quinta-feira, 13 de julho de 2023

Irmãos Grimm (A palha, a brasa e o feijão)


Numa aldeia vivia uma velha, muito pobre, que um dia conseguiu um pouco de feijão branco e resolveu cozinhá-lo. Fez, pois, um fogo e, para que ardesse mais depressa, ela o acendeu com um punhado de palha. Ao derramar o feijão na panela, não percebeu que um dos grãos caiu e foi parar no assoalho, ao lado de uma palha. Pouco depois, uma brasa saltou, também, do fogão, até o lugar onde estavam os outros dois. A palha, então, começou a conversar:

- Amigos, de onde vem vocês?

E a brasa respondeu:

- Por sorte escapei do fogo e, se não tivesse sido tão arrojada, minha morte era certa; teria queimado até me tornar cinza.

Disse o feijão:

- Também eu consegui salvar a pele. Se a velha me metesse na panela, eu seria transformado em papa, como os meus companheiros, sem dó nem piedade.

- E por acaso, o meu destino teria sido melhor? - disse então a palha. - A velha jogou todas as minhas irmãs ao fogo, pegou sessenta de uma vez só e acabou com elas. Por sorte lhe escorreguei de entre os dedos.

- O que faremos agora? - indagou a brasa.

- Sou de parecer - respondeu o feijão - que, visto termos escapado à morte por felicidade, continuaremos os três juntos, como bons amigos e, para evitar que nos ocorra um novo desastre, procuremos outras terras.

A proposta agradou aos demais e eles se puseram a caminho. Pouco depois chegaram a um pequeno arroio. Mas não havia ponte ou prancha por ali e ficaram sem saber como passar para o outro lado. Nisto, a palha teve uma ideia e disse:

- Vou me deitar, atravessada sobre a água e, desse jeito, formo uma ponte por onde vocês poderão passar.

Estendeu-se, então, de uma margem do arroio à outra e logo a brasa, que era de natureza fogosa, se aventurou a caminhar sobre a ponte. Mas, quando chegou à metade do caminho e ouviu o barulho das águas a seus pés, parou e não teve coragem de seguir adiante.

A palha, porém, começou a arder, partiu-se em dois pedaços e caiu no arroio, arrastando consigo a brasa. Esta, ao tocar a água, expirou com um chiado. O feijão, por sua vez, que ficara prudente na margem, achou graça do acontecido e começou a rir que não podia mais parar. Tanto riu, que acabou arrebentando.

Também ele findado ali sua existência, se não fosse um alfaiate que ia passando e que se deteve à margem do arroio para descansar. O homem, que tinha bom coração, pegou agulha e linha e costurou o rasgo. O feijão agradeceu-lhe muito, mas como o alfaiate empregara linha preta, daquele dia em diante todos os feijões passaram a apresentar no corpo uma costura preta.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Agenor Filho e Rita Mourão (Lançamento de Livro em 3 de agosto)

03 de Agosto  19hs   Em Ribeirão Preto/SP

Convite enviado por Rita Mourão


 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLV


A flor que à vida desperta
espalha perfume e cor,
se transforma em porta aberta
pra acolher o beija-flor.
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A vida pode não ser
um berço de luz e cores,
mas pra vê-la florescer
não basta só plantar flores...
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A vingança é como a cárie
por dentro ataca e destrói,
desemboca na barbárie,
quando não mata, corrói.
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Chorava triste o doente
sem dizer o que sentia,
talvez dor que ninguém sente,
no entanto, em pranto doía.
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Contaminamos os ares
matando a respiração,
até nos lagos e mares
respiramos poluição.
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Deus, ao construir a terra,
fez todos os vegetais,
plantas, flores que ela encerra,
depois fez os animais.
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Esperança e caridade,
com a fé são primordiais,
completam na humanidade
as virtudes teologais.
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Frente à dor não desanime
lute com dobrado ardor,
não tem mal que não termine,
nem luta sem vencedor.
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Independente da fé
que alguém venha a defender,
pode em paz viver e até
na vida a luz acender.
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Nada tem que alguém não possa
nos seus gestos melhorar,
a mudança, quando nossa,
também faz outros mudar.
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No momento da partida
muitas lagrimas rolaram,
num sinal de despedida
que em saudade resultaram.
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No pedestal do passado
repousam felicidades,
fruto do amor condensado
mas no topo, só saudades!
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Nosso apelo Deus entende
seja à paz ou sofrimento,
se nem sempre nos atende
nos falta o merecimento,
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Nossas mãos são responsáveis
pela construção da paz,
dentre as centenas de amáveis
tem uma que o medo traz.
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Num campo verde, gramado,
frutos à vista não tem,
serve de sustento ao gado
ou repouso de ninguém.
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Nunca alimente um dilema
nem lhe dê sustentação,
mesmo num grande problema
bem maior é a solução.
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Nunca nos falte o desvelo
de as arestas lapidar,
deixando na vida o selo
pra nos identificar.
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O segredo está no dom
de saber equilibrar,
fazer tudo o que for bom
sem, no entanto, exagerar.
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Pela paz que o mundo implora
também devemos lutar,
pode ser não seja agora
mas um dia vai chegar.
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Quando a vocação se torna
um descomunal enigma,
é porque não damos forma
ao viável paradigma.
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Quem menospreza o centavo
por julgá-lo sem valor,
poderá acabar escravo
do abandono, seu senhor.
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Se a fala gera prazer
causa dor no encabulado,
não tendo nada a dizer
melhor é ficar calado.
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Se por vezes nos parece
a vida querer chorar,
pode, o Sol que nos aquece
estar quase a se apagar.
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Sobre os campos dos talentos
plantamos da paz seus grãos,
pra tornarem-se alimentos
na mesa dos nossos dons.
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Tendo algo que nos arrasa
seja pedra ou seja espinho,
pra chegar depressa em casa
vamos cortando o caminho.
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Todo excesso praticado
se torna um terrível mal
e a falta tem demonstrado
ser pior, senão igual.
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Subornada)

A ROTINA É SEMPRE A MESMA. Você conhece uma garota de fechar o comércio na rua, e, logo em seguida, papo vai, papo vem, faz um convite para um barzinho. O ponto de encontro é logo na esquina. Entram. Sentam. Consomem uma dúzia de cervejas. Comem umas porçõezinhas de batatas –, isso quando ela não cisma de querer um pratão de filé no palito acompanhado de um refrigerante estupidamente gelado. Se você recusa, é tachado, de supetão, de pão duro, mão fechada e miserável. Depois de uma longa conversa fiada (ela já calibrada pelos vapores do álcool) se sai vencedor fazendo direitinho a cabeça zonza da princesa.

Na sequência, você manda o convite. Ela, atordoada, aceita. Em contínuo, você conduz a beldade para conhecer o seu famoso apartamento. Ela sonha coisa mais sutil, tipo curtir um motel de primeira, desses caros de beira de estrada, com cama redonda, banheira de hidromassagem, sauna à vapor, TV a cabo, frigobar, teto solar para ver estrelas coladinho um no outro. Todavia, acaba se conformando diante da evidência de que não está vivendo um conto de fadas nem é uma Cinderela que perdeu um de seus sapatinhos de vidro e um príncipe encantado aparecerá, de repente, montado num pangaré para devolvê-lo.

Fora do aconchego das mesas, entra em cena outra historinha de natureza cômica. A do carro. Você sai com ela, a galera, em peso, juntada em deslumbres. É medido cada centímetro do corpo da figura, dos pés à cabeça. Sem se importar com essa bobeira, igual um Zé Mané, você passa de cabeça erguida, nariz empinado, sem dar confiança, arrastando pelo braço um violão de marca, ou melhor, um baita de um Boeing ultramoderno. Você nota, no fio da nuca, que todos sentem uma pontinha de inveja e ciúme. A maioria baba e fica de queixo caído, principalmente os coitados que se fazem acompanhar de uma chusma de tribufus imponentes.

Umas malvestidas que não deixam, nem por um momento (a feia mania, dos quinze minutos), ou seja, de levantarem os traseiros das cadeiras para irem até a toalete com a balela de retocarem as maquiagens. Na cabeça da desconhecida que você fisgou, passa um filme alinhado, sonante e superbonito. Ela supõe que vai se acomodar numa Mercedes, ou numa Lamborghini igual ao do Roberto Carlos. E você, chato de galochas, pobretão, continua em frente, caminhando entre os últimos tipos estacionados ao longo da alameda, um molho de chaves balançando na mão direita.

Entrementes, seu corpo esquelético estanca. Você a surpreende aplicando um beijo de língua na boca. Enlouquecida, doida para se soltar, quando ela pensa que sairá um segundo, você disfarça e marcha adiante:

“— Com certeza – deduz a gata na sua loira ignorância – esse infeliz vai direto para o ponto de ônibus –, ou então, deverá chamar um Uber.”

