sexta-feira, 18 de abril de 2008

Ana Nobre de Gusmão (O clone do avô Jacinto)

O avô Jacinto ergueu-se com esforço, deu duas voltas à mesa e caiu redondo no chão, como se fulminado por uma arma invisível. Calculei que lhe tinha dado outra vez aquela coisa esquisita que o pusera tão diferente de repente e a minha primeira reacção foi aproveitar a situação para inspeccionar livremente o tesouro escondido debaixo da sua cama. Preparei-me para sair sorrateiramente da casa de jantar e subir silenciosamente as escadas quando um grito da minha mãe me paralisou — Paizinho – gritou ela a tapar a boca com as mãos — O que foi, paizinho?

Alertado pelo grito da minha mãe, o meu pai entrou a correr na casa de jantar, ajoelhou-se e encostou o ouvido ao peito do meu avô — O coração bate — anunciou — Chama uma ambulância, Teresa, é capaz de ser outra trombose, e diz à Rita que me traga um copo de água.

Pensei em lembrar-lhes que da outra vez que lhe dera aquilo o avô também ficara assim como morto uns momentos, e quis dizer-lhes que ia acabar tudo em bem, mas calculei que não me iam dar atenção nenhuma, ou que me mandariam calar, e achei melhor não dizer nada.

Muito pálida, a minha mãe segurou-me por um braço e arrastou-me para o corredor — Vai para o teu quarto — pediu num tom de voz sumido, irreconhecível.

Subi as escadas a correr, mas em vez de entrar no meu quarto continuei pé ante pé até ao quarto do avô Jacinto e à cautela abri devagar a porta, apreensivo com a perspectiva de poder sentir qualquer coisa estranha ou de ver qualquer coisa estranha o fantasma dele, o outro ele, a sua alma, uma luz difusa e misteriosa a pairar no ar, uma voz sussurrante, um gemido arrepiante, uma gargalhada sobrenatural, o cheiro indefinível da morte (como o cheiro do gato do vizinho que apareceu morto na garagem).

Mas não vi nem senti nada de estranho, o sol iluminava o cadeirão de cabedal onde antes daquilo acontecer ele se sentava sorumbático e inacessível a ler, a cortina ondulava ao sabor da leve brisa que entrava pela janela entreaberta, no ar pairava o vago cheiro a urina tudo era familiar, habitual e mais tranquilo entrei, levantei a franja da colcha e espreitei para debaixo da cama.

Desde que aquilo acontecera pela primeira vez que eu tinha a secreta convicção de que o avô Jacinto fora clonado por extraterrestres, mas que algo não correra como devia ou seja, se o corpo era o mesmo, embora um pouco mais trôpego, a sua mente rebelara-se e transformara-o num linguareiro mordaz e libidinoso, sempre a gabar-se das namoradas e das amantes que tivera e a meter-se com a Rita (a empregada entretanto contratada pelos meus pais para tomar conta dele), a chamá-la ao quarto por tudo e por nada, a ordenar-lhe que se chegasse mais perto dele com uma desculpa qualquer para poder apalpá-la, a pedir-lhe um beijo, ou a convidá-la para sair e outras coisas do género, graçolas brejeiras e isso.

Ela ria-se, mas depois à socapa olhava para mim e levava o indicador à testa que era como quem dizia que o coitado estava meio passado e não sei, se calhar até estava, mas a mim não me parecia. Cá na minha ele sabia muito bem quem era e o que queria, só que quem era e o que queria era agora diferente de quem fora e do que quisera antes de ser clonado. Como se o engano dos extraterrestres lhe tivesse dado a hipótese de uma segunda chance.

E eu, que nunca tivera uma existência significativa para ele, tornei-me uma das suas companhias favoritas (aliás, a única, se exceptuarmos a Rita). Aliciava-me com descrições pormenorizadas dos seus encontros amorosos, ensinava-me truques para me tornar irresistível a qualquer mulher, dava-me lições de anatomia e de psicologia feminina, explicava-me os sistemas contraceptivos, as doenças venéreas, os tipos de beijo e as posições no coito, tudo desenhado e esquematizado num bloco que tinha sempre ao alcance da mão.

— Vê lá se não está uma pantufa minha debaixo da cama — pediu-me um dia com um ar cândido — Não a consigo encontrar em lado nenhum.

Eu deitei-me no chão, levantei a franja da colcha e enfiei a cabeça debaixo da cama — Aqui só há revistas, avô.

E intrigado — São de quê? Posso ver?

Ele riu-se — Traz cá uma que eu mostro.

Tirei a que estava no topo da pilha, recuei de bruços até sentir que já não batia com a cabeça na trave da cama e olhei aparvalhado para a fotografia de uma morena mamalhuda e seminua estampada na capa da revista (e que ainda por cima parecia retribuir-me o olhar).

— Então, rapaz, estás a olhar para quê, traz cá isso — chamou ele impaciente.

E riu-se outra vez.

— Isto é um segredo que fica entre nós — avisou a abanar a revista com um ar ameaçador — E só tens autorização de ver as páginas que eu te mostrar não te quero para aí a folhear a teu bel-prazer e a topares com coisas que ainda não podes entender ou que possas interpretar mal.

A partir daí passei a entrar-lhe no quarto todas as tardes com um só fito — Chamaste, avô?

— Eu — perguntava ele a simular surpresa — Eu não, porque é que havia de te chamar?

— Pareceu-me — dizia eu.

— Não chamei — repetia ele.

E fechava os olhos a fingir que dormitava.

Eu não arredava pé e o jogo prolongava-se até ter finalmente coragem para perguntar:

— Posso ir buscar uma revista, avô?

Ele abria os olhos, sorria trocista e apontava para mim o dedo torto — Também me saíste cá um bom malandro, vá, vai lá buscar outra, mas já sabes, quem ta mostra sou eu.

E eu mergulhava debaixo da cama e escolhia uma ao calhas porque já as tínhamos visto todas pelo menos uma vez e, com as orelhas a arder e o coração a bater mais forte, depositava-lha nas mãos como se de um tesouro se tratasse.

Ele pousava a revista no colo, tirava os óculos, limpava as lentes ao casaco de malha, inspeccionava-as com um ar sério, voltava a empoleirar os óculos na ponta do nariz e só então começava calmamente a folheá-la — Como é que ela consegue pôr-se nesta posição – murmurava a abanar a cabeça - O raio da mulher deve ser contorcionista.

E eu, roído de curiosidade — Deixa ver, avô — Esta não — dizia ele a afastar a revista — Demasiado explícita para a tua idade.

Atento e de respiração suspensa, estiquei o braço e tacteei o soalho debaixo da cama quando ouvi a voz da minha mãe a meio das escadas — Vou meter um pijama, meias, roupa interior e a escova de dentes numa mala, nunca se sabe.

Levantei-me num sobressalto, corri para a porta e dei de caras com a palidez dela — O que é que estás aqui a fazer — perguntou desconfiada.

— Nada — balbuciei a encolher os ombros — O avô já acordou?

Ela olhou para mim e duas lágrimas rolaram-lhe pela face — Não — balbuciou — Por favor vai para o teu quarto, deixa-me aqui sozinha um minuto.

Com o aparato de nave espacial, a ambulância chegou pouco depois e da janela do quarto vi-o sair numa maca, tapado até ao pescoço por um cobertor tão cinzento como a pele do seu rosto.

Estupidamente acenei-lhe.

Vi o meu pai entrar na ambulância depois de olhar para cima e esboçar um sorriso contristado ao qual não eu correspondi.

A minha mãe voltou a subir as escadas e ouvi-a fechar a porta do quarto do meu avô à chave.

Depois entrou de mansinho no meu quarto e colocou as mãos nos meus ombros – O teu avô teve outra trombose – começou numa voz embargada, mas a emoção obrigou-a a calar-se a meio.

— Não te preocupes, mãe — pedi — Os extraterrestres clonaram-no mal da primeira vez e por isso têm de repetir.

Ela olhou para mim com os olhos vermelhos — Os extraterrestres — repetiu surpreendida a afagar-me a face.

Dez dias depois outro clone do avô Jacinto voltou para casa ou melhor dito, metade de um clone do avô voltou para casa porque a outra metade ficou para sempre em parte incerta, um lado do corpo descaído e a mente envolta numa espécie de torpor do qual saía de vez em quando para proferir numa voz arrastada e com inesperada vivacidade no olho mortiço — Rm rm rm — a esticar o braço bom e a apontar na direcção da cama.

