosamente,

Maria Inez Fontes Ricco
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos - SP - Brasil


Síntese dos critérios:

5º Concurso de trovas da UBT. São José dos Campos, SP.

Apenas - UMA Trova

TEMA: - MUDANÇA

CALENDÁRIO: DE 01/10/2021   à   15/11/2021

RESULTADO E ENTREGA DE DIPLOMAS: a partir de 01/12/2021

ENVIAR PARA : 'Helio Castro' <helio.castro@techsearch.com.br>
******************

Nome
Cidade – Estado - País
E-mail
Tel (opcional)
*********
TROVA
Veterano ou novo trovador(Assinalar)

Fonte:
Enviado por MIFORI

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) *1*


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 32 –

Caminhar pode se mais do que apenas o destino lúdico em busca de exercícios.

Quando caminhamos vamos dando asas à imaginação, olhando aos quatro ventos, observando tudo que não enxergamos embarcados num veículo. Minutos e segundos de pescaria, puxamos a linha dos horizontes à nossa volta, beliscamos conversas, sensações, imagens. E são tantas, e nos absorvem.

O trecho que parecia tão longo vai diluindo entre olhares, sentires, dizeres, - porque alguém que nos encontra também tem as sensações que levam a um lugar qualquer, a um qualquer lugar, percorrendo o caminho íngreme, subidas e descidas, beirando riachos, ouvindo os cantos da mata, sendeiros que nunca pensáramos pisar.

São assim as estradas, as trilhas, as picadas nos andares da existência - tantas vezes precisamos nos dispor a iniciar uma jornada para ver e sentir quanta coisa interessante, útil até, estamos deixando de conhecer e aproveitar, em nome da inércia, da preguiça, do desinteresse.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 47) Na cumeeira do telhado

EPARMINONDAZINHO RESOLVEU mandar bilhetinhos para Luluzinha, a menina mais bonita da sala. Aliás, não só da sala. Da escola inteira, da rua e do bairro onde moravam. Ele paquerava com ela onde desse pé. Nos corredores, na hora do recreio, na entrada e na saída, na porta do banheiro, na cantina, no instante em que ela se sentava reservadamente para falar ao telefone celular com a mãe. Embora nunca tivessem permutado um toque de mãos, ou um beijinho, o menino insistia em espalhar para seus amiguinhos  que ela era a sua namoradinha oficial.

Luluzinha sabia de tais conversas. Não dizia nem sim, nem não, não confirmava, nem desconfirmava. Simplesmente aceitava, de bom grado os olhares compridos, as espiadelas carinhosas e brejeiras pelos corredores. Se sentia lisonjeada e saltitante. Quando as amigas próximas vinham tirar satisfações, saia com elegância estudada, fugia pela tangente, sorria, mudava de assunto.  Eparminondazinho, com o passar do tempo, resolveu usar uma tática diferente, com a princesa que povoava seu mundinho vazio e carente, desejoso, todavia, daquela bonequinha charmosa.

Extremamene tímido e pessimista, sempre que queria dizer alguma coisa à adorável, fazia um bilhetinho, ou melhor, compunha um versinho e mandava entregar diretamente em mãos da sua doce amada. O escolhido, não outro, senão o Dirceu, um garoto cadeirante que dava todo apoio ao colega que torcia pelos pombinhos de forma incondicional. Nesse tom de romance solto por todos os poros, logo que a donzela atravessava o portão da escola, o piá chamava o Dirceu. Um dia se excedeu. Foi mais longe. Na emoção, escreveu:

...Você que amo tanto,
Sei não quer me escutar...
para aumentar o meu encanto,
só me falta te beijar...


Luluzinha, de antemão, tinha pleno conhecimento que bastava o Eparminondazinho vê-la em algum lugar dentro das dependências do estabelecimento de ensino, logo a seguir  seria procurada pelo Dirceu. Curiosa, ela lia com a rapidez que atropelava a sua alma em festa e respondia, em seguida, igualmente da mesma forma. Aproveitava a boa vontade do coleguinha que se prestava a se fazer de arauto e a esperar para devolver a réplica. Luluzinha se baseava no gancho das palavras que o ‘apaixonado’ lhe endereçava. Num deles, ousou:

...Sem querer te ofender,
Fale o que pensa, de frente.
Caso contrário irá perder,
O meu amor muito ‘eloquente...’.


Eparminondazinho, neste dia, com o sabor adocicado da imediata e inesperada resposta, se abarrotou de alegria. Ficou eufórico. Manhã  seguinte foi o primeiro a chegar e o primeiro a entrar em sala. Endereçou uma rápida olhadela à Luluzinha (quatro carteiras atrás da sua) que não desviou às vistas e se manteve firme à fitá-lo. Sem se desfazer do sorriso que bailava em seu rosto, o moleque se acomodou e abriu o caderno. De dentro, em meio às folhas, sacou um papel de guardanapo. E lá, de novo, os acuros do porta-voz Dirceu, na sua barulhenta cadeira de rodas.

Desta  feita, o emissário retornou ligeiro e entregou à Eparminondazinho o que ela escrevera com uma emoção diferente e uma tremura nunca vista em suas mãos. Ao findar a aula, ele mesmo resolveu seguir por um caminho diferente.   Levantou, catou as suas coisas e,  antes de deixar o recinto, se dirigiu à jovenzinha. Sem pensar duas vezes, lhe atirou o bilhetinho. Saiu correndo, estabanado, o coração quase a lhe saltar do peito. Luluzinha, ato contínuo leu, devorou cada palavrinha com um misto de satisfação a lhe inundar o semblante:   

...Se seu amor é ‘eloquente?’.
o meu há muito pegou fogo...
Você é o meu melhor presente
Em breve farei de seu pai, meu sogro!...


Luluzinha leu e releu e se sentiu imensamente feliz. Mais que feliz. Amada, admirada, querida. Pretendia dizer algo ao moleque, mas não o fez porque ele chegou ligeiro, atirou o papel no colo dela, e, no mesmo pique, saiu em desabalada carreira. Aline e Sandrinha, duas bisbilhoteiras que sentavam lá nos fundos, marcavam em cima. E não foi igual neste dia. Não deram espaço de Luluzinha raciocinar. A mocinha só teve tempo de esconder o papel.

- E aí, tá rolando um clima? - perguntou, de chofre a Aline.

Luluzinha se fez de boba.

- Rolando? Rolando um clima? Que clima, Aline?

- Você sabe. Não se faça de besta...

- Não estou me fazendo...

- Então está fazendo a nós —, berrou a Sandrinha. – Pensa que já não sacamos que rodopia, à solta, no ar, uma paquera entre você e o Eparminondazinho?

- Eparminondazinho, aquele chato? - desdenhou fingindo  não ter entendido onde ambas queriam chegar.

- Chato de verdade, amiga? — voltou à carga a Aline - Cadê o bilhetinho que ele acabou de jogar pra você?

- Não era nenhum bilhetinho...

- O que, então? - completou Sandrinha - Um sorvete de chocolate?

- Desde quando eu tenho que dar satisfações à vocês, uma dupla de mal amadas?  

- Somos amigas ou não?

- Neste caso, acho que se enganaram. As minhas melhores amigas, sou eu mesma e a minha querida sombra...

Sem dar mais trela às fofoqueiras, Luluzinha virou as costas e foi embora.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 4

CARIDADE E PERDÃO

Caridade verdadeira,
em todos os seus caminhos,
quando oferece uma rosa
sabe tirar os espinhos.
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ESQUECE

Repara a terra pobre, humilde e boa,
enlameada ao temporal violento...
A golpes rudes de granizo e vento,
olvida em paz a injúria que a magoa.

Depois, a vida tece-lhe a coroa
de pétalas luzindo ao firmamento...
E, feliz ante o mundo desatento,
mais se embeleza quanto mais perdoa.

Assim também, esquece o lodo e a ofensa.
Que a tormenta de trevas te não vença
a nobreza dos sonhos redentores!...

Seja o perdão o apoio a que te arrimes,
e desabrocharás em dons sublimes
como a terra insultada ri-se, em flores.
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ESSA MIGALHA

No reino de teu lar em paz celeste,
repara quantas sobras de fartura!...
O pão dormido que ninguém procura,
o trapo humilde que não mais se veste...

Do que gastaste, tudo quanto reste,
arrebata o melhor à varredura
e socorre a aflição e a desventura
que respiram gemendo em noite agreste!...

Teu gesto amigo florirá perfume,
bênção, consolo, providência e lume
na multidão que segue ao desalinho...

E quando o mundo te não mais conforte,
essa leve migalha, além da morte,
fulgirá como estrela em teu caminho.
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GLÓRIA DO BEM

A anônima semente pequenina
atirada por mão piedosa e boa,
parecia dormir no charco, à toa,
sorvendo o sol aos beijos da neblina...

