domingo, 26 de setembro de 2010

Antônio de Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda) Parte II


8 · NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO

O coronel J. Peixoto de Faria fica desnorteado quando recebe a carta do administrador da fazenda Santa Inácia dizendo, entre outras coisas, que o seu compadre, João Intaliano, morreu. O órfão e afilhado do coronel, Gennarinho, ficou na casa do administrador, que agora pede uma orientação. O coronel Juca e Dona Nequinha, sua esposa, deixam para responder a carta no dia seguinte.

Gennarinho, nove anos, é trazido pelo filho mais velho do administrador. Vem “com o nariz escorrendo. Todo chibante.”

Logo Gennarinho já é tratado com um filho pelo casal.

Um dia, o coronel decide traduzir o nome do menino. “Gennarinho não é nome de gente”.

E passou a chamá-lo de Januário.

Discutindo sobre o futuro do garoto, os pais adotivos resolvem colocá-lo num colégio de padres.

No primeiro dia de aula, o coronel, todo comovido, acompanha Januário e o apresenta ao reitor. D. Estanislau pergunta seu nome. O menino responde dizendo apenas o primeiro nome. O reitor insiste: Januário de quê? O menino responde, com os olhos fixos no coronel: Januário Peixoto de Faria.

Seguindo para São Paulo, o coronel já pensa em fazer testamento.

9 · O MONSTRO DE RODAS

As pessoas da sala discutiam as providências a serem tomadas para o enterro de uma criança. Dona Nunzia, a mãe, chorava desesperada até que foi levada para dentro pelo marido e pelo irmão. Uma negra rezava.

Na sala de jantar, alguns homens discutiam sobre qual seria a repercussão no Fanfulla, jornal da comunidade italiana. Pepino acha que a notícia irá atacar o “almofadinha”. Tibúrcio, porém, sabe que “filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo.”

Durante o cortejo, outros interesses aparecem: o bate-papo dos rapazes (“A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.”), a vaidade das mulheres (“Deixa eu carregar agora, Josefina?” “Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar que você tem!”), politicagens (“Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais”)...

Na volta para casa, Aída encontra dona Nunzia olhando a foto da menina morta publicada na Gazeta. O pai tinha ido conversar com o advogado.

10 · ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO

O armazém do Natale era famoso por um anúncio em que dizia ter artigos de todas as qualidades. “Dá-se um conto de réis a quem provar o contrário”. Zezinho, o filho do doutor da esquina, sempre bulia com seu Natale, pedindo, por exemplo, “pneumáticos balão”. Quando o malandro cobrava seu um conto de réis, Natale respondia: “Você não vê, Zezinho, que isso é só para tapear trouxas?”. E anotava na conta do pai os cigarros que o rapaz pedia com nome de outros.

Em frente ao armazém, a confeitaria Paiva Couceiro não agüentaria por muito mais tempo. E seu Natale, que tinha prazer em observar aquele espetáculo de decadência dia após dia, já havia calculado quanto ofereceria ao português no leilão da falência. Por hora, ele fazia a sua parte: pressionava o homem com uma dívida com ele, uma letra que estava para vencer.

Dona Bianca o chama. Ouvira numa conversa do José Espiridão, o mulato da Comissão do Abastecimento, que a crise viria e os preços, inclusive o da cebola, produto encalhado na confeitaria, disparariam. Se não desse um jeito no português agora, nunca mais. Depois de confirmar o assunto com o mulato e pedir sua colaboração ficando quieto, seu Natale consegue “arranjar” o negócio. À noite, dona Bianca vai dormir se vendo no palacete mais caro da Avenida Paulista.

11 · NACIONALIDADE

O barbeiro Tranquillo Zampinetti lia entusiasmado as notícias de guerra no jornal italiano Fanfulla. Chegava até a brandir a navalha como uma espada assustando os fregueses. Mas tinha um desgosto “patriótico e doméstico”: os filhos Lorenzo e Bruno não queriam falar italiano.

Depois do jantar, Tranquillo colocava a cadeira na calçada e ficava com a mulher e alguns amigos como o quitandeiro Carlino Pantaleoni, que só falava da Itália. Tranquillo ficava quieto mais depois sonhava em voltar para a pátria.

Um dia, Ferrúcio, candidato do governo a terceiro juiz de paz, veio pedir votos. Tranquillo, que nem votava, acabou sendo convencido pelo compatriota e gostou tanto que com o tempo andava até pedindo votos.

A guerra européia encontrou Tranquillo bem estabelecido, influente e envolvido na política; Lorenzo, noivo e também participando da política da região; e Bruno estudando, além de ser vice-presidente da Associação Atlética Ping-Pong. Tranquillo ainda se agitou com a guerra. Mas, com o descaso da família, logo foi se desinteressando.

O progresso de Tranquillo continuava e agora ele comentava mais as questões políticas do Brasil que as da Itália.

Quando Bruno se forma advogado pela faculdade de Direito de São Paulo, o pai chora, a mãe é trazida pelo neto, filho de Lorenzo, para vê-lo e todos se abraçam emocionados. E o primeiro serviço de Bruno foi requerer a naturalização de Tranquillo Zampinetti.

FOCO NARRATIVO

Todos os contos são narrados em terceira pessoa. Aliás, o estilo narrativo está de acordo com a proposta feita pelo autor no prefácio da obra, “Artigo de Fundo”:

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias.”

Com este ponto de vista, Alcântara Machado assume um estilo jornalístico de narração. A preocupação do narrador é observar o cotidiano desta comunidade que chama sua atenção. E para melhor retratá-la, o narrador ora assume uma postura meramente observadora, mostrando os fatos de uma certa distância, ora assume um caráter onisciente, aproximando-se mais dos personagens.