E eu ia buscar uma revista, colocava-a no colo dele, tirava-lhe os óculos, limpava-lhes as lentes, voltava a colocar-lhos com cuidado e finalmente abria a revista e virava as páginas, uma a uma, devagar.

Às vezes o seu dedo torto seguia o contorno de uma coxa, de umas mamas, de umas nádegas — Rm, rm, rm, rm — proferia agitado, a tentar arrancar da mão da Rita o lenço de papel onde ela enxugava o fio de saliva que lhe escorria do canto mole da boca.
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Sobre a Autora:
Ana Nobre de Gusmão nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suiça. Colabora regularmente nas revista "Elle Portugal" e na "Storm-Magazine". Sua obra encontra-se traduzida na Alemanha. Livros publicados:

Delito sem corpo - Editora Presença, 1996 (Prêmio Máxima Revelação)
Não é o fim do mundo – Editora Presença, 1996
Aves do paraíso – Asa Editora, 1997
Onda de choque – Asa Editora, 1999
Das tripas coração – Asa Editora, 2000
Até que a vida nos separe – Asa Editora, 2002
O pintor – Asa Editora, 2004

Fonte:
http://www.releituras.com/

Como Estudar

Métodos de Estudo

Muitas pessoas se dizem "estudantes", mas na verdade desconhecem o verdadeiro sentido da palavra ESTUDAR.

Estudar é Trabalhar !!!

Não é somente reler um texto na última hora, um dia antes da prova e depois de obter o retorno, em forma de notas baixas, reclamar para si mesmo: - Puxa! Eu estudei tanto!!!!

Estudar é ir à procura da Verdade !!!

A meta do estudante deve ser: chegar a aprender, enxergar com seus próprios olhos.

Quando uma pessoa estuda algo, ela chega a ter uma opinião própria sobre determinado assunto não dependendo de opiniões alheias para tirar suas conclusões.

Estudo é trabalho que requer Empenho, Dedicação e Perseverança

Mas afinal de contas: Como estudar?????

Existem algumas técnicas que auxiliam o estudante a alcançar seus objetivos.

Se estas técnicas forem seguidas, seguramente o sucesso será alcançado e o próprio aluno perceberá que pode ultrapassar seus limites...


Fator Externo

AMBIENTE

O ambiente propício para o estudo deverá ser:
- sossegado,
- com boa iluminação,
- sem música,
- com uma mesa - somente com os materiais básicos para o estudo para que não haja distração com outras coisas do tipo: fotos, revistas, etc,
- uma cadeira confortável (para se manter uma boa postura durante o estudo),
- um bom dicionário não pode faltar.

Fator Interno

MOTIVAÇÃO E AUTO DISCIPLINA

"Um homem sem objetivos não sabe para onde vai"

Um fator que determina o bom estudo é a vontade de querer saber mais, sem esta vontade o aluno não chegará a nenhum lugar. Para que isto aconteça o aluno deve saber onde quer chegar, enfim, ter os seus objetivos bem definidos!!!

A auto disciplina entra aí como um auxiliar do estudante que deve treinar-se para ter domínio sobre a fantasia, imaginação, emoções e impulsos.

A constância vence as impressões de falso cansaço que freqüentemente nos assaltam.

Planejamento e Organização

TEMPO

É importante que separe um tempo para estudar.

A escolha deste período é individual, pois cada pessoa tem os seus compromissos pessoais no decorrer da semana. Mas se faz necessário um empenho por parte do estudante para descobrir seus horários vagos e se dedicar ao estudo.
Descobrir os períodos de tempo vagos.

Selecionar aqueles períodos do dia em que você se sente mais "disposto"(Ex: há pessoas que trabalham melhor à noite, outros logo ao amanhecer...)

Separar pelo menos duas horas para estudo, mas, entre uma hora e outra descansar 15 minutos (saia do ambiente de estudo e faça algo para descansar a mente).

Somente em último caso estude mais que estas 2 horas porque é melhor que você tenha 2 horas de estudo por dia com uma certa freqüência ( por exemplo:4 vezes por semana) do que 4 horas em um só dia.

Anotações em Sala de Aula

As anotações em sala de aula são muito importantes para o estudo, pois elas são pessoais, ou seja, o aluno escreve com suas palavras o que está entendendo da aula, quando nós anotamos algo estamos usando não somente as memórias visual e auditiva. Quando escrevemos algo memorizamos mais!!!!!

Prepare um caderno para anotações ou utilize o próprio caderno da matéria a ser estudada, porque quando fazemos anotações em qualquer folha corremos o risco de perdê-la!!!

Crie o hábito de rever as anotações quando chegar em casa, ao revê-las podemos relembrar coisas importantes que deixamos de anotar durante a aula.

As anotações também podem ser feitas em forma de "MIND MAPPING"

Obs.: Estas anotações são muito úteis também para serem usadas durante: Palestras, Exposições de Trabalhos, Vídeos, etc.

Estudando em Casa

Com o hábito saudável de estudar com uma certa constância você nunca estará com muitas matérias "difíceis" para "tentar decifrar"!

Tudo será uma grande REVISÃO deixando o estudante mais despreocupado, pois ele tem o domínio da matéria!!!

1º Passo
Ler o conteúdo a ser estudado despreocupadamente.

2º Passo
Ler o conteúdo sublinhando o que você está achando mais importante no texto.

3º Passo
Fazer um questionário sobre o que foi lido. (lembre-se que este material é seu por isso tente abordar todos os aspectos do texto!!!! Não seja um traidor de si mesmo!!)

4º Passo
Fazer um "Mapa Mental" do material (observando cores diferentes para as ramificações)

5º Passo
Se houver exercícios para serem feitos a hora é agora. Depois de ter seguido todos estes passos você não encontrará dificuldades em resolvê-los

Dica de Aprofundamento

Muitos alunos ficam apenas com o que o professor aborda em sala de aula e por este motivo, muitas vezes, não chegam a compreender o conteúdo.

Uma dica legal para que o estudante finalmente se liberte e possa discutir e analisar os fatos com mais profundidade é a PESQUISA.

Muitas vezes atitudes simples nos ajudam a ter mais conhecimento sobre fatos e, por este motivo, ser vista como uma pessoa "interessada".

Levar para a sala de aula um recorte de jornal, ou de uma revista sobre o tema estudado é um modo simples de aprofundamento.

Quando a matéria requer exercícios, como por exemplo matemática, o estudante deve procurar em livros de outros autores exercícios diferentes, e a partir destes, o próprio aluno poderá criar os seus.

Fonte:
http://www.espirito.org.br/portal/

Como estudar sozinho

Aprender sozinho exige organização e perseverança. Abaixo, algumas sugestões de como preparar o ambiente de estudo e a cabeça para enfrentar livros e testes e chegar com tudo em cima no vestibular:

Seja um estudante sincero. Identifique os pontos fortes – aquelas matérias mais fáceis – e as dificuldades – disciplinas mais complexas.

Prepare o ambiente de estudo – pode ser no quarto, na sala, na cozinha, enfim, o lugar que você mais se sente à vontade –, deixando o local com boa luminosidade e bem arejado (agora que a temperatura fica mais elevada é melhor ter por perto um ventilador ou um aparelho de ar-condicionado).

Ao interromper o estudo, deixe um sinal específico para retomar a aprendizagem exatamente de onde parou, sem perda de esforço nem de tempo.

Escolha cadeiras confortáveis, que, depois de horas de estudos, não causem dores na coluna, nos braços e nas pernas. Ficar deitado ou recostado na cama pode causar problemas posturais.

Acostume-se a estudar no mesmo local e no mesmo horário.

Realize os estudos com duas intenções: aprender (primeiro objetivo) e recordar.

Inicie os estudos depois de pelo menos 10 minutos de relaxamento, período em que você deverá se concentrar em pensamentos e sentimentos equilibradores. Pense sempre positivo. Não brigue com a situação. O vestibular é uma realidade que deve ser enfrentada com disposição.

Evite movimentos e sons que tirem a concentração. Não é necessário se desligar totalmente do mundo – uma música, por exemplo, em volume mais baixo é sempre uma boa companhia –, mas resista a atender telefonemas, fique longe de conversas e evite barulhos repetitivos.

Se for necessário decorar algum conteúdo, procure ler em voz alta a matéria e com rapidez. Não se detenha em memorizar datas ou fórmulas.

Elabore seus próprios exemplos (ganchos), relacionando os conteúdos estudados. Pode ser até a associação de uma matéria com alguma música que você pode cantarolar até em um passeio no parque.