O que a deixa deveras intrigada é um pormenor simples, quase imperceptível. Quando vocês saíram para a rua, ela percebeu (e você também), havia um táxi parado em frente. Decididamente, seria o “busu” que os levaria até o apê.

Pensando nessa ideia, uma vez mais ela se encolhe em seu descontentamento e se conforma com a tristeza lúgubre da situação. Vem, a galope, se aproximando, uma nova decepção. Uma espécie de tortura repulsiva que a contraria mais um pouco aborrecendo profundamente o seu coração. Você, do nada, estanca os passos ao lado (não só se inabilita seguir adiante, abre correndo a porta, como se fugisse de alguém) de um fusca – um fusquinha branco, inteiraço, mas um fusca. Um automóvel largado no distante, onde Judas perdeu as botas. Ficaria importuno e maçante, você sair de um lugar tão bem frequentado com uma deusa à tira colo e se aboletar dentro de um fusca:

“— Dos males, o pior” – tenta se confortar a si mesma a inimitável dondoca –, enquanto opta por abrir a janela do carona. Fica na tentativa somente. O mecanismo que abaixa e suspende o vidro, faz tempo, emperrou e você não teve dinheiro para mandar consertar: “— No apartamento deve ser um pouco melhor” – conclui, a vestal, esperançosa –, olhando para os lados, como uma criança enlouquecida diante de um brinquedo quebrado. Ledo engano! No que você rotulou de apê, quase a deidade tem um piripaque junto com um ataque de histeria. Pensa em gritar. Sente uma necessidade quase sexual de berrar, de vociferar à plenos pulmões, mas acha que, se o fizer, seu companheiro que conhecera a menos de três horas, poderá perder a linha e lhe aplicar uns belos tabefes em meio às fuças.  

Não seria para menos, se tivesse um faniquito. Na sala, logo ao colocar os pés, se depara com um amontoado de roupas empilhadas sobre o assento da única peça existente: um sofá de três lugares. Pelo chão, sapatos, meias, lenços, cuecas e camisas. Dá uma geral. A cozinha não fica divorciada do barbarismo horripilante. Captura pratos sujos ocupando toda a extensão da pia inox, juntamente com panelas e restos de comidas. Baratas e moscas, aqui e ali, fazem à festa. O banheiro causa nojo. Provoca asco e repugnância. O vaso sanitário totalmente entupido. Para variar, a cordinha da água rebentada e a tampa não vedando a fedentina que exala de dentro dele.

Antes de penetrar na peça, para um xixi básico, sente náuseas. Ensaia vomitar. Mas vomitar onde? Se levantasse o cobridor da latrina, aí é que desmaiaria mesmo, esborrachando o corpo no chão. Resta o quarto. Segue até o umbral. Mais roupas jogadas à esmo. Na única janela, uma toalha azul manchada de água sanitária faz a vez da cortina. Num canto, encostado em um aparelho de tevê dessas do “tempo do ronca”, uma esteira. É nela que o sujeito dorme e se cobre com um lençol. Credo em Cruz! Um funambulesco cheio de buracos medonhos. Dá um passo atrás. Põem as mãos na cabeça e se perde em pensamentos distantes: “— Meu Deus –, sussurra com seus botões. “– O que é que vim fazer neste muquifo”?

E conclui pesarosa: “— Parece que um forte vendaval passou aqui...”

Nesse interregno de tempo você despista. Vai até a cozinha. Abre a geladeira. Passa os cinco dedos numas garrafas de cerveja. Lava dois copos:

— Vem, gatinha... está no ponto...

A infeliz aquiesce, sem emitir uma palavra. Brindam fazendo tim-tim. Você se aproxima do sofá, joga tudo o que está em cima dele para um canto e indica um lugar vago. Ela se acomoda meio temerosa. Depois de algum tempo, a apetitosa se solta, apesar de segurar a urina.  Sorve a bebida, e o faz, lentamente, sem, contudo, desviar os olhos do teto. É nessa hora que tudo cai, desmorona, vem abaixo.  E VOCÊ, BÊBADO, NÃO ACORDA.       

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Isabel Furini (Poema 47): Flores

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.  

Elisa Augusta de Andrade Farina (Essência da vida: voltar-se para o outro)

A vida é como um romance. Está cheia de suspense. Você não faz ideia do que vai acontecer até virar a página. Cada dia é uma página diferente e pode estar repleta de surpresas. Nunca se vai saber o que virá a seguir até que a veja. Cada manhã é como uma sequência de uma virada da página seguinte de um romance. É emocionante sentir o prazer da página que você vai escrever a sua história. Pode acontecer alguma coisa maravilhosa ou não, vai depender do seu posicionamento frente aos obstáculos que decerto terão que ser enfrentados.

Somos seres incompletos, estamos em constante evolução. Nascemos indivíduos, mas a meta é alcançarmos a condição de pessoas. Nessa travessia o aperfeiçoamento sustentará os pilares que estabelecerão o conceito de pessoa a ser formada. Pois ser pessoa, nada mais é do que “dispor-se de si e dispor-se aos outros”.

Ao nos dispormos aos outros, fazemos uma interlocução entre o “eu” que me identifica e o “outro” para quem eu me volto. Ser sujeito refere-se à capacidade que o homem tem como ser humano de ser singular, pessoal, particular, reservado. Junta-se aos outros para compor o todo, não deixando de ser o que é.

Ser o que somos demanda cuidado, já que não é possível ser somente na solidão, necessitamos do encontro, pois a vida é feita desses embates. Quando as pessoas possibilitam voltar-se para o outro, concretizam o ato de suas singularidades, permitindo que as mesmas se pluralizem, misturem e acima de tudo advenham daí as influências que demarcarão suas existências.

A dinâmica é estupenda, as nossas melhores amizades foram estabelecidas pela casualidade de encontros que se perpetuaram e nem por isso a nossa subjetividade correu o risco de ser diluída em função do outro.

O desafio é constante, a iminência do risco é real. Os inimigos também chegam pela força desses encontros, cabendo a nós perceber a veracidade ou não dessa nova abertura que se nos apresentam como nova forma de contato ou sua execração definitiva.

A facilidade de se perder a centralidade do nosso “eu” na pluralidade do mundo e na entrega do outro, é um risco que corremos a todo momento, pois nos falta a convicção que nos permitirá fazer essa análise, ou porque estamos nos firmando intuitivamente ou por conta de uma racionalidade exacerbada que tolda qualquer possibilidade que venha surgir.

Cabe a nós acreditarmos no valor da nossa potencialidade de desconsiderar pessoas que nos esmagam, que nos viciam, dos que pensam por nós, que nos roubam a nossa autonomia, fazendo-nos prisioneiros de nós mesmos.

Nós escrevemos a nossa história da melhor forma possível, oportunizar a todos, fazer parte ou não da mesma, vai depender de como estamos dispostos a permitir que invadam a nossa privacidade, deixando à deriva os nossos mais íntimos sentimentos.

Temos que ter a certeza de que nenhuma ansiedade ou sentimento menor vai prevalecer nesse compartilhamento de ideias ou ideais que estamos pontuando, antes de tudo, o que importa é a nossa integridade, é a nossa busca de bem estar, é o voltar constante do “eu” para o “outro”, perpassando todos os valores capazes de nos tornar pessoas melhores a cada virada de página do livro da vida. Só assim, alguma coisa maravilhosa pode acontecer em cada manhã da nossa existência.
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Graduada em Filosofa, Professora Universitária, escritora e Vice-presidente da Academia de Letras de Teóflo Otoni, titular da cadeira 06.

Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni. A essência da vida. in Revista Café com Letras. ano 10. n. 10. Teófilo Otoni/MG: ALTO, dez. 2012

Caldeirão Poético LXIV


Flamínio Caldas
Campos dos Goytacazes/RJ, 1886 – ????

CANÇÃO DA AGONIA

Quando o sangue parar em minhas veias
e cair sobre mim o véu da morte,
tu, que quebraste todas as cadeias
por nosso amor, sê corajosa e forte!

Possam meus olhos, no final transporte,
Ver-te os olhos enxutos. Rindo, creias,
eu cumprirei contente a minha sorte,
aliviado das lágrimas alheias...

Na hora extrema, não quero ver tristeza...
Fale a voz da alegria em cada canto,
nade na luz do sol a natureza!

Que venha, então, a deusa amortecida!...
Mas não chores, que foi todo de pranto
o caminho que fiz por esta vida!
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Hecilda Clark
Porto Alegre/RS, 1897 –  1990, Rio de Janeiro/RJ

CORAÇÃO


Não tenho culpa deste amor fremente
em seu ritmo ardoroso, acelerado...
Tudo em redor de mim, convulsionado,
e eu viva e amando o amor, tão loucamente!

Quando assomaste sonhadoramente,
o coração, que fora imunizado
contra todo o impossível; rebelado,
se apaixonou por ti, como um demente!

E nada o demoveu se, nem cansaço
sentiu, nesse correr vertiginoso
que nos conduz à morte a cada passo...