Depois cresceu, abrindo-se em coroa,
árvore nobre a frondejar, divina,
fruto a fazer-se pão que nutre e ensina,
flor que perfuma, tronco que perdoa!...

Assim é o humilde que semeias
pelo espinheiral das dores alheias
que sombra, provação e angústia encerra...

Hoje, singela dádiva perdida,
amanhã será luz, beleza e vida
dulcificando as lágrimas da Terra.
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INSTRUÇÕES DA VIDA

Ofensa, pedrada, espinho,
injúria, maldade ou lama...
Tudo vence no caminho
o coração de quem ama.
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LÁGRIMAS

Benditas sejam, torturando embora,
as lágrimas que a vida transfigura
na fonte generosa, viva e pura
de perfeição e luz para quem chora.

Lírios e estrelas de celeste alvura,
entre as sombras da mágoa que aprimora,
rolam do coração, lembrando a aurora
no imenso caos da imensa noite escura!...

Benditas sejam! Lágrimas divinas
como flores brilhando sobre as ruínas,
que a provação estende, véspera e franca...

Mas, acima da bênção que as alveja,
ante a glória do amor, bendita seja
a mão da caridade que as estanca!
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LEMBRANÇA DE IRMÃ

Ah! minha Nina amada, abelha mansa
da colmeia a que o Mestre se afeiçoa.
Guarda contigo, ovelha humilde e boa,
a saudade no escrínio da esperança!

Alma de arminho, cândida criança,
mensageira do bem que aperfeiçoa,
Deus te enriqueça! Aureole-te a coroa
de eternidade e bem-aventurança!

Flor! – guarde-te o sol do amor divino,
Estrela! – acende o lume peregrino,
Irmã! – toda a ternura te reveste!

Espera e ama! exulta de alegria,
que os teus amados chegarão, um dia,
ao teu templo de luz no Lar Celeste!…

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Lima Barreto (Contos Argelinos) Boa Medida; Hóspede Ilustre

BOA MEDIDA


O faustoso sultão de Kambalu, Abbas I, que tinha por avós, em linha direta, Manuel José Fernandes, de Trás-os-Montes, reino de Portugal, e Japira, índia de nação potiguara, a qual nação habitou antigamente o império do Brasil e desapareceu, à vista da penúria do seu povo e da fome e da peste que o dizimavam, resolveu certo dia reunir em conclave as pessoas mais graduadas do reino, fossem elas de que credo fossem, professassem as teorias que professassem, a fim de se aconselhar e resolver a situação. Vieram um bispo, um mago oriental, um sábio doutor em medicina, uma cartomante, um jurista, um engenheiro e um brâmane.

Abbas I assim falou, abrindo a sessão:

— Meus senhores: todos sabeis o motivo da nossa reunião. É a dor e a piedade pelo meu querido povo que me movem a pedir-vos conselho para lhe dar lenitivo. Falai com franqueza que vos ouvirei com prazer. Falai!

O bispo levantou-se, fez o sinal-da-cruz, orou durante alguns minutos, contando as contas do rosário e começou:

— “Ad victum quae flagitat usus — Omnia jam mortalibus esse parata”. Precisamos de igrejas, conventos, recolhimentos — Majestade!

O Mago — Não concordo. A luz é tudo, de luz é feito o mundo e Deus. Precisamos mais luz elétrica.

O Doutor— Isto tudo é delírio; é pura paranoia, temperada com psicastenia, frenastenia. Na etiologia da peste há duas fases: primeira, a do aparecimento, dúbio, auroral, das auroras claras de maio, que é imperceptível; depois: manifestação ostensiva, horrível, de um belo horrível que só os médicos conhecem. Keats diz: "Our songs are...

O Engenheiro — Que diabo é isto? Uma encampação é mais útil…

A Cartomante — Vou deitar as cartas...

O Jurista — Cuidado com a polícia! O Código Penal, no seu livro V, art. 1824, parágrafo...

O Brâmane — Tudo o que vem de mim, o boi, a vaca...

Abbas I — Ora bolas! Vocês não me aconselham coisa alguma... São uns tagarelas aborrecidos. Vou decidir por mim; vou construir um palácio magnífico. Vão-se embora, e já!

Abbas I cumpriu a sua palavra. Cobriu o reino de impostos; mandou vir jaspe e ouro e mármore e pórfiro; contratou no estrangeiro hábeis arquitetos e operários e construiu o palácio, para enriquecimento de seu povo e extinção das moléstias que o dizimavam.

Acabada a construção, meteu-se nele. Daí a dias, porém, nem mais um criado tinha para servi-lo. Toda a gente do país havia morrido de fome e de moléstia; e ele veio também a morrer de fome porque não havia mais quem plantasse, quem colhesse, quem criasse, etc., etc.
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HÓSPEDE ILUSTRE

Todos os dias, anunciam as folhas a chegada de um hóspede ilustre, estampando-lhe algumas vezes o retrato. O Rio de Janeiro, se não está ficando o Instituto de França ou a Royal Society de Londres, pode bem ficar sendo o Museu do Trocadero.

Não me canso de ler tais notícias e causa-me assombro que semelhantes sumidades não figurem no Larousse e em outras publicações congêneres. Não vem isto, porém, ao caso. O que estas linhas tencionam é protestar contra a omissão que eles fizeram, do nome do ilustre marroquino Mulay Mâlek Ben-Bélek.

Ele vem superintender a construção do pavilhão de Marrocos que será erguido no estilo original daquele próspero império.

Os materiais empregados, como se sabe, são caniços e uma argamassa feita de bosta de camelo e lã de carneiro. Como aqui não havia camelos, portanto, o primeiro elemento da aludida argamassa, o imperador de Marrocos fretou um barco suíço e atestou-o daquele primordial elemento dos partenons dos seus domínios.

Vai ser uma lindeza, debaixo da féerie iluminativa que o senhora Carlos Sampaio contratou com os seus amigos americanos e vai nos custar os olhos da cara. Diz-se o mesmo que as experiências realizadas, no morro da Favela, mostraram de que forma mágica iluminações ianques transformam, em palácios de “Mil e uma Noites", cubatas africanas.

O emir Mulay Málek Ben-Bélek é especialista em agricultura. Ele já ensinou ao senhora Carlos a fazer brotar do caroço da uva, pés de algodão do mais estimável fio.

Além disto, conhece os outros gregos da mais alta antiguidade do que ele lê, não só em grego, como em árabe, tais como Aristóteles, Ptolomeu, Estrabão, etc. até dos propriamente árabes, persas e hindus.

Uma tal sabedoria está a indicá-lo para professor de “relatividade", na Escola Politécnica, ao lado das "Máquinas" do senhora Frontin.

O emir Mulay tem oitenta e três mulheres e cento e cinquenta concubinas. Não as trouxe por dois motivos: a) por não haver grande necessidade; b) porque supôs que, aqui, não houvesse carros "especiais" em que as suas mulheres e concubinas pudessem passear pela cidade, islamicamente enclausuradas como manda o Corão. Desconhecia que, entre nós, há os carros-fortes da polícia...

Este homem eminente, entretanto, segundo dizem, está disposto a fazer-se bufarinheiro (mascate), no Rio.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

domingo, 26 de setembro de 2021

Versejando 78

 

Murilo Rubião (Alfredo)


"Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó." (Salmos, XXIII, 6)


Cansado eu vim, cansado eu volto.

A nossa primeira desavença conjugal surgiu quando a fera ameaçou descer ao vale. Joaquina, a exemplo da maioria dos habitantes do povoado, estava preocupada com os estranhos rumores que vinham da serra.

Inicialmente pretendeu incutir-me uma tola superstição. Ri-me da sua crendice: um lobisomem?! Era só o que faltava!

Ao verificar que ela não gracejava e se punha impaciente com o meu sarcasmo, quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia. Os meus argumentos não foram levados a sério: ambos tínhamos pontos de vista bastante definidos e irremediavelmente antagônicos.

Com o passar dos dias, os gemidos do animal tornaram-se mais nítidos e minha mulher, indignada com o meu ceticismo, praguejava.

Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinha uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas.

Esperei, por algum tempo, que a fera abandonasse o seu refúgio e viesse ao nosso encontro. Como tardasse, saí à sua procura, ignorando os protestos de minha esposa e as ameaças de romper definitivamente comigo, caso eu persistisse nos meus propósitos.

Iniciara a excursão ao amanhecer. Pela tarde, depois de estafante caminhada, encontrei o animal. Nenhum receio me veio ao defrontá-lo. Ao contrário, fiquei comovido, sentindo a ternura que emanava dos seus olhos infantis.