Aproveite o deslocamento em um ônibus ou o banho para repassar o que foi estudado.

Evite fixar-se em algum conteúdo ou exercício difícil até chegar a uma resposta. Prefira seguir adiante, retomando esse tema complexo após ter passado por outros assuntos que possam ajudar a resolver o impasse.

Não queira se transformar em um super-herói. Identifique os seus limites.

Faça esquemas, gráficos, mapas, resumos sempre que desejar dominar um conteúdo extenso.

Procure ler jornais e revistas e assistir a programas de rádio e TV. Se tiver Internet, realize pesquisas que possam servir como entretenimento e instrumento de aprendizagem.

FONTE:
Simone Janner Grohs (psicóloga) e Sílvia Silveira da Silva (arte-educadora), do Centro de Pesquisa, Educação e Consciência (CPEC).
http://www.espirito.org.br/

Antonio Carlos Villaça (1928 – 2005)

Antonio Carlos Villaça nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), aos 31 de agosto de 1928. Jornalista, conferencista e tradutor, é reconhecido como um dos mais importantes memorialistas do Brasil. É autor de mais de 20 livros, dentre os quais destacamos “Perfil de um estadista da República” (edição do autor, 1945), pequena biografia do Barão do Rio Branco, organizou, em 1962, um livro sobre o poeta romântico Junqueira Freire para a coleção “Nossos Clássicos” (Agir), como memorialista estreou com “O nariz do morto” (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996), ao qual se seguiram “O anel” — seu livro preferido — (Editora Rio, 1972), “O livro de Antonio” (José Olympio, 1974), “Monsenhor” (Brasília/Rio, 1975), “Degustação, memórias”, (José Olympio, 1994), “Os saltimbancos da Porciúncula” (Record, 1996), “A descoberta do morro” (Vigília, 1984), “Manuel Bandeira” (Agir, 1984), “O desafio da liberdade” (Agir, 1983), “Alceu Amoroso Lima” (Agir, 1984).

Com o conhecimento adquirido em sua frustrada vida religiosa que, segundo alguns críticos, é a espinha dorsal de sua obra — vide “Villaça: Um noviço na solidão do mosteiro” — produziu ensaios fundamentais, dos quais destacamos “História da questão religiosa” (Francisco Alves, 1974), “O pensamento católico no Brasil” (Jorge Zahar, 1975), “Tema e voltas” (Hachette, 1976), “Literatura e vida” (Nova Fronteira, 1976), “Místicos, filósofos e poetas” (Imago, 1976).

Muitos escreveram sobre sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, o crítico Wilson Martins, o romancista Octávio de Faria. Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria José Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos.

Em “Memórias de um eterno menino ao sol”, resenha do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, de autoria de Isabel Lustosa, diz ela:

“Villaça é o flaneur, é o homem das multidões, testemunha discreta e atenta, ávida de ver, de compreender, de entrar em contato. Seu olhar contemplativo percorre com calma e volúpia a paisagem e os homens em volta. Retira deles o que apenas a sua sensibilidade, o seu paladar, enfim, os seus sete sentidos apuradíssimos são capazes de apreender. Transforma tudo em palavras. Porque para ele, no principio não é a ação, é o verbo. Villaça defende a primazia da palavra sobre a ação. E as palavras brotam dele com uma naturalidade prazerosa, parecendo nascer assim ao correr da pena, revelando as coisas conforme elas vão se apresentando à memória do que escreve. E, com elas, as sensações que evocam, renovadas, vívidas, palpitantes, como se o narrador estivesse a vivê-las naquele momento, a experimentar de novo a volúpia do sol sobre a pele no quintal da sua infância”.

Antonio Carlos Villaça foi agraciado, em 2003, com o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.

O autor faleceu no dia 29 de maio de 2005.

Fonte:
http://www.releituras.com/

Antonio Carlos Villaça (Quando eu chegar ao Céu...)

Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.
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Fonte:
VILLAÇA, Antonio Carlos. Os saltimbancos da Porciúncula. RJ: Editora Record, 1996.
http://www.releituras.com

Amadeu Amaral (Novela e Conto: Psicologia do Boato)

O boato é um fenômeno social que bem merece uma preleção psicológica, como um capítulo, que de fato o é, da psicopatologia das multidões.

Nas multidões, ou nas turbas, os elementos estão reunidos em massas, num momento dado; os fenômenos sociais aí se realizam por explosão, por contágio súbito que tem como ponto de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes - os chefes de revolta, de arruaças etc.

É da natureza humana o não agir sem um estímulo exterior; nossa vida mental não passa de sugestão de célula a célula e nossa vida social uma contínua sugestão de pessoa a pessoa. Isso se conclui da opinião dos psicólogos que têm tratado desse assunto. A sugestão é um fenômeno geral no meio social. A imitação, a repetição universal, de que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro - Les Lois de l'Imitation - demonstrando sua universalidade, nada mais é do que a "sugestão" na significação mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o papel de microscópio, mostrando-nos a sugestão muito aumentada. S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as idéias de Tarde e mostra sua coincidência com as de Sergi (Psicose Epidêmica).

Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenômeno se realiza lentamente, porque os indivíduos estão esparsos; mas o fenômeno é da mesma natureza essencial dos que se dão nas turbas.

Que é o boato? É quase sempre uma criação fantasiosa de um indivíduo mau, de caráter abjeto, fantasia essa que se espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa cidade, num Estado. O boato nasce como realização ilusória de um desejo perverso, originário de uma paixão inconfessável - raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniário, político ou sexual.

O criador de um boato é sempre um imbecil (moral). A vítima é, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; é esse o seu único consolo...

O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira, a fantasia perversa. Esse momento é de alta importância, porque nele se acha a circunstância que dá aparência de verdade ao fato que se pretende propalar. Essa circunstância é mui variável de um caso a outro. Não é possível, por exemplo, divulgar a notícia de que um certo financeiro importante está louco (para dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visível a todo o mundo; é preciso que esteja ausente, fortuitamente. É a circunstância oportuna.

Não basta, porém, como explicação para o boato, essa circunstância e a possibilidade ou verossimilhança do fato a divulgar. É necessário o meio social apropriado para que o fenômeno se realize. A sociedade espelha o caráter de seus fatores antropológicos. A explicação é bem escabrosa e desoladora para o homem civilizado, mas é preciso repetir a verdade, ainda que muito nos custe.

"Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguém é um velho cacoete da alma humana. Talvez seja a música mais harmônica que existe, porque convibra bem com qualquer espírito". A frase é de Austregésilo, no livro O Mal da Vida.

Há em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade, de infâmia e de perversidade. As proporções dessa mistura é que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente o que há de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de sua consciência lhe permitem reconhecer e dominar a própria tendência perversa, até o malvado arrematado, cuja consciência estreita e sensibilidade moral embotada lhe não permitem reconhecer o mal que vive dentro dele, há nessa vasta série, a infinidade de caracteres que vemos diariamente na sociedade.

Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conceptión Arenal (Delito Coletivo) em que se repete a noção acima exposta, apenas por outras palavras; "lo más grave y lo más triste es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice, o, para hablar con más propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible revelación no es obra de ningún principio, de ninguna idea; es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos".

O trabalho secular da civilização tem sido exatamente o de reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansão e força ao que é bom. Aquele, porém, não se extingue; existe sempre, embora sufocado, como os Titãs da fábula que, vencidos pelos deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos pelas convulsões de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra.

Canto e Melo, no seu recente romance - Relíquias da Memória - lá diz a mesma verdade, à página 67: "pela primeira vez na vida, pensei na crueldade dos homens. Só os conhecera até então através dos artifícios da civilização e do convencionalismo da sociedade. Ao vê-los agora, no pleno viço das suas inclinações primitivas e bárbaras, convenci-me de que o homem é mais feroz do que as feras e, se não exerce a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, é porque o medo da represália lhe arrefece dentro do coração os nefandos impulsos da ferocidade inata".

A concepção freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson, admite na alma humana o inconsciente dinâmico como sede de todas as tendências e instintos maus recalcados pela civilização no correr dos séculos.

Nada, entretanto, é novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos observadores e psicólogos, conheciam muito bem esses assuntos e deles trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo simbolismo de sua linguagem.

Sabido isto, ainda que em súmula, temos aí o núcleo indispensável para a explicação do boato.

Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos.

