quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Hans Christian Andersen (O Velho do Sono) Parte 1


Não há ninguém no mundo que saiba tantas histórias como o Velho-do-Sono. E são histórias tão lindas, as que ele conta!

De noite, quando as crianças estão ainda à mesa, muito quietinhas, ou sentadinhas em seus bancos, ele tira os sapatos e sobe a escada, muito devagar, abre a porta sem fazer barulho e sopra pó nos olhos delas. Vai então, sempre no maior silêncio, para trás das crianças e sopra-lhes na nuca, muito suavemente, para que elas não sintam. E imediatamente as crianças sentem a cabeça pesada! Mas isso não é para lhes fazer mal: o Velho-do-Sono só quer que fiquem bem quietinhas e que vão para a cama. Se não ficarem bem quietinhas ele não poderá contar as suas histórias.

Quando elas dormem ele se senta aos pés da cama. Tem umas roupas muito alegres, mas ninguém pode dizer de que cor são: a seda dos seu casaco ora é verde, ora vermelha, ora parece azul - é conforme bate nela a luz. Leva uma sombrinha debaixo de cada braço: uma é toda pintada e ele a abre sobre as crianças boas, para que tenham sonhos agradáveis a noite inteira; a outra não tem pintura nenhuma - é que ele abre por cima das crianças más, e essas dormem um sono pesado, e acordam de manhã sem ter sonhado nada, nada.

Agora vou contar as histórias que o Velho-do-Sono contou a um menino chamado Hialmar; o velho visitou-o durante uma semana, todas as noites, e cada noite contou um conto diferente: são portanto sete casos.

SEGUNDA-FEIRA

- Escuta! - disse o Velho-do-Sono, assim que Hialmar se viu bem acomodado na sua cama. - Agora vou enfeitar todo o teu quarto.

E enquanto ele estava falando as flores dos vasos foram ficando árvores enormes, e os galhos se estendiam pelas paredes, e subiam até o teto, de modo que o quarto parecia um lindo caramanchão. Os galhos estavam cheios de flores, mais lindas que as próprias rosas, e se a gente provava uma delas, achava-a mais doce que confeitos. Frutas brilhantes que nem ouro pendiam das árvores, e pudinzinhos, cheios de passas. Nunca se vira coisa semelhante! Mas, no meio de tudo aquilo, ouvia-se uma lamentação, que saía da gaveta da mesa onde Hialmar guardava os livros da escola.
 
- Que será isto? - disse o Velho-do-Sono, indo abrir a gaveta.

Era a ardósia a causa daquela balbúrdia. Havia um algarismo errado na soma, e a pedra parecia querer desconjuntar-se toda, enquanto isso, o lápis dava pulos e estirava o barbante que o prendia à ardósia, como um cachorrinho para ver se corrigia a soma, e não o conseguia. Mais adiante estava o caderno, de onde saíam também lamentos e queixas doloridas: no começo de cada linha havia uma letra maiúscula e outra minúscula, para serem copiadas. Adiante delas viam-se outras letras que pretendiam imitar aquelas. Tinham sido escritas por Hialmar; mas pareciam ter caído deitadas sobre as linhas, em vez de se manterem de pé, como as do modelo.

- Olhem para nós! - diziam as do modelo - É assim que devem manter-se: um pouco inclinada... assim... e com uma voltinha.

- Bem o quiséramos - diziam as letras de Hialmar - mas não  podemos; estamos muito malfeitas.

- É que vocês estão precisando do pó das crianças - disse o Velho-do-Sono.

- Não, não! - gritaram as letras, erguendo-se  e ficando direitas que dava gosto.

- Bem, por hoje não posso mais contar histórias - disse o Velho-do-Sono. - Tenho de ensinar estas letras - direita, esquerda! direita, esquerda!

E ele exercitou as letras, até que ficaram tão direitas, tão perfeitas, como só se veem nos modelos de caligrafia.

Mas, depois que ele foi embora... Oh! No dia seguinte, quando Hialmar olhou para elas... que horríveis! Estavam tão malfeitas como antes.

TERÇA-FEIRA

Assim que Hialmar foi para cama, o Velho-do-Sono tocou com a sua varinha de condão todas as peças da mobília do quarto, imediatamente elas começaram a falar. Falavam todos de si próprios, menos a cuspideira, que ficou calada, e muito escandalizada da vaidade dos que só se ocupavam de si, sem pensar nela, que ali estava, tão modesta, em um cantinho, e até suportava que lhe cuspissem em cima!  Sobre a cômoda estava pendurado um quadro de moldura dourada, era uma paisagem onde se viam grandes árvores, relva matizada de flores, e um rio que atravessava o mato e passava em frente de um velho castelo antes de se ir lançar no mar.

O Velho-do-Sono tocou o quadro com sua varinha mágica e imediatamente os passarinhos começaram a cantar, os galhos das árvores moveram-se, balançando à brisa, e as nuvens flutuavam no céu, projetando sombra sobre a paisagem.

Então o Velho-do-Sono pegou em Hialmar e colocou-o na beira da moldura; o menino sentou-se nela, com as pernas para dentro do quadro, depois se pôs a correr na grama. O sol inundava tudo de luz, através da folhagem.

O menino foi até a beira do rio e entrou em um barco pintado de vermelho e branco, com velas prateadas, seis cisnes, de colar de ouro, passando junto de um verde bosque, cujas árvores estavam contando casos de ladrões e de feiticeiras, enquanto as flores narravam histórias de lindas fadas pequeninas, e coisas que as borboletas lhes contavam.

Iam nadando atrás do bote peixes lindíssimos, de escamas de ouro e de prata, de vez em quando um deles dava um  salto na água, que esborrifava a cabeça de Hialmar.

Pássaros vermelhos e azuis, grande e pequenos, voavam acompanhando o bote, em duas longas filas, os mosquitos dançavam formando pequenas nuvens, e os moscões zumbiam. Queriam todos seguir Hialmar, e todos tinham coisa para lhe contar.

Era um passeio encantador! O bosque ora parecia denso e sombrio, ora se mostrava florido e iluminado pelo sol. Por ente as árvores erguiam-se grandes palácios de cristal ou de mármore, em cujos balcões se debruçavam princesas, todas elas conhecidas de Hialmar, pois eram crianças com quem tinha brincado muitas vezes. Estendiam-lhe as  mãos, oferecendo-lhe figurinhas de açúcar, como a gente vê nas confeitarias. E eram lindas! Hialmar pegou na ponta de um  daqueles doces quando ia passando, mas a princesa ficou sempre segurando na outra ponta, e como ele ia navegando, o doce se partiu, ficando um pedaço na mão da princesa, outro - o maior na mão dele.

Em todos os castelos erguidos meninas montando guarda, com as espadas erguidas atiravam-lhe passas e soldadinhos de chumbo. Eram princesas de verdade! Hialmar navegava ora pelo meio dos bosques, ora por dentro de grandes salões, ora pelas ruas de uma cidade.

E foi assim que atravessou a cidade onde vivia sua amada, aquela que o trouxera nos braços durante tanto tempo, e que muito o amava.

Ao vê-lo passar, ela abanou-lhe a mãos, fez muitos cumprimentos, e cantou os lindos versos que lhe mandara, e que ela mesmo tinha composto:

" Em ti pensando, Hialmar, passo as horas
Recordo quando eras pequenino,
E eu me curvava para o teu bercinho,
Beijando-te nas faces, meu menino!

Meus foram teus primeiros balbucios;
Hoje te envio este saudoso adeus,
Pedindo que o Senhor sempre te guarde
Para que alcances teu lugar nos céus!"

E todos os passarinhos cantavam com ela, as flores dançavam nas hastes e as velhas árvores sacudiam a fronde, porque o Velho-do-Sono contava suas histórias para eles também.

QUARTA-FEIRA

Como chovia!

Hialmar ouvia o barulho da chuva mesmo dormindo, e quando o Velho-do-Sono abriu a janela, a água já estava tocando o peitoril: havia um verdadeiro lago em frente à casa, e nele se via um lindo barco.

- Queres embarcar comigo, pequeno Hialmar? - perguntou o Velho-do-Sono. - Visitaremos esta noite terras estrangeiras, e amanhã cedo estaremos de volta.

E no mesmo instante Hialmar, trajando sua roupa domingueira, estava a bordo do navio.

Já tinha cessado a chuva, e o tempo agora era claro. Navegavam rua abaixo, passaram pela igreja, e já estavam flutuando sobre o mar imenso. Não tardou que perdessem de vista a cidade e a terra; só avistavam um bando de cegonhas que vinham do país de Hialmar, e iam em busca de outra terra mais quente. Voavam uma atrás da outra, em fila, e já tinham deixado a terra muito para trás. Uma delas, porém, estava tão fraca, que as asas mal podiam sustê-la; vinha no fim da fila, e distanciava-se pouco a pouco das outras. Por fim foi baixando o voo, de asas distendidas, ainda tentou continuar a movê-las, mas em vão: elas tocaram a cordoagem do navio, a ave foi deslizando pela vela, e zaz! caiu no convés.

Apanhou-a então o grumete e levou-a para o galinheiro, onde viviam misturados, além de galinhas, patos e perus, tudo na maior confusão.

- Mas olhem, que sujeito esquisito! - disseram todas as galinhas.

O peru inchou até onde pode, e depois perguntou-lhe quem era, enquanto os patos iam recuando, empurrando-se uns aos outros, e dizendo somente:

- Quá, quá, quá! como quem dizia; Idiota, idiota, idiota!

Contou-lhes então a cegonha o que sabia. Falou-lhes na sua África, tão  quente, nas pirâmides, e da avestruz que corre no deserto, como um cavalo selvagem. Mas os patos não entenderam nada do que ela contou, e só o que faziam era empurrar-se uns aos outros, dizendo:

- Pois já se viu ave mais estúpida?