AMBIENTAÇÃO

A obra de Alcântara Machado é um verdadeiro retrato de uma época. O título já revela a importância do espaço. A região escolhida para ser retratada já é ela própria determinante de uma cultura. No início do século, Brás, Bexiga e Barra Funda foram os principais bairros de São Paulo onde os ítalo-brasileiros se concentraram. As referências exatas dos nomes de ruas, praças e avenidas, além de tornarem a identificação do ambiente muito fácil, garantem também certo ar de veracidade. É o que já foi falado antes sobre o caráter jornalístico da obra. As histórias não se passam em “algum lugar” imaginário, distante. Estão todas em espaços bem definidos. Mas outros lugares que não só os bairros industriais italianos são citados. A avenida Paulista, por exemplo, aparece como símbolo de fortuna e nobreza.

A preocupação com a exatidão espacial cai até a citação do endereço (por vezes contendo até o número da casa: “Era a rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-c já sabe: uiiiiia-uiiiiia!”). Mas não há preocupação maior com a descrição de ambientes internos e externos. Poucas vezes podemos “ver” como é a casa das personagens como acontece, por exemplo, em “Carmela”, que lê seu livro de cabeceira antes de “se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro”; ou em “Lisetta”, em que vemos a mulher rica e má entrando em seu “palacete estilo empreiteiro português”. Ou então pinceladas nos sugerem a atmosfera: “Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra”. Toda essa concisão descritiva é própria das narrativas curtas. Nelas, o autor controla as informações passando ao leitor somente aquilo que é extremamente necessário para criar o “clima” do texto.

Quanto ao aspecto temporal, todos os contos retratam a mesma época histórica, isto é, o início do século XX, momento da aculturação italiana em São Paulo. Mesmo assim cada conto trabalha um espaço temporal próprio. Alguns retratam uma época da vida dos personagens, como é o caso de “Nacionalidade” e “Notas Biográficas do Novo Deputador”; outros retratam apenas alguns dias da vida dos ítalo-brasileiros, como em “Gaetaninho”, “Carmela”, “A Sociedade” e “Armazém Progresso de São Paulo”. Já “Amor e Sangue”, “Coríntians (2) vs Palestra (1)” e “O Monstro de Rodas” dão enfoque aos acontecimentos de um dia especial na vida dos personagens.

PERSONAGENS

Os personagens são “planos”, superficiais, não apresentam transformações surpreendentes durante a narrativa.

Na busca pela adaptação cultural e econômica, encontramos as costureirinhas curiosas pelo mundo do qual não fazem parte, mas conscientes de que devem continuar a fazer suas famílias na colônia, as crianças vítimas do preconceito, da pobreza e da injustiça que cerca o imigrante de classe mais baixa, os comerciantes gananciosos e suas famílias buscando uma posição social, os jovens trabalhadores e apaixonados, os quatrocentões paulistas, nobres e falidos, diante dos “carcamanos” endinheirados e “sem berço”.

Assim como acontecia em relação à ambientação, as descrições das personagens só aparecem para nos dar traços marcantes, que permitam entender uma característica a mais delas. Muitas vezes os traços principais ganham destaques refletindo até mesmo na aparência, e o personagem ganha ares de caricatura. Mas tudo mostrado de um modo muito rápido, muito controlado da parte do narrador. A sensualidade de Carmela é notada pelas suas roupas e seus gestos: “O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marenga maduro para os lábios dos amadores”. Bianca, por sua vez, parece ter como função apenas dar ainda mais destaque à beleza da amiga: Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira”. Com isso, consegue nacos de emoção da vida da outra. O namorado, entregador da casa Clarck, com muito orgulho, exibe-se também com um esmero exagerado, revelando a vaidade excessiva, o furor juvenil e o ar apaixonado: “sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamaninho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só”. Em “Notas Biográficas do Novo Deputado”, vemos Gennarinho se comportando como um menino rude, que entraria em choque com os hábitos da família do coronel se não tivesse caído nas suas graças. E daí para a brasilidade marcada até mesmo no aportuguesamento do nome: Januário. Enfim, um quadro amplo do que foi a vida dos italianos e seus descendentes nas primeiras décadas do século.

TIPOS DE DISCURSO

Uma das marcas de Brás, Bexiga e Barra Funda é a leveza conseguida por meio do discurso direto, predominante na obra. As personagens têm a oportunidade de falar diretamente por meio dos diálogos, exprimindo suas emoções, tristezas e esperanças com toda a carga expressiva e a coloquialidade que lhes é característica. Os diálogos propiciam também maior sensação de realismo e de proximidade entre personagens e leitor. A história ganha em dinamismo e, graças à sutil ironia de Alcântara Machado, em humor:

- Boa tarde, belezinha...
- Quem? Eu?
- Por que não? Você mesma...

Bianca rói as unhas com apetite.
- Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?
- Ao lado de minha casa.
- Onde é sua casa?
- Não é de sua conta.

Em alguns momentos, o discurso direto é guardado para as situações de maior intensidade e a preparação da cena traz o discurso indireto:

No chá de noivado o cav. uff. Salvatore Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Luca e bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta.

O discurso indireto livre também aparece algumas vezes, permitindo que o leitor aproxime-se mais do personagem, conhecendo seu interior.

Este espetáculo diário era um gozo para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que as excelentíssimas mães de família achavam uma beleza de preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria.

Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora do Biagio (o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Coríntians Paulista campeão do Centenário) só por casa dele.

Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo.