"A felicidade de qualquer é desespero para muitos", diz muito bem Austregésilo no Mal da Vida.

Quem não tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do céu.

O sucesso, por si próprio, cria má disposição de ânimo nos outros. E essa indisposição vive no inconsciente; não é raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada sob múltiplos aspectos. Na espécie humana é a política o melhor campo de observação.

Entre os animais o fenômeno é grosseiro e por demais visível. Repare-se quando diversos cavalos comem numa só manjedoura, cada um com seu quinhão de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar, para ir escoicear os outros, embora não lhe falte comida. É o mesmo fenômeno que se encontra no meio social, muito abrandado, está visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem.

É inegável, pois, que no meio social, por toda a parte, existe sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa que vence na vida. Haverá alguém tão ingênuo que a desconheça?

Nessa atmosfera é que se acha o elemento vital indispensável à germinação e rápida florescência do boato.

A escuridão do anonimato dá ao boateiro o ânimo e a proteção de que carece para agir, como a escuridão da noite protege certos insetos nojentos que propagam repugnantes infecções. É mesmo essa uma das feições que distinguem o boato de outros fenômenos sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza em pleno dia, por contágio quase explosivo.

No fundo, na essência, os fatos são idênticos. As coisas se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnabá, da ópera Gioconda, provoca na praça um tumulto contra a cega, mãe de Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes a convicção de que fora a cega quem exercera "malefícios" e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnabá é uma criatura eterna na sociedade.

Mais belo exemplo se acha na tragédia Júlio César, é o magnífico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de sua alma, Shakespeare pôs na boca de Brutus as palavras inflamadas que levariam o povo a assassinar Antônio, se este não possuísse também a poderosa arte de dirigir a fera - a multidão - que o ameaçava.

A habilidade do boateiro está, como em regra nos fenômenos desse grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta humana mal amordaçada pelas coerções do meio civilizado.

O boateiro é sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indômita que existe na maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro, o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonância que sua tendência encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagação dos estados afetivos nas multidões ao efeito da onda sonora de uma nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera atingida pelas suas ondulações. É um principio geral nos fenômenos de contágio moral.

A perversidade influi com prontidão, porque é uma qualidade mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, não procuram fazer o mal, são passivos; os maus "querem" fazer o mal, são ativos.

Felizmente existem também almas nobres em que essa lepra já se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato não caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, é suscetível de aperfeiçoamento com o envolver da civilização; a consciência se alarga no correr da evolução. É ao menos um consolo lembrar que a civilização irá melhorando cada vez mais a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediáveis. Também, se o conhecedor da alma humana só enxergasse ai o que há de mal, morreria de pavor.

O aperfeiçoamento da consciência chegará a extinguir o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuição do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cúmplice do boateiro encontra um homem bom ele narra uma calúnia, mais ou menos nestes termos:

"Sabe que "se anda dizendo" de F...? Dizem que fez isto, aquilo e mais aquilo. Eu não creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou dizendo só aqui entre nós; não convém falar, porque talvez seja invencionice. Em todo o caso é uma pena, se é verdade."

O homem bom fixa então os olhos semicerrados sobre o narrador e diz mentalmente:

"Miserável, infame! Não tens nem força para sufocar o prazer que isso te causa. Não inventaste, talvez, a mentira; mas o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma igual à dele, para colaborar no trabalho essencial - o da divulgação da infâmia. E tu contavas comigo, salafrário! porque não tens consciência do vil papel que neste momento representas."

Ora, aí está como as coisas se passam, embora excepcionalmente. Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vão logo adiante, confidencialmente, com ar muito contristado, na rara infâmia a um outro, e assim se espalha o boato com extrema rapidez. Ainda há pouco vimos como se espalhou no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da República, aqui em São Paulo, vaia que não passou de pura fantasia de um boateiro soez.

Há indivíduos mais afoitos, felizmente raros, que vão a um jornal e dão a falsa noticia da morte de um cidadão que está bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia... Os jornais já tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos são raríssimos. Vimos essa maldade praticada em São Paulo e não há muito anos.

Há uma diferença enorme entre o indivíduo que recebe com verdadeiro pesar uma falsa notícia e o cúmplice do boateiro, isto é, o que tem prazer em espalhá-la. O primeiro cala-se, ou procura saber de quem partiu a notícia; vai ao encontro da vitima e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro não; esconde a fonte de onde lhe viera a notícia; pactua com os malfeitores e finge pudor ou discrição, sem se lembrar que em tal caso não se trata disso; ao contrário, deve-se pôr tudo à luz do sol.

É muito difícil descobrir no meio dessa obra de colaboração anônima, o verdadeiro autor dessas infâmias. O professor Jung, de Zurique, conseguiu, no caso fácil e no meio restrito de um colégio de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez com que todos os conhecedores da notícia a escrevessem como a receberam. Notou ele o fato que nós expressamos no ditado português: "quem conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades que variavam entre os diversos narradores; só o núcleo essencial do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho e deixava perceber um desejo erótico que inconscientemente dominava a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso típico da mitomania de que tanto se ocupou Dupré, médico da prefeitura de Paris.

Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, é impossível descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores.

Há épocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento e divulgação do boato como há tanto tempo favorável às plantações na vida agrícola. São as épocas de intensas agitações emotivas - de guerra, de epidemia, de revolução política etc.

A ambição, outra tendência fundamental humana, permite também do mesmo modo que a maldade, a criação de uma atmosférica especial em que se observam curiosos episódios de sugestão e contágio, alguns dos quais revertem em castigo cômico contra os próprios ambiciosos. Temos o exemplo na célebre fortuna que se acreditou existir num banco inglês, pertencente a brasileiros, descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicólogo prático, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em São Paulo, há mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribuí-la aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um lhe mandasse apenas cinqüenta mil réis junto ao nome que o habilitasse como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome - Bueno, Silveira etc.
Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas de cinqüenta mil réis que deram magnífico resultado ao pândego mistificador.

Vimos nessa ocasião muita gente séria, carrancuda e circunspecta, entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe poderia caber.

Passado algum tempo, o insaciável advogado, precisando de mais dinheiro, mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruções muito especiais. Só podiam pagar novo tributo os que tinham tais e tais sobrenomes; os outros estavam excluídos. Muitos dos excluídos importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia; era preciso dar uma feição de seriedade a tal bandalheira. A nova colheita deu ainda magnífico resultado. A herança não apareceu até hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer... de viver um sonho por algum tempo.

É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que naquela época concorreram para os regabofes do advogado.

O boato nem sempre é expansão de malvadez recalcada; há o boato tendencioso e o boato inócuo. Sua origem primeira é sempre um desejo inconfessável e freqüentemente inconsciente.

A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve o boato, é sempre inconsciente.

Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornar consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode dominá-la. Ainda estamos longe da perfeição; não podemos exigir a extinção do boato.

Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de uma doutrina exposta em princípios gerais, é hoje moda e fundada em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato em lugarejo do interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmente descrito.
Franco da Rocha

Fonte:
www.biblio.com.br

Antonio Prata (Pra lua)

Não foi assim logo de cara. Claro, seu Julião e dona Neuza já tinham reparado numa coincidenciazinha aqui, uma sorte acolá, mas só foram perceber que Julinho tinha mesmo um dom especial no verão de 1984, em Caraguatatuba, assim que o moleque acabou de chupar o quinto picolé, de manga.

Quinze minutos antes, ao acabar o primeiro sorvete, um Fura-bolo, Julinho pulou de alegria: o palito viera premiado, dando direito a mais um. Até aí, nada de mais... Acontece que o segundo sorvete (um Esquimó) também dava direito a outro, assim como o terceiro (de coco), o quarto (tangerina) e provavelmente todos os que chupasse se, no quinto picolé — a barriga do garoto já estava parecendo uma tela do Pollock, tantas as gotas de diversas cores que escorriam em direção à sunga verde-limão—, o sorveteiro não tivesse dado com a tampa de isopor em sua cabeça e saído soltando os palavrões mais cabeludos, cujos significados Julinho só viria a descobrir muitos anos mais tarde, na perua do colégio, numa tarde de maio — o que não vem, absolutamente, ao caso.

O que nos interessa é que nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de toda a criançada de Caraguá, com quem trocava os palitos premiados por pipas, baldinhos de areia, favores e até uma bicicleta com buzina, cestinha e farol. (A bicicleta, infelizmente, teve que ser devolvida assim que uma mãe apareceu no guarda-sol da família, trazendo um filho choroso numa mão, 45 palitos premiados na outra e exigiu a anulação da troca.)

