domingo, 16 de abril de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 3

 

Olavo Bilac (O Vaso)

Oh! O lindo, o lindo vaso que Celina possuía! E com que carinho, com que meiguice tratava ela as flores daquele vaso, o mais belo de toda a aldeia! Levava-o a toda a parte e, no seu ciúme, na sua avareza, não queria confiá-lo a ninguém, com medo de que mãos profanas estragassem as raras flores que nele viçavam. Ela mesma as regava, de manhã e à noite, ela mesma as catava cuidadosamente todos os dias, para que nenhum inseto as roesse ou lhes poluísse o acetinado das pétalas. E em toda a aldeia só se falava do vaso de Celina. Mas, a rapariga, cada vez mais ciosa do seu tesouro, escondia-o, furtava-o às vistas de todo o mundo. Oh! O lindo, o lindo vaso que Celina possuía!

Certa vez (era por ocasião das colheitas), Celina acompanhou as outras raparigas ao campo. A manhã era esplêndida. O sol inundava de alegria e de luz a paisagem. E as raparigas iam cantando, cantando; e as aves nas árvores, gorjeando, e as águas do riacho nos seixos da estrada murmurando, faziam coro com elas, e Celina levava escondido seu vaso. Não quisera deixá-lo em casa, exposto à cobiça de algum gatuno. E os rapazes diziam: "Aquela que ali vai é Celina, que possui o mais belo vaso da aldeia..."

Por toda a manhã, por toda a tarde, a faina da colheita durou. E, quando a noite desceu, cantando e rindo as raparigas desfilaram, de volta à aldeia. Celina, sempre retraída, sempre afastada do convívio das outras, deixou-se ficar atrasada. E, sozinha, pela noite escura e fechada, veio trazendo o seu vaso precioso...

Dizem na aldeia que aqueles caminhos são perigosos, há por ali, rodando nas trevas, gênios maus que fazem mal às raparigas...

Não se sabe o que houve, sabe-se que Celina, chegando à casa, tinha os olhos cheios de lágrimas, e queixava-se, soluçando, de que haviam roubado as flores do seu vaso. E não houve consolação que lhe valesse, não houve carinho que lhe acalmasse o desespero. E os dias correram, e correram as semanas, e correram os meses, e Celina, desesperada, chorava e sofria: "Oh! as flores! as flores do meu vaso que me roubaram!...”

Mas, no fim do nono mês, Celina consolou-se. Não tinha recuperado as flores perdidas... mas tinha nos braços um pimpolho. E o João das Dornas, um rapagão que era o terror dos pais e dos maridos, dizia à noite, na taverna, aos amigos, diante dos canecos de vinho:

— Ninguém roubou as flores da rapariga, ó homens! Eu é que lhes fiz uma rega abundante, por que não admito flores que estejam toda a vida sem dar frutos...

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.
(Quando publicado, o autor utilizou o pseudônimo "Bob")

Caldeirão Poético LXI


Adélia Maria Woellner
Curitiba/PR

PRECE

Eu queria cantar o mundo,
com voz bem afinada,
e fazer ressoar meu canto
em cada canto,
em cada estrada.

Eu queria tocar qualquer instrumento,
que vertesse som,
que fluísse música com harmonia
e fazer cada corpo vibrar
ao compasso da minha melodia.

Eu queria ser pintor,
espalhar cores, muitas cores,
manchar telas com habilidade,
retratar a natureza, os sentimentos,
alegrar olhos e almas
e transmitir paz, serenidade.

Eu pedi a Deus tudo isso,
pois queria enternecer corações,
encher a vida de alegria,
colorir pensamentos
e despertar emoções...

Antes mesmo de nascer,
eu pedi para ser esteta...
Ah! como eu pedi a Deus!...
Pedi tanto, tanto,
que Deus me fez poeta.
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Adriana Mayrinck
Rio de Janeiro/RJ

A EMBRIAGUEZ DE UMA SAUDADE

Passo em descompasso
por ares distantes,
desfaço-me em melodias
tímidas e inaudíveis
de um lugar que ficou retido
na memória quase insana
e que traz saudade.

O olhar desfocado em miragens,
a pele marcada pelas passagens
de dores e êxtases
relembra outras paragens
que ainda cheira a maresia
e ventos quentes.

O corpo reage incansável,
com lentidão e firmeza
e grita em silêncio a sua insatisfação.

Notícias vindas de longe
de um cotidiano massacrado,
de um país humilhado
que resiste a inexistência
do que vai além.

Revolta-me o aprisionamento
a matança e a destruição
Mas líquido é o tempo
que baila na cor rubra
da essência que absorvo
em uma taça inexistente
dos sabores tropicais.

