segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Renato Benvindo Frata (Soneto de Despedida)

No Soneto de Despedida, Vinícius de Morais cantou a lua e a mulher amada. Ambas nuas, uma no céu e outra na terra, igualmente formosas a mexer com a sua alma irrequieta como são as de quem ama. Mulher e lua, portanto, serviram de inspiração e o fizeram suar em gotas gigantes o sentimento a que se dá o nome amor.
 
Sua inspiração boêmia fê-lo "o poetinha do Brasil", na acepção mais carinhosa do termo; e nos legou frases, poemas e canções lindas extraídas - como ele próprio confessou do seu âmago anestesiado pelo fumo e uísque.

O verbo despedir, de certa forma, soa tristeza: tanto na sua forma transitiva direta que significa "terminar unilateralmente", como adeus, não quero mais, ou para mim basta!, ou como enquanto verbo pronominal quando alguém diz palavras de despedida no momento da sua saída: -"vou-me embora... pra Pasárgada" como o disse Bandeira, numa alusão a um suposto amigo que o esperava.
 
Quando se termina algo é sinal que chegou o fim; e, como fim a conclusão de qualquer coisa, daí o questionamento; o fim existe?
Ouso dizer que materialmente sim, como o construtor quando acaba de vez um trabalho, ou o artista quando dá a última pincelada de tinta em seu quadro. Mas, no sentido imaterial, é possível afirmar que o fim existe?
 
Cora Coralina versejou que "o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher." Acreditando nesse conceito, quando se tem o que colher não aconteceu o fim propriamente dito, mas apenas e tão somente uma leve parada. Um repouso para ganhar força e continuar como faz a flor que morre para deixar a semente, mas não antes de atrair com seu perfume abelhas, borboletas e passarinhos com o propósito de deixar que misturem o androceu com o gineceu que carrega em seu seio e possibilitam a fecundação, e de distribuir sua continuidade pela natureza através do pólen que os insetos e animais (e o próprio vento) arrastam em seus corpos, pernas, bicos e do vai e vem das brisas.
 
Sábio como a flor que renasce em cada semente, Vinícius com seu Soneto de Despedida não se despediu; apenas engoliu mais um copo e mais outros, fumou uma série de carteiras de cigarro que lhe alimentavam a inspiração e, depois a cada intervalo, curado dos porres, retornou a compor novos sonetos, a ruminar novos versos, trovas e cantigas a várias e diferentes musas terrenas, porque sua alma de poeta era tão volátil quanto a nuvem passageira que apenas rabisca momentaneamente o céu na sua passagem sem lhe deixar marcas perenes.
 
Aliás, a nuvem não deixa nem um traço em sua passagem, pois o dia seguinte será sempre outro dia, cuja noite envergará no céu a mesma e linda lua de sempre, em qualquer das fases, com o mesmo poder de atração e sedução a retirar dos amantes palavras torneadas pela paixão e gestadas pelo entusiasmo. E de colocá-las no papel para o deleite de todos como o fez o "poetinha".

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. 
Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVII

“CAMINHO A TEU LADO MUDO”

 
Caminho a teu lado mudo
Sentes-me, vês-me alheado...
Perguntas: Sim... Não... Não sei...
Tenho saudades de tudo...
Até, porque está passado,
Do próprio mal que passei.

Sim, hoje é um dia feliz.
Será, não será, por certo
Num princípio não sei que
Há um sentido que me diz
Que isto — o céu longe e nós perto
É só a sombra do que é...

E lembro-me em meia-amargura
Do passado, do distante,
E tudo me é solidão...
Que fui nessa morte escura?
Quem sou neste morto instante?
Não perguntes... Tudo é vão.
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“CANSADO ATÉ OS DEUSES QUE NÃO SÃO”
 
Cansado até os deuses que não são...
Ideais, sonhos... Como o sol é real
E na objetiva coisa universal
Não há o meu coração...
Eu ergo a mão.

Olho-a de vis, e o que ela é não sou eu.
Entre mim e o que sou há a escuridão.
Mas o que são isto a terra e o céu?

Houvesse ao menos, visto que a verdade
É falsa, qualquer coisa verdadeira
De outra maneira
Que a impossível  certeza ou realidade.

Houvesse ao menos, som o sol do mundo,
Qualquer  postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo,
Crível talvez, mas tenho coração.

Mas não há nada, salvo tudo sem mim.
Crível por fora da razão, mas sem
Que a razão acordasse e visse bem;
Real com o coração, inda que...
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“CANTA ONDE NADA EXISTE”
 
Canta onde nada existe
O rouxinol para seu bem,
Ouço-o, cismo, fico triste
E a minha tristeza também.

Janela aberta, para onde
Campos de não haver são
O onde a dríade se esconde
Sem ser imaginação.

Quem me dera que a poesia
Fosse mais do que a escrever!
Canta agora a cotovia
Sem se lembrar de viver…
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CEIFEIRA
 
Mas não, é abstrata, é uma ave
De som volteando no ar do ar,
E a alma canta sem entrave
Pois que o canto é que faz cantar.
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“CHEGUEI À JANELA”
 
Cheguei à janela,
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
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“CHOVE. QUE FIZ EU DA VIDA?”
 
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

Fernando Sabino (Sem tirar patente)

Estou convencido de que errei de profissão, ao escolher a literatura. O que eu sou mesmo é inventor. E um grande inventor. Com o auxílio de minha filha Mariana, que rima com bacana, inventei o telefone portátil, a televisão de bolso, o rádio de pulso e a bicicleta voadora. Só não inventei o pó de pirlimpimpim.

Antes que esta crônica entre em colapso, num delírio de paranoia, e eu me diga inventor da luz elétrica e Pai da Aviação (embora não negue que tenha parte na invenção do zepelim), deixa eu dizer que minha inventiva não voa a tais alturas, nem sustento ter-me chamado Edson, Marconi ou Santos Dumont, noutras encarnações.

Apenas lamento que invenções um pouco menos espetaculares, como as que citei, custem tanto a ser produzidas.

Outras já o foram, antecipando-se à patente que delas eu deveria ter tirado. Há anos, por exemplo, que amaldiçoo essa invenção diabólica usada para tirar cópia, chamada papel carbono: amarrota-se com facilidade, suja a ponta dos dedos e as demais folhas de papel em branco, resiste ao uso da borracha, acaba produzindo cópias manchadas ou ilegíveis. Não se falando na sua intolerável propensão a colocar-se invertida entre as folhas de papel, produzindo ao fim uma belíssima cópia, mas para ser lida ao espelho, nas costas do original. Sempre desejei que existisse um carbono resistente, com tinta indelével como a das próprias fitas de máquina.

Pois finalmente aqui está o carbono de plástico, que dá cópias iguais ao original, e que alguém chamado Burroughs patenteou antes de mim, sob o n.° 876.854.

Em compensação, e ainda nos domínios da máquina de escrever, continuo esperando que industrializem o dispositivo que inventei para corrigir no papel os erros datilográficos. Um espertinho quis se antecipar e me apareceu no mercado com uma tirinha de papel carbono branco, do tamanho de um band-aid (extraordinária invenção!), a ser inserida entre a fita e o papel, para apagar as letras erradas, batendo-as novamente.

O processo, em si, é correto, mas minha invenção é melhor. E aqui a ofereço gratuitamente ao primeiro aventureiro que quiser lançar mão dela, o tal Burroughs, por exemplo: a própria fita da máquina deveria ter uma faixa de tinta branca, sobre a qual reescreveríamos o que deve ser apagado.

Outras invenções me fazem ferver a cuca, e vivo encafifado pelo fato de não virem logo à luz do dia. As que me inspiram os objetos de dar corda, como os antigos fonógrafos, por exemplo: se existem relógios e brinquedos de corda, por que não podem existir, baseados em igual sistema, motores de verdade, até mesmo de automóvel?

Antes que acabe descobrindo o moto-contínuo, detenho-me diante daquele menino da anedota, que dizia aos pais ter descoberto numa loja de antiguidades uma vitrola maravilhosa, que funcionava sem corrente elétrica, sem pilha, sem nada.

E está certo o diabo do menino. Nada mais prático foi até hoje inventado, para resolver o problema infernal de um automóvel com bateria descarregada, que aquele ferro torto com o qual se punha antigamente o motor em funcionamento, e que se chamava manícula. Manícula! Com nome tão fabuloso, só podia ser mesmo uma grande invenção.

Outras grandes invenções, como a caneta esferográfica, o saca-rolhas de ar comprimido ou a sandália japonesa, enchem-me de inveja por não terem nascido antes de minha poderosa imaginação criadora. Tão poderosa, que já concebeu a simbiose do bidê e do vaso sanitário, com chuveirinho regulável, e descobriu que a serra de pão é o melhor instrumento para descascar abacaxi.