Apesar de já saberem que ali tinha coisa, foi só quando Julinho estava na quinta série, na época que surgiram as Raspadinhas, que seus pais realmente se deram conta do potencial econômico de seu dom. Enquanto a maioria dos mortais gastava tubos do dinheiro naqueles cartões lotéricos e, na melhor das hipóteses, ganhava 50 centavos — gastos em mais uma Raspadinha que, claro, não dava em nada —, Julinho sempre tirava a sorte grande: era só raspar a camada prateada e sair pro abraço.

Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado e jet ski. Não fosse o processo promovido pela Associação Brasileira dos Donos de Casas Lotéricas — que deu queixa na polícia dos prejuízos causados pelo gordinho que aparecia sempre chupando um picolé, comprava uma Raspadinha e limpava os caixas dos estabelecimentos — e a família, em pouco tempo, entraria nas listas das mais ricas do Brasil.

Em entrevista ao vivo no programa do Gugu, logo após serem absolvidos no processo — com o acordo de que Julinho jamais jogasse em qualquer tipo de loteria federal —, seu Julião, o pai, disse que não tinha truque nenhum: "O garoto é assim, desde pequeno: rabudo. Pede par, sai quatro, ímpar, dá cinco e, no amigo secreto do Natal, sempre é tirado pelo tio Leôncio, meu cunhado, que dá os melhores presentes." Dona Neuza, a mãe, acrescentou orgulhosa: "Hum-hum..,"

Desde o lance das Raspadinhas, seu Julião e dona Neuza já não trabalhavam: como os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se exclusivamente a desenvolver o talento do filho. Passavam o dia colocando tampas de margarina e embalagens de chocolate em envelopes e respondendo a perguntas tipo “qual é o sabão que deixa limpão"; "a bateria que nunca arria"; "o refrigerante que faz splash" ou "o absorvente da executiva moderna". Toda manhã, antes de ir para a escola, Julinho punha as cartas no correio: eram casas, caiaques, home theatres, férias em estâncias hidrominerais, fins de semana em hotéis-fazenda, um ano de supermercado grátis e outros prêmios que não acabavam mais.

Dona Neuza pôs botox, silicone, clareou os cabelos e entrou numas de Feng-Shui; seu Julião fez implante capilar, montou um bar espelhado na sala da cobertura e fazia churrasco todos os domingos; Julinho tinha um minibugue, fã-clube, todos os bonequinhos dos Comandos em Ação, Passaporte da Alegria vitalício no Playcenter e a Tilibra estava prestes a lançar uma linha de cadernos com sua foto na capa.

Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. Não havia nada que quisesse que não conseguisse: quando jogava futebol, para qualquer lugar que chutasse, a bola entrava; todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro e, quando ficava doente e perdia uma prova na escola, o professor faltava. Era muito fácil. Além do quê, não agüentava mais chupar picolé. Sem uma dificuldade, por menor que fosse, um empecilhozinho qualquer, as coisas perdiam a graça. Andando de lá para cá com seu minibugue pelas ruas do condomínio, Julinho lamentava: "Se ao menos eu tivesse que preencher algum formulário, ou pagar uma mensalidade, ou fazer duzentas abdominais toda manhã, eu sentiria que estou tendo algum trabalho, mas assim, do nada, não tem graça!". Tudo o que ele queria, como sempre nesse tipo de história, era ser como as outras crianças. Mas como?

Foi por acaso, caminhando pelo Centro de São Paulo, num dia desses em que o céu cinza parece apenas a metáfora que um escritor previsível criou para espelhar a nossa nublada configuração interna, que Julinho deu de cara com o lugar mais impressionante que seus olhos já haviam visto, um mercado onde se podiam encontrar ovos de dinossauros vietnamitas, videocassetes chineses, múmias maias, DVDs pornográficos da Hungria, parentes distantes, lança-mísseis russos e até amor verdadeiro — a galeria Pajé. E foi ali, entre um Rolex falsificado e um cachorrinho de pelúcia (que era ao mesmo tempo dicionário eletrônico, liquidificador e chapinha para cabelos), que Julinho encontrou a lâmpada árabe. Haddad, o vendedor, garantiu que a preciosidade era do século XIII e havia sido roubada pessoalmente do Museu de Bagdá, durante a invasão americana. Julinho, contando, como sempre, com a própria sorte, não vacilou.

Assim que chegou em casa e começou a lustrar a lâmpada com a manga da camisa, o ambiente encheu-se de fumaça, ouviu-se uma explosão e, depois de uma chuva de purpurina e lantejoulas, lá estava ele, translúcido e obeso, pairando a um metro do chão: o gênio da lâmpada!

— Ó amo querido, me libertaste da terrível prisão! Como recompensa, concedo-te três pedidos. Diz-me apenas quais são teus desejos e logo os satisfarei!

Julinho nem pestanejou:

— Primeiro eu queria ser como os outros, não ter tanta sorte: me dar bem às vezes, mal em outras, ter que me esforçar para conseguir o que quero. Segundo, já que a sorte me abandonará, quero apenas garantir uma regalia: que todas as mulheres que posam para a Playboy queiram fazer sexo comigo até o fim da vida. Terceiro, desde criança que penso nisso: por que chamam esse objeto dourado de lâmpada, se ele mais parece um bule?

O gênio, com aquela cara séria e atenta que gênio faz nessas horas, respondeu:

— Meu amo: teus desejos são uma ordem!

Mais fumaça, mais chuva de purpurina e lantejoulas e, quando tudo se acalmou, no lugar que antes o gênio sobrevoava, havia um bilhete:

“Caro amo, temo avisar-te que ocorreu uma falha na execução de teus desejos. Acontece uma vez a cada mil anos o que nós, gênios da lâmpada, chamamos de paradoxo retroativo. Teu primeiro desejo foi imediatamente aceito e teu azar, portanto, começou ali mesmo, fazendo com que os efeitos desse gênio não tenham efeito nenhum. Em outras palavras: tudo continuará como antes, tu continuarás sortudo. Se fizeres sexo com playmates ou descobrires por que esse bule é uma lâmpada será porque nasceste virado para a lua, não por conta de meus serviços. Agora, devo ir-me, haverá uma convenção de gênios da lâmpada no Rotary Club de Ribeirão Preto e não posso perdê-la por nada. Adeus e obrigado."

Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. E a toalha, no caso, era ele mesmo: olhou seu quarto pela última vez, derramou uma lágrima de despedida e saltou pela janela da cobertura. Enquanto caía, pensava no infortúnio de não ter nenhum infortúnio, na desgraça da graça a ele concedida e, sabe-se lá por quê, num short amarelo de que gostava muito quando era pequeno.

Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, lá estava ele, vivo e consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. Naquele momento, ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, que reclamava dos estragos causados ao veículo e perguntava como era que ele ia fazer agora para trazer o shimeji de Cotia todo dia, Julinho compreendeu sua sina: era imortal, sortudo demais para morrer.

Uns dizem que foi o tombo, outros comentam que a coisa já vinha de longe, que ele sempre teve um parafuso a menos, mas o fato é que todo dia, desde o salto, Julinho tenta, inutilmente, tirar a própria vida. Depois de beber cianeto (estava vencido), cortar os pulsos (a faca quebrou), enforcar-se (a árvore tombou) e tentar todos os outros métodos conhecidos e desconhecidos de suicídio — chegou até a alimentar-se por uma semana só de detergente de maçã —, Julinho perdeu de vez o juízo. Vaga doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. De vez em quando, engole espadas, caminha sobre brasas, deixa jamantas passarem por cima de seu corpo e faz cooper em campos minados de Angola, sempre em vão. Para piorar, uma multidão de fiéis o segue aonde vá, acreditando ser a volta de Jesus à Terra. Alguns rabinos discutem se é ou não o messias, as playmates não lhe dão sossego e produtores de televisão ligam todo dia, insistindo em fazer um documentário para o Discovery Channel.

Agora, por exemplo, Julinho está em Foz do Iguaçu, chorando arrependido da remota manhã em que foi pedir aquele maldito Fura-bolo em Caraguatatuba. Em instantes se atirará do alto da mais alta das cataratas — de onde será resgatado, alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de Bombeiros do Brasil.