Vivo de amar-te, alucinadamente,
aos apelos do teu amor grandioso...
— Coração de Poeta é impenitente...
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Hermeto Lima
Belém/PA, 1875 – 1947, Rio de Janeiro/RJ

LEILÃO


—"Ponho em leilão meu coração, senhores!
Quem dá mais? Quem dá mais?... Examinai-o:
ele está pleno de ilusões de Maio,
cobre-lhe a vida um estendal de flores.

Vede-o bem, fibra a fibra, perscrutai-o!
Nunca sentiu as truculentas dores,
pois dos ódios do mundo e dos amores
jamais na vida perpassou-lhe o raio.

Tem fé, tem crenças, tem bondade extrema...
Quem dá mais? Quem dá mais?... Vale um poema
a sua louca e nobre fantasia..."

— "Dou um beijo por ele". —"Feito o preço..."
E à mais formosa dama que eu conheço
assim vendi meu coração um dia.
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Jacinto de Campos
Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ

AS DUAS PALMEIRAS

Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balançando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...
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Jacy Pacheco
Duas Barras/RJ, 1910 – 1989

GRATIDÃO

Eu te agradeço — e sem constrangimento—  
o bem que foste para mim: poesia,
rumor festivo em meu isolamento,
bravura ao coração que sucumbia.

Com a calma com que vejo, ao fim do dia,
o sol agonizar num céu sangrento,
também o teu silêncio eu pressentia:
eu esperava o teu esquecimento.

Um grande bem não dura a vida inteira,
hoje, voltando à antiga nostalgia,
desfeito o sonho da alma cancioneira,

posso te agradecer a caridade:
com as esmolas de amor que eu recebia
vivi momentos de felicidade.
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João Rangel Coelho
Juiz de Fora/MG, 1897 – 1975, Rio de Janeiro/RJ

MÃOS


As tuas longas mãos alvinitentes,
despetalando rosas ao luar,
são brancas, "como dois lírios doentes"
no lago emocional do meu olhar.

Meu triste amor!... Nas horas mais pungentes
da minha vida boêmia e singular,
as tuas mãos de seda, transparentes,
teceram meu destino, a acarinhar.

Quando partiste, as tuas mãos esguias,
num derradeiro gesto de agonias,
tremularam de manso aos olhos meus

e, com saudade imensa e dolorida,
deixaram para sempre a minha vida
na balada tristíssima do adeus.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 1

Apresentação da obra


Isadora de Pampa e Bahia, é um romance que dei início entre 2000 e 2001, quando recém, aos poucos, descobria que havia nascido para escrever.

A vontade em compor uma bela história era grande, mas a experiência, quase nula. Por esta razão, fui desenvolvendo os capítulos como pude.

A ideia era boa, mas cheia de mal traçadas linhas.  

Ainda muito imatura para dar continuidade ao romance, guardei os trechos escritos numa gaveta. Hoje, no pen drive, quase esquecido.

Até que, pouco tempo atrás, alguns amigos que conheciam a base da história começaram a me cobrar:

- “E o Isadora de Pampa e Bahia? Não desiste, a ideia é bacana.”  

Outros, mesmo não conhecendo nada da história, mas sentindo-se atraídos pelo título, disseram ter curiosidade em ler o romance. Então, aqui estou eu, tão diferente daquela menina lá do passado. Porém, ainda mais apaixonada pelas letras, atualizando a obra.

Isadora de Pampa e Bahia é uma obra centralizada entre as paisagens da cultura do Rio Grande do Sul, e que, no transcorrer das trajetórias dos personagens, tem uma breve, porém significativa passagem pelo Estado da Bahia.

A história se passa na década de 60, e tem como protagonista a Isadora, prenda bonita, filha do senhor Antônio, fazendeiro cultivador de arroz e de dona Ana, uma recatada dona de casa.

Isadora cresceu na fazenda, sem conhecer a cidade. Apesar disso, trazia em si um espírito libertário, pouco obediente às regras de sua época. É uma personagem que não pode ser chamada de “a mocinha da história”. É bela, livre, virtuosa, por vezes, incoerente e, acima de tudo, determinada a amar quem desejar, trabalhar no que escolher, ser uma mulher plena em todas as esferas da sua vida. Este é um romance que fala sobre patriarcado, submissão, amizade, espiritualidade, mas acima de tudo, sobre o empoderamento feminino.  

Escrever esta obra que será publicada capítulo a capítulo, no formato folhetim como faziam Fiódor Dostoiévski, Charles Dickens, Machado de Assis e outros autores do século XIX, época em que quase não haviam escritoras, porque escrever era algo inconveniente e pecaminoso às mulheres, para mim é algo mágico. É como se eu estivesse voltando no tempo e fazendo justiça por todas as mulheres que tiveram o sonho de escrever, mas não puderam porque essa era uma prática quase que exclusivamente dada aos homens! Quando algumas cometiam essa ousadia, como foi o caso das irmãs Brontê, tinham que assinar um pseudônimo masculino. Hoje, as mulheres podem escrever, mas ainda há muito preconceito velado em relação ao ser feminino. Em plena modernidade, as mulheres ainda precisam provar o seu potencial. E isso é inadmissível!
 
Então, com vocês, ISADORA DE PAMPA E BAHIA.

Espero que gostem.


Com amor,
Jaqueline Machado – ACL – 22 – ALMURS - 132

Data – 12.07.23


Dedicatória
 
Dedico esta obra à Roberta, minha amada irmã, ao meu amigo José Luiz Muller, e à querida amiga Lúcia Barcelos, que tem revisado todas as minhas produções literárias.

Cito aqui esses nomes, entre tantos outros apoiadores e leitores, porque essas pessoas me incentivaram a "tirar essa obra da gaveta" e compartilhar.

GRATIDÃO!

EPÍGRAFE

O que é a vida? E do que ela é feita?
Só os encantos de Isadora têm as respostas.


ISADORA

1º CAPÍTULO
Prenda bonita


Em Prenda Bonita, viveu uma bela gaúcha dos olhos negros, brilhantes, cabelos soltos e dona de um sorriso esplendoroso. Seu nome exalava um certo aroma de poder no entoar das sílabas quando pronunciadas no pensar secreto de seus admiradores: I-sa-do-ra... Um nome forte para uma mulher ainda mais forte. Desde a infância, sua beleza chamava a atenção de todos ao seu redor, servindo, inclusive, de inspiração ao seu pai, Antônio Machado, que batizou suas terras com o nome de Prenda Bonita em homenagem a ela. Não só o nome emprestado àquele pedaço de chão fazia alusão à graciosidade de Isa, como era carinhosamente chamada por sua mãe, dona Ana. O chão, encoberto pelo arrozal, dançando faceiro sob o forte compasso do minuano, assemelhava-se ao balancear do seu corpo alvo, feito arroz, feito relva, feito nuvem passageira, desfilando, sem destino, pelos rumos celestiais do firmamento da vida.

Amante da liberdade, Isadora gostava de cavalgar no lombo do tordilho mais robusto da fazenda, que por ela foi batizado de Relâmpago. Cavalgando, desfrutava do prazer que é sentir o vento acariciar o rosto enquanto embaraçava seus cabelos em movimentos aleatórios de pura poesia.

Isadora combinava com aquela natureza. E todo aquele ambiente, naturalmente, rendia-se aos seus encantos de mulher guerreira e sonhadora.

Com simplicidade e alegria, por vezes, se permitia colocar as mãos na terra e ajudar os peões na plantação de arroz e no cultivo de flores, que davam um colorido especial àquele lugar mágico.   

A simplicidade de Isadora fazia dela uma pessoa muito estimada entre os serviçais.

Apesar de ter nascido assim... Em forma de versos e de aspirar e inspirar os perfumes mais agradáveis da natureza, Isadora também trazia ocultadas nas entrelinhas dos poemas que a descreviam, muitas reticências... Pontos de interrogações, versos que não se encaixavam em seu espírito libertário. Ela não obedecia às regras sociais, não se encaixava à vida normativa. E por não saber se encaixar ou servir de exemplo perante as regras de seu tempo, dava vida e asas às sombras. Sombras essas que viviam a mendigar por reflexos de luzes em meio à escuridão que se escondia nas entranhas de sua essência feminina.

E algumas dessas sombras surgiam em forma de mágoas. A mais profunda delas concentrava-se nas atitudes do seu pai, que sempre fora um homem rude e machista.  Ela o respeitava, mas se perdia num mar de dores ao ver o sofrimento da mãe, que vivia sob a égide de um sistema de grosseria e desrespeito promovido pelo esposo.

Ana, em sua juventude, chegou a noivar com um primo em segundo grau, mas um mês após o noivado, o rapaz fugiu com outra.  Sua família tinha posses, mas os negócios não estavam prosperando, e logo a falência bateu à porta de casa. Com isso, o senhor Albino, pai da Aninha, como era chamada pelos familiares, achou por bem casar a filha com um homem rico. Assim, as finanças da família seriam salvas, e ela, por certo, não correria o risco de passar pelo infortúnio da escassez.