Não se falando no aperfeiçoamento introduzido numa das mais prodigiosas criações de nosso tempo, que reconheço não ter sido minha, e a cujo inventor rendo aqui minhas homenagens: o fecho eclair. Para ser perfeito, sem risco de enguiçar a todo momento ou, quando na roupa, beliscar a pele do freguês, não deveria ser de dentes de metal, mas de trilhos de plásticos fechados sob pressão. Quando vi pela primeira e única vez a moderna versão que inventei, no fecho de uma pasta que a Varig me deu, entre as lembranças que costuma oferecer aos seus passageiros em viagem internacional, maravilhado exclamei: o que é a Natureza! E vi reafirmada a minha crença no progresso da Humanidade.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Estante de Livros (Livros de André Vianco)

A CASA


Em A Casa você encontrará quatro pessoas com os corações atormentados em busca de perdão. Aprenderá que o perdão é o sentimento mais nobre em nosso caráter e tão poderoso que poderá unir os que estão do lado de cá com os que já foram para o lado de lá.. Descubra um romance delicioso, afetivo, que trata de sentimentos e vida após a morte.
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O CAMINHO DO POÇO DAS LÁGRIMAS

Jonas viajava com os filhos Ingrid e Bosco por uma estrada escura. De repente os três adormecem e, quando acordam, depois de muitos sonhos agitados, se dão conta de que estão em um vasto campo verde. O carro em que viajavam desapareceu e a única saída daquele campo é um caminho formado por pedras justapostas... é O Caminho do Poço das Lágrimas. Mas para onde os levará esse caminho? Que mistérios e perigos os esperam?

Em seu 13º romance o escritor André Vianco aventura-se através de uma fábula gótica moderna. O Caminho do Poço das Lágrimas é um livro ilustrado, cheio de metáforas, que leva a reflexões acerca da morte, da maneira como levamos a vida nos dias de hoje.

O livro nasceu depois do autor ter se dedicado durante três anos às histórias de terror, envolvendo vampiros. Há algum tempo seus leitores vinham dizendo que estavam com saudades de livros como A Casa por isso, quando a ideia para essa fábula surgiu, ele não conseguiu fazer mais nada direito, até que finalmente a colocou no papel:

"A ideia para escrever O Caminho do Poço das Lágrimas nasceu de uma história de ninar que eu inventei para as minhas filhas. Durante muito tempo essa história ficou remoendo em minha mente, ela se apoderou de mim de uma maneira que eu precisei parar tudo para dar vida a ela.", explica André Vianco.
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O SENHOR DA CHUVA

Um anjo perseguido, para não ser destruído, possui o corpo de um ser humano igualmente agonizante. Assim, o anjo quebra uma regra sagrada que dá aos demônios o direito de evocarem uma guerra desigual que poderá desencadear a destruição de todos os anjos de luz da Terra. Agora, os dois exércitos estão furiosos, transformando as tranquilas pastagens de Belo Verde num funesto campo de batalha onde espadas parecem chamas e olhos parecem brasa. Esta misteriosa aventura sobrenatural estará repleta de batalhas no mundo dos anjos, vampiros... e demônios.
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André Ferreira da Silva, conhecido pelo pseudônimo André Vianco, nasceu em São Paulo, em 1975, mas foi criado em Osasco. É um romancista, roteirista e diretor de cinema e de televisão brasileiro. Especializado em literatura de terror, sobrenatural, de baixa fantasia e vampiresca, alcançou a fama em 1999 com o romance Os Sete, tornando-se um best-seller.

De acordo com dados de 2016, seus livros já venderam mais de um milhão de exemplares. Em 2018 foi considerado, junto a Max Mallmann, Raphael Draccon e Eduardo Spohr, como um dos principais autores brasileiros de fantasia do século XXI. Começou a carreira trabalhando como redator para o departamento de jornalismo da Rádio Jovem Pan, e também tinha um emprego de meio-período em uma empresa de cartões de crédito. Publicou por conta própria seu romance de estreia, O Senhor da Chuva, em 1998.

Publicou, com uma tiragem de mil cópias, aquele que se tornaria seu primeiro best-seller, Os Sete, em 1999. Os Sete foi seguido por Sétimo e pela trilogia O Turno da Noite, e pela prequela em quadrinhos Vampiros do Rio Douro, em dois volumes. Depois de publicar os thrillers sobrenaturais A Casa e Sementes no Gelo em 2002, voltou à ficção vampiresca com Bento em 2003, primeiro livro da série O Vampiro-Rei; foi seguido por A Bruxa Tereza (2004) e Cantarzo (2005), e pela série de prequelas As Crônicas do Fim do Mundo – a primeira parte, A Noite Maldita, foi lançada em 2013; a segunda, À Deriva, foi anunciada por Vianco em seu site oficial em fevereiro de 2019. Em 2010, lançou O Caso Laura, que saiu no ano seguinte, e a série de livros infantis Meus Queridos Monstrinhos, que desde 2014 já tem três volumes. Em 2015 lançou Estrela da Manhã. Em 2016 publicou seu primeiro romance de ficção científica, Dartana. Publicou seu 17. romance (e 23. obra literária como um todo), Penumbra, 2017.


domingo, 22 de agosto de 2021

Arquivo Spina 47: Marilice Cavalli de Oliveira

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Mãe do Ano

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da virgem Maria:
- Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
Barreto Coutinho
Limoeiro/PE, 1893 – 1975, Curitiba/PR


Dona Joaninha recebeu muito comovida o título de “Mãe do Ano”. Dos doze filhos, um compareceu à festa; os demais estavam muito ocupados nos seus que-fazeres: trabalho, estudo, malhação, paquera e outras curtições. Dona Joaninha desculpava. Tadinhos...

Medalha, flores, beijos, discursos. Heroica Joaninha. E por que não se encontrava ali o marido dela? Ocupadíssimo também, viajando, visitando clientes. Ela humildezinha recebendo os elogios, tantos anos de lutas, renúncia total a si mesma, dedicação total à família. Dava para adivinhar que quando morresse entraria direto no céu.

Não, porém, sem antes receber de São Pedro um puxãozinho de orelha por haver criado em sua casa um bando de egoístas. Doando-se inteiramente ao marido e aos filhos, resultou que eles se acostumassem a apenas receber, jamais dar coisa alguma.

Casara-se muito jovem, aos 16 anos. Vida dura no sítio, cozinhando, costurando, lavando, nas horas vagas capinando roça. Os filhos nascendo um atrás de outro. Mingauzinho pra um, troca fralda em outro, cata piolho no mais velho, põe no banho o mais novinho, ajeita as coisas do marido, arruma a casa, mãe extremosa, esposa objeto, máquina de servir...

O marido abriu negócios na cidade, levou a família; os filhos para estudar, Joaninha para trabalhar, ele para nunca mais parar de abrir novos negócios. Ela, a esposa exemplar, cuidando da meninada; ele, o machão formoso, cuidando de aumentar o patrimônio.

Dinheiro não faltava. Joaninha pusesse os meninos em bons colégios, gastasse o que preciso fosse com roupas e outros confortos. Se quisesse, podia até contratar uma, duas, três ajudantes. Só não enchesse o saco dele com probleminhas domésticos.

Joaninha não perturbava ninguém; servia apenas. Habituada ao trabalho, quis somente uma auxiliar para os serviços de limpeza. Para ela nada queria; bastavam os vestidinhos de ir à missa e umas roupinhas caseiras. Nada de salão de beleza nem de enfeites caros.

O marido, quando não estava em viagem, entrava em casa só para comer, dormir, assinar cheques. Nenhum agradinho pra Joaninha, já velhinha e sem encantos. Encantos ele procurava fora. “Tudo bem – dizia ela – homem é assim mesmo, deixe ele se divertir...“

Nos discursos indicaram Dona Joaninha como esposa perfeita e mãe modelo. Dava até para entender, pelo muito que ela sempre amou. Porém seria bem provável que a boa senhora não escapasse mesmo de um puxãozinho de orelha na porta do céu – carinhosa reprimenda por jamais haver tentado disciplinar aquele desaforoso marido; mais ainda por haver estragado os filhos ao aceitar ser escrava deles: aquelas preguiçosas moçonas e aqueles garotões inúteis, incapazes de sequer arrumar as camas onde dormiam.