Sem fazer qualquer movimento agressivo, de vez em quando levantava a cabeça - pequenina e ridícula - e gemia. Quase achei graça no seu corpo desajeitado de dromedário.

O riso brincou frouxo dentro de mim e não aflorou aos lábios, que se retorceram de pena. Com muito cuidado para não assustá-lo, fui me aproximando. Uma pequena distância nos separava e, tímido, perguntei o que desejava de nós e a quem dirigia a sua desalentadora mensagem. Nada respondeu.

Não me dei por vencido ante o seu silêncio. Insisti com mais vigor:

-  De onde veio? Por que não desceu ao povoado? Eu o esperava tanto!

O meu constrangimento aumentava à medida que renovava inutilmente as perguntas. Em dado momento, vendo que falava em vão, perdi a paciência:

-  E o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta montanha?

Parou de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade. Em seguida, sem tirar o chapéu, murmurou:

- Bebo água.

A frase, pronunciada com dificuldade, numa voz cansada, cheia de tédio, desvendou-me o sentido da mensagem.

Na minha frente estava o meu irmão Alfredo, que ficara para trás, quando procurei em outros lugares a tranquilidade que a planície não me dera. Tampouco eu viria encontrá-la no vale. Por isso vinha buscar-me.

Depois de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pescoço magro, enlacei-o com uma corda. Fomos descendo, a passos lentos, em direção à aldeia.

Atravessamos a rua principal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a chegada do meu irmão fosse um acontecimento banal. Ocultei a revolta e levei-o pela ruazinha mal calçada que nos conduziria à minha residência.

Joaquina nos aguardava no portão. Sem trocarmos sequer uma palavra, afastei-a com o braço. Contudo, ela voltou ao mesmo lugar. Deu-me um empurrão e disse não consentir em hospedar em nossa casa semelhante animal.

- Animal é a vó. Este é meu irmão Alfredo. Não admito que o insulte assim.

- Já que não admite, sumam daqui os dois!

Alfredo, que assistia à nossa discussão com total desinteresse, entrou na conversa, dando um aparte fora de hora:

-  Muito interessante. Esta senhora tem dois olhos: um verde e outro azul.

Irritada com a observação, Joaquina deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça.

Tive ímpetos de espancar minha mulher, mas meu irmão se pôs a caminhar vagarosamente, arrastando-me pela corda que eu segurava nas mãos.

Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no alto da serra. Lá embaixo, pequenas luzes indicavam a existência do povoado. A fome e o cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o meu passado se desenrolasse, penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal.

(- Joaquim Boaventura, filho de uma égua! - As mãos grossas, enormes, avançaram para o meu pescoço. Deixei cair o pedaço de mão que roubara e esperei, apavorado, o castigo.)

Filho de uma égua. Como tinha sido ilusória a minha fuga da planície, pensando encontrar a felicidade do outro lado das montanhas. Filho de uma égua!

Alfredo pediu-me que descansássemos um pouco. Sentou-se sobre as pernas e deixou que eu lhe acariciasse a cabeça.

Também ele caminhara muito e inutilmente. Porém, na sua fuga, fora demasiado longe, tentando isolar-se, escapar aos homens, ao passo que eu apenas buscara no vale uma serenidade impossível de ser encontrada.

De início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num porco, convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes, a se entredevorarem no ódio. Tentou apaziguá-los e voltaram-se contra ele.

Transformado em porco, perdeu o sossego. Levava o tempo fuçando o chão lamacento. E ainda tinha que lutar com os companheiros, sem que, para isso, houvesse um motivo relevante.

Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver.

E o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável.

Entretanto, o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo assuntos, deixando de solucionar a maioria deles. Mas, quando lhe pediram que desse um jeito em mais uma briga familiar, recusou-se:

- Isso é que não!

E transformou-se em dromedário, esperando que beber água o resto da vida seria um ofício menos extenuante.

A madrugada ainda nos encontrou no alto da serra. Espiei pela última vez o povoado, sob a névoa da garoa que caía. Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas. Atravessaria outras cordilheiras, azuis como todas elas. Alcançaria vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro.

Alfredo, enternecido com a melancolia que machucava os meus olhos, passou de leve na minha face a sua áspera língua. Levantando-me, puxei-o pela corda e fomos descendo lentamente a serra.

Sim. Cansado eu vim, cansado eu volto.

Fonte:
Murilo Rubião. Os dragões e outros contos. Publicado em 1965.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXIX

COMO UM VENTO NA FLORESTA

 
Como um vento na floresta.
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.

E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.

E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento :
Sou ninguém, temo ser bom.
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DE AQUI A POUCO ACABA O DIA
 
De aqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria ?
Fosse a que fosse, estava errada.

De aqui a pouco a noite vem.
Chega em vão
Para quem como eu só tem
Para o contar o coração.

E após a noite e irmos dormir
Torna o dia.
Nada farei senão sentir.
Também que coisa é que faria ?
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DEIXEI DE SER AQUELE QUE ESPERAVA
 
Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.

Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.

Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
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DEIXEM-ME O SONO ! SEI QUE É JÁ MANHÃ
 
Deixem-me o sono ! Sei que é já manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,
Quero, desperto, inda sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.

Quero, desperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.

Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou,
Nem sequer veja o céu.
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DEIXEI ATRÁS OS ERROS DO QUE FUI
 
Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

Lima Barreto (Contos Argelinos) Conservou o Fez; Arte de Governar

CONSERVOU O FEZ


Não se pode deixar de admirar suficientemente o modo por que o eminente sirdar Ben-Zuff Kalogheras vai conseguindo de modo eficaz e rápido a eficiência do nosso Exército.

Em começo, ele estudou a disposição das forças nacionais, segundo cartas mineralógicas e geológicas.

S. Exa. o sirdar, em chefe, é, como se sabe, muito bom engenheiro de minas. Em seguida, continuou nas suas inovações militares e tratou da indumentária, não só dos soldados e oficiais, como da dele.

Da primeira parte, sempre os sirdar-ministros tiveram o cuidado de tratar como dos primeiros atos dos seus ministérios, por isso que julgaram sempre que, mudando o hábito, faziam o monge; da segunda, entretanto, eles nunca julgaram coisa imprescindível, mesmo quando eram oficiais.

Ben-Zuff Kalogheras, porém, achou necessário experimentar modelos em sua própria pessoa.

Primeiramente, pôs à prova um uniforme de viajante inglês que se vê na gravura em visita às pirâmides: um chapéu de cortiça e um fichu azul. Feito isto, montou num camelo. Parece coisa imprópria; mas, a muitos, pareceu o contrário.

Não contente com isto e, também, porque lhe disseram que o tal fichu era para evitar as oftalmias, produzidas pelo revérbero da luz do sol nas areias do deserto, tratou de arranjar um outro mais adequado ao Rio de Janeiro.

Encomendou a um adelo um vestuário de cowboy ou, antes, de vaqueiro mexicano, pelo qual mandou fazer um novo de excelente brim cáqui.

Completo o indumento, pôs vestuário, perneiras, um par de grandes esporas de rosetas, um chapéu cômico cheio de guizos; e foi embarcar as tropas que partiam para uma expedição. Até aí não parou a fúria do seu amor à novidade de uniformização ministerial. Reparando que o traje de rigor, para conferenciar com o quediva-presidente, não era bastante distinto ou original, apareceu-lhe em conferência de calças brancas, sem colete, camisa à mostra e paletó de alpaca.

O quediva formalizou-se e mastigou censuras.

Por fim, disse o soberano:

— Sirdar!

— Alteza!

— E nesse traje que os seus amanuenses se apresentam perante Vossa Excelência, em serviço?

— Não, Alteza. Por quê?

— Por quê? Porque julguei lhe tivessem ensinado essa moda de vestuário, para falar aos superiores.

Ele, o sirdar, encafuou, voltou a usar sobrecasaca com fez vermelho, que ele deixava na ante-sala, quando ia ao despacho. Assim, sem merecer censuras, conservava a sua originalidade… militar.
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ARTE DE GOVERNAR

Quando o príncipe Epi subiu ao trono de rajá de Bengabul, toda a gente exultou, porque um cidadão da América, chamado Vilsão, tinha em grande conta os seus méritos de cantor de modinhas. Ele ia fazer grandes coisas, inclusive a felicidade do povo.

Vivia este na mais atroz desgraça. Não tinha casas em que morasse e os gêneros de primeira necessidade andavam pela hora da morte. Segundo propalava, ele iria dar remédio a isso tudo e a fartura havia de reinar nos lares pobres.

Epi era pequenino e vaidoso, mais pequeninos e vaidosos do que ele, porém, os que o cercavam. Gostavam de festas e macumba e, logo que o viram no trono, trataram de arrumar muita festança.