Dona Clara, mãe de Aninha, era uma mulher educada, amante dos livros e à frente do seu tempo. Ela foi contra a ideia de casar a única filha para salvar as finanças da família, mas nada pode fazer para impedir a realização do matrimônio. Então, o pai da Ana a conduziu diante do altar e a entregou aos braços de Antônio, um solteirão vinte e poucos anos mais velho do que a menina. O indivíduo tinha um jeito meio grotesco, mas parecia ter um futuro promissor como fazendeiro. Tinha jeito ao lidar com os assuntos ligados aos negócios.  Volta e meia, os dois negociavam algumas compras e vendas. Senhor Albino sabia que o sujeito tinha um certo interesse pela jovem, que aos 16 anos teve que se tornar uma mulher recatada e submissa, vivendo apenas para cumprir com as suas obrigações de dona de casa.

As atitudes do velho Antônio incomodavam Isadora, que nutria em seu coração o sonho de ver sua amada mãe, uma mulher bondosa, já na casa dos 40 anos, desfrutando de uma vida feliz. Apesar da idade, que até poucas décadas atrás era sinônimo da aproximação da velhice, dona Ana conservava uma aparência bastante jovial. A prenda Isadora teve a quem puxar a formosa estampa.

O senhor Antônio tinha pouco mais de 60 anos de idade, mas devido à rabugice e muita “água- benta", parecia mais velho.

Quando jovem, sonhara ter um filho homem para carregá-lo pelas trincheiras do Rio Grande afora.

Mas por complicações pós-parto, dona Ana não pode mais engravidar. O mesmo aconteceu com dona Clara ao lhe dar à luz. Mistérios das hereditariedades da vida.                   

De início, ele se deixou levar por uma breve rejeição. Esperou anos até que a mulher engravidasse e precisava se conformar em saber que não seria pai outra vez.  Mas logo caiu de amores pela filhinha. Seus olhos nunca tinham visto uma criança tão linda e esperta.                                  

Apesar do carinho que sentia pela filha, jamais deixou de lado o autoritarismo. Aos finais de semana abandonava a família para buscar o aconchego das tais “chinas” que residiam no centro da cidade. E com elas gastava boa parte dos lucros ganhos nas colheitas do arroz. Ao retornar ao lar, não permitia nenhum tipo de manifestação de mágoa da esposa. Pelo contrário, ao vê-lo chegar, a mulher devia recebê-lo com água quente na bacia para lavar os pés calejados do marido.

Isadora cresceu assistindo a esse tipo de cena. E ao notar os olhos rasos d’água da mãe, chorava às escondidas pelos cantos da casa. Não fazia ideia das traições cometidas pelo pai, mas percebia a maneira hostil e fria com que ele tratava a própria esposa.

Mais tarde, entre seus 17 e 18 anos, passou a entender com clareza o porquê das coisas.

No entanto, ao tentar alertar a mãe sobre os humilhantes acontecimentos, sentia-se profundamente frustrada ao ver a resignação da mulher com a vida que costumava levar.

- Mãe, a senhora ainda é jovem, bonita, por que suportas tantas humilhações do pai? - perguntava com frequência ao tocar com carinho as mãos da mãe.
 
- Do que estás falando, Isa? Estou bem. Tens muita imaginação nesta tua cabeça.

- Mãe, não sou mais criança. Sei tudo o que está se passando por aqui.

-  Para mim ainda és uma criança. O meu bebê.

- Sei pouco da vida. Mas o pouco que sei já é o suficiente para entender certas coisas - dizia a filha.

- Não estou gostando do teu jeito de falar, Isa. Me pareces ousada demais para a tua idade.

- Que seja, então. - disse, dando de ombros - Jamais entregarei a minha liberdade nas mãos de um marido autoritário. A vida aqui na fazenda não nos permite ver a evolução do mundo lá fora. Mas sei que muitas mulheres vêm lutando para assumirem as rédeas dos seus próprios destinos. Descobri isso com os livros.

- Chega, Isa! Estás a falar como se fosses uma moça sem moral.

- Certo, mãezinha. Não vou prolongar a conversa. Quero apenas ver o seu lindo sorriso iluminar esta casa tão triste.                                                   

Siga o meu conselho: tenta pensar mais na senhora.

- Eu penso, guria. Estou satisfeita em ter saúde para cuidar de ti e do teu pai.

Ana tinha instruções sobre a vida, mesmo assim, sem esperanças, caiu passivamente na condição da esposa humilhada e traída.

Desde moço, Antônio dizia que mulher não necessitava de muitas instruções, precisava apenas saber bordar, cozinhar, cuidar bem dos filhos e jamais ler além do necessário. Ou seja, prenda boa só podia ter interesse por leituras cujos conteúdos não fossem capazes de corromper sua modéstia. Alguns salmos, bulas de medicamentos e receitas culinárias era tudo o que uma mulher precisava ler para ter uma boa instrução.  

Escolheu Ana para esposa por considerá-la muito recatada. Mal sabia ele o quanto ela já havia lido antes de casar.  Dentre as obras favoritas da jovem estavam a Trilogia de “O Tempo e O Vento”, do célebre escritor gaúcho Érico Veríssimo. Seus pais tinham uma biblioteca com mais de mil livros. Mas sem saber onde esconder tantas obras do marido, ela achou por bem selecionar apenas 100 livros e escondê-los antes que o esposo descobrisse a biblioteca que ficava no último cômodo da casa dos sogros. Quando os sogros morreram num acidente de trem, numa viagem de negócios, ele descobriu a biblioteca, e a sua primeira providência foi apanhar as obras, amontoá-las no terreno dos fundos da casa e tocar fogo em tudo.

Por detrás da vidraça da janela do quarto, Aninha viu as mesmas mãos que afagaram seu corpo na noite de núpcias, serem capazes de incendiar uma biblioteca inteira.  Ela, que fazia luto pela morte dos pais, aos prantos, soluçava ao acompanhar impotente aquele universo repleto de histórias e estórias se dissipando em chamas feito corpos de bruxas sentenciadas à morte pela Santa Lei da Inquisição. Em estado de choque, e acometida por uma forte tontura, recuou alguns passos rumo à cama. E imersa nas trevas da dor, abraçou-se à Luzia, boneca de pano que na infância havia ganhado de sua mãe. Muito traumatizada, a partir daquele infame momento, Ana nunca mais buscou reconhecer seus direitos. Seu corpo permanecia vivo, mas sua alma dizimou-se junto ao monte daqueles livros.

Isadora não sabia desse triste acontecimento, mas o pouco que sabia bastava para acender sua revolta em relação ao pai.

Na esperança de ver a mãe feliz, certa vez, ao se deparar com a imagem da Virgem Maria no corredor que dava da sala para a cozinha, ajoelhou-se e, em frente à santa, fez uma promessa:

- Oh, Mãe Santíssima, sei que dentre todas as mulheres fostes tu a mais perfeita a existir na Terra. Por isso a Ti devo amor, devoção, tanto respeito... E prometo-te: um dia hei de fazer da minha mãezinha uma pessoa feliz. Além de mulher, és santa. Conto com teu apoio para realizar essa missão complicada, porém justa, a mais justa de todas as missões.   

Às 19h do decorrer do mesmo dia em que fez a promessa, o velho, recém chegado de viagem, entrou pela porta da sala, de cara fechada, botas, bombacha e chapéu torto na cabeça.

- Ana, anda logo com a comida, tô com o bucho vazio e louco de fome! Disse ele.

- Claro. Só falta aprontar o feijão. Vais te lavar que a mesa já será posta.

Em comparação ao seu habitual comportamento, naquela noite, o velho estava calmo. A família jantou em silêncio e logo depois foram dormir. Mas nem sempre era assim. Normalmente ele exigia saber detalhes sobre como passaram o dia e, depois de satisfeito com as respostas, dava início às reclamações sobre as lidas nas fazendas e o trabalho sempre insuficiente dos agregados. A situação era desoladora, mas a fé da guria Isadora insistia em espalhar perfume de esperança por todo aquele inóspito ambiente.
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continua…

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 8

 

Graciliano Ramos (História de uma bota)

Quando os amigos chegaram, o dono da casa estava sentado na pedra de amolar, pregando uma correia nova na alpargata. Levantou-se e foi acabar o trabalho escanchado na rede, resmungando aperreado, misturando assuntos:

— Caiporismo. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, seu Gaudêncio. Hum! Entretido, nem ouvi a salvação de vossemecês. Que estrago! Para sempre seja louvado, seu Libório. Como vai essa gordura? Boa-noite, seu Firmino. Tome assento.

Os visitantes acomodaram-se. Das Dores e Cesária vieram da cozinha e arrumaram-se na esteira.