Dona Joaninha nunca se queixa. Costuma dizer que felicidade de mãe é ver a família feliz. Mãe do Ano...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 5 –

A escuridão, devagar,
faz despertar a estrelinha,
mescla de treva e luar
que ilumina quem caminha.
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Alguém assumindo um posto
nunca o faça por lazer,
pra não carregar no rosto
mais desgosto que prazer.
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A mãe, na velhice implora:
Filho vem me visitar!
E este esquece que ela chora
por não ter com quem falar.
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Ao jogarmos luz e encanto
nunca nos falte a harmonia,
vivendo num dia santo,
sempre, a cada santo dia.
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A persistência consiste
na constância do combate
e no embate quem persiste
não desiste, nem se abate.
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A ti mãe, muito obrigado!
Por ter transmitido a vida.
Perdão por tê-la deixado
sem a atenção merecida.
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A vida fica mais linda
e a amizade rica e bela,
se a felicidade infinda
estiver presente nela.
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A vida só tem sentido
se vivida intensamente
e cada instante vivido
sempre novo e diferente.
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Da flor, às margens da estrada,
brotam as recordações,
mas é da pedra calada
que advêm as lamentações.
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Depois de uma noite fria
e tão densa madrugada,
só nos resta a luz do dia
pra viver nova jornada.
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Enquanto a lágrima escorre
sobre a face do inocente,
tem alguém que ao mal recorre
pra trazer a dor presente.
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Enquanto sonhas em ter
algo que jamais tiveste,
nunca olvides, de antes ver,
se ao teu ser, vida lhe deste.
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Filhos, Mãe só tendes uma,
dai-lhe amparo, como tal!
Não vereis mulher alguma
superior, ou mesmo igual,
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Mesmo em prantos, a sofrer,
o amor recebe outro nome:
A Mãe deixa de comer,
pro filho não passar fome.
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Nada tem de tão distante
que nunca possa alcançar,
siga à luta, sempre avante,
nunca hesite em avançar.
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Nada tem de tão ruim
que não possa piorar,
também de bom, tanto assim,
que não deva melhorar.
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Não desprezes as raízes
pois, delas a essência vem,
fontes de mentes felizes,
frutos que sementes têm.
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Não volte para o passado
no afã de colher seu fruto,
sem antes tê-lo plantado
mesmo em distante reduto
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O homem, muito quer a paz,
para em paz adormecer,
diz fazer, porém não faz,
essa paz acontecer.
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Olhares tristes e amargos
não deixam mentir a idade
e a voz, com alguns embargos,
abala a serenidade.
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O sentido do Natal
o homem quase desconhece,
cresce o valor material
e a essência desaparece.
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Para o progresso existir
e a diferença imperar,
a mudança deve advir
levando algo a prosperar.
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Permanece sempre alerta,
busca a meta sem cansar,
na oportunidade certa
o teu sonho hás de alcançar.
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Se o sinal está vermelho
na rua, nunca atravesse,
seja do outro o próprio espelho
e a observar também comece.
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Temos, no mundo dos vivos,
mortos, mas vivos na mente,
ou porque foram altivos,
ou marcantes, tão somente.
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Toda a pedra rejeitada
poderá se transformar,
dentro da obra projetada,
em grande pedra angular.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (As Histórias do Conselheiro)

– Pois, minha cara senhora, foi assim que se acabou a história...

– Tem graça! E a rapariga não tornou a aparecer?

– Nunca mais a vi; só sei que o Chim casou...

– Com a tal velha rica?!

– Exatamente!

– Mas é delicioso!

– Teve pilhéria, teve... Realmente, eu tenho presenciado muita coisa!

– Então! sr. conselheiro, enquanto não nos servem o chá, conte-nos um outro caso; este foi de um humor irresistível. Ora, o Chim!

O conselheiro correu o olhar pela assembleia: todos riam. O general limpava uma lágrima, suspirando de alívio, ainda com os lábios distendidos e a mão esquerda comprimindo o ventre. O sobrinho levantara-se e, encostado à janela, assustava as begônias do jardim com o som estrídulo das suas gargalhadas frescas, sonoras, rescendentes de mocidade; a dona da casa sorria agitando a ventarola de seda, e a avó abanava com incredulidade a cabeça branca, perguntando a uma neta, que estava ao seu lado, a conclusão do fato, que não ouvira bem... a neta a cada pergunta renovava o riso, curvando-se muito a esconder o rosto na toalha de linho em que bordava as suas iniciais.

– Vamos, sr. conselheiro, repetiam-lhe, outra história, sim?

Mas o conselheiro, que tinha uma memória de anjo e que cultivava o gênero das narrações, deixou prudentemente voltarem todos à sua costumada placidez; e, depois de pensar um pouco, declarou ter escolhido assunto, igualmente verídico, mas de gênero diferente.

Chegaram-se todos.

Ele começou:

“– Exercia eu o cargo de juiz de direito na pequena comarca de Santa Bárbara, quando me foi apresentado o dr. Lemos, antigo advogado no lugar, homem pacato, idoso, cheio de preconceitos religiosos e sociais, muito boa pessoa mas muito chato também.

“Eu morava sozinho, numa grande casa antiga, de corredores abobadados e de salões sem fim. O homem entendeu que me devia fazer companhia, indo povoar a minha soledade doce e tranquila, com os seus receios e fantasmagorias! Poucos minutos depois de eu ter chegado das sessões do tribunal, era certo, ouvia os passos do meu importuno amigo ecoando como marteladas surdas e compassadas pela escada acima. Entrava para o meu escritório, sempre solene, e, trocadas meia dúzia de palavras, debruçava-se sobre a minha mesa de trabalho, folheava, lia, meditava autos, atrapalhava-me com objeções os processos, declamava contra as acusações dos libelos, para ele sempre pálidos e deficientes, e ali ficava horas inteiras, respirando o veneno da maldita cicuta nascida no mais pestífero dos pântanos – o crime! Como ele costumava dizer na sua implacável retórica!

“Eu às vezes tinha vontade de o mandar de presente ao diabo, e demonstrava-lhe mesmo certo mau modo, que ele, na simplicidade natural dos bons, não compreendia. Mas admirem-se! Aquele homem, que me entediava, estorvava, privando-me da minha liberdade, da minha satisfação, da minha paz concentrada e feliz, aquele homem era-me por fim indispensável, real e positivamente imprescindível! É verdade! Estimei-o; estimei-o é pouco; adorei-o! Se ele tardava, eu ia à janela, olhando impaciente para a longa rua solitária da pobre cidade de província. As galinhas cacarejavam, depenicando nas ervinhas nascidas nas gretas das calçadas, e, num quintalzinho fronteiro, uma cabocla sadia e formosa cantava alto, estendendo roupa no coradouro.

“Era sempre o que eu via àquela hora, até que despontasse na terceira esquina do alto o vulto do dr. Lemos, magro, meio curvado, com uma sobrecasaca comprida, calças escuras e o chapéu de sol aberto, inclinado para o lado do sol. Então eu recomendava à criada que nos preparasse o café, e ia esperá-lo no escritório.

“Lemos contou-me a sua vida; coisa vulgar: sempre com aspirações a fortuna, hoje uma esperança, amanhã um desengano, e o tempo a passar e a velhice a tomar posse dele, com os seus achaques e desilusões! Casara-se: a mulher era um anjo a quem não tinha podido nunca dar sossego de espírito; mas a infeliz morreu cedo, deixando um filho pequeno. Ora, esse filho era então o grande sol, a última e única esperança que restava ao velho! O pobre homem levava-me horas e horas a tecer elogios ao seu portentoso Isidoro, uma verdadeira maravilha de talento e de virtudes. A honra era o grande pedestal de ouro em que nuns entusiasmos arrebatados colocava esse deus, herança de uma mulher amada. Contava coisas do pequeno, exaltando-lhe o caráter; e orgulhava-se dele, do seu juízo, da sua probidade, do seu critério; não falava senão na grande retidão de espírito, de que, desde criança, dera provas; no seu carinho, na bondade natural do seu coração, em mil coisas ternas, enaltecedoras e naturais em um pai. Eu ouvia-o, felicitava-o, e lia de vez em quando uma ou outra carta que o rapaz enviava da corte, onde o padrinho, influência política, o tinha empregado, como caixa de um banco.

“Aquele era o único ponto que o prendia ao mundo. Sem o Isidoro a terra pareceria ao dr. Lemos como que um grande arneiro em que não houvesse um único recanto nemoroso; tudo estéril, frio, chato, insalubre!

“Era aquele filho exemplar, que o céu lhe concedera, quem dava cor às flores, brilho às estrelas, aroma às plantas, doçura ao ar, tranquilidade aos lagos, beleza às aves e harmonia à música! Eu, pobre solteirão, bem colocado, desconhecendo grande parte da vida, a luta da existência a que ele, desde os doze anos de idade, órfão de mãe e pai, se lançara; eu tinha muitas vezes inveja daquele homem, alquebrado de trabalhos e de injustiças, mas sempre honesto e sempre radiante do orgulho que lhe dava o filho! Ah! Quantas vezes eu não suspirava, imaginando a ventura de ter também um Isidoro, forte, espirituoso e, sobretudo, honrado como o do meu amigo! Mas isto são coisas que não vêm ao caso; continuemos. Vivíamos assim seguramente havia uns dois anos, quando recebi uma carta do Rio, pedindo-me que, por ser eu amigo dedicado e reconhecido do dr. Lemos, lhe participasse, como entendesse melhor, que o filho...”