Continua: quinta-feira, …


Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 5


A COBRA E A RÃ

Junto à lagoa
coaxa a rã;
seu canto entoa
toda manhã!

- A vida é boa,
se é livre e sã.
E a voz ressoa
num doce afã!

O canto escuta
a cobra astuta
do pantanal...

Quem manda a rã,
toda manhã,
cantar tão mal?

Assim dizia um sábio de renome:
- o canto desagrada a quem tem fome!
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DEFESA PRÉVIA

Eu, sei de mim, culpa nenhuma tenho
em tudo que se faz contra a justiça,
pois só do meu trabalho me mantenho,
sem ter direito aos ócios da preguiça!

Puro não sou, nem faço disso empenho,
pois puro ninguém é na humana liça.
Creio num Deus real, morto no lenho,
e não nos deuses falsos da cobiça.

Em prol de um mundo bom, Justo e Perfeito,
herói da Fé, soldado do Direito,
espadachim serei, já que sou Athos.

E ao ver da turba as faces carrancudas,
não venderei meu Mestre, como Judas,
nem lavarei as mãos, como Pilatos!
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DORES

Por mais que eu descreva a dor que sinto,
jamais a entenderás corretamente,
pois cada ser humano é um ser distinto
e só quem sofre sabe a dor que sente!

Por força natural do próprio instinto,
que desde a madre rege o ser vivente,
da dor que te doer me não ressinto,
nem tu, também, da dor que me atormente!

Isto, afinal, é muito humano e justo.
Ninguém dos nossos bens concorre ao custo,
nem do mal que sofremos se arreceia...

Pois no egoísmo própria a toda gente,
por pequena que seja a dor que sente
sempre a julga maior que a dor alheia!
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PAPAI NOEL

Papai Noel! Lindo sonho
de deslumbrante matiz.
Velho treteiro e bisonho
que vem de um frio país!

Ao rico atende, risonho,
mas nunca à pobreza quis.
Deixa um menino tristonho
e outro alegre e feliz!

Papai Noel, sempre injusto,
só traz presentes de custo
para os filhos da riqueza...

Quanto aos pobres não se importa!
- Sapatos rotos na porta,
pratos vazios na mesa!
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SAPATO VELHO

Hoje encontrei na rua desprezado
um sapato já velho e carcomido,
que foi, talvez por velho, preterido,
depois de um bom serviço ter prestado.

Aliás, o pobre estava bem rasgado...
Mas mui belo talvez tivesse sido.
Talvez em muita festa houvesse ido
no seu tempo de moço e conservado.

Olhei-o com desprezo e fui passando...
Mas depois, sobre o mesmo meditando,
consegui deduzir esta tolice:

Que tal como o sapato, a humanidade
tem riso e tem fulgor na mocidade,
mas só pranto e tristeza na velhice!

Fontes:
Athos Fernandes. Miscelânea Poética. 1979.
Athos Fernandes. Ofir. 1977.
Athos Fernandes. Shangri-La: Poesias. 1979.

Lucy Hay (Como Escrever uma História de Mistério) – 2


DESENVOLVENDO SUA PERSONAGEM PRINCIPAL E ESBOÇANDO A HISTÓRIA

1. Crie o detetive.


Sua personagem principal também pode ser um cidadão comum ou o espectador inocente de um crime que se envolve na solução do mistério. Faça um brainstorm de detalhes específicos do seu protagonista, incluindo:

O tamanho e o formato do corpo, a cor do cabelo e dos olhos e quaisquer outras características físicas. Por exemplo, você poderá ter uma personagem principal feminina baixinha e com cabelo escuro, óculos e olhos verdes, ou pode querer um detetive mais típico: alto, com o cabelo penteado para trás e a barba por fazer.

Roupas: o vestuário da sua personagem não vai só criar uma imagem mais detalhada para o leitor, mas também pode indicar em que período de tempo sua história se passa. Por exemplo, se a personagem principal usa uma armadura pesada e um elmo com um timbre, o leitor perceberá que a narrativa se passa na época medieval. Caso o protagonista use uma blusa com capuz, calça jeans e uma mochila, seus leitores saberão que a história provavelmente se passa na era contemporânea.

O que torna a personagem principal única: é importante criar um protagonista que se destaque para o leitor e que pareça ser cativante o suficiente para sustentar várias páginas em uma história ou romance. Pense sobre o que a personagem gosta ou não gosta. Talvez sua detetive feminina seja tímida e desajeitada em festas, e tenha uma paixão secreta por répteis. Ou talvez o investigador seja um completo tolo e não se considere esperto ou forte. Concentre-se em detalhes que ajudarão a criar uma personagem principal única e não tenha medo de usar aspectos da sua vida pessoal ou das suas próprias preferências e gostos.

2. Determine o ambiente.

Coloque a história em um cenário que você conheça bem, como sua cidade natal ou sua escola, ou faça uma pesquisa sobre um local com o qual não esteja familiarizado, como a Califórnia dos anos 1970 ou a Inglaterra dos anos 1940. Se for usar um espaço que não conhece em primeira mão, concentre-se em contextos específicos, como uma casa de subúrbio na Califórnia dos anos 1970 ou uma pensão na Inglaterra dos anos 1940.

Caso você decida situar a sua história em um período de tempo ou localização com os quais não esteja familiarizado, faça uma pesquisa sobre eles em sua biblioteca local, fontes online ou entrevistas com especialistas em um determinado período de tempo ou espaço. Seja específico em suas pesquisas e durante suas entrevistas para garantir que você obtenha todos os detalhes.

3. Crie o enigma.

Nem todos os mistérios precisam ter um assassinato ou crime grave, mas quanto maior o crime, geralmente maiores os riscos na história. Os riscos altos são importantes porque envolvem o leitor e dão a ele uma razão para continuar a ler. As possíveis origens do mistério poderiam ser:

– Um item é roubado da sua personagem principal ou de alguém próximo a ela.

– Uma pessoa próxima ao protagonista desaparece.

– A personagem principal recebe bilhetes ameaçadores ou perturbadores.

– O protagonista testemunha um crime.

– A personagem principal é convidada para ajudar a resolver um crime.

– O protagonista se depara com um mistério.

Você também pode combinar vários destes cenários para criar um mistério com mais camadas. Por exemplo, um item pode ser roubado da sua personagem principal, uma pessoa próxima a ela pode desaparecer, e a personagem pode testemunhar um crime e depois ser convidada para ajudar a resolvê-lo.

4. Decida como vai complicar o enigma ou o mistério.

Crie tensão na história tornando difícil para o protagonista resolver o quebra-cabeça. Você pode usar obstáculos como outras pessoas ou suspeitos, pistas falsas e enganosas ou outros crimes.

Crie uma lista de possíveis suspeitos que a personagem principal pode encontrar ao longo da história. Você pode usar vários para colocar o detetive ou o leitor na direção errada, criando suspense e surpresa.

Escreva uma lista de pistas. As manobras de diversão são pistas falsas ou enganosas. Sua história será mais forte se você incluir várias manobras desse tipo na história. Por exemplo, a personagem principal poderá encontrar uma pista que aponta para um suspeito, porém mais tarde descobrir que ela na verdade está ligada a outro. Ou o detetive poderá encontrar uma pista sem perceber que ela é crucial para desvendar todo o mistério.

5. Use ganchos para manter a história interessante.

O gancho é um momento, geralmente no final de uma cena, em que o protagonista fica em uma situação que o prende ou o coloca em perigo. Ele é importante em um mistério porque mantém o leitor envolvido e impulsiona a história para frente. Possíveis ganchos poderiam ser:

– A personagem principal está investigando uma pista sozinha e encontra o assassino.

– O protagonista começa a duvidar de suas habilidades e abaixa a guarda, permitindo que o assassino mate novamente.

– Ninguém acredita na personagem principal. Ela tenta solucionar o crime sozinha e acaba sendo sequestrada.

– O protagonista é ferido e preso em um lugar perigoso.

– A personagem principal perderá uma pista importante se não puder sair de um determinado local ou situação.

6. Crie uma resolução ou final.

Encerre a história com a solução para o enigma. No final da maior parte dos mistérios, a personagem principal tem uma mudança positiva na perspectiva dela. As possíveis resoluções incluem:

– O protagonista salva alguém próximo a ele ou uma pessoa inocente envolvida no mistério.

– A personagem principal se salva e muda por causa de sua coragem ou inteligência.

– O protagonista expõe um mau caráter ou uma organização criminosa.

– A personagem principal expõe o assassino ou a pessoa responsável pelo crime.

7. Faça um rascunho da história.


Agora que você já considerou todos os aspectos, crie um contorno claro da trama. É importante mapear como exatamente o mistério vai se desdobrar antes de sentar para escrever a narrativa, pois assim será possível garantir que não haja pontas soltas. Seu esboço deverá seguir a ordem em que os eventos ou pontos do enredo acontecerão. Ele deve incluir:

– A apresentação da personagem principal e do cenário.

– O incidente ou crime desencadeador da ação.

– A chamada para a ação: o protagonista se empenha na solução do crime.

– Testes e tribulações: a personagem principal encontra pistas e potenciais suspeitos e tenta se manter viva enquanto busca a verdade. As pessoas próximas podem ser sequestradas como ameaça.

– A provação: o protagonista acredita que encontrou uma pista ou suspeito chave e que resolveu o crime. Esta é uma falsa resolução e uma boa maneira de surpreender o leitor quando ficar provado que a personagem principal entendeu errado.

– O grande revés: tudo parece perdido para o protagonista. Ele encontrou o suspeito ou a pista errados, outra pessoa foi morta ou ferida e todos os seus aliados já o abandonaram. Um grande revés vai aumentar a tensão na história e manter o leitor interessado.