RECURSOS DE LINGUAGEM

Antônio de Alcântara Machado traz na linguagem uma marca muito própria dos modernistas da primeira geração: a recusa à linguagem empolada, retórica, cheia de volteios. Ao contrário sua linguagem é marcada pelo estilo telegráfico, conciso. As frases são na sua maioria formadas por orações coordenadas e curtas, garantindo sempre um mesmo ritmo ao texto:

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do Chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta e varou pela esquerda porta adentro.

Ia indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar tão triste. As bananas na porta da Quitanda Tripoli Italiana eram de ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.

O tom é sempre coloquial, marcado pela oralidade, pela linguagem do cotidiano das personagens:

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe. Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunidos na sala de jantar sapeava de longe.

No discurso direto dos ítalo-brasileiros, a língua mesclada:

- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser, lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Uma marca ainda muito freqüente em sua linguagem é o uso de onomatopéias. Elas reforçam a sensação de que as cenas estão vivas e se passam na frente do leitor:

E – ráatá! – um cusparada daquelas.

O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

O medo faz silêncio.
Prrrrii!
Pan!
- Go-o-o-o-ol! Coríntians!

Ambientação e construção de personagens também adquirem um estilo especial na escolha das imagens. Tudo parece ganhar vida por meio das prosopopéias.

A rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas Ao Chic Parisienese, São Paulo – Paris, Paris Elegante despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, serpejando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto um segundo. Não parava.

O violão e a flauta recolhendo da farra emudeceram respeitosamente na calçada.

Outra figura de linguagem que aparece com constância é a metonímia:

A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino.

Depois que seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer Bianca resolve dar um giro pelo bairro.

Até mesmo o modo de ver as coisas parece, na maioria das vezes, ser feito de modo fragmentado, metonímico:

Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeava, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.

Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta.

A contemporaneidade se faz presente pelas referências a lojas, marcas, endereços, que ganham ainda mais reforço por meio da ênfase gráfica dada: a roupa de marinheiro branca de Gaetaninho traz: “Encouraçado São Paulo”; as lojas do centro são mencionadas com destaque: Ao Chic Parisiense, São Paulo – Paris, Paris Elegante; o canivete usado pelo professor de Aristodemo era brinde do Chalé da Boa Sorte e os cigarros do rapaz eram Bentevi. “A sociedade” e “Armazém Progresso de São Paulo” trazem, respectivamente, o convite de casamento de Adriano e Teresa e o anúncio pelo qual o armazém ficou conhecido.

O recurso gráfico também surge para auxiliar na questão temporal. A linguagem concisa, já discutida acima, provoca a sensação de simultaneidade de acontecimentos. As cenas aparecem justapostas de variadas formas. A mais comum em todos os contos é o espaçamento gráfico entre as partes da narrativa. Ele permite perceber a interrupção entre um momento da história e a mudança de enfoque para outro momento. Outra forma usada para trabalhar a idéia de simultaneidade é o uso de parênteses, que acrescentam um novo dado secundário à cena principal:

No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete).

Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (Salão Palestra Itália – Engraxa-se na perfeição a 200 réis).

Em “A Sociedade”, a simultaneidade é tanta que várias cenas se interpenetram por meio do espaçamento gráfico, da fragmentação da letra da música, das orações justapostas.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

- Meu pai quer fazer um negócio com o seu.
- Ah sim?
Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bom mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!

Fonte:
Estudo copiado do material do Curso Universitário, disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/barrafunda

sábado, 25 de setembro de 2010

Trova 175 - Ademar Macedo (Santana do Matos/ RN)

Roberto Pinheiro Acruche (Livro de Poesias)


A SAUDADE

Saudade... Qual é a sua cor?
Por que estou sentindo-a
tão junto a mim e não consigo vê-la?
Não me atormente ainda mais
com este silêncio,
além desta dor que me rasga o peito.

Porque você não aparece
e desvenda logo esse mistério?
Você sabe onde me encontrar!

Vou estar nos mesmos lugares,
sentado na areia olhando o mar
ou nos mesmos bares
consumindo a noite.

E se acaso não me encontrares
pergunte pra solidão...
Somente ela saberá dizer
o meu paradeiro.
Mas não demore mais;
faça antes da tristeza
me levar por inteiro!...

ARCA DOS SONHOS

As horas passam
e eu me curvo diante
do tempo
que também passa... Que passa!...
E eu preso na arca dos sonhos,
fantasiando a vida.
Quando acordar
desta aspiração
liberto do devaneio,
quem sabe ainda haverá tempo
para realizar os sonhos?
E se não houver tempo
e se não realizar meus sonhos,
valeu à pena ter sonhado!

ESPERA

Estou a sua espera,
carregado de desejos,
de uma nostalgia que enlouquece,
que explode dentro de mim,
que me faz lembrar do seu cheiro,
da sua boca sufocando-me de beijos,
dos seus gemidos,
da sua entrega louca,
desvairada e sem pudor.
--

LUZ DA VIDA

Em qualquer lugar que estiver nesta terra, há alguém com um olhar fixo, afetuoso, mágico direcionado para você...
Com um olhar puro, especial, muito especial, de um coração que só pulsa o amor...
Um olhar de alguém que é justo, com a inspiração de amar de modo pleno sem ajuizamentos, sem distinção.
Este olhar brilha mais que a luz do sol, tem a dimensão maior que o das estrelas de primeira grandeza, tem um alcance infinito.
Este olhar rompe os dias, vara as noites é a luz da vida.
Qualquer que seja o momento, em qualquer situação: de amor, paz, união ou perdão... Este olhar está reto, preciso em sua direção.
---