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Sobre o Autor:
Antonio Prata (24/08/1977) é paulista e tem os seguintes livros publicados: "Cabras, Caderno de Viagem", com Paulo Werneck, Chico Matoso e Zé Vicente da Veiga, "Douglas e outras histórias", “As pernas da tia Corália” ,"Estive pensando" e "O inferno atrás da pia".

Fernando Morais, escritor reconhecido no Brasil e no exterior, assim se manifestou sobre “Douglas": ”... Seria um livro de contos? De ensaios? De reflexões sobre o mundo? Não sei dizer. O que eu sei é que é um dos mais espirituosos e divertidos livros que li nos últimos tempos. Não me pejo, assim, de (mais uma vez?) valer-me da fantasia de Ruy Castro: aconselho-os a acompanhar a carreira do jovem escritor Antonio Prata. Ele tem espantoso futuro. Continuem lendo e observando-o". E termina:"Pela qualidade do texto, fica dispensado o teste do DNA: Antonio é mesmo filho de Marta Góes e de Mario Prata".

Fonte:
PRATA, Antonio. O inferno atrás da pia. RJ: Editora Objetiva, 2004.
http://www.releituras.com/

Antonio Prata (Receita)

Fazer um texto não é difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de muitos estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas norte-americanas, juntei conhecimento suficiente para produzir um pequeno tratado sobre o tema. Se o publico aqui não é por vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser compartido. Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia em que todo o saber humano poderá ser reunido e centralizado em um único programa de computador, ou software — que é o termo correto — e vendido a preços módicos nas bancas de jornal, postos de gasolina ou virão grátis nas compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo(*). Aí vai, portanto, a minha modesta contribuição.

Como escrever um texto

Assim como para fazer uma sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto é necessário, primeiramente, selecionar as palavras que vamos usar. Se para os ingredientes da sopa vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras recorremos ao dicionário.

Algumas considerações desnecessárias (porém interessantes)

O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia — como ocorre com os legumes no mercado —, posto que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da sala, o que seria impossível de se fazer com um mercado — não por sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e sim escrever um texto). Há uma diferença básica entre os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que fiquem velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser velho é condição sine qua non para estarem ali. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom mercado, como mercado em um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos ao tema em questão: como escrever um texto.

Agora sim, como escrever um texto, parte I: Ritmo

Tanto os pergaminhos ciganos da Checoslováquia como os cientistas norte-americanos estão de acordo em um ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. Um método infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos uma curta, como chá, lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como halterofilismo, mononucleose ou antropomorficamente.

Assim que você sentir que já tem em mãos um bom número de palavras curtas e longas — isso depende do tamanho do texto que quiser escrever —, parta para a busca de um número igual de palavras médias, tais como sudorese, abobado ou alicate. Aconselha-se anotar essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou datilografá-las num computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições infra-estruturais de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara, dependendo não só das condições infra-estruturais como do efeito desejado. Isso fica a cargo do autor.)

Parte II: Etiqueta ou bom senso

Se para uma sopa de batatas precisamos de muitas batatas e para uma sopa de beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para um texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semi-erótico de palavras semi-eróticas. Se o autor tem em vista um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as palavras lantejoula ou meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita.

Parte III: Pontuação

Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras, harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação.

Algumas dicas: para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula, pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre ou o curry na culinária.

Parte IV: Prosa e poesia

Tendo os ingredientes e os temperos todos à frente , é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso, vale a pena seguir alguns passos.

1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações. São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar no exemplo a seguir:

Antes:
Havia casas azuis.
Depois:
Oh! Havia casas... Azuis?!

Caso o futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa, não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho. Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo.

Os antigos pergaminhos da Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas, exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas.

Por último, cabe destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e não precisa ser resfriado nem muito menos congelado.

Apesar das considerações anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa. Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa: todos, em algum momento, chegamos ao fim.

(*) Promoção válida apenas para as lojas Mambo em São Paulo (capital), Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Macapá, Acre e Roraima: que se danem!

Fonte:
PRATA, Antonio. As pernas da tia Corália. RJ: Editora Objetiva, 2003
http://www.releituras.com/
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Antônio Torres (Por Um Pé de Feijão)

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.
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Sobre o Autor:
Antônio Torres nasceu no dia 13 de setembro de 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal "Última Hora". Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária se deu com o romance "Um Cão Uivando nas Trevas", publicado em 1972. Em seguida, viria a publicar mais quatro romances: "Os Homens dos Pés Redondos" (1973), "Essa Terra" (1976), "Carta ao Bispo" (1979), "Adeus, Velho" (1981), "Um Táxi para Viena D´Áustria" (1991), "Balada da Infância Perdida" (1996), "O Cachorro e o Lobo" (1997) e "Meu Querido Canibal" (2000), entre outros. Pelo conjunto de sua obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos, que publicou em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

Fonte:
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. RJ: Editora Objetiva, 2000.
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Artur de Carvalho (Uma Gata)

Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando, continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando de CD. A música sertaneja invadiu as FMs. Ele era do tempo em que as FMs só tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se lembrar. E agora... só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar. Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas. Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV Eles nem sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas na sua barriga. Ela não agüentava cócegas na barriga. Se davam bem.

Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha umas bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas de maizena.

É o que há.

Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como quem a pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores.

Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite. Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia. Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava, acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios, garotas loiras de biquíni. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia o filme, depois nem isso. Dormiu.

Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado. Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu.

Ela sempre voltava.
14 de julho de 1998
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Sobre o autor:

O cartunista e escritor Custódio fala sobre o autor:
"Artur de Carvalho poderia ser muita coisa na vida. Poderia ser arquiteto ou junkie, dono de padaria ou desenhista, pai careta ou um bicho grilo amalucado. Poderia ainda ser galã easygoing ou um marido correto, profissional talentoso e sujeito de bom caráter. Mas isso seria pouco. Artur resolveu ser então...
Tudo isso. TUDO.

Na luta para incorporar todos esses personagens em sua Távola Redonda, Artur, rei de múltiplas faces, acabou adquirindo bronquite crônica, cirrose crônica, e uma crônica humanidade que lhe dá uma força tão grande quanto desapercebida. Claro, Artur virou cronista. Da felicidade dele em descobrir sua verdadeira vocação, vem a nossa, de descobrir seus textos leves, suas observações reluzentes, seu humor doído de tão humano.

E assim, sem podermos ter as múltiplas faces que o autor colecionou pela vida, somos brindados pela doce viagem de sermos sócios delas, e entrarmos em sua casa, sua família, sua Votuporanga, que poderia ser Porto Alegre, São Paulo ou Nova Iorque. O Incrível Homem de Quatro Olhos é um livro arrebatador. Não arrebatador como aqueles torpedos certeiros que partem de uma esquadra bem armada. Mas sim arrebatador como uma brisa suave* que venha carregada de lembranças felizes.

*Brisa Suave, em tupi, é Votuporanga".
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Artur de Carvalho colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003, que acaba de chegar às livrarias.
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Fonte:
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Artur de Carvalho (Rindo pra não chorar)

Todos os dias eu chego em casa e me sento na frente da TV, ansioso, esperando começar o horário eleitoral. Para dar umas risadas, sabe? São tão poucos os motivos para se rir hoje em dia que a gente não pode perder a oportunidade de ver um louco de pedra gritando de punhos fechados que a solução para São Paulo é um trem bala. Eu simplesmente rolo de rir. E o mais engraçado é quando o candidato a governador (é, o cara é candidato a governador) obriga seus partidários (sim, o maluco tem partidários) a vestirem uma camisa da seleção brasileira e gritarem juntos “rumo à vitória”, todos dando um soco no ar, de punhos fechados, como se tivessem feito um gol. Mas o que é isso, meu Deus? Alguém tem de internar aqueles caras imediatamente num sanatório antes que eles cometam algum ato mais violento, ou até mesmo alguma perversidade.

E falando em Deus, tem um outro que diz que vai entregar São Paulo nas Mãos de Deus. Pelo menos esse aí tem lá uma certa dose de razão e de sinceridade. Ninguém dá conta mesmo de arrumar essa bagunça, melhor entregar logo nas mãos de Deus e acabar de vez com toda essa anarquia.

E aí, entra o Enéas.

Bem, a gente pode falar qualquer coisa do Enéas, menos que ele não seja uma figuraça. Tirando aquelas encanações dele com a bomba atômica, daria para confundi-lo com aqueles loucos mansos de cidade do interior, sabe? As crianças assobiam e os malucos saem correndo e babando atrás das crianças, mas quando alcançam não fazem nada e todo mundo acaba dando risada. Eu sou fã do Enéas. Se eu fosse ele, nas próximas eleições me candidatava a uma vaga na “A Praça é Nossa”.