Depois de sua ascensão, não havia dia em que, por este ou aquele motivo, não houvesse um bródio suculento.

E os seus auxiliares diziam:

— Isto é que é governo! Epi sabe governar!

Não contente com festas caseiras, tratou de arranjar outras com príncipes estrangeiros.

Chamou para visitar o país o príncipe das ilhas Alentianas, que imediatamente veio visitá-lo. O príncipe era um patagão reforçado e sabia remar em canoa como ninguém.

Epi fez uma despesa louca para recebê-lo e em pessoa cuidou de todos os aprestos. Durante a sua estadia no país que foi de um mês, por delicadeza, todos se calaram; mas, mesmo assim, o rajá meteu na cadeia cinco mil pobres-diabos.

Isto tudo ele fazia para o rei ver.

Os trinta dias em que o soberano esteve no pais foram de grossa pagodeira. Passeios, cantorias, etc. encheram o vazio da significação da visita e o povo até parecia contente.

Com esta simulação de felicidade, Epi ganhou foros de bem saber a arte de governar.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. 
Publicado originalmente em 1920.

sábado, 25 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 7: Adalberto Dutra Rezende

 

Fernando Sabino (O Preço da Admissão)

DE UM velho escritor, procurando incentivar outro ainda jovem:

— O escritor é um homem que passa a vida conversando consigo mesmo. Só há uma verdadeira vantagem em envelhecer: é que, com o correr do tempo, a conversa vai ficando cada vez mais interessante.

De um comentário do “Time” sobre Hemingway:

O segredo da autenticidade de tudo que escrevia estava em que sabia olhar a verdadeira face da vida, testemunhando o que acontecia ao seu redor como se fosse pela última vez, ou seja: como se fosse morrer no dia seguinte.”

E foi o que o matou: devia olhar o que acontecia ao seu redor como se fosse pela primeira vez, ou seja: como se tivesse acabado de nascer. Porque só devemos escrever sobre aquilo que (ainda) não sabemos.

Conselho do próprio Hemingway a um jovem escritor:

Procure lembrar-se dos ruídos e do que eles lhe diziam. Descubra aquilo que lhe causou emoção, a ação que o excitou. Então escreva tudo isso, da maneira mais clara possível, para que o leitor veja também e tenha o mesmo sentimento que você experimentou. E não se esqueça: prosa é arquitetura e não decoração interior. O barroco já passou.”

O barroco já passou, mas prosa não é nem arquitetura nem decoração interior. É prosa mesmo — e tudo mais é literatura.

De uma entrevista de William Faulkner, pouco antes de sua morte:

“O fracasso faz bem à gente. Se somos bem sucedidos durante muito tempo, alguma coisa morre, seca e sucumbimos sob nosso próprio peso, como aconteceu a tantos impérios e dinastias.”

E ainda:

Acho que o tema, a história, cria seu próprio estilo. Se a gente perde muito tempo se preocupando com o estilo, acaba não sobrando nada além do estilo.”

O que, em última análise, quer dizer que ter estilo é escrever sem estilo algum. Ou, segundo Jules Renard: “O estilo, este esquecimento de todos os estilos.”

Nem com isso o problema do escritor deixa de ser fundamentalmente um problema literário — e eis onde reside o sofisma de seu destino, do qual ele procura inutilmente escapar.

Quando se possui a ideia, a palavra jamais há de faltar.” De uma carta de Flaubert a George Sand. Desmentido por Jules Renard, cujo medo era de “acabar não passando de um Flaubert de salão, inofensivo”: “Percebo que serei atormentado pela frase. Dia chegará em que não serei capaz de escrever uma só palavra.

De Paulo Mendes Campos: “Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: é orador.”

De Sinclair Lewis, sobre a dificuldade de colocar-se na postura psicológica (e física) de quem vai escrever:

Escrever é a arte de sentar o traseiro numa cadeira.

E por último, o conselho de Carlos Drummond de Andrade a um jovem escritor:

Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

Há muita vocação de escritor por aí, mas ainda maior é o número dos que pensam que para escrever basta aprender a ler. Por isso é que no Brasil há mais escritores que alfabetizados.

As cartas de leitores que recebo, na sua maioria, se não vêm logo acompanhadas de uma produção literária qualquer, revelam uma pretensão de escritor em perspectiva, tentando originalidade, ou querendo parecer natural. Os poucos que se salvam da mediocridade valem mais pelas qualidades humanas que por uma vocação para a literatura. A estes, eu diria que para se realizar integralmente como homem, ninguém precisa ser artista, e muito menos escritor.

Quem puder fugir, que fuja — se for possível não escrever, siga o conselho de Drummond, não escreva. A vocação certamente estará noutra atividade e pode ser espoliada para sempre.

Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a também escrever crônicas. A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradoura. (O verdadeiro escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se oferece, mas consciente muitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências de sua vocação.) Um dos missivistas chegou mesmo a dizer que interrompeu o curso de medicina para “tentar as letras”. Pelo que escreveu, estou certo de que daria um excelente médico.

Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor, continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não for, não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.

E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos.

Não é a primeira vez que me vêm às mãos originais desta espécie. Trata-se, agora, de uma senhora que “nasceu para fazer alguma coisa”, conforme teve ocasião de me declarar. Sabendo-a casada, ocorreu-me aconselhar que fizesse filhos — mas já os tinha, e neste caso melhor fora que deles cuidasse. Estou certo de que, se canalizasse para os afazeres do lar e a vida em família o esforço despendido com a sua veleidade literária, realizaria uma obra-prima. Não sei se me entendeu. Não chegou a dizer-me o que pretende, escrevendo um romance — se acaso me perguntasse o que pretendo escrevendo o meu, não saberia responder-lhe; seja como for, os problemas que certamente a afligem não se solucionam com a vaidade de escrever e publicar um livro, por mais sucesso que o mesmo faça. E este, não tenho a menor dúvida de que não fará.

É um trabalho que não penetra nem os mais longínquos subúrbios da literatura. Fosse uma tentativa de principiante na carreira literária, e os defeitos mais evidentes lhe serviriam de referência para o aprimoramento na arte de escrever. O que acontece, porém, é que ela, sem necessidade alguma de exprimir-se literariamente, busca afirmarse numa atividade artística que transcenda às limitações de sua vida cotidiana. E escolhe a literatura, como poderia ter escolhido o bordado ou a culinária.

A verdade é que ninguém se mete a projetar e executar um edifício sem ser arquiteto, como não se prestaria sequer a idealizar um monumento sem conhecimento algum no campo da escultura. É exatamente pelo fato de lidarmos na vida diária com o instrumento peculiar à literatura, a linguagem escrita, que tantos embarcam na ilusão de que escrever dispensa iniciação, aprendizado e disciplina de suas aptidões. Sem um mínimo de noção do que seja a literatura, e até mesmo do que seja sintaxe ou ortografia, o diletante sai a todo vapor para começar por onde os outros acabam. E o resultado é a eclosão, aqui e ali, das mais desastrosas improvisações.

Mas pode acontecer — e tem acontecido — que a tentativa frustrada não seja senão um passo em falso no caminho de decepções, renúncias e sacrifícios que levarão dolorosamente o autor à sua realização artística, pela exigência feroz de uma vocação.

Não creio que este seja o caso que tenho em mãos, como tantos outros. Se for, consola-me a certeza de que essa vocação se realizará, a despeito da opinião de quem quer que seja, contra tudo e contra todos.

Daí a sabedoria de Manuel Bandeira, respondendo a uma jovem que lhe perguntou qual o conselho que ele daria a quem quisesse iniciar-se na literatura:

Apenas este: não pedir conselho a ninguém.

Escrevo diariamente desde os quinze anos de idade. Bem ou mal, já gastei toneladas de papel e meus dedos até parecem mais curtos de tanto martelar as teclas da máquina. Posso dizer que passei a vida alinhando palavras, teimoso como um jumento, na tentativa de me exprimir literariamente. E se continuo insatisfeito, pelo menos me satisfaço com a impressão de que estou sempre começando e cada vez há mais a aprender.

Por isso me espanta que alguém busque se iniciar na literatura sem mais nem menos, pouco ou quase nada querendo dar de si. E omitindo o essencial a alguém que se inicia: a sua própria experiência oferecida em sacrifício.

Não estou me referindo ao que se profissionaliza na prática da atividade literária como meio de vida. Falo naquele que se dá um destino, cujo noviciado exige esta espécie de provação. É o primeiro passo — o espetáculo de si mesmo que o escritor tem a oferecer, expondo-se à curiosidade ou mesmo à execração pública — sem o qual os outros passos não virão. Talvez seja a isso que Machado de Assis queria se referir, quando disse que “alguma coisa temos de sacrificar”.