Embriago-me e retenho
o que está ao meu alcance.
Faço redemoinho com o ar e a terra
Espalho a palavra em ecos que bailam
e que liberta a esperança

que espera.
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Carlos Pena Filho
Recife/PE, 1929 – 1960

PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.
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Castro Alves
Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira/BA, 1847 — 1871, Salvador/BA

A QUEIMADA

Meu nobre perdigueiro! vem comigo.
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
Pelos ermos vagar!
Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n'agreste moita
A perdiz levantar!

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...
Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos
O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doido, rubro, veloz, incandescente,
O incêndio que acordou!

A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurvo,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas.
Galopando no ar.

E a chama lavra qual jiboia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas...,
Que espadanam o sangue das cascatas
Do roto coração.

O incêndio - leão ruivo, ensanguentado,
A juba, a crina atira desgrenhado
Aos pampeiros dos céus!
Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...
Queimado..., retorcendo na hecatomba
Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara pula; o cascavel - chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
E ás vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre - náufragos do medo –
Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...
N’último ramo do pau-d'arco adusto
O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... tombam as selvas seculares...
E tudo se acabou!…
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Ruy Espinheira Filho
Salvador/BA

DESCOBERTA

Só depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.

Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.

Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto,
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?

Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobe esta
inútil descoberta

enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.

George Abrão (Prestígio)

Dificilmente encontramos alguém que não goste de ter reconhecido o seu valor sociocultural na comunidade aonde vive, no seu trabalho, ou mesmo perante o seu círculo de amizade.

É muito gratificante a valorização dos seus atos, o reconhecimento pelas suas obras ou maneira de viver e de conviver. Tudo isso infla o ego e faz com que a pessoa procure se aperfeiçoar a cada vez mais, para que a sua influência positiva torne-se exemplo aos demais.

Mas o prestígio não é e tão somente atribuído ao homem, mas sim a um grupo que tanto pode ser uma associação, como pode ser uma empresa. E é sobre prestígio empresarial que quero falar hoje. E para isso, dar um exemplo de algo ocorrido comigo e com a empresa onde trabalhei durante toda a minha vida e onde me aposentei.

Quando ainda eu pertencia ao quadro de empregados ativos da Caixa Econômica Federal, sempre, no mês de julho, nas férias da minha esposa, eu conseguia alguns dias de licença para irmos até a cidade de Campos do Jordão. assistir ao Festival Internacional de Inverno daquela cidade, onde compareciam musicistas do mundo todo para apresentações em diversos locais e durante todo o mês.

Pois bem, no final dos anos oitenta, no mês de julho, saímos de Piraí do Sul, onde residíamos, para nossa viagem costumeira. Só que, como eu não havia reservado hotel, ao lá chegarmos, logo percebemos que não havia vaga disponível em hotéis no centro do Bairro Capivari, onde gostávamos de nos hospedar. 

Fomos a diversos deles e a resposta era sempre a mesma: “Não temos apartamento vago, pois como o festival está no auge de audiência, muita gente veio para cá.” 

Já estávamos cansados e quase desistindo quando resolvemos ir até mais um outro hotel. Lá chegando, fomos muito bem recebidos pelo proprietário, um senhor muito educado e gentil. Só que a sua resposta à nossa solicitação foi a mesma: “não havia aposento vago”. 

Então, pensei numa possibilidade e pedi a ele que me indicasse onde se localizava a agência da Caixa, que ele disse ser bem perto. Então lhe expliquei que iria até lá, procurar o meu colega gerente, para ver se ele conseguia algo. 

Quando ele soube que eu era empregado da Caixa, incontinenti me disse: “Então o senhor trabalha na Caixa? Por que não me disse isso antes?” Confirmei-lhe minha condição de economiário e me surpreendi com o que ouvi: “Como não posso ter acomodação para um funcionário da Caixa, da qual sou cliente fiel e irrestrito?” e continuou: “Tenho um apartamento coringa, exatamente para casos como o seu, e creio que irá gostar das acomodações, pois é das melhores do meu hotel”.

E assim, graças ao prestígio da minha querida empresa Caixa, conseguimos excelentes acomodações e também tratamento diferenciado durante os dias que lá ficamos. 