Mas o mais engraçado mesmo são aqueles candidatos que ficam com os olhinhos mexendo, tentando ler o texto que está escondido atrás das câmeras. Normalmente o texto se resume a algo assim: “Eu sou Fulano de Tal, apóio Sicrano de Tal, o meu número é tal”. São apenas três frases, e o pobre coitado não consegue decorar! O que é que ele vai querer fazer lá na assembléia legislativa se ele não consegue decorar nem três frases seguidas, puxa vida?

Sei que, desde que o horário eleitoral começou, eu venho me esbaldando de tanto rir. Toda noite eu estouro umas pipocas, ligo a televisão e quando o programa acaba eu estou com o fígado completamente desopilado. Parei até de tomar uns comprimidos para os nervos que o médico tinha me receitado.

Eu só fico bravo mesmo quando aparecem uns estraga-prazeres que resolvem baixar o astral do programa. Tá todo mundo dando risada e se divertindo, e de repente aparecem esses sujeitos de cara fechada e voz embargada. Eles abrem uns papéis e começam a expor uns tais planos de governo. E ficam falando dos problemas da educação. Mostram favelas e criancinhas com fome. Falam que não sei quantos seqüestros estão acontecendo por semana. Do crime organizado. Que a dívida no exterior não sei o quê. Que os juros brasileiros são os mais altos do mundo. Esse tipo de coisa que não leva a lugar algum.

Será que ninguém vê que desse jeito o programa vai acabar perdendo totalmente a graça?

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Artur de Carvalho (Marcelo, Marmelo, Martelo)

Ao Marcelo Andrade e ao Marcelo Martinez. Dois amigos.

Não tem erro pior no mundo que trocar o nome de alguém. Ainda mais quando são pessoas mais ou menos chegadas. E não sei se é problema de idade, ou o quê, mas ultimamente está acontecendo comigo com mais freqüência do que meu estoque de desculpas esfarrapadas permite. É, porque a gente sempre arruma uma desculpa:

- E aí, Marcelo?

- Marcelo? Que Marcelo?

- Você... quer dizer...

- Meu nome é Hélio, Artur.

- Ah, é... Hélio... Mas onde é que estava com a cabeça? Sabe o que é, Hélio? É que eu estava aqui, pensando num quadro que tenho de pendurar na parede... E não conseguia encontrar o martelo...

- E o que é que tem?

- Você entende, né? Martelo... Marcelo... Me atrapalhei... Desculpa aí...

A sorte é que existem pessoas que entendem o nosso constrangimento. Outro dia desses, eu precisava falar com o diretor da escola da minha filha, o seu Agenor. Entrei na sala dele, minha filha ficou esperando do lado de fora.

- Bom dia, seu Agenor? Como vão as coisas?

- Tudo bem, Artur... Sente-se.

- E a família? Como vai a dona Estela?

- Tudo bem também...

Conversamos mais ou menos uns dez minutos. Ele, um homem super educado. Na hora da saída, ainda se lembrou da minha esposa.

- Manda um abraço para a dona Telma, Artur...

- Pode deixar, seu Agenor. Eu mando.

Saí da sala dele. Chamei minha filha e fomos embora. No caminho, a minha filha perguntou:

- E aí, pai? O que é que o seu Angelo queria?

- Angelo? Que Angelo?

- O diretor da escola, uai...

- Angelo, é? Mas não é Agenor?

- Não. É Angelo.

- E... Vem cá, filha... Por um acaso você sabe se a mulher dele se chama Estela?

- Não sei, por que?

- Nada não. Deixa pra lá...

Mas o que me deixa razoavelmente tranqüilo é que essas coisas não acontecem só comigo. As outras pessoas também, volta e meia, trocam o meu nome... Não sei porque cargas d'água, sempre aparece um que me chama de Raul... Olha que de Artur para Raul tem uma diferença e tanto. Mas não adianta. Outro dia desses, por exemplo, eu estava num evento aqui em Votuporanga, fazendo uma noite de autógrafos para o meu livro recém lançado. Chegaram uma mãe e sua filha de uns doze anos. A mãe veio logo se chegando, e dizendo que eu era o ídolo da filha dela. E cutucava a garota com o cotovelo:

- Fala pra ele, filha...- e a filha não falava nada.

E ela continuava:

- Porque a minha filha não perde uma crônica sua no jornal... não é filha? - e cutucava a filha. E a filha nada. Aí a mulher comprou um livro e pediu um autógrafo. Para a filha, é claro. Eu perguntei como era o nome da menina. E a mãe:

- Silvia. Silvinha.

E eu, todo orgulhoso, peguei a caneta e escrevi ali, na contracapa "para a silvinha, com um beijão".

Assinei e entreguei o livro para a garota. Ela se encolheu. Ficou vermelha. Não sabia onde colocar as mãos. Aí a mãe deu outro cutucão.

- Agradece o seu ídolo, filha!

E a garota:

- Muito obrigado, seu Raul.

Eu fico pensando. Será que alguém erra o nome do Michael Jackson?

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Artur de Carvalho (Fábrica de Casamento)

Chegamos correndo. O casamento estava marcado para as sete horas. Já era sete e meia.

Apressamos o passo até onde permitia o salto alto da minha mulher.

— Calma, querido...

— Olha lá... já começou...

— Eu vou acabar quebrando o salto...

Entramos. Os noivos já estavam no altar.

— Tá vendo? Nem vimos a noiva entrando.

Os noivos lá, de costas. Eu conhecia um ou outro padrinho.

— Você sabia que o Almeida era padrinho?

— O Almeida?

— É... Olha ele lá.

— Puxa vida. Eu nem sabia que o Almeida conhecia os noivos...

O casal na frente da gente, além de ser o mais alto da igreja, não sentava nas horas que a cerimônia exigia.

Minha esposa e eu ficávamos olhando por entre os ombros deles.

— Quem é aquela, com o Ubiratam?

— O Ubiratam também é padrinho?

— Não. Olha ele ali, no terceiro banco. Quem é aquela com ele?

— Sei lá. Não é a esposa?

— Não. Deve ter separado.

— Separado? O Ubiratam?

As luzes das câmeras de vídeo atrapalhavam a visão. Ficavam atrás dos noivos, e não dava pra ver nada. O casal na nossa frente se abraçava. A gente tentava olhar em volta.

— Você viu o vestido da noiva?

— É. Eu sempre gostei de vestidos beges.

— Quem é que disse que é bege? É branco.

— Branco nada. Não tá vendo?

Os alto-falantes estavam com um pouco de microfonia, mas deu pra ouvir o sim dos dois.

— Você ouviu a voz dela? Deve estar chorando.

— É. Ela sempre fica emocionada nessas ocasiões. Imagine agora, no casamento...

— Olha lá... Aquela é a mãe dela?

— Sei lá... Eu não conheço... Mas deve ser...

— Nova, né?

As luzes das câmeras estavam mesmo insuportáveis. Ofuscavam tudo. Mas deu pra perceber que a cerimônia já estava acabando. Os padrinhos fizeram um círculo em torno dos noivos. Estavam descendo do altar.

— Vem cá. Vamos tentar ficar aqui perto, pra ela ver que a gente veio.

— Mas tem muita gente.

— Vem cá!

Os noivos desceram do altar. Todo mundo se aglomerou ao lado do corredor central, ornado com um tapete vermelho. Um homem me deu uma cotovelada, quando tentei passar à sua frente. Ficamos, minha mulher e eu, cercados por uma pequena multidão.

— Ela está passando! Ela está passando!

— Você viu o vestido? Eu falei que era bege!

— É branco. Não tá vendo?

Os noivos passaram. Atrás, os padrinhos. Deu pra ver o Almeida. Ele sorriu e fez um meneio com a cabeça. Eu sorri pra ele. Os ocupantes dos bancos foram se dispersando pela igreja. Começaram a chegar os convidados para o outro casamento. A coisa ficou meio tumultuada.

— Vamos embora, querida?

— Mas nós não vamos cumprimentar os noivos?

— Não. Vamos embora.

— Mas a gente precisa ver os noivos. Quer dizer, os noivos precisam ver a gente. Depois vão falar que a gente não veio.

— O Almeida me viu.

— Viu nada.

Saímos da igreja e fomos cumprimentar os noivos. Tinha fila. Uma confusão na frente da igreja. O outro casamento já ia começar. Ouvimos um sino. A nova noiva já estava entrando.