VIOLEIRO APAIXONADO

Sob a luz de um lampião
colocado sobre uma mesa
de madeira nobre,
porém pequena,
onde também tinha um ramo de flor,
ouvia cantigas de amor
de um violeiro solitário
exaltando sua paixão.
Sentado num banquinho humilde
que ficava no canto da sala,
dedilhava sua viola
sonorizando a noite
escura lá fora
onde os pirilampos
faziam refletir sua luminosidade
num pisca-pisca ritmado
como se acompanhasse a melodia
do violeiro apaixonado
que não tirava da imaginação
a sua cabocla
a mais bonita daquela região.
Morena de olhos negros,
cabelos longos, caídos pelos ombros,
corpo fascinante,
cheiroso como a flor do campo;
lábios sedutores...
O solitário violeiro morria de amores;
sonhava abraçar aquela trigueira
rolar com ela na esteira
esbanjar todo o anseio
tocar em seus seios
fazê-la sentir no peito
todo o efeito
que jorrava de seu coração.
A moreninha linda e faceira,
lá distante,
em seu casebre
não escutava
quando o violeiro cantava
e a viola chorava
com os versos entoados:
“Vem morena, vem agora,
não resisto à solidão!
Eu canto e a viola chora
vem me dar seu coração...”
“Vem morena, não demora,
vem me dar seu coração
eu canto e a viola chora
não resisto a solidão.”

MEU ESPELHO

Meu espelho, revelador!...
Arca de memórias,
juiz implacável do presente,
profeta mudo do futuro,
confessionário e principal consultor.
Sorrindo diante de ti
relembro os meus dias de infância
gesticulando e fazendo caretas...
Na vaidade da adolescência e juventude
extraindo acnes, penteando os cabelos,
raspando os primeiros fios de barba
experimentando roupas...
Quanto desvelo com a aparência!
Tudo sem perceber as transformações naturais
provocadas pela maturidade,
fator imposto pela idade,
pelo tempo, senhor de cada momento,
fosse ele, alegre, feliz, triste ou sofrido.
Agora, diante de ti,
mesmo estando a sorrir
estou subordinado às mutações...
Uma ruga que antes não existia,
hoje habita e marca a minha fisionomia...
Os cabelos longos, fortes, cheios,
que exigiam tantos cuidados,
apenas uns poucos ainda existem,
presentemente esbranquiçados
e jogados um tanto para os lados.
No entanto, o que mais me revela e me assusta,
não é a modificação irreversível, progressiva e bruta,
não são os momentos felizes ou tristes do passado;
nem o que fiz de certo ou errado;
não são os tempos perdidos, desiludidos...
Não são os ideais que não puderam ser alcançados;
ainda que me deixem entristecido.
Muito menos, por tanto haver me empenhado
e me obrigado a compromissos...
Nada disso!
Mesmo que tenham me abalado, também não são
as paixões e os amores fracassados...
Não é o futuro das minhas obras e conquistas;
não é a aparência de um homem cansado
desestabilizado, desalinhado,
vivido, sofrido,
nem sempre barbeado... Definhando!...
O que verdadeiramente me revela e me assusta
é o presente!... Esse presente
sem prorrogação, motivação,
sem meios de recuperação
para a efetivação de tantos sonhos
que ainda vivo sonhando.

Fontes:
– O Autor
http://robertoacruche.blogspot.com
Imagem = montagem por José Feldman

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 1)


Trova do Dia:

É tão fiel o seu cão,
que ás vezes até "apela":
faz festa pro Ricardão
e morde o marido dela!
JOSÉ OUVERNEY/SP

Trova Potiguar:

Se eu ganhar, minha querida
na mega, muito dinheiro
Vou lhe tirar dessa vida...
(Contratando um pistoleiro.)
HELIODORO MORAIS/RN

Uma Trova Premiada:
2010 > Bragança Paulista/SP
Tema > RIMA > Venc.

Que infortúnio o da Raimunda!...
Numa enchente de verão,
derrapou na rua imunda
... e deu com a “rima” no chão!
RENATO ALVES/RJ

Uma Trova de Ademar:


Por falta de patrimônio,
sem ter no bolso uma prata,
anuncia o matrimônio
por uma “rádio pirata”.
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram:

Chamam de “mulher da vida”,
mulher que mal se comporte.
E a honesta, a gente apelida
de quê? De “mulher da morte”?...
ORLANDO BRITO/MA

Estrofe do Dia:

Atendendo a ligação,
a mulher ouve dizer:
Acabou de acontecer,
Bateram no seu carrão.
Seu amor, na contramão,
chocou-se contra um Peugeot,
no acidente ele ficou,
sem um arranhão em baixo...
- e a parte de cima, macho? _
Essa ainda não chegou.
FRANCISCO MACEDO/RN

Soneto do Dia:

HAROLDO LYRA/CE
DUAS TAÇAS.

O álcool sempre vem abrilhantar
Os banquetes em salas requintadas,
Servido nas baixelas prateadas
Que aos olhos serve mais que ao paladar.

O álcool é um prazer bem popular,
Nos bares, nas barracas empalhadas,
Servido n’umas taças mal lavadas,
Agrada à boca, à venta, a quem tomar.

Um drink, salgadinhos de salmão;
Uma cereja adorna a taça à mão
E o fino aristocrata se enaltece.

Um trago, um tira-gosto de buchada;
A banda de um limão, já machucada,
E o jeca deita e rola e a pinga desce.

Fonte:
Ademar Macedo

Cláudio Feldman (1944)


Cláudio Feldman nasceu em Bauru, interior paulista, em 1944 e mora em Santo André desde 1959. Foi ator, roteirista de cinema, artista plástico, diretor de teatro infantil e coproprietário da Editora Taturana. Além disso, já fez pequenas aparições em filmes e comerciais de TV, exposições de artes plásticas e escreve peças para crianças.