Fonte:
Ebook enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

sábado, 15 de abril de 2023

Daniel Maurício (Poética) 50

 

Aparecido Raimundo de Souza (Lanche da tarde)

A MESA DO CAFÉ ESTÁ POSTA. Abarrotada e demasiadamente farta. Ao redor desse imenso móvel todo talhado em madeira de lei, sentados, comportadamente, nós, crianças esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três. Hoje não faltará o pão caseiro. Somente a “Mãe Chica”, com as mãos hábeis dadas por Deus, sabe preparar essa fogaça (pão doce e enorme). Completando, bolo de farinha de trigo com água, sal e ovos; manteiga; pipocas salgadinhas; leite tirado na hora e café moído pouco antes de ir ao coador. Como variação, torta de chocolate, bananas assadas com açúcar e canela. 

Também no cardápio: maçãs vermelhinhas em pedaços; suco de frutas geladinho; queijo cortado em retalhos; presunto e mortadela em fatias. Há igualmente, de reserva, um pacote recheado (com as famosas bolachinhas da venda de “Seu Pereira”), que aguarda, de pronto ser aberto e devorado. Da cozinha contígua, às dependências do resto da construção, ninguém parece sentir o calor abafadiço da tarde linda e comprida. Lá fora, no grande terreiro, um sol ardente se espalha e se dispersa pelo quintal da propriedade que se divorcia das vistas, calcinando a quinta (propriedade) batida e as plantinhas desprotegidas do resguardo das sombras. 

Até as águas ligeiras e cristalinas de um córrego centenário que descem das montanhas seguem numa lentidão acanhada e preguiçosa, e, ao passarem sob a diminuta ponte da divisa do sítio, dão a impressão de imprimirem uma breve pausa como que para se refrescarem debaixo de uma mangueira imponente e altiva, abrigo de dezenas e centenas de pássaros que campeiam toda a extensão dessas paragens. No extremo apartado, para as bandas onde o infinito parece se abraçar à Terra, uma quase imperceptível elevação de poeira amarela se mistura com o ar mormacento e encalmadiço do dia bucólico marchando vagarosamente para o encontro de um ponto determinado. 

De fato. É um cavalo trazendo no lombo Vovô Jeremias, que, “atrasado” para a merenda, voa sobre as patas ligeiras de um fogoso garanhão:

— Tenham calma! O avô de “oceis loguinho apeia”.

Instantes depois, como previsto, Vovô Jeremias entrega a sua montaria à Mãe Chica que, mostrando o melhor sorriso nos dentes claros, acorre a receber o cavaleiro que desmonta espavorido sacudindo as roupas:

— Boas tardes, Mãe Chica...

— Boas, “Sinhô Jeremis!”.

Vovô Jeremias, ou como o trata, a Mãe Chica, de “Sinhô Jeremis” (ela não sabe pronunciar Jeremias) se emoldura num oitentão alto e corpulento, cabelos brancos e rugas precoces vincando as faces coradas. Pecuarista (Negociante de gado de corte), esse homem de coração aberto e feições tranquilas prospera criando, comprando e vendendo rebanhos da raça Nelore. Por conta disso, possui nos arredores do povoado três fazendas com um número gigantesco desses animais. Se tornou um dos mais ricos e abastados fazendeiros e exportadores da região. Atualmente, o Senhor Jeremias desfruta do que semeou desde seu passado distante, juntamente com Maria Sinhá (a nossa Vovó Sinhá), companheira de tantos e tantos janeiros. 

Os dois, agora, vivem nessa etapa pacífica da vida, ou seja, se dedicam aos filhos e seus descendentes:

— Olá, querida!

— Olá, querido!

Após beijar a esposa, parte em direção ao espaço onde quatro boquinhas famintas o esperam. Primeiro se aproxima das meninas Luzia e Luana e as abraçam com demorados afagos. Depois, repete o mesmo gesto comigo e Roberto Júnior. Vovô Jeremias se mostra tão estimado por todos nós, que, sempre brigamos distribuindo uma série de tapas e beliscões “carinhosos” disputando acirradamente o colo do ancião. 

Nessas ocasiões é necessária a imediata intervenção de Vovó Maria Sinhá, e as promessas solenes de que, dia seguinte, providenciará junto com a Mãe Chica, o prato predileto de cada um de nós em particular. Somente dessa forma consegue acalmar os ânimos alvoroçados:

— “Nóis távamos” famintos, vovô!...

— Ué, não “tão” mais?...

— Lógico que sim, vovô!

Desfazendo-se do chapéu de abas largas, o Senhor Jeremias caminha até o lavatório e ali se alivia um pouco do calor abrasante causado pela elevação da temperatura que o acompanhou desde a cidade. 

O líquido gelado jorrando da torneira aberta sobre suas mãos enrugadas lhe traz a sensação reconfortante da missão do dever cumprido. Em seguida, sem mais delongas, se acomoda em sua cadeira predileta, levanta a mão direita e grita sorridente:

— Muito bem, pirralhos e pirralhas! Canecas nas mãos. Vamos acabar com as coisas gostosas que aqui estão!...