Numa carta de Scott Fitzgerald encontro alguns conselhos a um jovem escritor, que nos falam exatamente no sacrifício exigido:

Você tem de vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá contar ao jantar. Isso é especialmente verdadeiro quando você começa a escrever, quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender os outros ao papel, quando nada tem da técnica que leva tempo para aprender. Quando, em suma, você tem apenas emoções para vender. O amador, vendo que o profissional, depois de aprender tudo que podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial, como as reações mais superficiais de três moças comuns, por exemplo, e dar-lhe encanto e graça — o amador pensa que ele ou ela pode fazer o mesmo. Mas o amador só consegue realizar sua habilidade de transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este, de qualquer forma, é o preço da admissão.

Era o que Mário de Andrade procurava dizer-me, afirmando apenas que “Beethoven compôs primeiro a Heróica para depois compor a Pastoral”. Fitzgerald vai mais longe:

Alguém disse certa vez: um escritor que consegue olhar um pouco mais profundamente a sua própria alma e a alma dos outros, encontrando ali, graças a seu talento, coisas que ninguém jamais viu ou ousou dizer, aumenta com isso o âmbito da vida humana. Eis porque o escritor jovem, quando chega à encruzilhada do que dizer e do que não dizer, no que se refere a caráter e sentimento, é tentado a se deixar levar pelo já conhecido, admirado e aceito correntemente, pois escuta uma voz sussurrando dentro de si mesmo: ninguém se interessaria por este meu sentimento, este ato sem importância — portanto deve ser apenas peculiar a mim, não deve ser universal, nem interessante, nem mesmo certo. Mas se suas qualidades são poderosas — ou se ele tem sorte, como preferir — outra voz nessa encruzilhada o fará escrever tais coisas aparentemente insólitas e sem importância, e isso, nada mais, é o seu estilo, sua personalidade — eventualmente todo ele como artista. Aquilo que tentou jogar fora, ou que muito frequentemente jogou mesmo fora, vem a ser o toque de graça que o salvaria. Gertrude Stein tentou exprimir pensamento semelhante ao dizer — referindo-se mais à vida que às letras — que lutamos contra as nossas qualidades mais excepcionais até cerca dos quarenta anos, quando então descobrimos, tarde demais, que elas compunham o nosso verdadeiro ser. Eram a parte mais íntima de nós mesmos, que devíamos ter nutrido e acalentado.

E isso é tanto mais expressivo, se referido por alguém que, por dever de ofício, tem-se limitado tantas vezes a escrever sobre “as coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que poderia contar ao jantar

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Lima Barreto (Contos Argelinos) O Anel de Perdicas; Os Kalogheras

 
O ANEL DE PERDICAS

O reino não era completamente independente, mas era quase como se assim fosse. Dependia do império em tudo que tocasse as relações com os países estrangeiros e não podia ter exército próprio.

O seu rei não era escolhido por força da primogenitura. Alguns sujeitos avançados tinham mostrado a desvantagem de o filho suceder ao pai no trono, e resolveram que o herdeiro fosse indicado por uma assembleia de notáveis a que chamaram - a dieta.

Governava nesse tempo o reino — El-Sulida, príncipe velho, de pouca barba, curto de pernas, rico de muitas fazendas, que desejava do fundo d'alma povoadas de escravos.

Sulida tinha encaminhado bem os filhos nos cargos do reino e do império e vivia, a contento de todos, distribuindo governo mais ou menos com sabedoria.

Além do desgosto que lhe ia n'alma por não ter mais escravos negros nas suas propriedades agrícolas, um dos seus pesares íntimos era não passar ao filho o trono que ocupava.

Ninguém suspeitava dessa sua mágoa secreta, por isso todos diziam que Sulida era um príncipe perfeito, respeitador das leis e desejoso da igualdade de seus povos, porque se bem que aquilo lá fosse reino, era legal que ninguém tivesse privilégios.

Uma bela manhã, fosse devido à idade avançada do soberano, fosse devido a outro qualquer motivo, el-rei Sulida amanheceu muito doente e os médicos que foram chamados declararam que o príncipe poucos dias tinha de vida.

Os seus ministros trataram de reunir logo a dieta, para que ela escolhesse o sucessor.

Reunida a tal dieta, não chegaram os seus membros a acordo algum. Todos eram candidatos, de modo que ninguém podia escolher o sucessor de Sulida, a não ser que o sucessor fosse o próprio eleitor, isto é: o desejo de cada um era votar em si mesmo.

Resolveram então apelar para a assembleia das cidades e vilas, isto é, para uma convenção maior, composta de representantes de todos os municípios do reino.

Reuniu-se essa convenção, mas não chegaram a acordo algum, após temíveis bate-bocas. Afinal, no fito de conciliar as várias correntes da política do reino, concordaram em deixar a escolha ao alvitre do soberano moribundo. Foram a ele e falaram-lhe. Ele respondeu:

— Quem deve ser o rei é Sancho.

Foi geral o espanto. Poucos conheciam esse Sancho e ninguém atinava com o motivo da escolha. Afinal vieram a saber que o obscuro Sancho estava noivo ou coisa parecida da filha de Sulida.

Está aí como um bom pai de família procede: não podendo deixar o trono ao filho, deixou-o ao futuro marido da filha.

Houve muito barulho no reino, apesar de não dizerem os cronistas se Sancho casou-se mesmo com a princesa filha de Sulida.
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OS KALOGHERAS

O sucesso do polemarco Kalogheras na retumbante mobilização das tropas nacionais para a gloriosa expedição da Bahia causou pasmo a todos, inclusive o basileus Epitaphio.

Entretanto a nós um tal acontecimento não nos trouxe nenhuma surpresa, porquanto conhecíamos de há muito as virtudes guerreiras dos Kalogheras, desde o mais remoto ancestral do atual ministro que foi o fulminante Alexandre da Macedônia, cuja fama enche o mundo e aborrece os meninos estudantes de história na indagação de saber se ele foi ou não foi o maior general de todos os tempos.

Os Kalogheras são originários da Macedônia e os outros gregos, inclusive Plutarco, falam neles aqui e ali, louvando-lhes as virtudes guerreiras.

Há alguns, porém, da Beócia. Cremos mesmo que já o velho Homero, na Ilíada, tem um verso em que se alude a altos feitos dessa família predestinada; o certo, porém, é que, nas épocas últimas, eles sempre se mostraram guerreiros de primeira ordem. Quando os turcos conquistaram e tomaram o Império Bizantino e suas restantes províncias, os Kalogheras, não tendo a quem oferecer as suas aptidões bélicas, puseram-se a serviço dos osmanlis, pelo que os sultões respectivos deram-lhes grandes honras e muitos cequins de ouro.

Corre que, entre as proezas dos Kalogheras, há a de ter ajudado a bombardear o Partenon de Atenas, feito glorioso que toda gente atribui a autoria tão-somente aos turcos, mas que, na verdade, nela tomaram parte muitos gregos.

Com a emancipação grega, os Kalogheras, não podendo suportar a admiração de um rei estrangeiro, imposto pela Inglaterra e pela França, emigraram, uns, e outros entregaram-se à guerra nacional de perturbar o comércio marítimo dos mares do Levante, sobretudo no do arquipélago.

As duas únicas grandes potências marítimas daquelas épocas, a França e a Inglaterra, fizeram uma guerra feroz e inumana a esses patriotas gregos e a maioria dos Kalogheras foi morta, sem julgamento nem outra qualquer formalidade, nos navios de guerra ingleses e franceses, quando neles caíam como prisioneiros.

Uma raça guerreira dessas, em cujo sangue há certamente muitas gotas do sangue do turco combativo, não podia deixar de revelar no nosso atual ministro da Guerra, que dela descende, uma capacidade extraordinária e uma forte alegria que mal se faz inteirar, na tática e, feroz, na estratégia de uma guerra civil.

Quem sai aos seus, não degenera.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Adega de Versos 47: Divenei Boselli

 Pintura obtida no site da Amazon

VI Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS – Prêmio Carolina Ramos (Prazo prorrogado: 31 de outubro)


1. O  VI CONCURSO DE TROVAS DE CACHOEIRA DO SUL, promovido e realizado pela UNIÃO BRASILEIRA DE TROVADORES, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a regulamentação abaixo.

2. Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

3. Prazo:
 
31 de Outubro de 2021

4. Tema para todas as categorias:
 
JORGE AMADO (Líricas/Filosóficas)

 
5. Categorias
 
Categoria A - Nacional/internacional

Categoria B - Novos Trovadores

Categoria C – Estadual (RS)

6. Acima da trova o autor deve colocar a categoria na qual está concorrendo.

7. Não é obrigatório constar o nome do homenageado na composição da trova.

8. Máximo de 2 trovas por autor.

Remessa exclusivamente por e-mail:    

tudoepossivelw7@gmail.com

9. Serão contemplados os trovadores premiados nas 3 categorias com certificados digitais a serem enviados por email.

10. O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

11. Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Jaqueline Machado
Presidente da UBT – Seção de Cachoeira do Sul

Lima Barreto (Contos Argelinos) A Solidariedade de Al-Bandeirah; O Reconhecimento

A SOLIDARIEDADE DE AL-BANDEIRAH


Dos principados vassalos que constituíam o reino de Al-Patak não foi só Al-Bandeirah que não quis reconhecer Abu-Al-Dhudut como sultão.

O canato de Hbaya também, por intermédio do seu príncipe reinante, sempre protestou contra a usurpação. Ao contrário do primeiro, esse principado era trabalhado por grandes dissensões internas. Havia mais de cinco ou seis pretendentes ao seu trono e não existia entre os seus habitantes nenhuma harmonia de vistas.

A população com o seu gênio vivaz, com a sua queda para a eloquência, com a sua ligeireza de espírito, muito concorria para essas divisões e ela é de gênio muito oposto à de Al-Bandeirah, cuja gente é tardia, taciturna e cheia de um ingênuo orgulho de que são os primeiros de Al-Patak. Explorado habilmente, pelos governantes, esse último sentimento da população daquela província, foi-lhes sempre fácil obter dela uma quase unanimidade. Faziam uma ponte, uma torre, um bueiro e logo mandavam proclamar que era o primeiro de Al-Patak. O povo do canato é ingênuo, como um alemão, acreditava na coisa, ficava muito contente e escolhia para as altas funções os membros de três ou quatro famílias que o exploravam.

Dessa forma, toda a resistência à usurpação de Abu-Al-Dhudut estava centralizada em Al-Bandeirah.

Acontece, porém, que, ao contrário do que era de esperar, Hbaya demonstrou mais firmeza e o seu governo chegou a resistir às tropas que o invadiram, com armas na mão.

A coisa foi dolorosa e triste, pois a capital de Hbaya foi bombardeada, as suas casas incendiadas, o príncipe reinante andou daqui para ali, fugindo à sanha dos soldados de Abu-Al-Dhudut.

Infelizmente, devido às facções que dividiam a gloriosa província, a resistência não pôde ser eficaz e foi quase nula em resultados.

Esse episódio comovedor do bombardeamento da capital de Hbaya se deu justamente no dia em que o príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut recebia no tesouro de Al-Bandeirah trezentos e cinquenta mil piastras, que, como já é sabido, ficavam reduzidas a trezentos e quinze mil.
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O RECONHECIMENTO

A organização política do Al-Patak não é assim tão absoluta como se pode supor.

Em tese o sultão tem todos os poderes, mas, devido à tradição, à liberalidade de alguns soberanos, o reino possui tribunais e juízes independentes que decidem soberanamente sobre os assuntos que lhes são afetos.

Além disto, Al-Patak possui uma espécie de parlamento – o "divã" — que representa ao rei sobre as necessidades dos povos.

Cada província, conforme a população, dá um certo número de representantes que o são durante alguns anos, uns durante mais anos e outros menos.

Logo que Abu-Al-Dhudut usurpou o trono, tratou de reformar essa espécie de conselho de Estado.

Não há quem não queira fazer parte dele, não só pelos vencimentos que percebem os seus membros, como também pelos presentes que recebem, graças à influência que possuem, podendo obter dos soberanos tudo o que desejam.

O príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut foi logo eleito membro do "divã" e feito chefe dele.

Sendo homem esperto e sagaz, conhecendo perfeitamente os desejos de todos os habitantes de Al-Patak de serem do famoso conselho, tratou de regular a entrada nele, ao jeito mais propicio aos seus interesses.

Com este, negociava isto; com aquele, barganhava aquilo. Ia fazendo o seu negócio, quando se tratou do reconhecimento de cide Pen Ben-Forte. Tinha sido, esse ulemá, juiz durante muito tempo, de forma que conhecia o irmão do sultão, quando advogava.

O seu direito à entrada no "divã" era inconcusso, mas o príncipe queria que ele lhe desse dez mil piastras para tornar efetivo o seu direito.

Pen Ben-Forte não esteve pelos autos e lembrou a sua Alteza o fato de ter ele obtido, revelando uma sentença dele, cide, dinheiro ao mercador — sentença mais tarde reformada.

Pen Ben-Forte tinha disso documentos e prometeu publicá-los, se não entrasse no “divã".

Não é preciso contar mais; basta dizer que o antigo juiz entrou e foi reconhecido membro do conselho.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Este livro pode ser baixado na íntegra, em pdf, no Domínio Público

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 3

AVANCEMOS

Vara a tormenta de granizo e lama
Que te vergasta a noite escura e fria,
E, erguendo em prece a taça da agonia,
Sorve gemendo o fel que se derrama.

De alma cansada e pensamento em chama,
Ouve em silêncio a enorme gritaria
Da turba que te fere e calunia
Descendo para a treva que a reclama.

De peito aberto por sinistras lanças,
Sob as pedras e farpas em que avanças,
Bendize a senda estreita e atormentada!...

Chora, mas segue alçando a luz sublime,
Que, além da sombra que te envolve e oprime,
Fulgura o céu de nova madrugada…
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BENDITA SEJAS

Bendita sejas, mão piedosa e pura,
Em cujos doces dedos, de mansinho,
A caridade tece o brando arminho
Com que afagas miséria e desventura.

Estrela fulgurante em noite escura,
És a consolação, a paz e o ninho
Dos aflitos, que choram no caminho,
Sob as chagas da sombra e da amargura...

Mão que repartes luz, pão e agasalho,
Coroada na glória do trabalho,
A refulgir em todas as igrejas!...

Por toda a gratidão que te abençoa,
Mão que ajudas, contente, humilde e boa,
Deus te guarde, feliz! Bendita sejas!…
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BENDIZE

Feliz de ti se choras e bendizes
A angústia que te oprime e dilacera,
Guardando a luz da fé, viva e sincera,
No coração marcado a cicatrizes!

Ditosa a crença que não desespera
No turbilhão das horas infelizes,
Entrelaçando as fúlgidas raízes
No País da Divina Primavera!

Suporta a sombra que precede a aurora,
Louva a pedrada que nos aprimora,
Trabalha e espera ao temporal violento!...

E, um dia, sem a carne em que te abrasas,
Remontarás ao Céu com as próprias asas,
Purificadas pelo sofrimento.
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CAMINHO DE REDENÇÃO

Este o caminho da ascensão sublime
E o carro excelso para a luz da glória :
A subida de angústia transitória
E a cruz do amor a que o amor se arrime...

Segue, viajar, sem que te desanime
A visão da paisagem merencória
Formada em pedra da terrestre escória,
Nem te detenha a voz que te lastime.

Segue amparado à fé serena e pura,
No bem que a nada fere nem censura,
No amor que em tudo habite ou sobrenade...

Ama somente, ajuda, serve e guia
E chegarás triunfante e livre, um dia,
A redenção do amor na Eternidade.
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CANÇÃO MATERNA

Filho do coração, além das dores
Da cruz de pranto que te dilacera,
Fulge, sublime, excelsa primavera
Ao sol do amor de todos os amores.

Agradece os espinhos e amargores
Em que te afliges sob a longa espera...
E lançando ao futuro a alma sincera,
Vara, gemendo, os trilhos redentores.

Chora, louvando as lágrimas doridas
Que nos lavam as sombras de outras vidas
Como forças de imensa tempestade...

Trabalha, serve e crê, ama e confia
E ascenderás à glória da alegria
No coração de luz da Eternidade.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Contos e Lendas do Mundo (A Baba do Passarinho)

Há tempos atrás, num país longe daqui, existia um rei muito sábio e bondoso. Seus súditos o amavam e respeitavam, pois no reino todos viviam felizes.

Um dia, porém, correu pelo país uma notícia muito triste: o rei estava doente, vítima de um mal terrível que o deixara cego dos dois olhos. E os médicos da corte, por mais que se esforçassem, nada conseguiram fazer para curá-lo. Vieram também outros médicos, de todos os cantos do mundo, mas nenhum deles, nem mesmo o mais sábio de todos, conseguiu encontrar a cura para a estranha doença do rei.

O reino inteiro mergulhou, então, numa profunda tristeza. O pobre rei, achando que só um milagre poderia salvá-lo, passou a ficar horas e horas rezando, pedindo a Deus que o fizesse voltar a enxergar.