– Morrera? perguntou uma das senhoras, interessada pelo banal enredo.

– Não... pior.

– Ora essa; pior do que a morte! Então que era?

– A desonra, minha querida senhora!

E o conselheiro, passando o lenço de seda pela calva, fez uma pausa, premeditada para maior impressão; depois prosseguiu:

“– Comunicavam-me ter o rapaz subtraído ao banco de que era caixa uma grossa quantia, a bagatela de trezentos contos, e ter fugido para a América do Norte! Imaginem o pasmo em que eu caí! Contudo, era preciso reagir, procurar o velho antes que ele me viesse à casa, e dizer-lhe tudo, jeitosamente; se não, poderia antecipar-me alguém de menos caridade, ou mais irreflexão. Como ele costumava ir ler no meu escritório os jornais da corte, escondi-os na gaveta da secretária, bem fechados: podia dar-se o caso de um desencontro; nada mais fácil do que ir eu tomando a esquerda, para a sua casa, e ele vir da direita, para a minha. Saí; fui bater-lhe à porta; ele não estava. Regozijei-me com isso. Voltei mais sossegado até meio caminho; mas depois irritei--me! Poderia estar tudo concluído, e afinal havia ainda de esperar uma ocasião propícia para desfechar tão pavorosa revelação! Quando entrei no meu escritório já lá o encontrei sentado, a ler um grosso volume de Direito, com os óculos encavalgados no nariz, cruzadas as pernas longas e magras, o lenço de rapé sobre o joelho, e os nastros das ceroulas pendentes, a balançarem-se ao contínuo movimento da perna.

“– Então como vai isso? perguntei-lhe na minha prosa de uso ordinário.

“– Menos mal...

“– Bom...

“– Estou aqui a ler os seus livros, já que não encontrei os jornais; dar-se-á caso que não viessem hoje?

“– Sim... é verdade; não vieram hoje!

“– Fazem falta; que diabo, aquilo afinal é o meu vício!...

“Tive um risinho amarelo e pus-me a ler também um infólio, a que não prestava atenção, estudando um meio de contar o caso ao velho. Mas não tive ocasião: pela primeira vez em vinte e sete meses, o dr. Lemos não me falou no seu idolatrado Isidoro!

“E eu à espreita desse momento para aproveitar o ensejo de encaixar o ensaiado discurso! Convidei nesse dia o Lemos para jantar; ele aceitou e eu calculei: “Está direito; à sobremesa conto-lhe tudo!”

“Jantei mal, ele não; comia com vontade, acumulando no prato carne, ervas e arroz, mastigando a côdea do pão, bebendo a grandes goles o meu estimado Collares. Eu, que o sabia sóbrio e que muitas vezes tinha presenciado o seu repasto frugal e mesquinho, admirava-me; e pelas alturas da sobremesa, vendo-o animado, com boa cor, coisa extraordinária nele, habitualmente esverdeado, julguei mais acertado novo adiamento: a ocasião não era azada, com certeza! Lemos cairia morto, fulminado por uma congestão, entre as cadeiras e a mesa, arrastando na queda os despojos dos frangos e as frutas em calda de açúcar! Parecia-me vê-lo, rubro, com os olhos desmedidamente abertos e a mão crispada, tentando num esforço angustiado arrancar ao pescoço a gravata.

“– Em que diabo está o senhor a pensar, perguntou-me ele, que parece tão preocupado! Desembuche, homem!

“– Não penso em nada...

“– Um... enfim, não tenho direitos que justifiquem qualquer insistência; senão havia de confessá-lo!

“– O dr. é que me parece satisfeito, hoje.

“– Assim é! E chegando a cadeira para perto da minha, abriu a carteira e mostrou-me duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho, o seu Isidoro, como lembrança de amizade. Veja o amigo, continuava ele, que excelente rapaz! Quantas economias, quantas horas de trabalho isto não representa! meu pobre filho! Nada fiz por ele, não cursou academias, passou muitas vezes vexames, escondendo as botas rotas e tapando com um lenço o pescoço sem colarinho, tudo isso por eu não ter nunca um emprego, uma colocação, uma causa! E agora aí está... dizia, com os olhos rasos d’água, apontando as notas – como ele me recompensa de tantas vergonhas por que passou! E levantando a carteira beijou com ternura, grata, demoradamente, as duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho.

“Não pude reprimir um movimento de indignação; mas o bom homem, todo embebido na sua ventura, não o percebeu. Ofereci-lhe mais vinho e falei de outra coisa.

“Ele estendeu o copo, sem parecer escutar-me; depois, com um sorriso nos lábios e os olhos ainda úmidos, voltou-se para mim e disse:

“– Vá lá! Quero que o meu amigo me acompanhe num brinde! À saúde do melhor dos filhos, o meu Isidoro!

“Estremeci e hesitei; mas venci depressa a minha grande repugnância e, elevando o cálice, repeti maquinalmente: “À saúde do seu filho Isidoro!...”

“Os nossos olhares encontraram-se; o dele cheio de ternura, transbordante de glória, num grande extravasamento de alegria! O meu refletindo a mais penosa das impressões! Tocamos os copos e, silenciosamente, esgotamos o velho Porto.

“Pois, meus amigos, não só ocultei do desgraçado pai o que sucedera ao filho, como ainda fui bater de porta em porta, recomendando silêncio aos seus poucos amigos! Respeitavam-me muito no lugar, e até a minha partida ninguém ousou dizer-lhe coisa alguma a tal respeito. Mas, desde esse dia, a minha vida tornou-se um martírio em Santa Bárbara.

“Todos os dias decidia falar ao dr. Lemos da situação do filho, e todos os dias transferia a execução do plano! Ao senti-lo na escada escondia à pressa os jornais, cheios do nome de Isidoro! Ouvia-lhe os elogios do filho, como o mais honrado, o mais honestamente bom dos homens, sem demonstrar o desprezo, o ódio, que esse rapaz distante e desconhecido me inspirava!

“Uma tarde resolvi definitivamente contar-lhe tudo, e convidei-o para um passeio. Íamos a pé, devagar, palestrando pachorrentamente; seguimos pelas ruas menos frequentadas, até um campo, onde Lemos parou e, estendendo o braço longo e seco, apontou-me um terreno distante, à esquerda, mais sombreado de árvores, ao pé de uma cascatinha tremeluzente, entre verduras de relvas e manchas claras de pedras:

“– Acolá, disse ele, é que eu desejo e ainda espero ver um chalezinho feito pelo meu Isidoro, onde eu viva ao pé dele, de uma nora sensata e de uns netinhos alegres... Será então, se eu conseguir isso, a minha primeira época de felicidade neste mundo!

“Não respondi, mas, francamente, tive vontade de chorar; a única ambição do desventurado era irrealizável como tantas outras! Não! Eu não lhe diria nunca o que tinha feito o seu honesto Isidoro!

“Voltando para casa requeri ao ministro da justiça “licença para tratar da minha saúde onde me conviesse”.

“Felizmente fui atendido; o despacho não se fez esperar muito. Em uma manhã chuvosa parti de Santa Bárbara. Lemos foi dizer-me adeus à estação; parece-me que o estou a ver, fugindo da lama, a saltar de pedra em pedra, com o chapéu de chuva aberto, as calças arregaçadas, o sobretudo abotoado e um lenço de seda enrolado no pescoço.

“Eu já estava no vagão, ele encostou-se ao comboio e segurou--me as mãos com amizade, pedindo-me que, de passagem pelo Rio, visitasse o seu filho.

“Prometi-lhe isso e desci; abraçamo-nos; vi-lhe, através dos óculos, as lágrimas tremerem-lhe presas às pestanas ralas e curtas... Meu pobre amigo... Ao primeiro silvo e à primeira oscilação do trem, entrei à pressa; um empregado fechou com estrondo a porta; Lemos, recuando muito pálido, fixava-me com ternura; mais um segundo e o comboio partiu; debrucei-me na janela; lá ficava sozinho o dr. Lemos, agitando melancolicamente o seu lenço branco.

“Escrevi-lhe do Rio, mas não obtive resposta.

“Soube mais tarde, por uma carta do promotor público, que o velho estava louco; disseram-lhe tudo no próprio dia da minha partida; aquela boa gente arrebentaria de impaciência se o não fizesse! Ora, aí está, meus senhores, como se acabou esta segunda história...”