– A revelação: a personagem principal reúne todas as partes interessadas, expõe as evidências, explica as pistas falsas e revela quem é o assassino ou culpado.
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Continua…

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 07

 

Lucy Hay (Como Escrever uma História de Mistério) – 1


Um bom mistério terá personagens fascinantes, um suspense emocionante e um quebra-cabeça que manterá você virando as páginas. Mas pode ser difícil escrever uma história de mistério cativante, especialmente se você nunca tiver tentado antes. Com a preparação, o brainstorming, o planejamento, a edição e o desenvolvimento certo das personagens, você pode criar seu próprio mistério envolvente.

PREPARANDO-SE PARA ESCREVER

1. Entenda a distinção entre o gênero mistério e o gênero suspense

Os mistérios quase sempre começam com um assassinato. A grande questão é quem cometeu o crime. Os suspenses costumam começar com uma situação que leva a uma grande catástrofe, como um assassinato, um assalto a banco, uma explosão nuclear etc. A grande pergunta em um texto desse gênero é se o herói pode ou não evitar que a catástrofe aconteça.

Nas histórias de mistério, o leitor não sabe quem cometeu o assassinato até o fim do romance. Elas são centradas no exercício intelectual de tentar descobrir as motivações por trás do  crime ou a resposta para o quebra-cabeça.

Os mistérios tendem a ser escritos em primeira pessoa enquanto os suspenses, são muitas vezes escritos na terceira pessoa e a partir de vários pontos de vista. As narrativas de mistério costumam ter um ritmo mais lento, conforme o herói, detetive ou protagonista tenta resolver o crime. Há também menos cenas de ação nelas do que nos suspenses.

Como os mistérios costumam ser mais lentos, as personagens geralmente têm mais profundidade e melhor acabamento neles do que em um suspense.

2. Leia exemplos de mistérios.

Há muitas grandes histórias desse gênero que você pode ler para ter uma noção do que é um mistério bem escrito e bem desenvolvido.

"A Mulher de Branco", de Wilkie Collins: esse romance de mistério do século XIX foi escrito originalmente no formato de série, por isso a história avança em passos medidos. Muito do que se tornou norma em ficção policial foi feito por Collins neste livro, por isso trata-se de uma introdução envolvente e instrutiva ao gênero.

"O Sono Eterno", de Raymond Chandler: Chandler é um dos maiores escritores do gênero, criando histórias envolventes sobre os desafios e as atribulações do detetive particular Philip Marlowe. Este é um investigador durão, cínico, mas honesto que se envolve em uma trama com um general, sua filha e um fotógrafo chantageador. O trabalho de Chandler é conhecido por seu diálogo afiado, bom ritmo e herói interessante.

"As Aventuras de Sherlock Holmes", de Sir Arthur Conan Doyle: um dos detetives mais famosos do gênero, junto com seu igualmente famoso parceiro de investigação Watson, resolve uma série de mistérios e crimes nesta compilação de histórias. Holmes e Watson injetam seus traços de personalidade únicos ao longo das narrativas.

"Nancy Drew", de Carolyn Keene: toda a série se passa nos Estados Unidos. Nancy Drew é uma detetive. Os amigos próximos dela, Helen Corning, Bess Marvin e George Fayne aparecem em alguns mistérios. Nancy é filha de Carson Drew, o advogado mais famoso de River Heights, onde vivem.

"Hardy Boys", de Franklin W. Dixon: esse romance é semelhante a Nancy Drew e fala sobre dois irmãos: Frank e Joe Hardy, detetives talentosos. Eles são filhos de um investigador muito famoso e às vezes ajudam nos casos dele.

"A Crime in the Neighborhood", de Suzanne Berne (sem tradução para o português): esse romance de mistério recente se passa na Washington suburbana dos anos 1970. Ele se concentra em um crime que ocorre no bairro, o assassinato de um jovem. Berne intercala uma história de amadurecimento com o mistério da morte do jovem em um subúrbio chato e sem graça, mas consegue tornar a história bastante interessante.

3. Identifique a personagem principal em uma história de mistério.

Pense em como o autor apresenta o protagonista e em como o descreve.

Por exemplo, em "O Sono Eterno", o narrador em primeira pessoa de Chandler se descreve por suas roupas na primeira página: "Eu estava usando meu terno azul-claro acinzentado com camisa azul escura, gravata, lenço dobrado no bolso, sapatos pretos, meias de lã pretas com bordados azuis. Estava limpo, impecável, barbeado e sóbrio, e não estava ligando se alguém percebia. Eu era tudo o que um detetive particular de boa aparência deve ser".

Com essas frases iniciais, Chandler torna o narrador distinto pela maneira dele descrever a si mesmo, a sua roupa e a seu trabalho como detetive particular.

4. Note o ambiente ou o período de tempo de uma história de mistério.

Pense em como o autor situa a história no local ou no período de tempo. Por exemplo, no segundo parágrafo da primeira página de "O Sono Eterno", Marlowe coloca o leitor no tempo e no cenário: "O saguão principal da mansão Sternwood tinha dois andares."

O leitor agora sabe que Marlowe está na frente da casa dos Sternwoods e que essa é uma casa grande, possivelmente de pessoas ricas.

5. Considere o crime ou mistério que a personagem principal precisa resolver.

Qual é o crime que o protagonista tem de solucionar ou com o qual ele deve lidar de alguma forma? Poderia ser um assassinato, uma pessoa desaparecida ou um suicídio suspeito.

Em "O Sono Eterno", Marlowe é contratado pelo General Sternwood para "cuidar" de um fotógrafo que tem chantageado o general com fotos vergonhosas da filha dele.

6. Identifique os obstáculos ou problemas que a personagem principal encontra.

Um bom mistério manterá os leitores envolvidos complicando a missão do protagonista com obstáculos ou problemas.

Em "O Sono Eterno", Chandler complica a busca pelo fotógrafo fazendo com que este seja morto nos primeiros capítulos, seguido pelo suicídio suspeito do motorista do general. Assim, o autor coloca dois crimes para Marlowe resolver.

7. Note a resolução do mistério.

Pense em como ele será resolvido no final da história. A solução não deve parecer muito óbvia ou forçada, mas também não deve ser muito estranha ou inacreditável.

A resolução deverá parecer surpreendente para o leitor, sem confundi-lo. Uma das vantagens é que você pode regular o ritmo da história para que o desfecho se revele aos poucos, em vez de apressadamente.
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Continua…

Fonte:
Wikihow. Como Escrever uma História de Mistério.
https://pt.wikihow.com/Escrever-uma-Hist%C3%B3ria-de-Mist%C3%A9rio

Trovas Populares Brasileiras – 2


Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. com o 4.,
sistema ABCB. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.
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A minha alma de velho
anda agora renovada;
a paixão é que nem sono
chega sem ser esperada.
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Ave Maria! Meu Deus!
Quando eu me arreliar
faço aleijado correr,
quem não tem olho enxergar.
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Branco e preto, preto e branco
isto de cor não procede...
Do escuro é que vem a luz,
o dia à noite sucede.
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— Compadre, você me diga
mas me diga num arranco:
– Porque é que galinha preta
por força põe ovo branco.
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Eu já fui na sua casa
e já sei o que ela é.
A fartura que eu vi nela
foi pulga e bicho de pé.
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Eu não vou na tua casa,
pra tu não vires na minha.
Tens a boca muito grande,
acabas minha farinha.
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Eu sou maior do que a terra,
maior do que o mar profundo.
Eu sou maior do que o céu
maior do que todo o mundo.
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Eu sou maior do que Deus,
maior do que Deus eu sou.
Eu sou maior no pecado
porque Deus nunca pecou.
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Fabião nós somos velhos
e velhos não valem nada,
porque só vale quem ama
quem traz a alma enganada.
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Minha mãe chama-se caca,
minha avó Caca Maria.
Em casa tudo era Caco,
Sou filho da Cacaria.
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Não há papel nesta vila
nem tinta neste convento,
não há pássaro de pena,
que escreva tal sentimento.
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Não tenho medo das alma:
– Da cobra, faca e trovão,
mas renego mulher velha
que vive a botar paixão.
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Não tenho modo de homem
nem do ronco que ele tem:
O besouro também ronca,
vai-se ver, não é ninguém.
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Ora, louvado seja Deus!
Ora, Deus seja louvado!
De cabeça para baixo
este mundo anda virado.
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— Ó seu moço inteligente,
faça favor de dizer:
Em cima daquele morro
quanto capim pode ter?
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— Ó seu moço inteligente,
faça favor de dizer:
Vinte e cinco par de gatos
quantas unhas podem ter?
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O tatu é homem pobre,
que não tem nada de seu,
tem uma casaca velha
que o defunto pai lhe deu.
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Passei o Paranaíba
navegando numa balsa.
Os pecados vêm da saia,
pois não podem vir da calça.
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Quando estou no meu destino,
sou cabra de gênio cru:
engulo brasa de fogo,
faço a vez de cururú.
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Quem quiser brincar comigo
venha pra o meio da areia:
Se for homem leva bala.
se for mulher leva peia.
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Quem se foi para tão longe,
e deixou seu passarinho,
quando vier não se anoje
de encontrar outro no ninho.
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Se encontrar outro no ninho,
hei de fazê-lo voar,
que eu não fui fazer meu ninho
pr’outro nele se deitar.
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Se o raio não queimou,
se o gado não comeu,
em cima daquele morro
tem o capim que nasceu.
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Sim senhor, destrincharei,
conforme me parecer:
Doze patacas e meia
quatro mil réis vem a ser.
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Uma coisa me admira
e me produz confusão:
– É ver o vapor correr
sem unha, sem pé, nem mão.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.
Algumas palavras das trovas foram convertidas para o português atual.