A mesa do café posta. Ao redor desse móvel, sentados comportadamente, nós quatro esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três:

— Venha se sentar também conosco, Mãe Chica. Afinal de contas, a sua carcaça de ossos elegantes já faz parte integrante das mobílias da casa.

Mãe Chica, recatada num intervalo necessário, não espera segunda ordem. Conspícua, sorriso largo, se acomoda ao lado de vovô Jeremias e Vovó Sinha: 

—  Pois é pra já, “Sinhô Jeremis...”.  

Enquanto isso, pela paisagem enquadrada nas janelas da ampla cozinha, ao lado do fogão de lenha, à tarde pressurosa se faz ainda mais elegante e soberba. O sol quente, bonito e majestoso, continua a admoestar, sem compaixão, as criações, as aves e as plantinhas desamparadas e indefesas do resguardo precioso das sombras.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 12 –

ADORMECENDO PALAVRAS

Sem a palavra, simplesmente silêncio.
Há, no pavio, uma chama renitente
Que queima, aos poucos... a explosão, que é iminente,
E espalha ardentes emoções no ar sombrio.

Sou um ser frágil... tenho asas, bico... garras,
Sublimo o céu em cada sonho que me dou,
Se me açoitam, sou barco, solto as amarras
E assim, no vento... ou nas correntes... amo... e vou.

Minha palavra é projétil, ave e flor...
Com ela amo, fantasio... dinamito,
Meu coração é a pulsação do meu amor.

Bendito o homem que liberta a emoção
Aprisionada, mas que voa, com seu grito,
Mas adormece dentro do seu coração.
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LÍRICO ARTEFATO

Não sigo a frota, quando a rota é sem destino.
Que poliglota fala a linguagem do mar?
... sei velejar com a inocência de um menino:
Faço um barquinho... e deixo o vento me levar.

A ingenuidade foi meu ponto de partida
Busquei amar sem questionar a alma alheia,
Fui enganado... ou me enganei, pois minha vida,
É mais que o canto sedutor de uma sereia.

Há, na candura, essa espécie de contato
Que sempre foge da frieza de um retrato
E mostra um rosto que sorri à revelia

Da poesia que se torna um artefato,
No exato instante em que o dragão foge o rato
E a explosão do amor detona a fantasia.
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METADE

Se puderes me guardar no teu olhar,
Já me basta, porque, no teu coração,
De repente não irás me libertar
Pois voar não se acostuma com prisão.

Passarinho, eu nasci para voar
E cantar para alegrar a solidão.
Quando sonho, não escolho o que sonhar,
Meu amor convive bem com a emoção.

Se puderes me levar, deixa a metade
Para mim... gosto de ver, em liberdade,
Pelo menos um pedaço de quem sou...

A outra parte, que a protejas com carinho,
Porque, quando eu estiver bem mais sozinho,
Saberei me completar com o que restou.
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PARÁFRASE SURREALISTA DE UM SONETO

Olhando as formas de um soneto antigo,
Feito bem antes do descobrimento,
Um sonetista em desenvolvimento
Buscou, atento ao texto, um novo abrigo...

... vernacular... e em vão, quis disfarçar,
Com singular astúcia, o conteúdo,
Mudou os verbos, nomes, quase tudo,
Na intenção febril de o copiar.

Mas no final do último terceto,
O cidadão selou o seu soneto
Numa paráfrase tão surreal,

Que não contendo suas emoções,
Gritou: - Leitores! Roubei de Camões,
Este soneto feito em Portugal!
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UM POETA NÃO É SÓ SUBSTANTIVO

Sempre alguém diz que sou poeta até no nome...
...mas um poeta não é só substantivo...
o que se inventa, normalmente um dia some
e é assim: reinventando, eu sobrevivo.

Sou só mais um igual a tantos que diluem
nas suas dores, os seus sonhos e anseios,
seres que aprendem a criar versos que fluem,
polinizando a flor dos próprios devaneios.

Não modelei esse poeta que há em mim...
nasci assim, com esse dom especial
de abençoar, na solidão do meu jardim,
cada botão de cada flor original.

Não me sentei numa cadeira e copiei
o que pregava um ilustre professor,
mas diluí em cada olhar o que criei,
quando encontrei no meu olhar, meu próprio amor.

Meus mestres são sempre o melhor que alguém me dê,
sem me cobrar... o amor requer fraternidade...
e Deus repassa, a qualquer cristão que Nele que crê,
esse poder que existe dentro da humildade.