– Decididamente, sr. conselheiro, achei muito melhor a primeira...

– Deveras, minha senhora?

– Sou da mesma opinião, confirmou o general.

– E eu, e eu, disseram outras vozes.

– Pois, meus amigos, entre todos os fatos da minha vida, foi este o que maior impressão me deixou! Sempre que me lembro do infeliz pai...

– Bem, interrompeu a dona da casa, disfarçando um bocejo: vamos agora ao chá?

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. 
Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (Trilogia “Tibor Lobato”, de Gustavo Rosseb)


“Tibor Lobato” é ótima mistura de Percy Jackson e folclore brasileiro (artigo por Matheus Mans)


Cuca, Saci-Pererê, mula sem cabeça, Boitatá, Curupira. Esses personagens, tão vivos na memória do País, integram um folclore riquíssimo e cheio de cor, vida, natureza e, claro, brasilidade. No entanto, desde Monteiro Lobato e o Sítio do Pica-Pau Amarelo, não era possível encontrar tais figuras no meio literário. Elas acabaram sobrepujadas por outras linhas narrativas, outras fantasias. Infelizmente, ficou pra escanteio. Mas só por um tempo.

Todo esse folclore, adormecido e esquecido nas aventuras do sítio de Dona Benta, ganharam novos traços. Dessa vez, porém, não pela imaginação de Monteiro Lobato, mas de Gustavo Rosseb. Paulista de 33 anos, o autor juntou essas figuras folclóricas na trilogia de livros de Tibor Lobato - formada por O Oitavo Vilarejo, A Guardiã de Muiraquitãs e A Carruagem da Morte​ - para celebrar a cultura brasileira e se aproximar dos mais jovens.

O resultado, sem dúvidas, é louvável. Com uma narrativa simples, acessível e que traz as figuras folclóricas para um patamar mais humano e real, As Aventuras de Tibor Lobato acerta por não ter medo de experimentar. Mistura muito bem feita de Percy Jackson, Harry Potter e um pouquinho de Desventuras em Série, a obra trafega entre o que faz sucesso entre o público infantojuvenil hoje, mas sem esquecer de tradições e raízes.

Para isso, Rosseb cria uma história interessantíssimas. Dois irmãos (Tibor e Sátir) perdem os pais num incêndio e ficam sem ter para onde ir - lembra da trajetória dos irmãos Baudelaire? Depois de muito tempo vagando entre orfanatos, eles acabam encontrando refúgio na casa da avó, uma senhora que mora em um afastado vilarejo do interior. Lá, então, eles acabam sendo confrontados por várias criaturas míticas do nosso folclore.

Sem meandros, o autor vai levando o leitor por uma jornada fantasiosa e cheia de grandes momentos, como há muito não se via na literatura folclórica nacional. Há as homenagens ao que Monteiro Lobato fez e criou - não é à toa o nome do protagonista, é claro - e há muitos elementos da literatura de fantasia recente, como as já citadas tramas de Percy Jackson e Harry Potter. É uma literatura de fantasia jovem, brasileira e responsável.

A inserção de elementos folclóricos é, porém, o ponto alto de Tibor Lobato. Tudo é feito de maneira muito natural, ordenada e inteligente. As figuras mitológicas não entram nas páginas e na história apenas para fazer volume. Há sempre um motivo, uma trama ou um sentimento por trás. A melhor sacada, porém, é a entrada do Saci-Pererê, figura de grande importância na narrativa brasileira de fantasia e que, aqui, possui um papel bem interessante.

A jornada de Tibor, Sátir e da avó também é interessante, bem pensada e inteligente. Ao contrário do que poderia acontecer, Rosseb decide não seguir a fórmula já batida de Rick Riordan e afins. Ele vai por um caminho próprio, brasileiro e muito solar. Mostra como a literatura de fantasia tem espaço e força dentro do Brasil, assim como tantos outros nomes que estão por aí, como Cristina Pezel, Douglas MCT e tantos outros. É pra aplaudir de pé.

Os livros de Tibor Lobato, então, constituem um ponto interessantíssimo na literatura de fantasia brasileira, onde se prova que é possível fazer boa literatura a partir das figuras de nosso folclore - seja para o público infantil, juvenil ou adulto. Basta querer, ter uma boa ideia e perseverança. Rosseb teve. E o resultado são esses livros que merecem um lugar na sua estante.
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GUSTAVO ROSSEB é um nerd que nasceu em São Paulo em 1985. Formado em Rádio e TV, trabalha em vários ramos artísticos. É músico e compositor de música brasileira, com discos e diversos videoclipes lançados. Já se apresentou em grandes festivais como Rock in Rio e SXSW (EUA). Também é roteirista. Em seu currículo estão trabalhos publicitários e autorais. Dos autorais destacam-se o longa-metragem O Segredo de Davi, que ganhou as telas de todo o Brasil e tem Gustavo Rosseb assinando o roteiro ao lado do diretor, além da canção-tema do filme, e a adaptação para os cinemas de seu primeiro livro, O Oitavo Vilarejo.

Como um bom descendente de mineiros, adora pão de queijo, queijo branco com goiabada e, também, ouvir histórias de assombração. Já viajou para diversos cantos do país coletando contos e causos, histórias de nossos pais e avós, para transformá-los em aventuras para seus personagens.

Recentemente, o autor foi citado no livro Fantástico Brasileiro – O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo como um novo fôlego para o folclore nacional. Depois de completar a trilogia As Aventuras de Tibor Lobato (O Oitavo Vilarejo – A Guardiã de Muiraquitãs – A Carruagem da Morte), todos lançados pela Editora Jangada, o autor nos apresenta uma expansão de seu universo.


Fontes:
Esquina da Cultura. Texto de Matheus Mans: “Tibor Lobato' é ótima mistura de Percy Jackson e folclore brasileiro”
Tibor Lobato

sábado, 21 de agosto de 2021

Versejando 73

 

Álvaro Posselt (Contos Minimalistas) 2


O CHAVEIRO


Em mais de vinte anos de profissão, nunca me bati tanto para fazer uma chave. No balcão, o freguês fazia pressão:

- Por favor, tenho pressa. O expediente já começou, esta é a chave da entrada. Já tem fila.

Apurei.

- Ah, aproveita e faz uma cópia, vou deixá-la com o chefe.

– Ai, meu Deus!

- Quanto é?

- Pro senhor é só vintão.

- Põe na conta, meu filho.

São Pedro sacana. Ainda bem que fiz uma cópia para mim.
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O PEGADOR

O cara havia pegado todas, de A a Z. Até as com letras mais difíceis. Mas faltava ainda a letra Q.

Não conseguia.

Há tempos sentia dores na mão.

- Você pegou quiralgia - disse o médico.
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LADY FIRST

A morte insinuou no meu ouvido:

- Atravesse a rua!

- Só se você for primeiro!

Fonte:
Alvaro Posselt. A Brisa é você, disponível no Recanto das Letras

Solange Colombara (Cristais Poéticos)

BEIJOS AO LUAR


Sorrisos tímidos, encantados,
Estrelas refletem nosso olhar.
Momento tão íntimo, desejado,
Mãos dadas, deitados na areia, a lua e o mar.

As palavras são desnecessárias;
Nossos corpos traduzem nosso amor.
Nossas almas estão eternizadas,
Naquela praia nos amamos, sem pudor.

O que houve a seguir, foi envolvente.
Felizes, apenas nos entreolhamos...
Sua boca na minha, novamente.

Quando seus lábios os meus encontrar
Uma leve brisa, o céu soprará...
Embalando nossos beijos ao luar.
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MINHA VERDADE

Tentaram frustrar a minha essência.
Fui contra, debati, não permiti.
Tentaram sugar minha pureza.
Com toda minha força, resisti.

Passado e presente não me ferem.
Algumas lacunas estão em branco.
Meus medos me impulsionam e impedem
Que eu me veja transtornada, em pranto.

Sozinha nessa busca, me empenhei.
Tentaram roubar todos os meus sonhos.
Na indelével certeza, os realizei.

No árduo caminho do amor sou aprendiz,
Meus silêncios gritam contestando.
Minha perfeita imperfeição, assim diz.
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NOSSA MÚSICA

Sozinha na mesa, sinto a brisa
Suave, tocando no meu cabelo.
O par na pista, dança e desliza
Cuidando um do outro, com muito zelo.

Champanhe, minha única companhia,
Permite que, por alguns instantes,
Ali reviva tanta nostalgia...
Momentos nossos, eletrizantes.

Aos poucos, a vida normaliza,
Vai voltando à velha e boa rotina.
Ficar só, triste essa minha sina.