Isabel Furini (Cinema no Domingo)


Querido diário, eu sei que essa não era a roupa ideal para ir ao shopping, mas a camiseta cor salmão com o pequeno bordado no ombro esquerdo ficava melhor do que a verde. Fui até a sala, minha mãe e minha avó estavam sentadas nas poltronas, mas ao ver-me, imediatamente se levantaram. Minha avó se levantou tão rápido que perdeu um pouco o equilíbrio e se apoiou na antiga arca de madeira escura.

– É a labirintite de novo. – disse com tristeza.

– Filha, o que acha de um perfume? – perguntou mamãe enquanto chaveava a porta.

– Temos outra opção? – perguntei enquanto descíamos a escada da garagem do prédio, porque o elevador estava com problemas e só descia até o térreo. A garagem ficava no subsolo e era preciso descer pela escada.

– Hummm... – mamãe descia os degraus lentamente, ajudando minha avó.

– Talvez um livro de cozinha. Você sabe que Claudinha gosta de cozinhar.

– Além de livro de cozinha?

– Escutei Paola dizer que a presenteará com uma pulseira de prata. Podemos ver um anel ou brincos.

– O que acha? – perguntou girando a chave.

Eu ajudei a avó a entrar no carro. Ela se sentou, eu fechei a porta da frente, imediatamente abri a porta de trás e entrei.

– Claudinha tem muitos brincos, talvez o anel seja melhor.

O carro de minha mãe era o modelo de limpeza. Ela não deixava nem jogar um papelzinho no chão, não. Eu abri minha bolsa, peguei uma bala de chocolate e coloquei-a na boca. Minha mãe olhou com ar severo. E, como eu conheço esse olhar, coloquei o papel da bala na bolsa pensando em jogá-lo em algum cesto de lixo do shopping.

Minha mãe estacionou em uma vaga bem perto do elevador, na vaga de idosos. Eu acho que é por isso que ela sempre insiste em levar minha avó ao shopping e ao mercado! Entramos no shopping e a avó caminhou um pouco olhando vitrines, mas rapidamente reclamou porque já estava cansada.

Mamãe disse que ela poderia ficar sentada na praça de alimentação. Vó Ernestina pediu um suco de abacaxi. Mamãe foi comprar e eu fiquei com minha avó. Ela reclamava de dor nos joelhos. Quando minha mãe chegou com o suco, disse que eu e ela iríamos conseguir o presente.

No primeiro andar tinha uma loja muito chique. Fomos para lá. A vendedora gentilmente estendeu um pano preto sobre a vitrine de vidro e mostrou uma coleção de anéis maravilhosos. Eu estava ficando vesga de tanto olhar! Eu gostei do anel com uma cabeça de cobra com um pequeno olho de esmeralda, mas mamãe não gostou.

De repente, o celular dela tocou aquela musiquinha infantil (só minha mãe para gostar dessa musiquinha). Era a tia Paula. Ela disse que a tia Claudinha queria mesmo esse novo livro de cozinha que mostram na televisão. Esse, em que uma mulher de avental branco com um chapéu desses que usam os cozinheiros, mas tão grande que fica ridículo, grita: Compre o melhor livro de cozinha do Brasil!

Havíamos escolhido um anel lindo! Mas fazer o quê? A tia queria um livro de cozinha. Sábado ia festejar o seu 32º aniversário. Já estava envelhecendo. Eu lembro quando Claudinha era jovem, gostava de vestir roupa de cor turquesa e pintava os lábios de vermelho, mas agora ela tinha dois filhos e estava gordinha. O marido era representante comercial e viajava muito. Ela ficava sozinha com os filhos inventando pratos novos. Só gostava de cozinhar e de comer. Acho que gostava mais de comer do que de cozinhar. Ela estava obesa. “Eu nunca vou engordar. Viverei sempre como a tia Paola, com um olho na comida e outro na balança”.

Fomos até uma livraria do shopping. O livro estava exposto na gôndola, bem ao lado da porta com o cartaz: Mais vendidos. Minha mãe foi ao caixa e eu fiquei olhando os livros. Com o desejo de ser escritora, precisava saber das novidades literárias. Depois tivemos que fazer fila para pagar o estacionamento. Por fim, fomos até o carro. Minha mãe desligou o alarme e abriu a porta. O segurança do shopping se aproximou.

– A senhora estacionou na vaga de idosos!

Minha mãe abriu os olhos e a boca, tentou dizer algo, mas pareceu ficar sem palavras. Havíamos esquecido minha avó na praça de alimentação. Mamãe ficou no carro e eu corri buscá-la. O segurança estava esperando, pois não havia acreditado. Achava que estávamos fazendo teatro, mas quando me aproximei com minha avó no braço, ele foi muito gentil e abriu a porta do carro. O trânsito estava tranquilo, não pegamos nenhum engarrafamento. Aos domingos é mais fácil andar de carro pela cidade.

Mamãe abriu a porta de casa e minha avó pareceu recuperar a sua energia, correu à cozinha para fazer um bolo. Eu pensei em escrever alguma coisa, mas fiquei deitada no sofá marrom da sala assistindo a um programa na televisão. Bem legal!
*

Mais tarde, ligou minha tia Paola e minha mãe disse que iríamos ao cinema. Minha tia linda chegou. Minha avó, mamãe, tia Paola e eu fomos ao cinema. Entrei na sessão pensando em como é chato ver filmes para velhos quando o vi... Ele estava lá e com a família. João sentiu vergonha de estar com os pais, os avós e outros velhos, que não conheço. Coitado! Senti pena do João! Olhou-me quase com medo e levantou os ombros como dizendo: fazer o quê. Eu mordi os lábios para não rir e também levantei os ombros para que ele entendesse que estava na mesma situação. Ele sorriu só para mim. Não foi como na escola, que às vezes eu o imaginava sorrindo para mim, mas na realidade ele sorria para Renata. Ele sorriu. Sorriu para mim, só para mim. Seu sorriso era lindo!

Ao sair do cinema, fomos à praça de alimentação do shopping, João e sua família também foram. Eu nem conseguia comer a pizza, pois sabia que da mesa que ficava perto da escada rolante, ele estava olhando para meu lado. Olhando-me! Antes de dormir, vi que ele me adicionou no Facebook e estivemos falando. Foi ótimo! Ele disse que odiou o filme, eu também o achei chato. Pareceu que tínhamos os mesmos gostos. Isso foi um grande começo, e estou feliz, querido diário, muito feliz.
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Esse conto faz parte do livro "Garotas, Amores e Fantasias", publicado pela editora Instituto Memória de Curitiba/PR, em 2014.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 16

 

Rocha Pombo (O Gato Negro)


Desolado em minha sala, estava eu na hora das obsessões, o espírito muito para além, pela região dos problemas, bem longe do mundo e bem distante do bulício humano. Todo o movimento, todo o rumor cessara e a vida imergira na profundeza do seu sono. Quanto a coisas da terra, só me apercebo de que me vem lá de fora a impressão da alta noite, calma e solitária. A rua está deserta e numa grande mudez solene, a destacar-se no meu espírito como em contraste com a vertigem de poucas horas passadas.

Ainda assim, são fortes as emoções que me sugere a vasta solidão da noite. E é por isso que não tenho a coragem de maldizer o silêncio de necrópole que me chama lá das alturas em que anda meu espírito e que logo me absorve e me vence. Não posso imprecar... porque sinto que amo aquela escuridão.

Amiga suave e carinhosa das almas – noite sonhadora e amargurada! – tu és a imagem do mundo em que vive meu espírito. Pois que tu, noite amargurada, és o mistério que envolve a vida e tens no teu seio imenso, bem sensíveis, todas as dúvidas do universo moral. Tu és como o caos informe e indefinido de que vai sair daqui a instantes o prodígio da Criação, restituída à nossa ansiedade e ao nosso espanto.

Bendita a noite que nos faz novo o universo! Bendita a noite que me fecha de todo a alma no insondável escuro, onde erra meu espírito, à busca de signos indecisos e como se estivesse à espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa atitude e numa pompa mística de cerimônia cultual. Há pouco em torno de mim havia tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu inquiria o destino numa sagrada ânsia de viver. E é só agora que meu coração se apercebe de que está no mundo onde se criou e em cujos paramos silenciosos tem vivido – mundo feito de sombras, de luares inefáveis, de horizontes sem limites como as voragens; mundo de seres intangíveis, de existências sem formas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da cor indefinida; mundo da névoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das almas a vagar ansiosos neste oceano do tempo...

A cidade dorme, exausta das azáfamas e só se ouve, de momento a momento, muito por longe a perder-se na distancia, o ladrar de cães como aviso de sentinelas que a vida postasse neste amplo solar simbólico do além, para impedir que seja tranquilo o sono dos que dormem... Ouve-se ainda o cantar de galos, cantar que anuncia ressurreições, que alarma todo o instinto heroico, mesmo nas criaturas vencidas... Dir-se-ia que no meio daquele sono trabalha uma dolorosa obsessão de vigília... e que aqueles ladrares e aqueles cantos destacam ainda mais o silêncio temeroso que impera sobre as almas como angustia desconhecida.

E imagino então que estou no meio de uma grande noite polar... Em torno de mim há uma natureza morta, ruínas desoladas de um mundo que passou, desertos infinitos eternamente sepultados na escuridão e na erma quietude que ficou de tudo que foi...

Mas é naquelas mesmas estâncias solitárias que a alma readquire o vigor antigo, e em vez de sentir a morte e o nada, vou procurando na imensidade gelada os vestígios da vida.

E como seria bela e grandiosa aquela noite sem fim! Que mistérios não desvendaria eu na mudez daquele escuro! Que problemas, que dramas, que heroísmos estranhos me segredaria aquele silêncio de noite polar!