Filho do cineasta, fotógrafo e videomaker Aron Feldman, já falecido, conviveu desde a infância com inúmeras modalidades artísticas.

Em l958, atuou no primeiro filme de seu pai, "Pinceladas"; no ano seguinte, sua família mudou-se para Santo André, SP, e Cláudio continuou a atuar em outros filmes até l972.

A partir deste ano, dedicou-se de modo exclusivo ao magistério e à feitura de livros; sua única participação em cinema foi como roteirista. Artista plástico inconstante, participou de mostras coletivas e exposições individuais, sendo dicionarizado diversas vezes.

Também escreveu artigos e outros textos literários para publicações nacionais e estrangeiras, principalmente as de cunho alternativo. Em 2002, com sua aposentadoria no magistério, tentou voltar às suas atividades primeiras, atuando em filmes, comerciais de TV e feitura de peças teatrais, sem muito sucesso. Cláudio Feldman, autor de 42 livros, é mais reconhecido como escritor do que em outras de suas atividades artísticas.
.
Filmes que atuou:
a) dirigidos por Aron Feldman:
"Pinceladas" - l958
"Insônia" - l959
"Vida de Vagabundo" - l961
"A Grande Bolada" - l962
"A Presença da Ausente" -l963
"O Mundo de Anônimo Jr." - l972

b)pequenas participações em filmes de outros diretores:
"Urubuzão Humano",de Diomédio Moraes - l995
"O Fantasma da Praça Roosevelt" (em montagem)
"Blindness",de Fernando Meireles(em montagem)

Livros do autor :
I - Poesia
1- Ciranda de Mitos, Editora Franciscana, 1969 2- Caixões Eldorado, Editora Franciscana, 1972 3- O Esquivo Silêncio, Editora Bentivegna, 1976 4- Beco dos Fantasmas, Editora Taturana, 1980 5- Cais do Caos, Editora Taturana, 1981 6- Navio na Garrafa, João Scortecci Editora, 1986 7- Tempo de Deserto, João Scortecci Editora, 1988 8- Gaveta de Sementes, Editora Taturana, 1993 9- Olhos na Estrada, João Scortecci Editora, 1995 10- 27 Poemas, Editora Jurê , 1996 11- Dr. Panambi, João Scortecci Editora 1997 12- Dossiê Urtiga, João Scortecci Editora, 1997 13- Dia Suspeito, Editora Taturana, 2000 14- Sapatos Orvalhados, Editora Taturana, 2001 15- De Rebus Pluribus, Editora Taturana, 2003 16- Campos de Algodão, Editora Taturana, 2006

II - Ficção
a) Contos:
17- Caim & Cia. Ilimitada, Editora Taturana, 1980 18- Avó, Mãe, Filho e Palhaço, Editora Mariposa, 1984 19- Incêndio no Hospício Freud, João Scortecci Editora,1992 20- Para Ler na Escada-Rolante, Editora Taturana,1994 21- Três Abutres, Editora Taturana, 2000 22- Papéis Achados Na Bolsa De Um Canguru, Editora Taturana,2001 23- Vila Magra, Editora Taturana,2006

b)Romance (Coletivo)
24- Um Dia no Brasil, Editora Klaxon, 1985

c) Topocrônica:
25- Rua Do Gato-Mourisco, Editora Taturana, 1999

III- Humor

26- O Rapto da Mulher Barbada, Editora Taturana, 1978 27- O Encantador de Minhocas, Editora Taturana, 1982(com Moacir Torres) 28- Aforismos de Bolso, Editora Taturana, 1993 29- Sopa de Vespas, Editora Taturana, 1994 30- Ossos de Borboleta, Editora Taturana, 1994 31- Aprendiz de Bufão, Innovation Graphic Service, 1997 32- Pastilhas de Cianureto, Editora Taturana, 1999 33- Armazém de Inânias, Editora Taturana, 2004

IV – Literatura Infantil
34- A Baleia, Editora FTD, 1986 35- Gabi no Zoológico, Editora Jurê, 1988 36- Mário Ganhou um Canário, Editora Lê, 1989 37- Rabelo Ganhou um Camelo, Editora FTD, 1990 38- A Avestruz Futebolista, Editora Loyola, 1992 39- A Pulga Espertalhona, Editora Loyola, 1992 40- O Bolo do Coelho, Editora Lê, 1992 41- Maçã-do-Humor, Editora do Brasil – 1992 42- Sabor de Sonho, Editora Moderna, 1994

Fonte:
Colaboração de Yussef Khalifman

Malba Tahan (O Gato do Cheique)


Entre as lendas mais características do velho Egito, uma existe que merece ser contada sete vezes.

Vivia na cidade do Cairo um cheique de grande cultura chamado Calil El Modabighi, cujo nome aparecia sublinhado pela simpatia e pelo respeito que os muçulmanos soem emprestar aos sábios que são generosos e modestos. Era um homem verdadeiramente feliz; a vida para ele corria sempre suave, em meio de invejável conforto e ritmada por uma prosperidade que crescia na ordem natural das coisas, dia para dia.

O bom cheique vivia isolado; possuía, porém, um gato preto pelo qual tinha particular predileção.

Uma noite, tendo despertado casualmente, ouviu o sábio um ruído estranho, junto à porta de sua casa, e viu, com infinita surpresa, o gato levantar-se, abrir cautelosamente a larga janela e perguntar:

— Quem bate?

Alguém, que estava fora, no meio da escuridão da rua, respondeu, com voz sucumbida:

— Venho em busca do teu auxílio, ó poderoso djin! Abre a porta.