A música acaba, o casal se foi.
Me resta pelas ruas cantarolar...
The way you look tonight.
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MELANCÓLICO

De nada adianta a lua silenciosa
Iluminando o mar tão graciosa.
De que adianta o céu lindo, radiante,
Cintilando estrelinhas brilhantes.

De que adianta tamanha alegria
Se em meu coração só há nostalgia.
De que adianta pássaros cantando
Sem nós dois felizes, nos amando.

Não adianta viver intensamente
Se o agora já não faz mais sentido.
Perdi o rumo do tempo vivido.

De que adianta o mundo girar, girar,
Se você não está no meu universo.
Sem você, o mundo se fez ao inverso.
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UM AMOR IMPOSSÍVEL

E devagar você foi chegando...
No meu coração se aconchegando.
Os meus dias frios tornaram-se verão,
De tanto carinho, houve a explosão.

Que vício delicioso é sua boca.
Nossos corpos colados sem roupa.
Nunca imaginei sentir algo assim,
Maravilhoso do começo ao fim.

Fomos felizes ao estarmos juntos.
Ríamos como dois adolescentes,
Nos olhávamos profundamente.

Era meu refúgio, meu bem querer.
Sem você, tudo perdeu o sentido.
Sem você, não conseguirei viver.


Fonte:
Solange Colombara. Meus momentos de hiato. SP: Areia Dourada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Guimarães Rosa (As margens da alegria)

I
 
Esta é a estória.

Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A mãe e o pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A tia e o tio tomavam conta dele, justamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da companhia, especial, de quatro lugares.

Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes ralar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se — certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O menino. E as coisas vinham docemente de repente, seguindo a harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicletes, à escolha. Solícito de bem-humorado, o tio ensinava-lhe como era reclinável o assento bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o amável mundo.

Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente. O menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.

Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem.

Chegavam.

II

Enquanto mal vacilava a manhã.

A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava.

Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?

Só sons. Um — e outros pássaros — com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?

Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara.

Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, arredondado, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitroante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encacheado, andando, grugulejou outro gluglu. O menino riu, com todo o coração. Mas só bisviu (rever rapidamente). Já o chamavam, para o passeio.

III

Iam de jipe, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa. A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava: que ali havia "imundície de perdizes". A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava.

O buriti, à beira do corguinho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirinho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demorado. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?

Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O tio, a tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

Ele abria leque, impante (inchado), explodido, se “eunava”... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

Não viu, imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? Só umas penas, restos, no chão. — "Uê se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?"

Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte.

Já o buscavam: — "Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago…”

IV

Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento.

Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circunstristeza: um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço, e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.

Abaixava a cabecinha.

Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras.

E como haviam cortado lá o mato? — a tia perguntou.

Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também, com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca.

A coisa pôs-se em movimento.

Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara..., e foi só o chofre: uh... sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. O menino fez ascas (aversão).

Olhou o céu — atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiedez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos — da parte de nada.

Guardou dentro da pedra.

V
 
De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso.

Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.

Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara o quê?

Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O menino se doía e se entusiasmava. Mas, não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.

Trevava.

Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.

Fonte:
João Guimarães Rosa. Primeiras Histórias. Publicado em 1962.

Estante de Livros (Um Pouco de seu Sangue e Outras Histórias, de Alfred Hitchcock)


O nome de Alfred Hitchcock desperta, em qualquer pessoa com algum gosto pelo cinema, a lembrança de filmes como “Um corpo que cai”, “O homem que sabia demais”, “Psicose”, “Janela indiscreta” e outras obras-primas do suspense. E, para um número já bem grande de felizardos amantes do gênero, não passou despercebida a obra “Histórias que mamãe nunca me contou”, na qual Hitchcock reuniu, com a mesma sensibilidade demonstrada em seus filmes, uma série de contos em que o inesperado, o suspense e até o sobrenatural tomam parte, mantendo o leitor preso do início ao fim das narrativas. 
 
Em sequência àquele livro, “Um pouco do seu sangue e outras histórias”, uma coletânea com narrativas tão ou mais excitantes que as anteriores e destinadas à mesma aceitação e repercussão entre os apreciadores do gênero.

Fonte:

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Adega de Versos 42: Vanice Zimerman

 

Anton Tchekhov (Brincadeira)

Um meio-dia luminoso de Inverno ... Um frio rijo, de rachar, e à Nádenka, de braço dado comigo, cobrem-se-lhe os caracolzinhos das têmporas e a penugem do buço com uma geada de prata. Estamos num morro alto. Dos nossos pés até lá baixo estende-se um declive liso em que o sol se olha como num espelho. Junto a nós, um pequeno trenó forrado de pano vermelho.

— Vamos escorregar, Nadejda Petrovna! - imploro-lhe eu. - Só uma vez! Garanto-lhe que chegamos lá baixo sãos e salvos.

Mas Nádenka tem medo. O espaço que se empina desde as suas pequeninas galochas até ao fundo parece-lhe um verdadeiro precipício assustador, desmedidamente fundo.

Basta-lhe olhar para baixo, basta eu propor-lhe que se sente no trenó, e já lhe esmorece o ânimo, se lhe entrecorta a respiração; o que não será se arriscar a lançar-se pelo precipício abaixo? Aí morre, enlouquece.

— Suplico-lhe! - digo eu. - Não tenha medo! Bem vê que isso é fraqueza, uma covardia sua!

Por fim, Nádenka concorda, e vejo-lhe na cara que a sua cedida é como arriscar a vida. Sento-a no trenó, pálida e trêmula, envolvo-a com um braço e lanço-me com ela no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar que cortamos chicoteia-nos o rosto, rosna, assobia aos ouvidos, belisca de raiva, quer-nos arrancar a cabeça dos ombros. A força do vento não nos deixa respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com as patas e, com um rugido, nos arrasta para o inferno. Dos lados do trenó tudo se funde numa faixa comprida a correr vertiginosamente ... Mais um pouco e morremos, parece!

— Amo-a, Nádia! - digo a meia voz.

Agora o trenó já desliza mais devagar, cada vez mais devagar, o rugido do vento e o zumbir dos patins já são menos assustadores, já não se entrecorta a respiração e, logo, estamos em baixo. Nádenka está mais morta do que viva. Pálida, quase não respira...

Ajudo-a a levantar-se.

— Por nada deste mundo eu volto a descer - diz ela, arregalando para mim uns olhos cheios de terror. - Por nada deste mundo. Por pouco não morri!

Pouco depois, recomposta, começa então a espreitar-me nos olhos, interrogativa: teria sido eu que disse aquilo ou foi iludida pelo barulho de furacão da descida? Por mim, estou ao pé dela, a fumar, a examinar com muita atenção a minha luva.

Pega-me pelo braço e passeamos demoradamente pelo sopé do monte. O enigma, pelos vistos, não a deixa em paz. Foram ou não foram proferidas aquelas palavras? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, honra, vida, felicidade, uma questão muito importante, a questão mais importante do mundo. Nádenka perscruta-me a cara com um olhar triste, impaciente, responde a despropósito, está à espera que eu fale. Oh, que rosto lindo, que jogo de expressões! Vejo que luta consigo própria, que tem necessidade de falar, de dizer alguma coisa, de perguntar, mas não acha as palavras, embaraça-se, tem medo, a felicidade impede-lho ...

— Sabe uma coisa? - diz sem olhar para mim.

— O quê?

— E se fossemos... escorregar mais um vez?

Subimos ao monte de gelo por uma escada. De novo sento a pálida e trêmula
Nádenka no trenó, de novo voamos para o precipício terrível, de novo ruge o vento e zumbem os patins, e de novo, no momento mais vertiginoso e atroador da descida, digo a meia voz:

— Amo-a, Nádenka!

Quando o trenó pára, Nádenka passa o olhar pelo monte que acabaramos de descer, depois perscruta a minha cara demoradamente, escuta a minha voz indiferente e impassível, e toda ela, todinha, até ao regalo e ao capuz dela, toda a figura dela exprimem uma perplexidade extrema. Está-lhe escrito na cara:

«O que se passa aqui? Quem disse aquilo? Foi mesmo ele, ou pareceu-me?» Esta incerteza desassossega-a, faz-lhe perder a paciência. A pobre nem responde às perguntas, carrega o sobrolho, está prestes a chorar.

— Não quer ir para casa? - pergunto-lhe.

— Eu ... eu gosto de escorregar no trenó - diz ela corando. - E se fossemos mais uma vez?

«Gosta» de escorregar mas, ao sentar-se no trenó, está como das outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.

Descemos pela terceira vez, e vejo como ela me olha na cara, me segue o movimento dos lábios. Mas eu aperto um lenço contra os lábios, tusso e, chegados a meio do monte, consigo pronunciar:

— Amo-a, Nádia!