Eu ia absorto nas profundezas do meu pensamento, quando sobre o peitoril da janela aberta ergue-se o vulto sinistro de um gato negro, enorme, imóvel, a fitar-me, como um duende vindo do mistério. Tive ímpetos de fugir, de buscar alguém que me falasse, alguma voz humana que me restituísse a minha consciência. Depois, estaquei. Veio-me à lembrança o corvo do poeta – a ave da desilusão, ave que sabe de todas as línguas apenas aquelas duas palavras que gelam as almas: – o nunca mais! apavorante e desesperador.

– Mas tu, gato negro, tu andas na superstição das pobres criaturas envolto sempre na ideia dos demônios. Dos animais que convivem com os homens, és tu aquele que mais os espanta, porque tu amas o escuro e o silêncio, tu és o animal da noite, e como animal da noite és o emblema do pecado e do crime. Se as almas piedosas te vissem pousar esse vulto cor da treva no alto de um sepulcro – as almas obumbradas (sombrias) se afastariam, porque tu não te cevas de cadáveres como as hienas, mas de almas como o remorso.

Quem sabe se tu não és mesmo a encarnação de gênios maus, de espíritos malditos, de agouros errantes, e se não andas de mundo em mundo como exilado impenitente, a perseguir almas, na insânia do teu castigo... E se esse fulgor que tens nos olhos é ainda um resto do antigo brilho que te ficou da bem-aventurança perdida – tu és mais do que as aves, porque mais do que as aves já amaste e hoje odeias mais do que as aves.

Vem, pois, dizer-me o que sabes da vida. Não te inquiro sobre as Leonoras que se foram; nem desejo saber o que as almas amam no céu: diz-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrível do que a terra. Diz-me se lá também há crimes e se os crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Se os entes lá também detestam Deus e aborrecem os homens... Se tanto como aqui a perfídia, a soberba e a impiedade estão no seu império... Diz-me se as almas lá vivem também de perseguir as almas...

Imóvel, o monstro parecia ruminar a minha aflição.

– Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa cor escondem alguma coisa da cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me se lá nas entranhas do Orco há também Neros e Denys; se há juízes que condenam inocentes e absolvem culpados; se há lá consciências capazes de criar Lesurques e Dreifus; se há lá Marats e Herbets e se a liberdade é horrenda como os feros Moloques daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do inferno, se lá os bons também padecem e se o premio da virtude é também lá o martírio eterno...

Uma palavra tua é bastante, animal sinistro, êxul da danação. Conta-me se os demônios do inferno são piores que os demônios da terra... Se há lá maldade que chegue a profanar o sagrado e abusar da inocência... Diz-me se há lá monstros que sem tremer vão até... envenenar a esmola com que matam a fome... Ou então, se perdeste a lembrança dos horrores do inferno ao ver os horrores da terra – fala-me ao menos por gestos e diz-me como são os castigos do inferno... Diz-me se lá também se conhece um castigo chamado sonho... este castigo que põe as almas, sob o silêncio das noites, num grande estatelamento em face do céu, sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por que suspiram...

Ante a imobilidade do bruto, fico mais aterrado e cada vez mais exausto. Um medo supersticioso começa a invadir-me o coração e sem me aperceber me vou erguendo. O animal, como se houvesse crescido, levanta mais a cabeça e me fita firme e quase hostil. Num supremo esforço, grito para o vulto, cuja silhueta se destaca enorme e monstruosa à luz do gás da rua:

– Mas então, se no teu mundo não é como aqui; se lá não se extingue nas almas a doce e triste piedade, diz-me ao menos se lá também se ama e se adora...

Um longo miau formidável me faz tremer e o bruto, dum salto, desaparece no infinito da noite.

Fonte:
Rocha Pombo. Contos e pontos. Publicado em 1911.

Trovas Populares Brasileiras – 1


Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


A cantiga que se canta,
não se torna a recantar;
O amor que se despreza
não se torna a procurar.
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As cantigas que eu sabia,
todas me hão esquecido.
A que meu bem me ensinou
nunca me sai do sentido.
= = = = = = = = =

A viola sem a prima,
a prima sem o bordão,
parece mãe sem a filha,
a irmã sem seu irmão.
= = = = = = = = =

Cantemos, meu bem, cantemos,
cantemos, e bem juntinhos;
Os anjos cantam nos céus
nós também somos anjinhos.
= = = = = = = = =

Dizei-me o que significa,
o que vem significar:
Caminhar para tão longe,
cantando pra não chorar.
= = = = = = = = =

Eu hei de morrer cantando,
pois que chorando nasci,
para ver se recupero
o que chorando perdi.
= = = = = = = = =

— Eu não canto desafio,
nem que me paguem a vintém,
que não quero andar pegado
na abertura de ninguém.
= = = = = = = = =

Eu não canto por cantar,
nem por ser bom cantador,
canto por matar saudades
que tenho do meu amor.
= = = = = = = = =

Eu tenho um saco de versos
dependurado no oitão;
Se duvidares de mim,
eu dou co’o saco no chão.
= = = = = = = = =

Fui andando pela rua,
fui cantando o meu dandão;
As meninas 'tão dizendo:
ele é feio, mas é "bão".
= = = = = = = = =

Minha viola de pinho
pra tudo tu tens de dar:
Uns cantam pra divertir,
os outros pra não chorar.
= = = = = = = = =

Minha viola mais canta,
quanto mais sofro na vida.
Sou como cana no engenho:
Mais doce, mais espremida.
= = = = = = = = =

Não sei se ria ou se chore,
não sei que faça de mim:
Eu cantando dobro penas,
chorando penas sem fim.
= = = = = = = = =

No lugar aonde eu canto
todos tiram-me o chapéu;
Cada repente que eu tiro
corre uma estrela no céu.
= = = = = = = = =

O errar numa cantiga
não se deve admirar,
que o melhor atirador
erra um pássaro no ar.
= = = = = = = = =

Quando eu pego por aqui,
e pego por acolá,
sou mesmo que dor de dente,
quando pega a "pinicá".
= = = = = = = = =

Quem canta seu mal espanta,
quem chora seu mal aumenta.
Eu canto pra disfarçar
este mal que me atormenta.
= = = = = = = = =

Quem me vê andar cantando,
pensará com bem razão
Que eu ando alegre da vida ...
Sabe Deus, meu coração!
= = = = = = = = =

Quem me vê andar cantando
pensará que estou contente,
eu canto pra disfarçar,
dão dar gosto a muita gente.
= = = = = = = = =

Quem quiser cantar comigo
sente na ponta do banco,
que eu conheço gado bravo
de noite só pelo arranco.
= = = = = = = = =

Sou cantador afamado:
Se toco a prima e o bordão,
atrás de mim vou levando
a gente deste sertão.
= = = = = = = = =

Viola tu também amas,
também tu sentes paixão.
O teu corpo de madeira
tem forma de coração.
= = = = = = = = =

— Você diz que sabe muito,
pois me destrinche esta conta:
Vinte cinco guardanapos,
dois vinténs em cada ponta.
= = = = = = = = =

Você me mandou cantar,
pensando que eu não sabia,
pois eu sou como cigarra,
quando canta, leva o dia.
= = = = = = = = =

Vou começar os meus versos
com voz alegre cantando
pr’amor de que os circunstantes
não passem a noite chorando.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Irmãos Grimm (O Irmão Folgazão)


Houve, em tempos muito remotos, uma grande guerra, finda a qual muitos soldados foram licenciados. Entre eles havia um, chamado Folgazão, por causa do seu permanente bom humor; na hora da baixa, recebeu apenas um pão de munição e quatro vinténs, e com isso foi andando.

À beira da estrada, estava São Pedro sentado, disfarçado em pobre mendigo e, quando Folgazão se aproximou, pediu-lhe esmola. Ele, então, respondeu: - Meu caro mendigo, que posso dar-te? Sou um pobre soldado que acaba de ter baixa e tenho como única fortuna este pão e quatro vinténs. Não será preciso muito para lhe ver o fim e, então, terei de mendigar como tu. Contudo, quero dar-te alguma coisa.

Partiu o pão em quatro pedaços, deu um ao apóstolo e mais um vintém. São Pedro agradeceu muito e foi andando; postou-se um pouco mais adiante, disfarçado em outro mendigo e, quando o soldado ia passando por ele, tornou a pedir-lhe uma esmola.

Folgazão respondeu como antes e deu-lhe outro pedaço de pão e mais um outro vintém. São Pedro agradeceu e foi postar-se mais adiante, ainda sob forma de um pobre mendigo, e pediu-lhe uma esmola. Folgazão deu-lhe o terceiro pedaço de pão com outro vintém. São Pedro agradeceu e Folgazão seguiu o caminho; nada mais possuia do que um pedaço de pão e um único vintém.

Entrou numa hospedaria, pediu um copo de cerveja e comeu o pão.

Depois, pôs-se novamente a caminho e eis que São Pedro veio-lhe ao encontro, sob o aspecto de um soldado licenciado, dizendo-lhe: - Bom dia, camarada; não poderias dar-me um pedaço de pão e um vintém para tomar um gole de cerveja?

- Onde irei buscá-los? - respondeu Folgazão - recebi a baixa e além dela nada mais que um pão e quatro vinténs. Encontrei pelo caminho três mendigos, a cada um deles dei um quarto de pão e um vintém. O último quarto comi-o agora na hospedaria e com o último vintém tomei um copo de cerveja. Agora estou a nenhum e se tu, também, não tens nada, poderemos pedir esmolas juntos.

- Não! - respondeu São Pedro - Ainda não estou reduzido a isso; eu entendo alguma coisa de medicina e pretendo assim ganhar para o meu sustento.

- Está certo! - disse Folgazão - Eu não entendo nada disso, portanto, irei mendigar sozinho.

- Ora, vem comigo! - disse São Pedro. - Poderás talvez ajudar-me; se eu ganhar alguma coisa, ofereço- te a metade.

- Ótimo! - disse Folgazão, e juntos saíram andando.