— A vida é um buraco, meus amigos, murmurou Alexandre. De volta da feira, dei uma topada, esfolei o dedo grande, rebentei a correia desta infeliz e andei légua e meia com um pé calçado e outro no chão. Estava aqui pensando no meu tempo de rico. Dinheiro no baú, roupa fina e um quarto cheio de sapatos de toda a variedade.

— E botas com esporas de prata, acrescentou Cesária.

— Isso mesmo, concordou Alexandre. Botas com esporas de prata e de ouro, penduradas no torno. Agora é a desgraça que se vê: um pedaço de sola amarrado no casco, espinhos, rachaduras no calcanhar. Não somos nada não, seu Libório.

Baixou a cabeça, esteve um minuto remexendo os beiços, monologando. Pouco a pouco desanuviou-se, um sorriso franziu-lhe a cara, o olho torto brilhou:

— Por falar em bota, lembrei-me do aperto em que me vi há muitos anos, quando furava mundo. Tomei um susto dos diachos, e, pensando nisso, ainda me arrepio. Se quiserem escutar, abram os ouvidos. Se não estiverem com disposição, usem de franqueza: calo a boca, seu Libório pega na viola e canta aí umas emboladas para a gente.

— Não, senhor, escusou-se o cantador, modesto. Fale vossemecê.

Todos afirmaram que estavam curiosos, Alexandre tossiu, temperou a goela:

— Bem. O caso se deu numa das primeiras viagens que fiz à mata. Se não me engano, foi a primeira. Esperem, vou ver se me recordo.

Ficou um instante em silêncio, gesticulando, o olho torto fixo na telha.

— Isso, prosseguiu. Foi na primeira. Comprei dessa feita um papagaio sabido para Cesária, um bicho de tanta cadência como nunca se viu.

— O senhor falou nele, atalhou o cego. Um papagaio que tinha astúcias de cristão e valia um conto de réis.

— Não é verdade, seu Firmino, retorquiu Alexandre enfadado. Quem já viu papagaio de conto de réis? Esse que os amigos conhecem custou seiscentos e vinte e cinco mil e trezentos e saiu caro. Detesto exageros. Guardo as minhas conversas na memória, tudo direito. E se comprei o papagaio por seiscentos e vinte e cinco mil e trezentos, por que haveria de aumentar o preço dele? Responda, seu Firmino.

— Não sei não, murmurou o cego. O senhor é quem sabe.

— Pois é, continuou o dono da casa. Mas nós estamos gastando palavra à toa. Não interessa mexer num vivente miúdo, que se finou há muitos anos e o urubu comeu. Vamos ao negócio que prometi contar a vossemecês. Como já disse, foi para as bandas de Cancalancó.

— O senhor não disse isso não, rosnou o preto.

— Não disse? Pois fica dito, seu Firmino, tornou Alexandre. Foi na beira de um riacho, em Cancalancó, numa noite escura de meter medo no olho. Propriamente não era de noite: era de madrugada. Eu tinha corrido o sertão de cima a baixo, vendendo bois. No fim de seis meses havia um lucro enorme, dinheiro de papel em quantidade enchendo os bolsos da carona. E nesse dia, no termo de Cancalancó, decidi voltar para casa, porque já me aborrecia de tanto caminho, andava com a cabeça cheia de contas e muita saudade da patroa. Derrubei as cargas na beira do rio, arranjou-se uma fogueira, os tangerinos prepararam a comida e começaram a inventar lambanças, enquanto jantavam. Na cidade eu me hospedava em hotel caro e dormia em colchão fofo, mas ali no mato o jeito que tinha era arrumar-me no chão. Foi o que fiz. Mastiguei um punhado de farinha seca, um pedaço de carne de sol e uma rapadura, rezei minhas orações, tirei as botas e espichei-me na areia, vestido, com o rifle na mão, a carona cheia de notas servindo-me de travesseiro. Os animais ficaram roendo grama, peados de três pés para não se afastarem.

“Estive uma hora ouvindo as emboanças dos rapazes acocorados em redor do fogo. Depois eles se calaram, fizeram camas por baixo das catingueiras e pegaram no sono. Estava-se armando chuva, um calor medonho amolecia a gente, até as folhas das baraúnas tinham preguiça de bulir. A lua apareceu desconfiada e logo desapareceu. Uma nuvem engrossou na cabeça da serra, outra juntou-se a ela, veio uma terceira, espalhou-se, afinal o céu ficou todo coberto e não havia uma estrela para remédio. Um pretume dos diabos. A princípio, com luz do fogo, ainda enxerguei os arrieiros e os tangerinos que dormiam debaixo dos paús, as malas de couro e os surrões de mantimento, a minha sela e o par de botas. Mas as labaredas esmoreceram, as brasas cobriam-se de cinza, os tangerinos e os arrieiros, as malas e os surrões de matalotagem, a sela e o par de botas sumiram-se. Estou aqui desenterrando estas miudezas, e vossemecês pedem a Deus que eu me cale. Seu Firmino dá cada cochilo que faz pena e já abriu a boca três vezes, coitado.”

— Eu? Que invenção! protestou o cego endireitando-se no cepo que lhe servia de cadeira. Sou lá capaz de cochilar ouvindo uma história que o senhor conta? Continue, seu Alexandre. Escutei perfeitamente. Uma noite escura e de chuva.

— Não, seu Firmino, corrigiu Alexandre. Sem chuva. Eu não disse que o senhor estava dormindo? Armação de trovoada, muito calor e um escuro da peste. Era o que havia. Tudo escuro. Repito isto para vossemecês não se admirarem do que me aconteceu naquela noite. Ora muito bem. Passei umas horas calculando o ganho, com a ideia de mandar levantar na fazenda um sobrado como os que tinha visto na capital, grandão, cheio de enfeites e trapalhadas. Queria ver Cesária experimentar cama de mola e espiar-se naqueles espelhos do tamanho de uma parede. Acho que os amigos nunca viram isso, mas há. Por volta de meia-noite enrolei-me no cobertor, caí na madorra e comecei a sonhar com os sobrados e os espelhos.

“Acordei de madrugada. Sentei-me, fiz o pelo-sinal, gritei aos homens, que se levantaram e foram pegar os animais. Já sabem que me tinha deitado com roupa e tudo, como é de costume quando a gente se aboleta nos descampados. Marombando, espreguiçando, deixei a morrinha sair do corpo. Depois estirei um braço e procurei as botas que tinha largado ali perto na véspera. Achei uma bota, notei pelo jeito que era do pé esquerdo e calcei-me sem novidade. Mas quando fui calçar a outra sucedeu-me uma dos demônios. Meti a perna pelo cano, a perna entrou, entrou, e nada de chegar ao fundo. Uma bota regular vai ao joelho de um homem, não é isto? Pois essa passou o joelho, passou a coxa, tocou o pé da barriga, e se mais perna houvesse, mais teria entrado.

— “Certamente alguém me arrancou a sola do calçado enquanto eu dormia”, pensei. Quem se havia atrevido àquela brincadeira maluca? Dei um grito de raiva. Nesse ponto os arrieiros voltavam do campo, com os animais no cabresto. Trouxeram um pedaço de facheiro aceso, aproximaram-se de mim e perderam ação: olharam uns para os outros, embasbacados, amarelos como defuntos.

“Sabem vossemecês o acontecido? Nem gosto de me lembrar. Uma jiboia tinha-se enrodilhado junto da fogueira. Percebem? Calcei bem a primeira bota mas quando ia calçar a segunda, agarrei a bicha nas queixadas e enfiei-lhe a perna pela boca adentro. Avaliem o medo que senti. Fiquei uns minutos abobado, sem mexer-me, e os companheiros, num assombro, nem tiveram coragem de me ajudar. Sim senhores, acalmei-me. Sempre arranjo calma nas horas difíceis. E, com muito cuidado, para não furar-me nos dentes da cobra, consegui descalçar aquela bota medonha.

“Felizmente ela não me mordeu. Suponho que também se assustou. Não foi senão isso, acreditem. Entalou-se, de queixo caído, e deu graças a Deus quando se viu livre daquela coisa que lhe atravessava o interior. Sacudiu a cabeça, aliviada, e sumiu-se devagarinho na catinga.”

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LVII


  
A JANGADA E MARIA...
 
MOTE:
 Partiu a jangada airosa
na praia ficou Maria,
pedindo, de alma ansiosa,
que ela volte ao fim do dia.

 Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

GLOSA:
Partiu a jangada airosa

singrando o mar tão azul,
que sobre as ondas, formosa,
segue o caminho do sul!
 
Fitando o horizonte infindo,
na praia ficou Maria,
sonhando seu sonho lindo:
ver voltar sua alegria!
 
Numa prece silenciosa
ela abre o coração,
pedindo, de alma ansiosa,
ao seu amor – proteção!
 