E o enigma continua enigma! Nádenka está calada, pensa... Acompanho-a a casa, ela tenta ir mais devagar, abranda o passo, sempre à espera que eu diga aquelas palavras. E vejo como a alma dela sofre, que esforço faz para não dizer:

«Não é possível que tenha sido o vento! Também não quero que tenha sido o vento!»

No dia seguinte, de manhã, recebo um bilhete: «Se for hoje ao monte de gelo, venha buscar-me. N.» Desde então vou todos os dias com Nádenka ao monte de gelo e, ao voarmos a pique no trenó, pronuncio sempre a meia voz as mesmas palavras:

— Amo-a, Nádia!

Nádenka depressa criou o hábito desta frase, como se cria o hábito do vinho ou da morfina. Não pode viver sem ela. É verdade que escorregar pelo monte de gelo continua a meter-lhe medo, mas agora o medo e o perigo dão um fascínio especial a estas palavras de amor, palavras que continuam a ser um enigma e lhe moem a alma. Os suspeitos continuam a ser os mesmos: eu e o vento ... Não sabe qual dos dois lhe segreda o seu amor, mas, pelos vistos, já não se importa; seja qual for a taça, o principal é inebriar-se.

Sucedeu que, ao meio-dia, fui sozinho ao monte; escondido entre a multidão, vejo Nádenka a aproximar-se do monte, a procurar-me com os olhos... Depois, sobe timidamente as escadas... E se mete medo descer sozinha, oh, que medo! Está pálida como a neve, treme, caminha como quem vai para a execução, mas vai, anda sem hesitar, decidida. Pelos vistos, terá resolvido tirar a prova: ouvirá as palavras maravilhosas, doces, não estando eu com ela? Vejo-a, pálida, com a boca aberta de terror, a sentar-se no trenó, a fechar os olhos, despedindo-se para sempre da terra, vejo-a a partir... «Z-z-z» - zumbem os patins. Não sei se Nádenka ouve essas palavras... Só a vejo a sair do trenó, fraca, abalada. Pela cara dela, não saberá se ouviu ou não ouviu alguma coisa. Enquanto deslizava, o medo deve ter-lhe tirado a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de perceber...

Chega o primaveril Março ... O sol é já mais carinhoso. O nosso monte de gelo escurece, perde o brilho e, por fim, derrete. Acabaram-se os passeios de trenó. A pobre da Nádenka já não tem onde ouvir aquelas palavras, também já ninguém lhe as pode dizer, porque o vento se calou e eu me preparo para ir a Petersburgo - por muito tempo, talvez para sempre.

Uma vez, antes da minha partida, uns dois dias antes, estava eu sentado ao crepúsculo num jardinzinho, separado do quintal de Nádia por um tapume alto e espetado de pregos... Ainda estava frio, por baixo do estrume ainda havia neve, as árvores ainda estavam despidas, mas já cheirava à Primavera, e as gralhas, acomodando-se para dormir, gritavam alto. Aproximo-me da cerca e fico muito tempo a espreitar por uma fenda. Vejo como Nádenka sai para a soleira e lança um olhar triste, angustiado, para o céu... O vento primaveril sopra-lhe diretamente no rosto pálido, sofrido... Lembra-lhe o vento que outrora nos rugia no monte e como ela ouvia aquelas duas palavrinhas, e o rosto dela toma-se triste, muito triste, pela face desliza-lhe uma lágrima... E a pobre rapariga estende as duas mãos como que a pedir que o vento lhe traga outra vez aquelas palavras... Então, fico à espera que o vento sopre para dizer a meia voz:

— Amo-a, Nádia!

O que acontece com Nádenka, santo Deus! Solta um grito, abre-se num sorriso amplo e estende as mãos ao encontro do vento, alegre, feliz, tão bonita.

E eu vou fazer as malas ...

Isso foi há muito tempo. Nádenka já se acomodou: casaram-na ou casou de livre vontade — tanto faz — com um funcionário da tutela, tem três filhos. Mas não esqueceu como íamos os dois para o monte de gelo, como o vento lhe trazia aquele «amo-a, Nádenka!»; para ela, é agora a mais feliz, a mais comovente e maravilhosa lembrança de toda a sua vida ...

Quanto a mim, agora que fiquei maduro, já não compreendo por que lhe dizia aquelas coisas, por que brincava assim…

Fonte:
Anton Tchekhov. Contos. Vol. 1. Lisboa/Portugal: Relógio D' Água, julho 2001.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 8

AS DUAS RÃS
(de um conto japonês)

Duas rãs, muito curiosas,
dois potes tendo encontrado,
jogaram-se dentro deles,
num gesto brusco, impensado...

Mas logo se arrependeram
ao verem os potes cheios..,
Queriam se libertar
porém não achavam meios!

De um pote, dizia uma,
desesperada da vida:
"É melhor logo morrer,
pois já me sinto perdida!"

E assim falando assim fez,
não demorou um segundo!
Despediu-se comovida,
e sem lutar foi ao fundo...

Pos-se a segunda a bater,
pela noite toda afora!
Sem qualquer ajuda ter,
não desesperava embora!

... Num pote cheio de leite,
acharam de madrugada,
uma rã bem lá no fundo,
imóvel, morta, gelada...

E noutro pote, bem perto,
clara manteiga se via,
e em cima dela, cansada,
outra rã, feliz, dormia...

Não serve só esta história
apenas para criança...
— Imitai sempre esta rã,
que lutou sem esperança…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PURIFICAÇÃO
(Dos "Versos Áureos" de Pitágoras)

Sê bom, sincero e firme de vontade.
Escuta os bons conselhos, com carinho.
Sê forte, casto e justo. Ama a Verdade
Procura sempre o reto e bom Caminho.

Destrói toda Paixão que torpe, invade
teu peito, e nele quer fazer seu ninho...
Lembra-te sempre que a Felicidade
é flor... E que também possui espinho.

Cala (tem fé!) se o Erro prevalece,
suporta tua Dor com toda calma
e o Mal que te fizeram sempre esquece!

Os olhos fecha a toda prevenção.
Tal como ao corpo nutra bem tua alma
e atingirás a Purificação!
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RECORDAÇÕES SOMBRIAS

Não sei porque, tão só, neste momento,
vendo a Tarde, que aos poucos, vai morrendo,
percorrem um a um, meu pensamento,
os quadros de um Passado tão horrendo.

Lembrando com terror este Passado,
em que a vida era presa por um fio,
recordando esta fase, amargurado,
o meu corpo ainda sente um calafrio...

Oh! as noites de Dor em que eu passava,
à meia luz, imóvel, recostado,
temendo o próprio ar que respirava,
escutando o relógio compassado...

Oh! as tardes tão longas e sombrias,
mergulhado no Tédio e na Tristeza!
Oh! as horas compridas e tão frias,
de silêncio, desânimo, incerteza!

Agora, do Passado, já distante,
julgo ter sido incrível pesadelo,
mas tão claro ainda e horripilante,
que sinto medo e horror ao descrevê-lo...

Só quem um dia teve a sua Sorte,
violenta e bruscamente interrompida,
só quem um dia viu de perto a Morte,
dará valor intensamente a Vida!

Por isso, com os olhos rasos d'água,
lembrando, com mais calma, o meu sofrer,
a Deus bendigo toda minha mágoa
e agradeço esta graça de viver!

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias.
RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Sammis Reachers (O Paraguaio de Campina Grande)

Naquele tempo Everaldo trazia muambas do Paraguai. Relógios, mais especificamente. Era um paraibano branco, forte, de cabelos à la Rambo. Eu trabalhei para Everaldo de 94 a 96, numa banca de camelô em Alcântara, São Gonçalo. Vendia os mais finos medidores temporais de toda a cristandade e além: aquilo era um harém da relojoaria universal, de todas as marcas, dos cantões da Suíça a Tóquio, passando por Paris e Nova Iorque, tudo com escala – ou montagem – em Pequim, Xangai, Guangzhou, é claro, e a 20% de comissão em cada venda. Eu era um garotão viciado em quadrinhos, fliperamas e rock’n roll, e dava pra viver meus vícios sem passar fissura.

Hoje tem alguma graça, mas antes me chocava o inusitado, o vão de tal morte: um caroço de azeitona.

Foi em 2003, na semana em que o então prefeito do Rio, César Maia, reinaugurou o Pavilhão de São Cristóvão, a popular Feira Nordestina. Entre um tira-gosto e outro Everaldo tomava, assentado numa roda de conterrâneos, uma cachaça vermelha, da terrinha, depois fui saber, dita justa ou desabusadamente ‘Santa Rita a Vermelha’. Estranho nome para uma santa, ou cachaça, mas dá na mesma, pensei na época. Engasgou com o tal tira-gosto oliváceo, levantou-se já vermelho, deram-lhe socos nas costas, e tapas, e mais socos, muitos socos pelo que me disseram, mas não adiantou. Caiu ali, agora arroxeado, puseram-se a abaná-lo, mas já não havia ar, já não havia anima (espírito) naquele corpo.