Até que uma noite, enquanto rezava, o rei ouviu uma voz suave, que lhe disse:

"Longe, muito longe, no lugar onde o seu reino termina, há uma fada, presa num castelo de ferro e guardada por um feroz dragão. Na sala ao lado de onde ela fica trancada, também está prisioneiro um passarinho, numa gaiola de diamantes. Esta ave é encantada e, quando canta, deixa escorrer pelo bico uma baba muito fina e perfumada. Se alguém juntar essa baba e passá-la por três vezes nos olhos de um cego, ele voltará a enxergar imediatamente. Para se apoderar do pássaro encantado, é preciso antes libertar a fada do encantamento. E o ousado jovem que realizar esse feito terá como recompensa a mão da fada em casamento, ela que é na verdade uma princesa muito rica e poderosa."

Depois de dizer isso, a voz se calou tão misteriosamente quanto havia surgido. E o rei não conseguiu dormir o resto da noite, tamanha era sua ansiedade.

No dia seguinte, mal o sol nasceu, mandou anunciar a todo o povo a revelação que lhe havia sido feita. Os jovens corajosos do reino foram convocados para saírem em busca do castelo de ferro e do prêmio destinado a quem desencantasse a fada e o passarinho.

Não faltaram pretendentes para a empreitada, e logo todos os jovens do país começaram a se preparar para a viagem.

Em frente ao palácio real morava um viúvo que tinha três filhos. O mais moço dos três, que se chamava Lúcio, era uma criatura muito bondosa. Os dois mais velhos eram maus e invejosos e viviam fazendo de tudo para humilhar e aborrecer o irmão. Logo que ficaram sabendo da convocação do rei, os dois iniciaram os preparativos para a viagem. E, quando Lúcio veio dizer-lhes que pretendia ir também, os dois ficaram furiosos e disseram:

- Seu tolo! Você pensa que uma aventura como essa é coisa para crianças? Vamos enfrentar muitos perigos pelo caminho, e um boboca como você só iria nos dar trabalho!

Lúcio, porém, era persistente. E insistiu tanto que o pai obrigou os irmãos a levarem-no. Os dois malvados, entretanto, assim que saíram de casa, já combinaram um jeito de se livrarem do irmão. E, na primeira noite que passaram na mata, esperaram que Lúcio dormisse profundamente para lhe roubarem todo o dinheiro. Depois partiram em silêncio, deixando-lhe apenas o cavalo e um pouco de comida.

Na manhã seguinte, ao acordar e ver que tinha sido roubado e abandonado pelos irmãos, Lúcio ficou muito triste. Mas, como era um rapaz corajoso e decidido, resolveu não voltar para casa e tentar encontrar sozinho o castelo de ferro.

Seguiu cavalgando sem saber bem para onde, até chegar à margem de um rio, onde viu sentado um velho muito pobre, quase morto de fome e com o corpo cheio de feridas.

Lúcio, que tinha bom coração, teve pena do velho. Desceu do cavalo e, depois de dividir com o pobre homem a pouca comida que ainda possuía, lavou-o e tratou de suas feridas. Além disso, tirou da sacola a única muda de roupa que trazia e entregou-a ao velho.

- Muito obrigado, meu bom rapaz! - disse o homem, olhando-o agradecido. - Seu coração é muito bom e você vai ser recompensado. Sei que deixou a cidade em busca do pássaro encantado, para curar o rei. Essa é uma tarefa muito difícil e perigosa, mas eu vou ajudá-lo. Seus irmãos passaram por mim antes de você, e não quiseram me socorrer. Eles são muito maus e, por isso, jamais conseguirão encontrar o castelo de ferro!

- Mas quem é o senhor, meu bom velho? - perguntou Lúcio, admirado.

“- Sou o protetor dos bons, meu filho. E agora vou guiá-lo, para que você seja feliz. Ouça com atenção: perto daqui há uma fazenda, onde você deve dormir esta noite. Como está sem dinheiro, logo que chegar venda o seu cavalo, pois ele de nada vai lhe servir. Com parte do dinheiro, compre o cavalo mais magro, velho e doente que encontrar na fazenda. Escolha mesmo o pior de todos, aquele que já estiver cercado pelos urubus. Não se importe com comentários. Monte nele e saia. Assim que deixar a fazenda, ele se transformará num animal forte e bonito, que, em vez de correr, voa velozmente. Ele o levará ao castelo de ferro.

“Logo na entrada do castelo, você vai encontrar o dragão alado, que mantém prisioneiros a fada e o passarinho. A chave do castelo fica escondida na garganta desse monstro e, para consegui-la, você precisa esperar que ele esteja dormindo. Mas o dragão, para enganar quem se aproxima do castelo, dorme com os olhos abertos. Por isso, se, quando você chegar, ele estiver com os olhos fechados, não se aproxime, pois ele estará acordado! Ao contrário, se seus olhos estiverem escancarados, tire a chave da garganta dele sem medo e abra a porta do castelo. Logo na primeira sala, vai encontrar a fada, que você desencantará, tirando a chave de ouro que ela carrega no pescoço. Esta chave abre a sala seguinte, onde está preso o passarinho. Mas tome muito cuidado: não deixe que a beleza da fada o seduza, porque senão você não conseguirá fazer nada e ainda cairá prisioneiro do monstro. E não se preocupe com a fada, porque ela, depois de desencantada, não correrá mais perigo.

“Preocupe-se apenas em fugir dali com o pássaro o mais rápido possível. Pois o dragão logo acordará para sair em sua perseguição. Fuja montado no cavalo alado e, quando o monstro estiver quase para alcançá-lo, desmonte e, com esta espada que lhe entrego, abra a barriga do cavalo e se esconda com o passarinho lá dentro, gritando: "A mim, bom velho!
".

Depois que o dragão for embora, saia da barriga do cavalo e costure-a com esta agulha e esta linha que estou lhe dando, e verá que ele voltará a viver e a voar tão bem quanto antes. O monstro voltará a persegui-lo e, quando ele estiver bem perto de você, grite de novo por mim e lance ao ar este punhado de alfinetes; mais adiante, este punhado de cinzas e, depois, este monte de sal, sempre chamando por mim.

“De volta à fazenda, venda o cavalo, porque não vai precisar mais dele. Com o dinheiro, compre de novo o seu e, sem perder tempo, volte depressa ao reino. E não pare por nada no mundo, enquanto não receber as bênçãos de seu pai, que está muito preocupado com você.”


Lúcio beijou as mãos do velho e agradeceu-lhe. Guardou bem a espada, a agulha, a linha, os alfinetes, as cinzas, o sal e seguiu viagem.

Chegou à fazenda ao anoitecer, cansado e faminto. Vendeu o cavalo e usou parte do dinheiro para pagar a hospedagem. Com o que sobrou, comprou, no dia seguinte, o cavalo mais velho e fraco que havia no lugar. Era um animal tão magro e acabado, que o próprio Lúcio chegou a duvidar das palavras do velho. Até o dono da fazenda não queria acreditar que alguém quisesse mesmo comprar um animal em tal estado.

Mas Lúcio não se arrependeu de seguir fielmente as recomendações do bom velho, pois, assim que saiu da fazenda montado no cavalo, ele começou a engordar e a correr. Dali a pouco, criou asas e, logo em seguida, Lúcio saía voando numa rapidez incrível.

No fim de algumas horas de viagem, chegou ao castelo de ferro. Bem na entrada, enxergou o dragão, que por sorte estava com os olhos arregalados e portanto dormia. A boca enorme do monstro estava escancarada; por isso não foi difícil tirar a chave de dentro da garganta e com ela abrir a porta do castelo.

Logo na primeira sala, Lúcio encontrou a fada. Ela era mesmo lindíssima e a sua beleza seduziu tanto o jovem, que ele ficou ali parado, sem conseguir despregar os olhos daquele belo rosto. Mas o cavalo alado, percebendo o perigo, bateu três vezes com a pata no chão para avisar a Lúcio do perigo que corria.

Lembrando-se imediatamente das palavras do velho, ele tirou logo a chave de ouro do pescoço da fada, que se desencantou, voltando a ser uma princesa. Lúcio nem olhou para trás. Correu até a sala seguinte, tirou dali a gaiola de diamantes com o passarinho encantado e mal teve tempo de montar no cavalo e sair voando. O dragão acordou e imediatamente se deu conta do que tinha acontecido e, mais rápido do que o vento, saiu no encalço de Lúcio.

Seguindo as recomendações do velho, ele esperou que o dragão chegasse bem perto para desmontar. Depois, abriu a barriga do cavalo com a espada que o velho tinha dado e se escondeu lá dentro junto com a gaiola do passarinho, gritando: - A mim, bom velho!

O monstro, desnorteado, parou. Farejou em volta do cavalo e, vendo-o morto, pensou que havia perdido a pista dos fugitivos. Desesperado, saiu voando ao léu, à procura de nova pista.