Logo, na primeira aldeia que atravessaram, passaram pela casa de camponeses onde se ouviam choros e lamentos; entraram e viram o dono da casa deitado na cama, agonizante; a mulher, e toda a família, achava-se em volta dele, chorando e gritando.

- Cessai de gritar e chorar! - disse São Pedro - Vou curar esse homem.

Tirou do bolso um frasco de unguento e, num instante, curou o doente, o qual se levantou vivo e são como um peixe. Marido e mulher, no auge da alegria, não sabiam como agradecer.

- Como poderemos recompensar-vos? Que poderemos dar-vos?

São Pedro, porém, não queria aceitar nada e quanto mais insistiam mais ele recusava. Folgazão deu-lhe uma cotovelada, dizendo baixinho: - Aceita alguma coisa; bem sabes que estamos necessitando.

Por fim, a mulher do camponês trouxe um lindo cordeirinho pedindo a São Pedro que o aceitasse, mas ele não queria. Então o amigo Folgazão dando-lhe uma cutucada nas costelas, disse-lhe: - Pois aceita, seu bobo, nós bem que precisamos!

Então São Pedro disse: - Pois bem, aceitarei o cordeirinho, mas eu não o carregarei. Se quiseres, tens que carregá-lo tu.

- Não seja essa a dúvida, - respondeu Folgazão - eu me incumbo disso.

Pôs o cordeiro no ombro e continuaram o caminho, chegando a uma floresta; o cordeiro começava a pesar e Folgazão, que já estava sentindo fome, disse ao companheiro:

- Olha que lugar convidativo. Aqui podemos assar o cordeiro e comê-lo.

- Está bem, - disse São Pedro - mas não quero cuidar da cozinha, se queres cozinhar, aqui tens um caldeirão, enquanto isso vou passear um pouco até ficar tudo pronto. Mas não podes começar a comer antes de eu voltar; estarei de volta em tempo.

- Não tenhas medo, vai! - disse o amigo Folgazão - Sei lidar na cozinha, prepararei tudo.

São Pedro afastou-se e Folgazão matou o cordeiro, acendeu o fogo, pôs a carne no caldeirão e deixou ferver. Já estava pronta e o apóstolo nada de aparecer; então o amigo Folgazão retirou o cordeiro da panela, trinchou-o e encontrou o coração.

- Este é o melhor bocado! - disse, e provou-o. De fato, era tão gostoso que acabou por o comer todo.

Finalmente chegou São Pedro, dizendo: - Podes comer todo o cordeiro, eu só quero o coração. Dá-me.

O amigo Folgazão pegou o garfo e a faca e fingiu procurar atentamente no meio da carne, sem conseguir encontrar o coração. Por fim disse, meio sem jeito: - Não o encontro!

- Onde estará? - perguntou o apóstolo.

- Não sei! - respondeu Folgazão - mas veja, que tolos somos os dois! Aqui a procurar o coração do cordeiro e não nos lembramos de que o cordeiro não tem coração.

- Oh! - disse São Pedro - que novidade! Todos os animais têm um coração. Por quê o cordeiro não tem?

- Não tem, estou certo disso. O cordeiro não tem coração. Reflete bem e verás como é certo.

- Bem, bem, não falemos mais! - disse São Pedro - desde que não tem coração, não quero mais nada, podes comer o cordeiro todo.

- O que não puder comer, guardarei na mochila. - disse Folgazão.

Comeu metade do cordeiro e o resto guardou na mochila.

Depois continuaram o caminho e São Pedro fez com que uma torrente de água lhes atravessasse o caminho e eles deviam transpô-la.

- Podemos atravessar a nado. - disse São Pedro - Vai na frente.

- Não! - respondeu o amigo Folgazão - Vai tu primeiro. - E pensava: "Se ele for para o fundo, eu ficarei por aqui."

São Pedro atravessou e a água só lhe chegava aos joelhos. Então o amigo Folgazão dispôs-se, também, a atravessar, mas a água subiu e chegou-lhe ao pescoço.

- Meu irmão, socorro! - gritou ele.

São Pedro respondeu-lhe: - Queres confessar que comeste o coração do cordeiro?

- Não, não o comi! - gritou o amigo.

Então a água cresceu mais e chegou-lhe até à boca.

- Socorro, irmão, socorro! - gritou o soldado.

São Pedro tornou u dizer: - Confessas ter comido o coração do cordeiro?

- Não! - respondeu ele - Não comi.

Apesar disso São Pedro não permitiu que ele se afogasse; fez descer a água e ajudou-o a passar para a outra margem.

Continuaram o caminho e chegaram a um reino, onde souberam que a filha do rei estava à morte.

- Olá, irmão! - disse o soldado a São Pedro - Que bela ocasião para nós; se a curarmos, ficaremos bem para o resto da vida!

E como São Pedro não se apressasse, continuou: - Vamos, irmão do coração, mexe as pernas e corramos um pouco para chegar a tempo e salvar a princesa.

Entretanto, por mais que Folgazão o incitasse, São Pedro caminhava sempre mais devagar, até que por fim ouviram dizer que a princesa havia falecido.

- Aí está! - disso o amigo Folgazão, - Tudo por culpa da tua indolência, viste?

- Acalma-te! - respondeu São Pedro - Eu posso fazer algo mais do que curar os doentes; posso também ressuscitar os mortos.

- Bem, se é assim, tanto melhor. - disse Folgazão - Se isso conseguires, o rei nos dará a metade do reino.

Chegaram ao castelo, onde toda a corte estava de luto fechado. São Pedro anunciou ao rei que faria ressuscitar a princesa. Levaram-no para junto dela e ele disse:

- Trazei-me um caldeirão cheio de água.

Quando lho trouxeram, mandou sair todo mundo. Somente Folgazão teve licença de ficar com ele. Aí retalhou todos os membros da defunta, colocou-os dentro da água, acendeu um bom fogo sob o caldeirão e deixou-os ferver. Quando a carne se desprendeu toda, pegou os ossos brancos colocou-os sobre a mesa dispondo-os um perto do outro, na sua ordem natural. Então disse por três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, morta!

Na terceira vez, ela se levantou, viva, alegre e bonita como nunca. O rei, louco de alegria, disse a São Pedro:

- Pede-me a recompensa que desejas, mesmo que seja a metade do meu reino, eu a darei de boa vontade.

Mas São Pedro respondeu:

- Não quero nada.

- Oh, que imbecil! - disse o amigo Folgazão, cutucando-lhe as costas. - Não sejas tão cretino; se tu não queres nada, eu necessito de alguma coisa!

Mas São Pedro manteve-se firme na sua recusa. Entretanto, notando o rei que o outro não partilhava dos sentimentos do companheiro, mandou o tesoureiro encher-lhe a mochila de moedas de ouro.

Depois disso, continuaram a viagem e, tendo chegado a uma floresta, São Pedro disse:

- Agora vamos repartir esse ouro.

- Sim. - respondeu o outro - Vamos reparti-lo.

São Pedro repartiu as moedas em três partes iguais, enquanto isso Folgazão ia pensando: "Quem sabe lá que ideia se lhe meteu de novo na cabeça! Divide em três partes e somos apenas dois."

Mas São Pedro exclamou:

- Reparti com equidade: uma parte para mim, outra para ti e a terceira para aquele que comeu o coração do cordeirinho.

- Oh, fui eu mesmo! - respondeu Folgazão, e mais que depressa meteu o ouro no bolso. - Podes-me acreditar, comi-o eu!

- É impossível! - retrucou São Pedro - Um cordeirinho não tem coração!

- Ora, ora, meu irmão, que ideia! Um cordeiro tem um coração tal como os outros animais; por quê só ele não deveria tê-lo?

- Está bem, não discutamos mais. - disse São Pedro - Fica com todo o dinheiro, mas eu não continuarei em tua companhia, vou seguir o meu caminho sozinho.

- Como queiras, meu irmão. - respondeu o soldado - Adeus e passes muito bem.

São Pedro seguiu por uma estrada oposta e Folgazão ia pensando: "E' melhor que se vá; no fim de contas ele é um peregrino muito singular!"

Agora possuía dinheiro à vontade, mas não sabia empregá-lo com critério. Gastou, deu, e, por fim, depois de pouco tempo, estava novamente sem um níquel. Nessas condições, chegou a um país onde ouviu dizer que a filha do rei havia morrido.

- Olá! - disse - Isto começa bem. Esta eu mesmo ressuscitarei e far-me-ei pagar melhor do que a outra.

Apresentou-se ao rei, oferecendo-se para ressuscitar-lhe a filha. O rei ouvira contar que um soldado aposentado andava ressuscitando os defuntos e julgou que fosse o amigo Folgazão; mas, como não tinha muita confiança nele, primeiro quis saber a opinião de seus conselheiros, os quais responderam que tentasse, pois a filha estava mesmo morta.

Então, o amigo Folgazão mandou que se retirassem todas as pessoas. Cortou os membros da princesa colocando-os dentro do caldeirão, que pôs para ferver, exatamente como vira São Pedro fazer. A água começou a ferver e a carne se desprendeu completamente dos ossos; pegou neles mas não sabia como arranjá-los e arrumou-os sobre a mesa, tudo ao contrário e misturado. Feito isso, gritou por três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, ó morta!

Repetiu essas palavras três vezes, mas os ossos não se mexiam. Tornou a repeti-las mais três vezes, mas sem melhor resultado. Então, raivoso, bateu os pés e exclamou:

- Levanta-te, diabo de uma princesa! Levanta-te, senão pobre de ti!

Mal acabava de pronunciar essas palavras, eis que São Pedro entrou pela janela, com o seu disfarce de soldado aposentado, e disse:

- Que estás fazendo aí, mau ímpio? Como pretendes ressuscitar a defunta se embaralhaste todos os ossos?

- Meu irmão, fiz o melhor que pude! - respondeu Folgazão.