Retorquiu o gato:

— Proferiram o nome de Deus, junto à fechadura, e eu sou fraco para vencer esse encanto!

— Atira-me, então, um pedaço de pão pela janela — implorou o misterioso pedinte. — Dá-me, ao menos, um pouco d’água.

— Proferiram o nome de Deus junto do jarro, e eu sou fraco para vencer esse encanto! — declarou ainda o gato.

E ajuntou:

— Na casa ao lado moram infiéis que não pronunciam nunca o nome de Deus. Entra por minha ordem na sala do vizinho e tira de lá o que quiseres.

E, isso dizendo, voltou para o leito, meteu-se entre as cobertas e pôs-se a dormir sossegado.

Compreendeu o cheique, com maior assombro, que o gato preto era um djin, isto é, um gênio dotado de poder sobrenatural, capaz de praticar feitos mágicos e prodigiosos, como fazem os espíritos bons que povoam o espaço.

No dia seguinte o honrado ancião, depois de acariciar longamente o seu gato, disse-lhe, carinhoso:

— Meu bom companheiro, ó gatinho do coração! Bem sabes quanto tenho sido teu amigo! Quero possuir um palácio...

Esquivou-se o gato das mãos de seu dono e saltou para o peitoril da janela. E, naquele mesmo tom com que à noite falara ao estranho visitante, disse:

— Cheique! A tua amizade, outrora tão preciosa, de hoje para o futuro perdeu, infelizmente, para mim, todo o valor! Descobriste o segredo de minha existência; já sabes o que sou! Passaste, pois, a ser meu amigo por interesse!

E, tendo proferido tais palavras, pulou para a rua, fugindo de casa e nunca mais voltou.

Desse dia em diante, a vida do velho cheique desandou por completo; e antes, talvez, que as águas lutulentas do Nilo invadissem pela segunda vez as terras era ele apontado como um dos homens mais infelizes do Cairo.

Perdera, por causa de sua louca ambição, o único amigo e protetor.

Na verdade, a mais sólida e perfeita amizade não resiste ao veneno sutil do interesse.

Fonte:
TAHAN, Malba. O Gato do Cheique e outras lendas. RJ: Ediouro.

Ademar Macedo (Livro de Trovas)

A mais triste Solidão
que os seres humanos têm
é abrir o seu coração...
olhar... e não ver ninguém!

Almoço e janto poesia.
E neste meu universo,
mastigo um pão todo dia
amanteigado de verso.

Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca fez chover prantos
nos olhos dos nordestinos!

A vida escreve-me enredos
com finais que eu abomino.
Meus sonhos viram brinquedos
nas mãos cruéis do destino...

Com os temas mais dispersos,
eu mesmo me fiz enchente
numa enxurrada de versos
jorrando da minha mente...

Da Bebida fiquei farto,
bebendo perdi quem amo;
hoje bebo no meu quarto
as lágrimas que eu derramo.

Da fonte que jorra o amor,
Deus, na sua imensidão,
faz jorrar com todo ardor
as carícias do perdão.

Debruçado sobre a mata,
o Luar, tal qual pintor,
pinta as folhas cor de prata
e pinta o chão de outra cor.

Depois que chove na mata,
a lua, de luz acesa;
pinta as folhas cor de prata
com tintas da Natureza.

Descobri no envelhecer,
em meus momentos tristonhos,
que eu não tive, em meu viver,
nada mais além de sonhos!...

Descobri no envelhecer
que a musa que me enaltece
não deixa o verso morrer,
pois musa nunca envelhece!

Do fogo no matagal,
na fumaça que irradia,
vejo um câncer terminal
no pulmão da ecologia!...

Entre os atos de bonança
e meus pecados mortais,
quando eu botar na balança,
Deus sabe quais pesam mais!...

Envolto numa utopia,
num devaneio sem fim,
vivo hoje uma fantasia
que eu mesmo inventei pra mim.

Fiz minha casa de barro
ao lado de uma favela.
Lá fora, eu sei, não tem carro,
mas tem amor dentro dela!...

Mesmo em momentos tristonhos,
carregada de lamentos,
navega cheia de sonhos
a Nau dos meus pensamentos!...

Mesmo na dor, pus de pé,
com esperanças sem fim,
a Fortaleza de fé
que existe dentro de mim.

Muda-se a cor preferida;
troca-se a corda do sino;
muda-se tudo na vida;
mas não se muda o destino...

Não se estresse nem me agrida,
ouça a voz do coração.
Deixe que o Tempo decida
quem de nós dois tem razão!...

Na transposição mais nobre,
podemos, sem qualquer risco,
matar a sede do pobre
com as águas do São Francisco!...

Nossa cultura se entende
nas lições que eu mesmo tive:
o saber a gente aprende,
a cultura a gente vive.

Numa caminhada inglória,
com minha alma enternecida;
pude ver a minha história
no retrovisor da vida.

Numa combatividade,
cheia de brilho e de glória,
saber perder, na verdade,
é também uma Vitória!

Num afago em seus cabelos,
num carinho em sua face,
vi que, através de desvelos,
um grande amor também nasce...

Num devaneio qualquer,
feito de sonho e de imagem,
no seu corpo de mulher
fiz a mais linda viagem.

Num triste e cruel enredo
escrito por poderosos,
a Terra treme com medo
das mãos dos gananciosos...

O Deus que fez lago e monte,
que fez céu, mar, noite e dia,
fez do poeta uma fonte
por onde jorra poesia...

O grande desmatamento,
por ganância ou esperteza,
põe rugas de sofrimento
no rosto da natureza...