Lembrar  a jangada, gera
uma esperança tardia.
Então, se acalma e espera
que ela volte ao fim do dia.
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CORAÇÃO NÃO ALADO...
 
MOTE:
Dei-lhe asas de querubim
e as penas do meu penar,
– Meu coração mesmo assim,
não aprendeu a voar!

Gisela Alves Sinfrônio
Olhão/Portugal

GLOSA:
Dei-lhe asas de querubim

mas meu coração cansado,
continuava preso a mim,
não quis se tornar alado!
 
Dei-lhe um pouco de alegria
e as penas do meu penar,
para ver se iria um dia
pelo mundo viajar.
 
Dei-lhe, então, de tudo enfim,
tudo o que mais precisava...
– Meu coração mesmo assim,
se escondia e não voava!
 
Falei de sonho e carinho,
e, em vão, tentei ensinar,
mas meu coração, sozinho,
não aprendeu a voar!
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    PALHAÇO
 
MOTE:
Vencendo todo o cansaço,
decerto gargalharei,
pois hoje sou um palhaço,
dos sonhos que não sonhei!

Giselda Medeiros
Fortaleza/CE

GLOSA:
Vencendo todo o cansaço,

da tristeza que angustia,
vou seguindo, passo a passo,
e talvez, até sorria...
 
Se, de fato, eu conseguir,
decerto gargalharei,
pois o tempo é de sorrir
por tudo quanto chorei!
 
Cantarolar é o que eu faço
mundo afora, sempre, a esmo,
pois hoje sou um palhaço,
um palhaço de mim mesmo!
 
Sigo, então, a minha estrada
e feliz sei que serei,
pois me encontro compensada
dos sonhos que não sonhei!
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   DERRADEIRO ADEUS
 
MOTE:
Aquele gesto... pequeno...
naquele  leito...meu Deus!
Não era um simples aceno,
foi seu derradeiro adeus!

Jaime Pina da Silveira
São Paulo/SP

GLOSA:
Aquele gesto...pequeno...

tão fraco de sua mão...
de angústia e tristeza pleno...
machucou meu coração!
 
Seu olhar de nostalgia,
naquele  leito...meu Deus!
Levou a minha alegria
e todos os sonhos meus!
 
Aquele gesto sereno
que eu via diante de mim,
não era um simples aceno,
mas antes, o próprio fim.
 
Choro sempre ao relembrar
os pequenos gestos seus,
que no seu jeito de amar,
foi seu derradeiro adeus!
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  PEDAÇOS DE ETERNIDADE...
 
MOTE:
Os instantes de saudade
são, em nosso ir e vir,
pedaços de eternidade
que o tempo deixou cair...

João Paulo Ouverney
Pindamonhangaba/SP

GLOSA:
Os instantes de saudade

ganham grande dimensão:
às vezes, pura ansiedade;
outras, são doce emoção!
 
Esses momentos risonhos,
são, em nosso ir e vir,
retalhos de muitos sonhos,
que sonhamos a sorrir!
 
Entre o amor e a amizade,
vemos com muito carinho
pedaços de eternidade
atapetando o caminho!
 
Essa saudade, gostosa,
que ora estamos a sentir,
é saudade silenciosa,
que o tempo deixou cair...

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Sílvio Romero (A Raposinha)

(Folclore do Sergipe)


Foi um dia, saiu um príncipe a correr terras atrás de arranjar um remédio para seu pai que estava cego. Depois de muito andar, o príncipe passou por uma cidade e viu uns homens estarem dando de cacete num defunto. Chegou perto e perguntou porque faziam aquilo. Responderam-lhe que aquele homem tinha-lhes ficado a dever, e que por isso estava apanhando, depois de morto, segundo o costume da terra.

O príncipe, que ouvia isto, pegou e pagou todas as dívidas do defunto e o mandou enterrar. Seguiu sua viagem. Adiante encontrou uma raposinha, que lhe disse:

«Aonde vai, meu príncipe honrado?»

O moço respondeu: «Ando caçando um remédio para meu pai que ficou cego.»

A raposinha então lhe disse: «Para isto só há agora um remédio, que é botar nos olhos do rei um pouquinho de sujidade de um papagaio do reino dos papagaios. Meu príncipe, vá ao reino dos papagaios, entre à meia noite, no lugar onde eles estão, deixe os papagaios bonitos e faladores que estão em gaiolas muito ricas, e pegue num papagaio triste e velho que está lá num canto, numa gaiola de pau, velha e feia. »

O príncipe seguiu. Quando chegou no reino dos papagaios, ficou embasbacado de ver tantas e tão ricas gaiolas de diamantes, de ouro e de prata; nem procurou o papagaio velho e sujo que estava lá num canto; agarrou na gaiola mais bonita que viu, e partiu para trás.

Quando ia saindo o papagaio deu um grito, acordaram os guardas, e o perseguiram, até pega-lo.

«O que queres com este papagaio?! Hás de morrer,» disseram os guardas.

O príncipe, com muito medo, lhes contou a historia de seu pai; então eles disseram:

«Pois bem; só te damos o papagaio se tu fores ao reino das espadas, e trouxeres de lá uma espada.»

O moço, muito triste, aceitou e partiu. Chegando adiante lhe apareceu a mesma raposinha, e lhe disse: «Então, meu príncipe honrado, o que tem, que vai tão triste?»

O moço lhe contou o que lhe tinha acontecido; e a raposa respondeu: «Eu não lhe disse!? Você para que foi pegar num papagaio bonito, deixando o velho e feio? Pois bem; vá ao reino das espadas; entre à meia noite. Você lá há de ver muitas espadas de todas as qualidades, de ouro, de brilhante e de prata, não pegue em nenhuma. Lá num canto tem uma espada velha e enferrujada; pegue nessa.»

O moço seguiu. Quando chegou ao reino das espadas, ficou embasbacado, vendo tantas espadas e tão ricas. De teimoso, disse: «Ora tanta espada rica, e eu hei de pegar numa ferrugenta?»

Pegou logo na mais bonita que viu. Quando ia saindo, a espada deu um trinco tão forte que os guardas acordaram, pegaram o moço e o quiseram levar ao rei.

0 príncipe contou então a sua história, e os guardas, com pena, disseram: «Nós só lhe damos uma espada se você for ao reino dos cavalos e trouxer de lá um cavalo.»

O moço seguiu muito desapontado. Adiante numa encruzilhada encontrou a raposinha: «Aonde vai, meu príncipe honrado?»

O moço contou tudo. «Ah! eu não lhe disse!? Por que não seguiu o meu conselho? Vá no reino dos cavalos, e entre à meia noite. Você lá há de encontrar muitos cavalos gordos e de todas as cores, todos aparelhados, não pegue em nenhum. Lá num canto está um cavalo velho e feio, pegue nesse.»

O moço seguiu. Quando entrou no reino dos cavalos caiu-lhe o queixo no chão: «Ora tantos cavalos bonitos, e eu hei de ficar com um diabo velho e magro?»

E pegou num dos mais gordos e lindos. O cavalo deu um relincho tão grande que os guardas acordaram e prenderam o príncipe. Ele, com muito susto, contou toda a sua história.

Os guardas responderam: «Pois sim; nós lhe damos um cavalo se você for furtar a filha do rei.»

Aí o moço disse: «Então me deem um cavalo para ir montado.»

Eles concederam.

O moço seguiu; quando ia adiante, lhe apareceu outra vez a raposinha: «Onde vai, meu príncipe honrado?»

Ele contou tudo. A raposa disse: «Pois veja: eu sou a alma daquele homem que estava apanhando de cacete depois de morto e de que você pagou as dívidas; ando-lhe protegendo, mas você não quer fazer caso dos meus conselhos, e, por isso, tem andado sempre em perigo… Vá montado neste cavalo; chegue à meia noite no palácio do rei, pegue a moça e bote na garupa, largue a rédea a toda a brida; passe pelo reino dos cavalos para lhe darem o seu, pelo das espadas para lhe darem a sua, e pelo dos papagaios para levar também o seu, e vá voando para casa de seu pai, que ele vai mal. Nunca entre por veredas, nem preste ouvidos a ninguém até à casa. Adeus, que é esta a última vez que lhe apareço.»

O príncipe partiu. Chegando no palácio, furtou a moça; chegando no reino dos cavalos, recebeu o seu; no das espadas, a sua, e no dos papagaios, o seu. Seguiu sempre na carreira. Adiante encontrou uns moços que andavam à sua procura, e eram seus irmãos que vinham buscar novas dele. Os irmãos, quando o viram com objetos tão ricos, ficaram com inveja e formaram o plano de o matar para rouba-lo. Começaram a convence-lo de que devia deixar a estrada real e seguir por uns atalhos para os ladrões não lhe fazerem mal vendo-o com aquelas coisas tão belas e ricas.

Ele caiu na esparrela, e os irmãos o atiraram dentro de uma gruta no mato onde ele tinha ido beber água. Tomaram-lhe a moça, o cavalo, a espada e o papagaio. Largaram-se para a casa muito alegres, pensando que o irmão estava morto.