— Nossa.. Mas é um atrás do outro, hem?

— É. Parece fábrica.

Finalmente, chegou a nossa vez. A noiva estava de costas, cumprimentando o Ubiratam. Ela estava de branco, afinal de contas. Aí, a noiva se virou. Minha mulher arregalou os olhos. Eu disfarcei. Dei um beijo, desejei felicidades. Minha mulher fez o mesmo.

Saímos da fila e voltamos correndo para dentro da igreja. Minha mulher reclamou.

— Calma... Cuidado com o salto.

Entramos e olhamos para o altar. Os noivos já estavam lá, de costas.

— Caramba... Será que agora são eles?

Fonte:
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segunda-feira, 14 de abril de 2008

Rubem Fonseca (1925 - )

"Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim." (Pequenas criaturas - "Começo")

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas.

Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio.

Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Reconhecidamente uma pessoa que, como Dalton Trevisan, adora o anonimato (o único registro fotográfico que conseguimos foi feito há muitos anos), é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor.

Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com inúmeros prêmios literários, abaixo descritos.

Sendo profundamente interessado na arte cinematográfica, escreve também roteiros para filmes, muitos deles premiados:
- Coruja de ouro, roteiro Relatório de um homem casado, filme dirigido por Flávio Tambelini.
- Kikito de ouro do Festival de Gramado, roteiro de Stelinha, dirigido por Miguel Faria.
- Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, roteiro de A grande arte, filme dirigido por Walter Salles Jr.
Seus livros são publicado no Brasil e no exterior, com grande sucesso de crítica e de público:

LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:
Os prisioneiros (contos, 1963),
A coleira do cão (contos, 1965)
Lúcia McCartney (contos, 1967)
O caso Morel (romance, 1973)
Feliz Ano Novo (contos, 1975)
O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)
O cobrador (contos, 1979)
A grande arte (romance, 1983)
Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
Agosto (romance, 1990)
Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
O selvagem da ópera (romance, 1994)
Contos reunidos (contos, 1994)
O Buraco na parede (contos, 1995)
Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996.
Histórias de Amor (contos, 1997)
Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
Confraria dos Espadas (contos, 1998)
O doente Molière (novela, 2000)
Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
Pequenas criaturas (contos, 2002)
Diário de um Fescenino (contos, 2003)
64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004)
Ela e outras mulheres (contos, 2006)
O romance morreu (crônicas, 2007)

Todos estes livros, com exceção de O homem de fevereiro ou março (editora Artenova), foram editados ou reeditados pela Companhia das Letras. Os romances O caso Morel e A grande arte foram publicados (em 1998) pela Record/Altaya, na coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”, para venda em bancas. O romance Agosto está na coleção “Mestres da Literatura Contemporânea” (1995) editora Record/Altaya, também para venda em bancas. Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, foi publicado pela Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996. Na antologia Onze em campo e um banco de primeira, da Editora Relume Dumará, Rio, 1998, foi inserido o conto Abril, no Rio, em 1970, originalmente editado no livro Feliz ano novo. Na antologia Trabalhadores do Brasil, da editora Geração Editorial, Rio, 1998, foi incluído o conto O agente, originalmente editado no livro Os prisioneiros. Na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, editora Objetiva, Rio, 2000, foram publicados os contos A força humana, Passeio noturno I, Passeio noturno II, Feliz ano novo e A confraria dos espadas. A antologia Contos para um Natal brasileiro, da Editora Relume Dumará, Rio, 2001, em companhia de C. D. Andrade, João Ubaldo Ribeiro, Lygia F. Telles e outros, traz conto sobre a data.

PRÊMIOS LITERÁRIOS:
- Pen Club do Brasil, A coleira do cão.
- Fundação Cultural do Paraná, Lucia McCartney
- Fundação Cultural de Brasília, Lucia McCartney
- Jabuti (Conto), da Câmara do Livro de São Paulo, A coleira do cão
- Associação Paulista de Críticos de Arte, O cobrador
- Prêmio Estácio de Sá, O cobrador
- Prêmio Goethe (Brasil), A grande arte
- Jabuti (Romance) A grande arte
- Prêmio Pedro Nava do Museu de Literatura, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
- Prêmio Giuseppe Acerbi (Mantova, Itália), Vaste emozione e pensie imperfeti
- Jabuti (Conto) O buraco na parede
- Prêmio Machado de Assis (Biblioteca Nacional), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
- Prêmio Eça de Queiroz (contos) da União Brasileira de Escritores, A confraria dos Espadas
- Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), para O doente Molière (2000)
- Prêmio Luis de Camões, considerado o "Nobel" da língua portuguesa, concedido pelos governos do Brasil e Portugal, pelo conjunto da obra, anunciado em 13/05/2003.
- 14º Prêmio de Literatura Latinoamericana e Caribe Juan Rulfo, concedido durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara - México, em 2003.

OBRAS PUBLICADAS NO EXTERIOR:

1 - ROMANCES
O caso Morel
A grande arte
Bufo & Spallanzani
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
Agosto
O selvagem da ópera
E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

2 - CONTOS
Os prisioneiros
A coleira do cão
Lúcia McCartney
Feliz ano novo
O cobrador
Romance negro
O buraco na parede
Histórias de amor
A confraria dos espadas
Secreções, excreções e desatinos
Coletâneas de contos

ADAPTAÇÕES POR TERCEIROS DE OBRAS DE RUBEM FONSECA:

PARA TEATRO
*O gravador (1977), adaptação e direção de Roberto Vignatti
*Os cavalos (1979), direção coletiva e adaptação Grupo Panapaná
* Lúcia McCartney (1987), adaptação de Geraldo Carneiro, direção de Miguel Falabella
*O cobrador (1990), adaptação coletiva, direção de Bete Lopes
*Idiotas que falam outra língua(1999), adaptação e direção de Fernando Guerreiro
*Agosto (2000), “construção de uma trama entre dança, música e cenografia”. Adaptação e direção de Eliana e Sofia Cavalcante

PARA TELEVISÃO
*Nau Catarineta,(1978) adaptação e direção de Antunes Filho, TV Cultura.
*Mandrake (1983) adaptação de Euclides Marinho, direção de Roberto Farias, TV Globo.
* Agosto (1993) adaptação de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, direção de Paulo José, Denise Sarraceni e José Henrique Fonseca, TV Globo
*Lúcia McCartney (1994) adaptação de Geraldo Carneiro, direção Roberto Talma, TV Globo
*A coleira do cão (2001), adaptação de Antonio Calmon, direção de Roberto Farias, TV Globo

Fonte:
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Rubem Fonseca (O Vendedor de Seguros)

Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

- Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.
- Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?
- Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.
- Você não tem ganho muito ultimamente.
- A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.
- Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, - as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?
- Ainda não vi isso.
- Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?
- Só você.
- Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.
- É você?
- Quem podia ser?, eu disse.
- Diz a senha.
- Cara, você anda vendo filmes demais.
- É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.
- Foz do Iguaçu.
- Tenho um seguro para você.
- Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.
- Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?
- Isso não interessa.
- Quando acaba?
- Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.
- Acho que você anda meio promíscuo.
- Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.
- Que ruído é esse?
- Não ouvi nenhum ruído.
- Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.
- Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.
- Troca de celular.
- Estou com ele há menos de dois meses.
- É muito tempo. Eu troco todos os meses.
- Você é um corretor.
- O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.
- Acabou?
- Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

- Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?
- Está bem.
- Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.
- Confesso que não gosto de comida chinesa.
- Você só gosta de bacalhau.
- Está tirando sarro comigo?
- Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?
- Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?
- Não conheço mulheres elegantes.
- Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.
- Onde que isso acontece?
- Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.
- Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?
- Se aparecer, o que você faz?
- Não sei. Isso ainda não aconteceu.
- E você foi vender seguro numa joalheria hoje?
- Não.
- Mas levou o revólver.
- Virou hábito. É pistola.
- Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

- Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
- Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

- Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

- Voltou?
- Quanto tempo demora isso?, perguntei.
- Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

- Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

- Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.
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"A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: "Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo." Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária."
Esta é a opinião de Thomas Pynchon, um dos maiores mitos contemporâneos da literatura americana. Ele, como o autor, alcançou tal condição não à custa de uma sobreposição da imagem, mas exatamente pelo processo oposto, ou seja, o anonimato.
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Fonte:
FONSECA, Rubem. A Confraria dos Espadas. SP: Companhia das Letras , 1998.
http://www.releituras.com/