O meu primo se reveza
entre beber e rezar.
Ás sete ele está na reza
e as oito e meia no bar!!!

O Pantanal se engalana,
mas eu mesmo desconfio;
que até a própria chalana
sente ciúmes do rio.

Para alcançar a pujança,
basta-me ter, sem fadigas,
a força e a perseverança
do Trabalho das formigas!...

Passam sempre em meu portão,
trazendo um fardo de dor,
crianças que não têm pão,
pedindo “um pão por favor”!...

Pela insensatez da idade
e pelo que o amor requer,
choro, às vezes, de saudade
fingindo outra dor qualquer!

Perdido, pois, nas rotinas,
nos labirintos da dor,
encontrei entre as ruínas
pedaços do nosso amor...

Por minha fé ser tamanha,
pude remover enfim,
pedaços de uma montanha
que tinha dentro de mim...

Por ter a lingua de trapo,
disse, ao ser mandado embora:
- É moleza engolir sapo...
o duro é botar pra fora!

Quando a inspiração lhe acena,
o bom Trovador se expande.
Numa Trova tão pequena,
faz um poema tão grande!

Quando de um amor me aparto,
em tristezas me esparramo:
bebo sozinho em meu quarto
as lágrimas que eu derramo!

Quem se entrega a solidão
e dela se faz refém,
anda em meio à multidão
mas não enxerga ninguém!

Queria ao fim da jornada,
na manhã do meu adeus,
ver o brilho da alvorada
na luz dos olhos de Deus!

Que venham chuva e calor,
que os ventos desçam ou subam,
pois ninhos feitos de amor
tempestades não derrubam...

Se a vida é apenas passagem
quero que me façam jus;
na minha última viagem
deixem que eu veja Jesus!

Sem galinha cabidela,
sem ter arroz nem feijão,
hoje eu botei na panela
meu sapo de estimação!...

Sou matuto em alto astral
e um velho muito ranzinza.
Só festejo o Carnaval
na quarta-feira de cinza!

Tem cão que mora no morro,
outro morando em mansão;
porque nem todo cachorro
leva uma vida de cão.

Traz alentos, novas vidas,
muda a cor da plantação;
a chuva sara as feridas
que a seca faz no sertão.

Vejo sentadas no chão,
trajadas de desamor,
crianças comendo pão
amanteigado de dor!

Versos já fiz - não sei quantos -
relembrando a mocidade.
Hoje servem de acalantos
para ninar a saudade.

Vi à luz de lamparina,
em inspirações imerso
que a musa se faz menina
para brincar no meu verso.

Visita pra meter medo,
que nem vassoura adianta,
É aquela que chega cedo
e só sai depois que janta!

Vou vender meus poemetos
na feira, seja onde for,
e comprar alguns espetos
para espetar "julgador"!

––––––––––––––––––––––
Fontes:
Colaboração do Autor

Malba Tahan (1895 – 1974)


Júlio César de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 6 de maio de 1895 — Recife, 18 de junho de 1974), mais conhecido pelo heterônimo de Malba Tahan, foi um escritor e matemático brasileiro. Através de seus romances foi um dos maiores divulgadores da matemática no Brasil.

Ele é famoso no Brasil e no exterior por seus livros de recreação matemática e fábulas e lendas passadas no Oriente, muitas delas publicadas sob o heterônimo/pseudônimo de Malba Tahan. Seu livro mais conhecido, O Homem que Calculava, é uma coleção de problemas e curiosidades matemáticas apresentada sob a forma de narrativa das aventuras de um calculista persa à maneira dos contos de Mil e Uma Noites. Monteiro Lobato classificou-a como: "… obra que ficará a salvo das vassouradas do Tempo como a melhor expressão do binômio ‘ciência-imaginação.’"

Júlio César, como professor de matemática, destacou-se por ser um acerbo crítico das estruturas ultrapassadas de ensino. "O professor de Matemática em geral é um sádico. — Denunciava ele. — Ele sente prazer em complicar tudo." Com concepções muito à frente de seu tempo, somente nos dias de hoje Júlio César começa a ter o reconhecimento de sua importância como educador. Em 2004 foi fundado em Queluz -- terra onde o escritor passou sua infância—o Instituto Malba Tahan, com o objetivo de fomentar, resgatar e preservar a memória e o legado de Júlio César.
––––––––-
Malba Tahan nasceu na cidade do Rio de Janeiro, mas viveu quase toda a infância na cidade paulista de Queluz. Seu pai João de Deus de Melo e Sousa e sua mãe Carolina Carlos de Melo e Sousa tinham uma renda familiar apenas suficiente para criar os oito filhos do casal. Quando criança, já dava mostras de sua personalidade original e imaginativa. Gostava de criar sapos (chegou a ter 50 deles no quintal de sua casa) e já escrevia histórias com personagens de nomes absurdos como Mardukbarian, Protocholóski ou Orônsio. Em 1905, retornou ao Rio de Janeiro para estudar. Cursou o Colégio Militar e o Colégio Pedro II. A partir de 1913, passou a freqüentar o curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica.

Em 1918, passou a colaborar no jornal O Imparcial, onde publicou seus primeiros contos com o pseudônimo R. S. Slade. Nos anos seguintes, o jovem escritor estudou a fundo todos os aspectos da cultura árabe e da oriental. Em 1925, propôs a Irineu Marinho, dono do jornal carioca A Noite, uma série de "contos de mil e uma noites". Surgia aí o escritor fictício Malba Tahan, que assinava os contos que foram publicados com comentários do igualmente fictício Prof. Breno de Alencar Bianco. Seu pseudônimo tornou-se tão famoso que o então Presidente Getúlio Vargas concedeu uma permissão para que o nome aparecesse estampado em sua carteira de identidade. Na década de 1930 aconteceu uma grande polêmica entre autores de livros de matemática: Tahan contra Jacomo Stávale e Algacyr Munhoz Maeder. Até o fim da vida, Júlio César escreveu e publicou livros de ficção, recreação e curiosidades matemáticas, didáticos e sobre educação, com seu nome verdadeiro ou com o ilustre pseudônimo.