Mas tudo aquilo chegando a palácio, entrou a marear-se, e a ficar estragado. A moça não quis mais comer nem falar; meteu a cabeça debaixo da asa e não quis mais falar; a espada ficou enferrujada, e o cavalo começou a emagrecer.

Quando o moço estava quase a morrer na furna, apareceu a raposinha, que o tirou para fora, e o botou outra vez no caminho. Ele seguiu e chegou até ao palácio de seu pai. Quando já ia chegando a espada deu um trinco, e começou logo a brilhar, o papagaio voou e foi cair-lhe no ombro, a moça deu uma gargalhada e falou, e o cavalo engordou de repente.

O príncipe entrou e foi logo botando um pouco de sujidade do papagaio nos olhos do pai, que ficou logo vendo, e muito alegre. O príncipe se casou com a princesa que tinha furtado, e os seus irmãos foram castigados por causa de sua falsidade.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

domingo, 9 de julho de 2023

Tertúlia da Saudade 08: Osvaldo Reis

 

A. A. de Assis (Higiene da alma)

Seu Tóvão, às vezes também chamado Cristóvão, tinha ainda a saúde em razoável estado. Porém já passara dos 90 e bem por isso começara a se preocupar mais seriamente com a revisão da vida, decerto julgando estar próxima sua transferência para o eterno plano.

Era um homem abastado, pelo menos o suficiente para garantir um confortável fim de linha e ainda deixar herança. Então pensava ser o momento de se desapegar de vez das coisas da terra e se concentrar mais cuidadosamente na higiene da alma.

Foi sempre uma pessoa correta, desde criança. Nascido em berço humilde, se fez sozinho, trabalhou duro, formou uma família nos conformes, daí que não carregava na consciência nenhuma lembrança de culpa importante que lhe pudesse dificultar a prestação de contas. Havia, porém, um porém: acumulara ao longo da existência algumas dolorosas mágoas; na verdade, três injustiças contra ele cometidas e em razão das quais cultivava amargosa desafeição por três non-gratos.

1. Um professor que o punira severamente, acusando-o de um malfeito que ele jamais cometera;

2. Um tio que traiçoeiramente passara seu pai para trás num negócio;

3. Uma parenta que mentirosamente telefonara para sua mulher dizendo tê-lo visto em flagra de namoro com uma fulana, com isso provocando grave abalo em seu até então pacato contexto conjugal.

Os três já haviam morrido, contudo permaneciam cricrilando na memória dele, o que lhe causava vexação e tristeza. Afinal aprendera que amar os inimigos e perdoar setenta vezes sete eram condições especialmente fortes para entrar no céu; daí que vinha rezando e se esforçando bastante para curar de todo aqueles três ressentimentos.

Contudo supunha faltar ainda um gesto concreto, e nisso matutava quando num de repente se lembrou de outro precioso preceito: “Bem-aventurados os que injustamente sofrem perseguição”. Era o caso dele, e nesse caso, pensando bem, em vez de vítima, o correto seria ele se sentir devedor. Devia aos ex-malqueridos a graça de haver somado alguns pontos em seu processo de purificação. Precisaria, portanto, de algum modo retribuir.

A ideia veio luminosa: escolheu três instituições de caridade e a cada uma fez uma doação em nome de cada um daqueles tais: o professor perverso, o tio safado e a parenta fofoqueira.

Bom efeito de pronto surtiu. E agora sim, com o coração levinho, a consciência pacificada e a alma sossegada e límpida, poderia aguardar sem susto o momento de assumir o celestial status, evento que todavia não estava tão próximo como imaginava. Já chegou aos 99 e começa a convidar a família e os amigos para partilhar com ele o bolo dos 100 anos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 02.3.2023)
 
Fonte:
Blog do Rigon 

Daniel Maurício (Olhares)


Acreditei
Quando dissestes
Que o teu coração era meu
Mas que pena
Pois
o coração era apenas
Uma tatuagem de henna
Que o tempo apagou.
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Aguardando
a florada
entre grades,
a glicínia
tece
suas
tranças.
= = = = = = = = =

Ampulheta

Enquanto corri
feito menino
atrás de arco-íris,
a vida
escorregou
sem
cerimônia.
= = = = = = = = =

Cabelo de sol
levanta as estrelas
dissipando a noite,
aquece a minha alma
calejada de solidão.
Cabelo de sol
acalma meu peito aflito
que revive o pulsar da paixão.
Cabelo de sol
queimas minha pele
num beijo desprotegido
que deseja muito mais
que um amor de verão.
= = = = = = = = =

Cansaço

Só depois
do trem
da madrugada
é que Maria
despetalou
de tão cansada.
= = = = = = = = =

Com o tempo
as memórias
vão ficando
no mundo
lusco fusco
imagens
esfumaçadas
cataratas
nos olhos
as mãos tateiam
as fotos
amareladas
onde as traças
comeram o riso
a saudade
na alma
soluça
o perdido
brilho.
= = = = = = = = =

Eclipse

A tímida lua
Vestiu-se
De vermelho
Sob os olhares
Curiosos
Nuamente linda
Toma banho
De sol.
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Flores no Varal

As flores
do avental
Exalam
perfumes
diversos
Ao balançar
do vento.
Roupas
no varal.
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Livro

Um pote
De compota,
Com palavras
Em conserva.
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Na madrugada
o vento
passeia
de skate
nas calçadas.
Muito
barulho
arrepio
na espinha
alma
penada.
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 No bailar das ondas
Meus pensamentos
Vem e vão,
Mas não em vão.
Nas reticências do teu olhar
Saboreio devagar
O doce encontro
Dos nossos corpos.
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O abraço
É um laço
Onde corpo
E alma
Se t(r)ocam.
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O Espelho

O espelho que há
em tuas palavras
não me deixa
mentir.
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o pássaro
passou
mas a árvore
resistiu
ao tempo.
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Poemas
são pássaros
livres,
que de vez
em quando
pousam
em nossos
corações.
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 Preenche os vazios silenciosos
Das palavras
E somente quem foi amiga das fadas
É capaz de entender um olhar.
Não quero te dizer adeus
E junto com os teus
Em Borboleta Encantada
Prefiro acreditar que se tornou.
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Saudades
são lembranças
temperadas
pelo tempo.
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Strip-tease

As palavras
desfilam em linhas
nem sempre retas
sobre a mesa.
Strip-tease de alma
embriagam
meus sentidos
num puro jogo
de sedução.
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Teu olhar
De girassol
Despertou
Um ardente sol
Que dentro
De mim dormia.

(Homenagem à amiga poeta Isabel Sprenger Ribas)
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Verão
gostoso
cortina
voando
gato
preguiçoso.
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Fonte:
Daniel Maurício. Olhares. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Hans Christian Andersen (Os Saltadores)

Um dia o Pulgo, o Gafanhoto e o Grilo resolveram verificar qual deles dava o pulo mais alto; convidaram todo o mundo e mais alguém que quisesse assistir ao espetáculo podia vir. Eram na verdade três saltadores famosos os que estavam ali reunidos!

- Darei a minha filha ao que der o salto mais alto, - disse o Rei - porque não teria graça nenhuma que esta gente desse pulos assim, por nada.

Foi o Pulgo quem saltou primeiro. Tinha muito boas maneiras; cumprimentou toda a assistência com muita elegância, porque tinha nas veias sangue nobre, que lhe vinha do lado materno e estava habituado à sociedade das criaturas humanas - o que traz muita diferença.

Veio depois o Gafanhoto. Era, está visto, um tanto pesado, mas ainda assim fazia muito boa figura, realçada por um uniforme verde, muito distinto. Além disso, aquele cavalheiro sustentava que pertencia a uma família do Egito, muito antiga, e que lá naquela terra era ele tido em muito alta conta. E tanto isso era verdade que tinham ido buscá-lo ao prado, e deram-lhe por moradia uma casa de campo de três andares, feita de cartas de baralho, com os lados das figuras virados para dentro. E as portas e janelas eram recortadas mesmo no corpo do rei de copas.

- Eu canto tão bem, - dizia ele - que dezesseis grilos nativos, que tinham trilado desde a mais tenra infância, sem obter um chalé, emagreceram tanto que ficaram ainda mais finos do que já eram, depois de me ouvirem.

Pulgo e gafanhoto proclamaram, pois, no devido tempo, quem eram, e ambos declararam que se julgavam com direito à mão da princesa.

O Grilo nada disse, mas achava, é claro, que não lhes ficava atrás; e o Cão de Guarda, mal o farejou, declarou logo que o Grilo era de boa família, tirado do osso do peito de um ganso real.

O velho Senador, que obtivera três mandatos para ficar calado, sustentava que o Grilo era dotado do poder de profecia, e que por meio do seu osso a gente podia saber se o inverno iria ser suave ou rigoroso, coisa que ninguém podia deduzir dos ossos daquele que escreve o almanaque!