Lúcio saiu então da barriga do cavalo, costurou-a com a agulha e a linha que trazia e imediatamente o animal se recuperou e seguiram viagem voando a toda velocidade.

Mas não demorou para que o monstro reaparecesse, mais rápido e mais furioso ainda, voando perto deles. Já quase alcançava o cavalo, quando Lúcio jogou para o ar o punhado de alfinetes, gritando: - A mim, bom velho!

E viu, maravilhado, os alfinetes se transformarem num espinheiro enorme e tão fechado que o dragão ficou preso, levando um bom tempo para conseguir se soltar.

Lúcio aproveitou esse tempo para tomar fôlego e tentar ganhar distância de seu perseguidor. Mas o dragão era mesmo muito veloz, pois logo os alcançava de novo. Quando já estava quase por apanhá-los, Lúcio atirou o punhado de cinzas para o ar e gritou: - A mim, bom velho!

E as cinzas se transformaram, como por milagre, numa neblina tão forte que o dragão não conseguia enxergar, ficando desnorteado.

Só com muita dificuldade foi que conseguiu passar e recomeçar a perseguição ao cavalo alado, que já ia longe.

Logo depois, entretanto, lá estava ele de novo tentando alcançá-los. Lúcio, então, pegou a última coisa que lhe restava, o punhado de sal, e o atirou ao ar, rezando para que isso o livrasse de uma vez do terrível monstro. Enquanto o sal caía, gritou, como sempre: - A mim, bom velho!

E, olhando para trás, viu surgir um oceano imenso, que engoliu o dragão com suas ondas gigantescas. O monstro ainda tentou escapar, mas, como suas asas estavam molhadas, não conseguiu. Ficou se debatendo nas águas furiosamente, até desaparecer no fundo do mar.

Lúcio suspirou aliviado, e, seguindo as recomendações do velho, não parou um instante. Seguiu voando, o mais rápido que podia, em direção à fazenda. Lá chegando, não perdeu tempo: vendeu o cavalo, que agora já não tinha asas, mas que continuava forte e muito bonito, e com o dinheiro comprou o seu de volta. E partiu, levando a gaiola com o passarinho.

Já ia bem longe, em direção à casa do pai, quando viu dois homens cavalgando. Reconheceu neles seus irmãos e, esquecendo-se das palavras do seu protetor, parou para encontrá-los.

Os dois malvados estavam cansados e famintos, pois haviam viajado horas seguidas, sem nada encontrar. Ao verem Lúcio, fingiram ficar felizes com o encontro, mas a verdade era bem outra. Eles não se aguentavam de inveja e ciúme por Lúcio ter conseguido encontrar o pássaro encantado. Arrancaram-lhe, então, a gaiola das mãos e depois, para que ele não os denunciasse, bateram-lhe muito e lhe furaram os olhos, deixando-o quase morto na beira da estrada.

Ao chegarem em casa, mentiram ao pai, dizendo que Lúcio havia morrido no castelo de ferro. E, sem se preocuparem com a tristeza do velho, tiraram o passarinho da gaiola de diamantes para levá-lo ao palácio do rei.

A corte inteira recebeu os dois mentirosos com todas as honras, e o rei, cheio de esperança, ordenou que levassem o passarinho para perto de seu trono.

Na sala real, todos aguardaram em silêncio absoluto que a ave encantada começasse a cantar. Mas, para decepção do rei e dos membros da corte, o passarinho não só ficou mudo, como se recolheu a um cantinho da nova gaiola que lhe deram, cada vez mais triste e recusando tudo que lhe ofereciam para comer.

O rei, desesperado, vendo que o passarinho se recusava a cantar, achou que a voz que ouvira naquela noite não era mais que uma zombaria que lhe haviam feito. E, muito triste, deixou-se ficar sentado no trono, sem ânimo para nada.

Enquanto isso, ainda na beira da estrada, Lúcio chorava de dor e de mágoa pelo que os irmãos lhe haviam feito. Não conseguia entender o porquê de tanta maldade e, chorando amargamente, esperava que a morte o levasse, livrando-o de tanto sofrimento. De repente, lembrou-se mais uma vez do seu velho protetor e de como ele havia prometido sempre ajudá-lo. Assim, juntou as últimas forças que lhe restavam e gritou o mais alto que pôde: - A mim, bom velho!

No mesmo instante, ouviu passos ao seu lado. E, com o coração cheio de alegria, ouviu a voz do velho dizer:

- Meu filho, eu lhe disse que andava pelo mundo escolhendo os bons, para protegê-los. Você me socorreu quando eu precisava de ajuda; por isso, estou aqui para ajudá-lo também.

E, depois de dizer isso, levou Lúcio para um rio perto dali, curou-lhe as feridas e disse:

- Não fique triste por estar cego, porque você logo voltará a enxergar. O passarinho está ao lado do rei, mas não cantará enquanto seu verdadeiro salvador não chegar ao palácio. Eu levarei você até lá.

E, tomando a mão de Lúcio, o velho o conduziu até o palácio. Na sala real, o rei continuava sentado no trono, sem nenhuma esperança de se ver curado da sua doença. Entretanto, assim que o rapaz entrou na sala, o passarinho encantado recuperou-se e saiu voando em sua direção. E no palácio inteiro reinou o mais profundo silêncio, enquanto ele cantava maravilhosamente, pousado na mão do seu salvador.

O velho recolheu, então, a baba encantada que escorria do bico da ave e passou-a por três vezes nos olhos do rei e de Lúcio, que voltaram imediatamente a enxergar. Pelo reino inteiro espalhou-se uma enorme alegria e o rei, completamente curado, encarregou seus ministros de prepararem a maior festa que o reino já havia tido até então.

Na madrugada seguinte, quando o povo todo se preparava para iniciar  os festejos, surgiu na cidade, sem que ninguém soubesse explicar como, um magnífico palácio. De sua entrada partiam três luxuosas estradas: uma forrada de ouro, outra de prata e outra de veludo.

O povo inteiro, tendo o rei à frente, olhava pasmado para o palácio, quando de repente viram sair dele uma carruagem belíssima, toda feita de ouro e cravejada de brilhantes, puxada por seis cavalos brancos. Dentro dela vinha a princesa, ricamente vestida e mais linda do que nunca.

Todos a saudaram com muita alegria e o rei foi recebê-la pessoalmente, dando-lhe as boas-vindas.

- Estou aqui - disse ela - para me casar com o jovem corajoso que libertou a mim e ao passarinho encantado daquele dragão terrível!

O rei lhe respondeu que teria muito prazer em realizar aquele casamento, mas como saber a quem cabia o prêmio, se três jovens tinham aparecido para reclamá-lo?

- Só um foi o meu salvador! - disse a princesa. - E, para saber qual deles diz a verdade, mande buscá-los, um de cada vez, em minha carruagem, e diga-lhes para escolherem uma das três estradas para chegar ao meu palácio. O mais humilde deles escolherá a estrada mais pobre, e esse será saudado pelo passarinho, que o reconhecerá.

Assim fez o rei. Mandou buscar o irmão mais velho de Lúcio, ordenando-lhe que indicasse a estrada que levava ao palácio encantado. Quando chegou no lugar onde começavam as três estradas, o rapaz gritou para o cocheiro:

- Pela estrada de ouro!

E lá se foi a carruagem. Diante da fada, o irmão mais velho ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos. Mas o passarinho ficou mudo, sem dar sinais de reconhecê-lo, e o rapaz teve de voltar para casa.

O rei mandou buscar, então, o segundo irmão, e também o orientou para que escolhesse a estrada pela qual queria seguir.

- Pela estrada de prata! - respondeu ele ao cocheiro.

Ao chegar ao palácio e beijar as mãos da princesa, entretanto, novamente o passarinho se manteve mudo. E, furioso, o segundo irmão também teve de voltar para casa.

Chegou a vez de Lúcio, e a carruagem parou no início das estradas, para que ele escolhesse por qual delas queria ir. Lúcio, sem pensar duas vezes, imediatamente escolheu a estrada de veludo. Mal a carruagem partiu em direção ao palácio, o pássaro encantado começou a cantar e saiu voando ao encontro de seu salvador.

Sempre acompanhado pelo passarinho, Lúcio chegou ao palácio. Aproximou-se da princesa, que o esperava sorrindo, e ajoelhou-se a seus pés. E, enquanto lhe beijava as mãos, o pássaro encantado voou por sobre a cabeça da jovem, transformando-se na coroa mais bonita e rica que já se viu no mundo.

No dia seguinte, Lúcio e a princesa se casaram em meio a muita alegria e a grandes festas.

Quanto aos dois irmãos malvados, o rei os condenou à morte, como castigo por todo o mal que haviam cometido.