Deus misturou, em cada cor que eu desenhei,
o arco-íris da melhor abstração;
autodidata, cada linha que tracei,
foi um pedaço do meu próprio coração.

Sou, sim, poeta sem registro em cartório,
meu repertório não carece de um carimbo;
a inspiração é muito mais que algo simplório;
se alguém me bate, é com meus versos que me vingo.

Poetas choram poesias, quando o riso
que eles têm fazem da página, o caminho,
da sua lágrima melhor, tão sem aviso,
deixando um rastro moldado pelo carinho.

Não sou poeta só no nome, o meu olhar
capta a vida que respira ao meu redor
e é só o amor reaprender o que é sonhar,
que faço o mundo parecer muito melhor

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

Nilto Maciel (Consciência Tranquila)

D. Evinha ainda parecia nervosa. Um milagre não terem morrido. Aquele maluco devia estar preso, bem preso. Para nunca mais quase matar pessoas indefesas. Nereida chorava de vez em quando, embora não tivesse nenhum ferimento. Apenas uma pancada no joelho. 

Preocupado com as consequências do pequeno acidente, Silvano se lamentava: quisera apenas ajudar a velhinha. Coitada, sob aquele sol do meio-dia, esperando ônibus! Mara, porém, duvidava ter sido esse o motivo da atitude do marido. Não teria parado o carro por causa da mocinha?

Revoltada, Mara contou detalhes do acidente à amiga Maria Serpa. Uma freada brusca e quase matou a velhinha e sua neta. A outra quis saber se Silvano conhecia as duas mulheres. Nem uma nem outra. Viu a mocinha à beira da calçada e parou o carro. Depois arranjou a desculpa da misericórdia pela velhinha exposta ao sol a pino. Um miserável! Vivia atrás de mulheres. Não respeitava ninguém.

Mal se deitaram, Maria Serpa puxou conversa com o marido. Se já sabia do acidente causado por Silvano. Sim, coisa sem importância. A anciã nem sofrera nada. Porém havia a mocinha. E o tarado talvez até estivesse pegando ela. Não, Silvano não seria capaz disso, jurava Coutinho. Era, sim. Disso e de muito mais. Capaz de estuprar a própria filha.

À hora do recreio, Nereida encontrou Ione. Quase morrera no dia passado. Um doido num carro. Ofereceu-lhe carona e por pouco não bateu noutro carro. Não, não o conhecia. Se estivesse sozinha, não teria entrado no carro. Apenas conversaram. Não, não fez nenhum convite. Nem tocou em suas pernas. Coitada da vozinha. Muito assustada. Talvez descuido dele. Parece chamar-se Silvano. A polícia queria prendê-lo.

Silvano contou tudo a Coutinho. Um descuido. A velhinha falava sem parar, a garota ria. Não, não conhecia nenhuma delas. Podia ter sido grave o acidente. E se a velhinha tivesse morrido? Nem pensar nisso. Quisera apenas praticar uma boa ação. Mara gostava de dizer tolices. Então não se preocupasse mais com aquilo. Não, de jeito nenhum. Tinha a consciência tranquila.

E mudaram de assunto.

Fonte:
Enviado pelo escritor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Jaqueline Machado (O Diabo, de Liev Tolstói)

"Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. 
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno."

É com esse versículo ameaçador de Mateus, 5. 28:30,  que se inicia a novela de Liev (ou Leon) Tolstói publicada postumamente no ano de 1911. Essa tônica vai reger toda a novela que conta a história do personagem Evguêni Vânovitch, que é um de três filhos. O rapaz é comum, nem burro, nem muito inteligente, mas bem educado. Após a morte de seu pai, ele fica com a mãe e assume as responsabilidades da herança. Logo, também descobre que seu pai deixou muitas dívidas. Sua herança é uma fazenda que ficava num vilarejo. Na fazenda, ele se envolve com uma mulher casada: Stiepachka, com quem se encontra muitas vezes num galpão da propriedade. E o que parecia ser uma paixão aleatória, apenas para saciar seus desejos carnais, ganha inesperadas proporções.  

Evguêni se casa com Lisa Anienkaia, uma mulher que Tolstói descreve como a mulher perfeita em tudo o que faz, o apoia em tudo e mantém a casa perfeitamente organizada. E ainda divide o seu dinheiro com ele. O casamento ia muito bem até que, um ano depois de casado, ele se encontra novamente com Stiepachka, que ao se mover e erguer o vestido, deixa parecer o tornozelo e o lenço. Dali em diante ele passa a se deixar levar por uma tentação arrebatadora. O que parecia sem importância, agora estava integrado à sua vida conjugal.