- Oh! Eu por mim não digo nada, - disse o velho Rei - mas sigo meu antigo costume, e tenho cá minhas ideias, como as outras pessoas.

E chegou a hora da prova.

O Pulgo saltou tão alto que ninguém pôde ver até onde chegou, e por isso teimavam que ele não tinha dado pulo algum, coisa digna de desprezo naquelas regiões.

O Gafanhoto não chegou nem à metade daquela altura, mas pulou direto ao rosto do Rei - procedimento que sua majestade considerou altamente incorreto.

O Grilo ficou quieto ainda um bom pedaço, ao que parecia, perdido em cismas; e já todos se inclinavam a crer que ele não podia dar salto algum.

- Tomara que ele não tenha adoecido! - disse o Cão de Guarda, farejando-o de novo.

Mas, vrrrrr! E lá saltou o Grilo, meio de lado, para o regaço da Princesa, que estava timidamente sentada em um tamborete de ouro.

Então o Rei declarou:

- O salto mais alto foi o que alvejou minha filha, porque significa um delicado cumprimento. Para ocorrer uma ideia assim, é preciso que tenha cabeça! E o Grilo provou que tem cabeça. Foi, pois, o Grilo quem obteve a mão da Princesa.

- E, no entanto, - dizia o Pulgo - eu saltei mais alto! Mas não faz mal... Ela que fique lá com o osso de ganso, com a caixinha de música e tudo! Quem deu o salto mais alto fui eu! Mas neste mundo a gente precisa ter um corpo volumoso, que apareça, é o que é. E o Pulgo foi servir no estrangeiro e dizem que por lá morreu.

O Gafanhoto sentou-se à beira de uma vala, meditando sobre os costumes do mundo. E também ele dizia:

- O corpo é tudo neste mundo! O corpo é tudo!

E pôs-se a cantar sua canção melancólica - que foi de onde tiramos esta história. Mas, ainda que ela tenha sido impressa, talvez não seja absolutamente verdadeira. Não é bom fiar!

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1845.

Estante de Livros (Comédias para se ler na escola, de Luís Fernando Veríssimo)


O titulo do livro resulta da teoria do autor de que até pessoas que não habituadas a ler obras literárias são capaz de se deliciar com elas. A obra, porém, é ideal para ser lida não só na escola, mas onde quer que esteja, e para aqueles momentos em que e deseja ter um pouco de descontração.

Neste livro é composto 35 narrativas curtas, trazendo aventuras e descobertas.

A dobradinha não podia ser melhor. De um lado, as histórias de um mestre do humor. Do outro, o olhar perspicaz de uma das mais talentosas escritoras do país, especialista em literatura para jovens. Ana Maria Machado, leitora de carteirinha de Luis Fernando Verissimo, preparou uma seleção de crônicas capaz de despertar nos estudantes o prazer e a paixão pela leitura. O resultado pode ser conferido em Comédias para se ler na escola, uma rara e feliz combinação de talentos, indispensável para a sala de aula.

A seleção de textos permite ao leitor mergulhar no universo das histórias e personagens de Verissimo e conhecer os múltiplos recursos deste artesão das letras. A habilidade para os exercícios de linguagem ou de estilo pode ser vista em crônicas como "Palavreado", "Jargão", "O ator" e "Siglas". A competência para desenvolver as comédias de erro está presente em "O Homem Trocado", "Suflê de Chuchu" e "Sozinhos".

A maestria para criar pequenas fábulas, com moral não explícita, aparece em "A Novata", "Hábito Nacional" e "Pode Acontecer". A aptidão para resgatar memórias é a marca de "Adolescência", "A Bola" e "História Estranha". E, por fim, o dom para abordagens originais de temas recorrentes revela-se em "Da Timidez", "Fobias" e "ABC".

O livro é dividido em seis tópicos, e subdividido em suas respectivas crônicas/contos.

Equívocos: Esse capítulo trata sobre mal-entendidos, erros, confusões.

A espada: o menino o surpreende, dizendo que é o Thunder Boy (Garoto Trovão) e que seu destino estava selado desde que havia nascido. O pai fica surpreso com o tom de seriedade na voz do filho, que continua dizendo que seus pais devem ser pessoas fortes e justas. O menino dirige-se à janela, ergue a espada como uma cruz e, de repente, um trovão estremece e a espada tanto quanto seu filho ficam azuis.

O Marajá: seu amo pode visitá-la; seu amo era ninguém menos que o Marajá de Jaipur. Após a visita do Marajá, dona Morgadinha não foi mais a mesma. Seu filho chegou a trazer um vira-lata para urinar na poltrona da sala, e nada. O Marajá a visitou por duas semanas, até que seu marido se cansou do descaso de dona Morgadinha com a higiene da família e da casa. Procurou seu amigo Turcão que era árabe e fê-lo fingir que era o Marajá. Ela acreditou tão piamente que queria fugir com ele para Jaipur. Se descobrisse que fora enganada se mataria, por isso Turcão tinha que desiludi-la.

Sozinhos: Um casal mentira. Porém não há ninguém além dos dois na casa. É aí que a idosa tem a brilhante ideia de gravar seu marido dormindo. Ao acordarem vão ouvi-la. O senhor ronca. Mas a senhora também. O mistério é tomado quando ouvem duas vozes indefinidas ao fundo dizendo "Estão prontos?" "Não, acho que ainda não..." "Então vamos voltar amanhã..."

A foto: A história trata da discordância sobre quem irá tirar a foto da família. No fim quem tira a foto é o bisavô, motivo pelo qual a foto estava sendo tirada.

Outros Tempos: Resumidamente, esse capítulo é um paralelo entre a infância e a vida adulta do narrador.

A bola: a história mostra a mudança de tempos: O menino ganhara uma bola do pai, mas não sabia brincar com ela; achava que só os brinquedos eletrônicos eram legais.

História estranha: conta a história de um adulto que, ao passear no parque, se deparou com si mesmo quando ele era menor, e sentiu saudades.

Vivendo e...: conta as habilidades, os jogos e fórmulas que um adulto conhecia na infância e agora esqueceu-as.

Adolescência: o apelido de um adolescente era "Cascão", e vinha da infância, do fato dele não tomar banho (fingia que tomava). Todos chamavam ele assim, e mesmo que isso perturbava ele, não reagia; até que um dia ele decidiu retrucar. Ele tentou provar que todos eram sujos, por menor que seja a sujeira, mas não conseguiu. O conto conta também a história de Jander, um menino com muitas espinhas que queria tocar violino. Quando ele tocava, todos conseguiam ouvir, o que incomodava bastante. Um dia, uma mulher chegou em seu quarto dizendo ser sua empregada, e não ouviu-se mais o som do Violino aquela noite. Subentende-se que a suposta empregada foi uma distração para ele, e substituiu a obsessão pelo violino.

Trata de problemas comuns ao cidadão brasileiros mas que nem todos os abordam.

Dentre outros capítulos

– Amor: é um poema: uma declaração de amor.

– Um, dois, três: é a história de um homem que queria fazer uma crônica como uma valsa antiga, com todas suas características. Ao longo do texto, ele dá detalhes de como ele deseja que seja seu texto, comparando as características de seu texto com as da valsa.

– O ator: ao chegar em casa e cumprimentar sua família, um homem descobre que sua casa não é uma casa. É quando alguém diz "Corta!" e ele percebe que sua casa era um cenário! Passa um tempo e alguém diz "Corta!" novamente, fazendo com que ele perceba que aquele cenário é um cenário! Ele fica muito bravo, pois queria uma casa e vida normais, sem ser um filme. Nisso, ele ouve: "Corta!"

– O recital: O Recital é um conto meio sem sentido, inesperado. Fala sobre quatro músicos: três homens (um deles é ruivo) e uma mulher, que estão preparados para apresentar-se, mas surpreendentemente, acontece alguma coisa que mudará o futuro daquela apresentação. Algo inesperado. Qual seria a coisa mais inesperada que poderia acontecer? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. O narrador cita exemplos, mas conclui que seria a entrada de um homem carregando uma tuba. E ele queria tocar. Os artistas pedem que ele se retire, mas ele nega; diz que acompanhará a música. A plateia e os artistas ficam paralisados, o homem não consegue conquistar a simpatia da plateia e começa a "ofendê-los", tentando justificar sua ação. Finalmente, ele diz para o ruivo violoncelista que seu bigode ruivo é o mesmo que ele usava em 1968! Eles se atracam. Cria-se um caos!!! Agora, quem está com o bigode ruivo é a violista. Então, o tocador de tuba acha que ela é sua mãe (pois o bigode se parece com o dele), e grita: "Mamãe!!". Nisso, entra no palco uma manada de zebus.

– Siglas: Duas pessoas falando palavras, e suas respectivas siglas. Por exemplo: Partido Conservador (PC).