Tinha na bolsa uma seleta de dez cordéis que me comprara, que eu havia lhe encomendado. Eu, carioca filho de mineira com paranaense, adorava cordéis, como adorava aqueles livrinhos de western, de bolso, que brasileiros escreviam com pseudônimos norte-americanos. Pulp-fictions, assim como os cordéis eram os pulp-fictions verdes-amarelos. Não sei porque digo isso, não quero fugir do assunto, do Everaldo, mas sempre que me lembro dele penso nos cordéis, ‘João Cabrobró contra Satanás’, ‘A rixa do Carcará contra o Sapo-boi’, ‘Morte e Vida Severina’ e outras fugas, que é sempre fuga a literatura; fuga da secura do sertão, da secura nonsense e repetitiva da vida, do nonsense seco e tedioso da morte.

Estante de Livros (O Guardião de Livros, de Cristina Norton)


Cristina Katz Norton nasceu a 28 de Fevereiro de 1948, em Buenos Aires, Argentina. Reside há mais de 30 anos em Portugal e optou pela nacionalidade portuguesa. A sua obra engloba a poesia, o romance e o conto, da qual destacam-se os livros O Afinador de Pianos, O Lázaro do Porto, Os Mecanismos da Escrita Criativa, O Segredo da Bastarda, A Casa do Sal e agora O Guardião de Livros.

Confeccionado em papel pólen, com uma capa belíssima e letras douradas no título, o livro é realmente muito bonito. Mas, acontece que O Guardião de Livros é mais que apenas uma capa bonita.

A forma de narrativa de Cristina Norton é completamente envolvente; ela utiliza construções de frases, fazendo inversões na estrutura das frases, dando seguimento em outras, mas depois ali residia o estilo da autora, sua marca. Além disso, ela consegue escrever passagens extremamente tristes, até mesmo cruéis, para, em seguida, trazer um toque sempre ácido, deliciosamente irônico.

O pano de fundo da história é a vinda da família real para terras brasileiras, enquanto Napoleão invadia países da Europa. O personagem principal é Luis Joaquim Marrocos, um jovem português que trabalha na Real Biblioteca Nacional de Portugal, seguindo os passos de seu pai, um homem cuja vida foi devotada aos livros. O jovem levava uma vida pacata, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, até o dia em que foi designado para acompanhar caixotes de livros enviados para o Brasil.

O ritmo da narrativa é bem dinâmico, com narradores que se revezam: Marrocos, A Escrava, O escravo, narrador oculto e onisciente, a esposa de Marrocos. Os capítulos são curtos; em alguns deles Marrocos narra as sua impressões, seja de sua vida em Portugal, os arranjos para sua vinda ao Brasil, até as impressões sobre a vida na colônia. Vale destacar a narrativa sensível, mas também debochada, crua, do choque cultural vivido pelo personagem. Acompanhamos as relações entre Marrocos e sua família através das cartas transcritas – um recurso muito interessante e que dá mais tempero à história, suas relações com os brasileiros, a relação consigo mesmo (e aqui vemos a evolução do personagem e sua busca por pertencer, de fato, a algum lugar). Há também capítulo intitulados “Crônicas da Corte”, sobre os quais a autora nos deixa em suspenso, questionando o fundo de verdade naqueles textos.

O Guardião de livros é uma espécie de homenagem aos amantes de livros. Já no título isso fica claro e, depois, na descrição de Marrocos, em várias passagens de sua vida, fica clara a sua devoção à leitura e ao objeto livro, em si, inclusive com críticas àqueles que não partilhavam da sua paixão (discordo nesse ponto porque acho que cada um ama o que quiser e puder!).

Esse livro tem histórias bem contadas, costuradas, envolventes e, para isso, é fundamental ter bons personagens.. Marrocos é um homem comum e, ao mesmo tempo, um homem cheio de facetas, nuances; ao longo da história conhecemos vários Marrocos, vemos sua evolução, acompanhamos seus conflitos, seu questionamentos. Não é um personagem carismático no sentido de que você vai se encantar de cara e torcer por ele, mas no sentido de que ele vai lhe cativando página a página. À medida que se lê, sente-se raiva, indignação, escárnio, pena, compaixão, simpatia. Possui uma hiponcondria desenfreada, e, do ponto de vista da psicologia, é excelente as descrições de seu comportamento; chora-se com seu sofrimento, pelos mais diversos motivos.

No capítulo A Escrava, o primeiro capítulo, foi ali que acontece a mágica – o livro pega pela mão e não solta. Como se não bastasse, Cristina Norton ainda coloca epígrafes de Jorge Luis Borges e Mia Couto! O guardião de livros é mais que recomendado. É, sem dúvidas, uma das melhores leituras do ano.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Varal de Trovas n. 520

 

Carolina Ramos (Paradiso)

A vida andava difícil. Não só para um, nem dois – difícil para todos! Mesmo os mais abastados tinham lá suas carências. A classe média, achatada como fatia de pão prensada entre as abas de um torrador, deixava-se ressecar, a cada dia.

Jerônimo da Silva, trabalhador como tantos outros, via a rotina diária, árdua e absorvente, desidratar-lhe os sonhos, sem piedade. Era erguer-se com o Sol e recolher-se a casa, quando a lua já ia alta, E a algibeira sempre mais vazia!

Naquela manhã, chegado ao prédio Paradiso, em reformas, e do qual era zelador, prendeu o crachá ao peito, abotoando-o no bolso da camisa.

Deixou-se envolver pelo trabalho. A obra, já em meio, seguia sem problemas, a subir firme rumo à conclusão. Paralelo ao esforço arquitetônico, outro plano também subia, um andar por dia, na cabeça de Jerônimo.

Quando a noite desceu, deixou que a obra se esvaziasse. Nervoso, rumou a passo ligeiro para o estabelecimento, quase em frente, que vendia artigos esportivos e cujo movimento crescente dia-a-dia era alvo de suas atenções.

Rondou pelas imediações, como se nada quisesse, paquerando o alvo à espera do momento oportuno, que se fez presente quando o derradeiro freguês deixou o estabelecimento e o gerente preparava-se para apagar as últimas lâmpadas,

Jerônimo da Silva enfiou, então, pela cabeça até o pescoço, o capuz ninja. Os óculos de motoqueiro deixavam-lhe uma fresta à altura dos olhos, que não tolhia a visão, sem permitir que fosse identificado.

Irreconhecível, sentiu-se seguro. Aproximou-se do homem que se preparava para sair. Encostou-lhe a arma nas costas: - Isto é um assalto. - e a frase chavão - Passe a grana!

Não houve reação alguma. O homem olhou-o atentamente, passando-lhe a féria do dia, sem qualquer protesto e sem escamotear. Parecia mais calmo que o assaltante.

Jerônimo saiu às pressas arrancando a máscara e enfiando-a de qualquer jeito no bolso traseiro da calça. Fácil demais! Não esperava tanto!

Penteou os cabelos com os dedos e acertou o passo pelo passo apressado dos passantes.

Em casa, emocionalmente exausto, nem trocou de roupa, atirou-se na cama... e sonhou que seus problemas estavam resolvidos! Se nem todos... alguns, pelo menos! O caminho estava aberto! Era só aperfeiçoar a técnica... e estaria feito!

A surpresa, por sua vez, viria na manhã seguinte, ao regressar, pontual, ao prédio, fazendo jus à profissão assumida.

A viatura da polícia chegara antes dele ao Paradiso! Sem qualquer explicação, foi encostado à parede. O pasmo não lhe permitiu reação. Metade do dinheiro roubado aquecia-lhe ainda o bolso traseiro, onde estavam também alguns cheques ao portador, prontos para serem descontados. Provas incontestáveis!

Perplexo, da Silva não podia entender como fora descoberto!

Na caixa do peito, batia um coração acelerado. Assim como... ainda preso ao botão do bolso da camisa, lá estava, também, desde a véspera, o crachá denunciador que esquecera de retirar, antes que aquela ousadia o transformasse em desastrado meliante.

Naquele indiscreto crachá, para quem quisesse ler, estava o nome do prédio, Paradiso, bordado à máquina, em azul, e, sob ele, a identificação insofismável: - Jerônimo da Silva - Zelador.
 
E o dono desse nome, por um golpe de azar e sem apelação, foi diretamente transferido do Paradiso para o inferno... sem sequer passar pelo purgatório!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.