- Bem, por esta vez ainda te vou tirar de apuros. Mas lembra-te disto: se tentares outra vez fazer milagres, as coisas te correrão mal. Também não penses em exigir ou aceitar qualquer recompensa do rei.

São Pedro dispôs os ossos na sua ordem natural e disse três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade levanta-te, ó morta!

A princesa levantou-se tão sadia e formosa como antes. Em seguida, o apóstolo tornou a sair pela janela, como havia entrado. Folgazão estava bem satisfeito por lhe ter corrido tudo bem, mas não se conformava em não receber nada: "Gostaria de saber o que se passa na sua cachola! - pensava consigo mesmo - O que ele dá com a mão direita tira com a esquerda. Não vejo bom senso nisso!"

Mas, indiretamente, por meio de alusões hábeis arranjou-se de modo a fazer com que o rei mandasse encher- lhe a mochila de ouro, depois foi-se embora.

Quando ia saindo, encontrou São Pedro na porta da cidade, que lhe disse:

- Vês, que espécie do homem tu és! Não te ordenei que não exigisses e não aceitasses nada? E eis-te com a mochila cheia de ouro!

- Que culpa tenho eu, - respondeu Folgazão - se me põem dentro à força?

- Previno-te que não tentes meter-te nessas coisas pela segunda vez, senão pobre de ti!

- Olá, irmão, não tenhas receio! Agora já tenho o ouro, para que hei de amolar-me a lavar ossos de defunto?

- Sim, sim! - disse São Pedro - O ouro não vai durar muito! Mas, para que não tornes a invadir searas alheias, darei à tua mochila uma virtude. Tudo quanto desejares ter, tê-lo-ás. Adeus, não me verás nunca mais.

- Adeus! disse Folgazão, enquanto pensava: "Estou contente que se vá esse tipo original! Naturalmente não te correrei atrás!" E nem sequer voltou a pensar no poder maravilhoso da mochila.

Foi andando de um lado para outro, perambulando e esbanjando alegremente o dinheiro como fizera da outra vez. Quando lhe restaram apenas quatro vinténs, passou por uma hospedaria e pensou: ''Livremo-nos deste dinheiro!" E mandou que lhe servissem três vinténs de vinho e um vintém de pão.

Estava lá sentado a beber e nisso chegou-lhe ao nariz um delicioso cheiro de pato assado. Olha para cá, olha para lá, viu que o hospedeiro tinha dois belos patos no forno. De repente, lembrou-se do que o seu camarada lhe dissera: que a mochila tinha a virtude de atrair para dentro dela tudo quanto ele desejasse. "Experimentemos com os patos!" E, saindo fora da hospedaria, disse:

- Quero na minha mochila os dois patos assados que estão no forno.

Acabou de dizer isso e desafivelou a mochila, e dentro dela viu os dois patos assados.

- Ah, assim está certo. - disse - Agora estou feito na vida.

Foi para o campo e lá tirou os patos para comer. Estava-os saboreando com grande prazer quando se aproximaram dois operários e ficaram a olhar cobiçosamente o pato, que ainda não fora cortado. O amigo Folgazão pensou: "Um chega bem para ti." Então chamou os dois operários.

- Vinde, meus amigos, aqui tendes este pato, comei-o à minha saúde.

Os operários agradeceram, dirigiram-se à hospedaria, pediram uma garrafa de vinho o um pão, depois desembrulharam o pato e puseram-se a comer. A hospedeira, que estava olhando para eles, disse ao marido:

- Esses dois operários estão comendo pato assado. Dá uma olhadela para ver se não é um dos nossos que estavam dentro do forno!

O hospedeiro foi depressa e viu que o forno estava vazio.

- Ah, raça de ladrões! Quereis comer patos à custa dos outros! Aqui o dinheiro, vamos, senão vos dou uma lavada com a vara de marmelo!

Os pobres responderam:

- Nós não somos ladrões; foi um soldado aposentado quem nos presenteou com esse pato. Ei-lo, lá fora no campo!

- Não me venham com histórias. O soldado esteve aqui mas saiu como qualquer homem honesto, eu reparei nele. Vós é que sois os ladrões, portanto deveis pagar-me.

Mas como não podiam pagar, o hospedeiro tocou-os para fora a pauladas.

Folgazão continuou o caminho e chegou a um lugar onde havia um magnífico castelo e, não muito longe, uma péssima hospedaria. Entrou e pediu um canto para dormir, o hospedeiro desculpou-se dizendo:

- Não há mais lugar, a hospedaria está toda cheia de hóspedes importantes.

- Admira-me que tais hóspedes venham para aqui em vez de irem para aquele esplêndido castelo!

- Realmente, - disse o hospedeiro - mas ninguém se arrisca a ir ao castelo, todos os que o tentaram, não saíram com vida de lá.

- Bem, - disse Folgazão - se outros tentaram a aventura, eu também quero tentar.

- Deixai disso! - replicou o hospedeiro - Arriscai a vida.

- Não será a primeira vez! - respondeu Folgazão. - Dai-me a chave e bastante de que comer e beber.

O hospedeiro entregou-lhe a chave e bastante comida e bebida. Folgazão dirigiu-se ao castelo, ceou alegremente e, quando ficou com sono, deitou-se no chão, pois não havia nem mesmo uma cama. Adormeceu logo, mas durante a noite foi despertado por um ruído infernal, e quando abriu os olhos viu na sua frente nove demônios que, fazendo uma roda, dançavam em volta dele. Então disse:

- Pulai quanto quiserdes, contanto que ninguém se aproxime de mim.

Os diabos, porém, aproximavam-se cada vez mais e com os pés horríveis quase lhe pisavam no rosto.

- Calma, calma, espíritos diabólicos! - disse Folgazão.

Mas os demônios comportavam-se cada vez pior. Então o amigo Folgazão zangou-se e gritou:

- Esperem, que vou acalmar-vos já!

Agarrou uma cadeira pelos pés e pôs-se a desancá-los. Mas nove demônios contra um soldado eram demais; quando ele malhava os que lhe estavam na frente, os outros que estavam atrás puxaram-no pelos cabelos e o arrastaram medonhamente pelo chão.

- Canalhas, diabos imundos. - gritou ele - Isso já é demais! Vamos, saltem todos para dentro da minha mochila.

Num abrir e fechar de olhos saltaram todos para dentro da mochila e ele, mais que depressa, afivelou-a bem e atirou-a para um canto. Fez-se logo profundo silêncio e Folgazão deitou-se novamente e dormiu até bem tarde. Então chegaram o hospedeiro e o fidalgo a quem pertencia o castelo a fim de saber o que havia acontecido. Vendo-o muito alegre e bem disposto, ficaram todos admirados e perguntaram:

- Como, os fantasmas não te fizeram nada?

- Que esperança! - respondeu Folgazão. - Prendi os nove na minha mochila. Podeis voltar tranquilamente para o vosso castelo. De hoje em diante não haverão mais fantasmas!

O fidalgo agradeceu muito, recompensou-o ricamente e pediu-lhe que ficasse ao seu serviço. Seria bem tratado e cuidado pelo resto da vida.

- Não! - disse Folgazão - estou muito habituado a correr mundo, prefiro continuar o meu caminho.

Despediu-se de todos e foi-se embora. Entrou numa forja, pôs a mochila sobre a bigorna e mandou o ferreiro e seus ajudantes malharem com toda força em cima dela. Os homens malharam com todo o gosto, fazendo cair seus enormes malhos sobre os demônios que urravam espantosamente. Quando Folgazão abriu a mochila, oito deles faziam mortos; o nono, porém, que se havia abrigado nas dobras do couro, estava vivo e saltou para fora, fugindo como um raio para o inferno.

Folgazão perambulou ainda muito tempo e teve tantas aventuras que seria longo demais contar. Por fim, ficou velho e pensou na morte. Então foi ter com um eremita, conhecido por todos como um santo varão, e lhe disse:

- Estou cansado de correr mundo. Agora quero cuidar de entrar no Reino do Céu.

O eremita respondeu-lhe:

- Meu filho, há dois caminhos: um é largo e agradável e conduz ao inferno; o outro é estreito e árduo, esse conduz ao paraíso.

"Bem louco seria se escolhesse o caminho estreito e áspero," - disse consigo mesmo o amigo Folgazão; e encaminhou-se pelo mais largo e agradável e assim foi ter a uma grande porta escura, que era a do Inferno. Bateu, e o porteiro foi ver quem era. Mas, dando com a cara do amigo Folgazão, assustou-se, pois era o nono diabo, aquele que conseguira escapar com alguns ferimentos das marteladas do ferreiro. Portanto, ao vê-lo aí, o dono da mochila, o diabo mais que depressa aferrolhou a porta e foi correndo dizer ao chefe:

- Aí fora está um sujeito que traz uma mochila nas costas e deseja entrar aqui. Por favor, não o deixeis entrar, senão ele obrigará todo o inferno a meter-se dentro daquela mochila. Estive uma vez lá dentro e ele mandou malhar terrivelmente, quase me matando.

Diante disso, os demônios disseram de dentro a Folgazão que se fosse embora. Ali ele não podia entrar.

"Se não me querem aqui, - resmungou ele, - irei ver se me aceitam no paraíso; em alguma parte tenho de me abrigar!"

Portanto, voltou para trás e andou, andou, até chegar à porta do paraíso. Lá bateu. O porteiro nesse dia era São Pedro; Folgazão logo o reconheceu e pensou: "Aqui pelo menos encontro um velho amigo, certamente terei mais sorte." Mas São Pedro foi dizendo:

- Suponho que desejas entrar no paraíso!

- Deixa-me entrar, meu irmão, pois tenho que alojar-me em algum lugar. Se me tivessem aceitado no Inferno, não viria amolar-te aqui.

- Não! - disse São Pedro - Tu não podes entrar.