Toda vez que Evguêni, via a ex-amante, sentia-se irremediavelmente atraído por ela. E num momento de desesperança total, pede a ajuda do tio de sua esposa. Nessa conversa ele desabafa, expondo todas as suas vulnerabilidades. E implora: “- Por favor, salve-me de mim mesmo!” O tio o aconselha a se retirar por um tempo da fazenda junto de sua esposa. Ele acolhe o conselho e decide partir. 

Em seguida, Lisa dá a luz a uma linda menina. Ao retornar à casa com sua família, ele se sente liberto: um marido honesto e fiel. Mas está enganado a respeito de si mesmo. Ao ver Stiepachka percebe que não está curado: os desejos o possuem novamente. E ele só consegue enxergar três saídas: matar a esposa para viver com a mulher que o atormenta, matar Stiepachka ou matar a si mesmo. 

Desesperado, ele mata a camponesa, porque ela era o diabo que o possuía. Foi preso, e depois passou um tempo num mosteiro onde bebia. E retorna ao lar como um alcoolatra. Ou seja, agora o diabo que o dominava não era mais a bela camponesa a quem matou, e sim, a bebida.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 25

 

Coelho Neto (O Tempo)

Querendo o príncipe oferecer ao templo uma imagem de Apolo digna do edifício grandioso que 
mandara construir para honrar a divindade esplêndida e levar, pelos séculos vindouros, a fama da sua grandeza, convocou os mais celebres estatuários do reino para uma conferência em palácio.

Apresentaram-se três artistas, dos quais um deles seria nomeado.

Disse-lhes o príncipe o que pretendia, ajuntando, com largueza, que não fazia questão de preço e que pedissem tudo quanto julgassem necessário à boa execução da obra de arte, que devia ser bela e solidamente feita para que deslumbrasse e resistisse aos séculos.

– Senhor, disse o primeiro estatuário, dai-me ouro e eu vos trarei uma estátua tão bela que, no dia em que for instalada no templo, os homens da terra terão a ilusão de estar contemplando o próprio condutor do carro do sol.

E o príncipe ordenou que se cumprisse a vontade do artista.

— Senhor, disse o segundo estatuário — farei de prata o corpo, farei de ouro as vestes e cobri-las-ei de pedras preciosas. Será tão formosa a imagem que os deuses baixarão do Olimpo para contemplá-la, e, de pé, no altar do templo, dispensará a luz do sol e a claridade das lâmpadas porque os raios que emitir iluminarão gloriosamente o recinto.

E o príncipe ordenou que fosse satisfeito o desejo do artista.

Foi a vez do terceiro estatuário. Era um velho, de barbas brancas, tão longas que lhe chegavam à cintura. Caminhava lentamente e, curvando-se ante o príncipe, falou com respeito e modéstia :

— Senhor, dai-me um bloco de mármore puro e tempo para que eu nele trabalhe e procurarei fazer o máximo que a um homem é dado fazer.

Puseram-se os três escultores com o que haviam pedido e, em todo o reino não se falou, durante meses, em outro assunto senão no concurso chamado “divino”.

Ainda ia em meio o primeiro ano quando o artista que pedira ouro apareceu orgulhosamente na corte com o seu Apolo.

Foi um acontecimento e não faltou quem louvasse a grande atividade do modelador. Descoberta a figura, pasmaram os assistentes. A imagem irradiava como o próprio sol. Mas um perito, adiantando-se à turba, pôs-se a mostrar defeitos que muito comprometiam o trabalho e outras vozes criticaram: uma a expressão, outra a atitude; esta notava a falta de majestade; aquela as desproporções.

— Vale porque é de ouro, disse por fim o perito.

E o príncipe, desgostoso, mandou fundir em moedas a estátua que fora destinada a adoração dos crentes.

Pouco tempo depois anunciou-se o segundo estatuário.

Ainda que o seu trabalho revelasse maior esmero não o acharam, todavia, digno de ocupar o solo em que devia ser erigida a imagem olímpica.

— É bela e é rica, refulgente, mas falta-lhe majestade! É uma linda figura humana e nós queremos um deus.

E a estátua de prata e ouro, com recamos de pedrarias, ficou ornando uma das salas do palácio.

Do terceiro estatuário não havia notícia e já corriam murmúrios irónicos, boquejos de menoscabo : “Desistiu da empresa. Era velho demais para trabalho que exige inspiração viçosa. Anda, sem dúvida, a fazer figurinhas, como as de Tanagra, para vendê-las aos forasteiros.”

Uma manhã, porém, para surpresa de todos, apareceu o velho no palácio com o seu “deus” envolto em panos de linho.