- Então, se não queres deixar-me entrar, toma a mochila. Não quero nada de ti!

- Está bem, dá aqui! - respondeu São Pedro.

Folgazão fez passar a mochila através das grades, São Pedro pegou-a e pendurou-a perto da sua cadeira. Então o amigo Folgazão disse:

- Desejo entrar dentro da mochila.

E num relâmpago, lá estava. Assim entrou no paraíso e São Pedro não teve outra solução senão ficar com ele.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Campo de Ourique


Em Campo de Ourique já quase ninguém se recorda dos velhos moinhos e do pão que se distribuía pela cidade. Agora, apesar de cosmopolita, o bairro não abdica das suas avenidas frondosas e do Jardim da Parada.

O bairro que fornecia farinha e pão à grande cidade. Campo de Ourique era terra de moinhos e padeiros. Uma espécie de Campolide onde o trigo imperava. Está, essencialmente, dividido em duas zonas distintas: uma mais ligada a Santa Isabel, a outra chegada ao Santo Condestável. A primeira, a mais antiga, desenvolve-se a partir de 1755, ano do grande terremoto. Depois da catástrofe, a população concentrava-se nos locais menos atingidos. A segunda, tinha uma aparência moderna. Substituiu os olivais e as quintas que ali existiam. Apresentava traçados geométricos que remontam ao século XVll e às primeiras décadas dos anos 90.

A Arte Nova, corrente artística que se enraizou nas tendências criativas dos artistas do século XlX, deixou vestígios um pouco por todo o bairro. Já na segunda metade do século XlX, o bairro sentiu necessidade de projetar novas ruas. A razão foi a construção do Cemitério do Prazeres. Campo de Ourique passou a ser conhecido por “Bairro Latino”. A designação deve-se aos inúmeros e talentosos artistas que ali residiam. Vivia-se um ambiente de boêmia e intelectualidade.

Escritores, artistas e estudantes, completavam o cenário nos cafés e cervejarias da zona. Entre eles, Fernando Pessoa. A casa do artista é hoje um centro de cultura. Campo de Ourique passa a ser apelidada de liberal e republicana. O primeiro título justifica-se pela quantidade de ruas que homenageiam personagens do liberalismo, como sejam, Ferreira Borges ou Almeida e Sousa. O segundo, pela presença dos conspiradores de 1910, algures entre quatro paredes da Rua Saraiva de Carvalho.

A Sociedade Filarmônica Alunos de Apolo surge da união entre cabos de polícia e civis a 26 de Maio de 1872. O projeto inicial dos Cabos de Segurança Pública da Freguesia de Santa Isabel pretendia formar uma banda filarmônica. Tinha a intenção de chamar-lhe “União e Capricho”. Depois aceitaram a ajuda de alguns membros da população, e concluíram que esta nova estrutura não poderia funcionar, tal era a divergência de opiniões entre os dois grupos. A “União e Capricho” acabou por desaparecer e assim surgiu a SFAA – Sociedade Filarmônica Alunos de Apolo. Atualmente, a principal dinâmica do grupo são as danças de salão, que criou polos da modalidade no Porto, Santarém e Setúbal, formalizando a Federação Portuguesa de Dança Desportiva.
 
MARCHA DE CAMPO DE OURIQUE
(Alfacinha)

Letra de Constantino Menino
Música de Mário Gualdino


A marcha cá vai
Alegre contente
Por esta Lisboa ao luar
E Lisboa sai
Feliz sorridente
Pra ver a marcha passar.
É Campo de Ourique
Meu bairro aqui vai
Calados; não fiquem não
Venham para a rua
A noite está bela
Venham ver Lisboa
E cantem com ela.
(Refrão)

A marcha que passa
É Campo de Ourique
Com arte e com graça
Cá vai no despique
A canção qu’entoa
É alma é vida
Da nossa Lisboa
É minha é tua
Pois anda cantar
Olha como a lua
Está, hoje a brilhar
Vai lá meu bairro
Pra Rainha Santa
Te abençoar.

A noite é de festa
Por Santo Antoninho
Devoto e casamenteiro
Lisboa modesta
Enfeita o arquivo
E marcha com ar brejeiro
É Campo de Ourique
Meu bairro é pessoa
Na forma mais popular
Olhem que o meu bairro
É bem alfacinha
Reza a Santo António
E à Santa Rainha.
(Refrão) “


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

domingo, 20 de novembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 9: Feliz Halloween

 

Eduardo Affonso (Direito e Avesso)

O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.
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 (publicado originalmente em 11 de abril de 2018)

Raul de Leoni (Antologia Poética) 2


FORÇA MALDITA


Eras fraco e feliz, sem meditar,
E na tua consciência vaga e obscura,
A vida, sob um olhar de iluminura,
Era um conto de fadas para o olhar.

Um dia, um rude e pérfido avatar
Vestiu-se de uma força ingrata e impura
E sonhaste a ciclópica aventura
De o espírito das coisas penetrar.

Mas, ah! homem ingênuo, desde quando
Deste o primeiro passo da escalada,
Foste, como um tristíssimo Sansão,

Na fúria da tua obra desgraçada,
Estremecendo, aluindo, derrubando
As colunas do Templo da Ilusão!…
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IMAGINAÇÃO

Scherazade do espírito, que rendas
Num fio ideal de verossimilhança
O Símbolo e a Ilusão, únicas prendas
Que nos vieram dos deuses como herança!

Transformando em alhambras nossas tendas,
Na tua voz, o nosso olhar alcança
As Mil e uma Noites de Esperança
E a esfera azul dos sonhos e das lendas!

Quando o despeito da Realidade
Nos fere, és quem de novo nos persuade,
Com teu consolo que nem sempre engana.

Porque, na tua esplêndida eloquência,
És o sexto sentido da Existência
E a memória divina da alma humana!
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INSTINTO

Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das coisas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que sonho de Platão

Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!

És a minha verdade, e a ti, entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego
A minha linda e trágica inocência!

Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Édipo, eterno e mudo
De todas as esfinges da Existência!…
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PARA A VERTIGEM!

Alma, em teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na Vida um simples rodamoinho,
Formado dos encontros da torrente!

Moves-te porque ficas no caminho
Por onde as coisas passam, diariamente:
Não é o moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...

Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário,
Entre forças que vêm de toda parte.

Do contrário, serás, no isolamento,
A espiral, cujo giro imaginário
É apenas a Ilusão do Movimento!…
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VIVENDO

Nós, incautos e efêmeros passantes,
Vaidosas sombras desorientadas,
Sem mesmo olhar o rumo das passadas,
- Vamos andando para fins distantes...

Então, sutis, envolvem -nos ciladas
De pequenos acasos inconstantes,
Que vão desviando, a todos os instantes,
A linha leviana das estradas...

Um dia, todo o fim a que chegamos,
Vem de um nada fortuito, entristecido
Nas surpresas das horas em que vamos...

Para adiante! Ó ingênuos peregrinos!
Foi sempre por um passo distraído
Que começaram todos os destinos...

Fonte:
LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. São Paulo: Livraria Martins, 1959

Volnei Zerbielli (Rota 66)


A oficina ROTA 66 não era apenas conhecida pela analogia, pelo menos daqueles que liam o letreiro pendurado na entrada, à famosíssima interestadual norte americana, mas pela excelente qualidade dos serviços que lá se realizavam, inclusive nos estrangeiros, pelos irmãos Meia-Roda e Meia-Boca.

Nessa oficina, assim como na famosa estrada, passavam por ali belíssimas máquinas, tanto as mais antigas que levam qualquer um a voltar no tempo do início da era do automóvel, nos remetendo a uma belíssima nostalgia, como as mais modernas, que fazem qualquer criança de 12 anos se tornarem um campeão das pistas. Tamanha a facilidade de se guiar um carro desses cheios de tecnologia.

Sabendo desses quesitos o Sr. Stewart, grande corredor da década de 60, levara a sua Masserati 1967 para que fosse acariciada pelos irmãos. Ela estava precisando de uma afinação, aquele motor V6, na gíria dos mecânicos, estava meio quadrado, dava um vácuo na aceleração, algo estava falhando.

Resolvido o problema o Sr. Stewart foi dar uma volta, experimentar para ver como ficou o seu brinquedo. Ficou boquiaberto. Nunca tinha corrido tanto de carro em sua vida, mesmo nas pistas, como ele correu naquela voltinha de ida e volta até o pedágio de Osório. Os 260 cavalos de potência do motor empurraram aquela belezinha à 285km/h. Como dizem os aficionados, literalmente trancou os ponteiros.

Voltou à oficina e disse aos rapazes, que eles eram loucos, perguntou o que fizeram no carro, pois tinha ficado um espetáculo. Pagou a conta com muito gosto, até queria dar mais uma gorjeta, mas os rapazes recusaram dizendo-lhe que a melhor gorjeta que eles poderiam receber era a inteira satisfação dos seus clientes. Ouvindo isso o Sr. Stewart disse que traria muitos amigos ali, e foi o que fez.

O Sr. Ferrari, aconselhado pelo seu amigo Stewart, levou até a oficina ROTA 66 o seu Buick 1958. Comentando com os rapazes que achou muito interessante o nome que deram para a oficina, disse que lá nos Estados Unidos, onde andou de Buick pela primeira vez, foi numa estrada chamada de ROUTE 66. Essa estrada é uma interestadual muito famosa por lá que atravessa o país de um lado a outro com os seus 3755 km, que seria o mesmo que ir de Porto Alegre até Aracajú.

Mas o Sr. Ferrari ficou espantado quando soube que os rapazes não conheciam e muito menos tinham ouvido falar nessa tal estrada. Intrigado, perguntou então como surgiu, para eles, o nome ROTA 66. E foi quando obteve a resposta.

Reparadores Obstinados Tarados por Automóveis Meia-Roda e Meia-Boca.