Ainda que ninguém confiasse no seu trabalho, juntaram-se todos os cortesãos no palácio, só por subserviência ao príncipe, e os serviçais descobriram a imagem. Houve um movimento de espanto.

Maravilhados, embevecidos quedaram todos contemplando a figura olímpica, Apolo, o magnífico — que, de pé sobre nuvens, a cabeça aureolada de raio, o olhar sublime, parecia dominar serenamente os homens.

— Este sim ! Este é Apolo augusto ! bradaram. Este é o deus solar, dominador da altura. 

Descendo do trono, o príncipe felicitou o artista e, depois de o haver engrandecido com palavras de louvor, perguntou :

— A que deus pediste a graça de tão formosa inspiração ?

— Ao Tempo, senhor. Outros exigiram metais e pedras preciosas, a mim bastou o mármore puro. Para enriquecê-lo eu contava com o Tempo. Se, para uma curta viagem, são necessárias muitas horas como havemos de afrontar os séculos de afogadilho?

A inspiração é a flor do gênio, mas não exijamos que ela dê fruto saboroso logo que desabroche. É preciso deixar que o Tempo faça o seu oficio. Se um deus me patrocinou foi a Paciência ; se um demônio comprometeu a obra dos que me precederam, foi a Pressa. Senhor, os séculos são longos e quem se destina a atravessá-los deve ir devagar. Quereis saber como se consegue a Eternidade ? Com o Tempo.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. 

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 11

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Abalo o pé da roseira,
mas não o posso arrancar.
Quem não tem bens de raiz
glórias não pode alcançar.
= = = = = = = = = = = = = 

As rosas é que são belas,
são os espinhos que picam,
mas são as rosas que caem...
são os espinhos que ficam...
= = = = = = = = = = = = = 

Chovam raios e coriscos,
parta-se o mar em pedaços,
hei de amar o meu benzinho
com todos seus embaraços.
= = = = = = = = = = = = = 

Cravo goivo, amor perfeito,
metido em tua almofada...
No dia em que não te vejo,
não como, não faço nada.
= = = = = = = = = = = = = 

Cravo, não bulas com a rosa,
deixa a rosa na roseira...
Tu bem sabes que é pecado
bulir com moça solteira.
= = = = = = = = = = = = = 

Cresce a lua, cresce o mar,
Cresce a planta, cresce a flor,
Só não cresce na tu'alma
a raiz do meu amor.
= = = = = = = = = = = = = 

Do jardim deste teu peito
quero dois botões de rosa,
e quero teu coração,
das flores a mais mimosa.
= = = = = = = = = = = = = 

És uma roseira fina,
bem enflorada a meu gosto,
os botões estão no seio,
a rosa aberta é teu rosto.
= = = = = = = = = = = = = 

Eu passei por um craveiro,
tirei um cravo com a unha.
Quem toma o amor dos outros,
não tem vergonha nenhuma.
= = = = = = = = = = = = = 

Lá detrás daquele cerro,
é o sertão do Seridó.
Faço carinhos a todos,
mas quero bem a ti só.
= = = = = = = = = = = = = 

Lá d'outra banda do rio
está uma rosa por se abrir.
Quem me dera ser sereno
para nessa rosa cair!
= = = = = = = = = = = = = 

Logo mando quatro cravos,
todos quatro por abrir...
Meus braços estão abertos,
sempre que tu queiras vir.
= = = = = = = = = = = = = 

Meu benzinho, se eu pudesse,
fazia a noite maior...
Dava um nó na lua cheia,
outro nos raios do sol.
= = = = = = = = = = = = = 

Meu botão de rosa branca,
teu aroma me entristece,
hoje em dia, minha rosa,
quem mais faz menos merece.
= = = = = = = = = = = = = 

Muito lindo é o céu
pra onde Deus nos criou:
Sem primeiro padecer
nunca ninguém o gozou.
= = = = = = = = = = = = = 

Ó lua, dá-me teu brilho,
bela rosa, as tuas cores.
Primavera, as tuas galas,
para enfeitar meus amores.
= = = = = = = = = = = = = 

0 mar se desmancha todo,
em rendas junto da praia.
Também andam meus amores
na renda da tua saia.
= = = = = = = = = = = = = 

Passeia, meu bem, passeia,
por paragens que eu te veja,
inda que a boca não fale,
meu coração te festeja.
= = = = = = = = = = = = = 

Plantei um pé de roseira,
nasceu um de maravilha,
estou falando com a mãe
mas com sentido na filha.
= = = = = = = = = = = = = 

Rebenta o raio feroz,
derruba sem compaixão,
castiga o orgulho da terra
que se levantou do chão…
= = = = = = = = = = = = = 

Roseira, dá-me uma rosa,
craveiro, dá-me um botão,
que em troca do teu afeto,
dar-te-ei meu coração.
= = = = = = = = = = = = = 

Sereno da madrugada
caiu no talo da couve.
Quem me dera que eu caísse
nos braços de quem me ouve!
= = = = = = = = = = = = = 

Subi às portas das nuvens,
cavalgando num trovão,
desci nas cordas das chuvas
com dez coriscos na mão.
= = = = = = = = = = = = = 

Tive um canteiro de estrelas,
de nuvens tive um quintal,
para dar ao meu amor
se não me quisesse mal.
= = = = = = = = = = = = = 

Vamos viver na campina,
como vive a planta e a flor,
gozando em suave paz
a suave lei do amor.
= = = = = = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Irmãos Grimm (O Senhor Compadre)


Um homem pobre tinha tantos filhos que ele já tinha pedido a todo mundo para ser padrinho de seus filhos, e quando mais uma criança havia nascido, não restava ninguém a quem ele pudesse convidar. Ele não sabia o que fazer e, todo confuso, foi se deitar e caiu no sono. Então, ele sonhou que ele tinha que sair na rua e pedir para a primeira pessoa que ele encontrasse para ser o padrinho.

Quando ele acordou, ele decidiu fazer o que o sonho mandava, e saiu para a rua, e pediu para a primeira pessoa que apareceu para ele para ser seu compadre. 

O estranho lhe presenteou com um pequeno copo d’água, e disse, "Esta é uma água maravilhosa, com ela você poderá curar os doentes, você deverá apenas observar onde a Morte vai ficar. Se ela ficar perto da cabeceira do paciente, ofereça ao paciente um pouco de água e ele ficará curado, mas se a Morte ficar aos pés do paciente, todo esforço será em vão, porque a pessoa doente com certeza irá morrer." 

Desse dia em diante, o homem sempre conseguia dizer se um paciente poderia ser salvo ou não, e se tornou famoso com essa sua habilidade, e ganhou muito dinheiro com isso.

Uma vez ele foi chamado para ver a filha do rei, e quando ele entrou, ele viu que a Morte estava na cabeceira da criança e portanto, a curou com a água, e ele fez a mesma coisa uma segunda vez, mas na terceira vez a Morte estava aos pés da criança e então ele sabia que a criança estava destinada a morrer.

Certa vez esse homem pensou em visitar o compadre, para lhe falar sobre o sucesso que ele tinha conseguido com a água. Mas quando ele entrou na casa, era um lugar tão esquisito! No primeiro lance de escadas, a vassoura e a pá estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente. 

Então, ele perguntou a elas, "Onde é que mora o compadre?" 

A vassoura respondeu, "Um lance de escadas acima." 

Quando ele chegou no segundo lance, ele viu um amontoado de dedos de mortos no chão. E perguntou, "Onde é que mora o compadre?" 

Um dos dedos respondeu, "Um lance de escadas mais alto." 

No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta, que também indicaram para ele um lance acima.

No quarto lance de escadas, ele viu peixes no fogo, onde eles próprios eram fritos e cozidos nas panelas. Eles também disseram, "Um lance de escada acima." 

E quando ele tinha subido o quinto lance, ele chegou na porta de um cômodo e deu uma espiada pelo buraco da chave, e lá ele viu o compadre que tinha um par de longos chifres. Quando ele abriu a porta e entrou, o compadre deitou na cama todo apressado e se cobriu. Então, o homem disse, "Senhor compadre, que estranhos moradores você tem aqui! Quando eu cheguei no seu primeiro lance de escadas, a pá e a vassoura estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente."

"Como você é tolo!" disse o compadre. "Eles eram o garoto e a criada que estavam conversando." 

"Mas no segundo lance eu vi dedos de gente morta caídos no chão." 

"Oh, como você é doido! Eram algumas raizes de scorzonera." 

"No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta." 

"Seu bobo, eram apenas repolhos." 

"E no quarto lance, eu vi peixes na panela, que estavam assobiando e assavam a si próprios." Quando ele disse isso, os peixes vieram e começaram a se servir. "E quando eu cheguei no quinto lance de escadas, eu dei uma espiada pelo buraco da fechadura, e então, meu compadre, eu vi o senhor, e o senhor tinha chifres muito longos." 

"Oh, isso é mentira!" 

O homem ficou tão assustado, que saiu correndo, e se não tivesse fugido, quem sabe o que o compadre teria feito com ele.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. 
Conto em Domínio Público.