Paralelamente à carreira de escritor, dedicou-se ao magistério. Graduou-se como engenheiro civil na Escola Politécnica e como professor na Escola Normal. Deu aulas no Colégio Pedro II e na Escola Normal, lecionando diversas matérias como história, geografia e física, até se fixar no ensino de matemática. Ensinou também no Instituto de Educação e na Escola Nacional de Educação. Além das aulas, proferiu mais de 2000 palestras por todo o Brasil e em algumas localidades do exterior. Ficou célebre por sua técnica como contador de histórias e por sua atuação inovadora como professor. Suas aulas eram agitadas e interessantes, sempre repletas de curiosidades que atraiam a atenção dos estudantes.

Foi um enérgico militante pela causa dos hanseníacos. Por mais de 10 anos editou a revista Damião, que combatia o preconceito e apoiava a humanização do tratamento e a reincorporação dos ex-enfermos à vida social. Deixou, em seu testamento, uma mensagem de apoio aos hanseníacos para ser lida em seu funeral.

Faleceu em 18 de junho de 1974 de ataque cardíaco em seu quarto de hotel, após uma palestra proferida no Recife. Deixou uma série de instruções para seu sepultamento: além da mensagem que devia ser lida, exigiu caixão de terceira classe, flores anônimas, nada de coroas, nada de luto nem discursos.

Malba Tahan

Ao criar seu pseudônimo, Júlio César criou também um personagem: Malba Tahan. Este escritor, cujo nome completo seria Ali Yezid Izz-Eddin Ibn Salim Hank Malba Tahan, teria nascido na aldeia de Muzalit, próximo a Meca, a 6 de maio de 1885. Teria feito seus estudos no Cairo (Egito) e Istambul (Turquia). Após a morte de seu pai, teria recebido vultosa herança e viajado pela China, Japão, Rússia e Índia, onde teria observado e aprendido os costumes e lendas desses povos. Teria estado, por um tempo, vivendo no Brasil. Teria morrido em batalha em 1921 na Arábia Central, lutando pela liberdade de uma minoria local Seus livros teriam sido escritos originalmente em árabe e traduzidos para o português pelo também fictício Professor Breno Alencar Bianco.

Homenagens

Em homenagem a Malba Tahan, o dia de seu nascimento – 6 de maio – foi decretado como o Dia do matemático (ou Dia da matemática) pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Malba Tahan ocupou a cadeira número 8 da Academia Pernambucana de Letras, e é nome de escola no Rio de Janeiro.

Obras

Escreveu ao longo de sua vida cerca de 120 livros de matemática recreativa, didática da matemática, história da matemática e ficção infanto-juvenil, tendo publicado com seu nome verdadeiro ou sob pseudônimo. Abaixo, uma lista de seus títulos mais relevantes:
Contos de Malba Tahan (contos)
Amor de Beduíno (contos)
Lendas do Deserto (contos)
Lendas do Oásis (contos)
Lendas do Céu e da Terra (contos)
Maktub! (contos)
Minha Vida Querida (contos)
O Homem que Calculava (romance)
Matemática Divertida e Delirante (recreação matemática)
A Arte de Ler e Contar Histórias (educação)
Aventuras do Rei Baribê (romance)
A Sombra do Arco-Íris (romance)
A Caixa do Futuro (romance)
O Céu de Allah (contos)
Lendas do Povo de Deus (contos)
A Estrêla dos Reis Magos (contos)
Mil Histórias Sem Fim (contos)
Matemática Divertida e Curiosa (recreação matemática)
Novas Lendas Orientais (contos)
Salim, o Mágico (romance)
Diabruras da Matemática (recreação matemática)

Fonte:
Wikipedia

Antônio de Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda) Parte I


1. O CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL E A ESCOLA LITERÁRIA

O início do século XX ficou marcado, no Brasil e no mundo, por uma série de mudanças em todos os setores da sociedade. Para melhor entendermos o que se estuda sob a denominação de Modernismo, precisamos perceber a relação entre um movimento, uma estética e um período.

O MOVIMENTO

A semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São, em 1922, marca o surgimento do movimento.

Na Europa, movimentos vanguardistas buscam de maneiras variadas e inusitadas novas formas de expressão artística, recusando tudo que significasse tradição. Alguns escritores brasileiros tomavam contato com tais novidades estéticas: Oswald de Andrade conhece o Futurismo em Paris; Manuel Bandeira, o neo-simbolismo suíço; Ronald de Carvalho colabora na fundação de Orpheu, uma revista futurista em Portugal.

Em 1917, Anita Mafatti faz uma exposição de artes plásticas apresentando elementos cubistas e expressionistas assimilados em seus estudos feitos na Alemanha e nos Estados Unidos. A polêmica causada ganhou força na voz de Monteiro Lobato, que escreve um artigo intitulado “Paranóia ou Mistificação” atacando violentamente a artista e suas obras. A defesa foi feita por Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Mário de Andrade.

A partir de então, um grupo de jovens da burguesia culta passa a tomar cada vez mais contato com as novidades da estética européia e a se movimentar de forma cada vez mais atuante no meio literário paulista. Preparam assim a Semana da Arte Moderna, trazendo conferências sobre literatura, pintura, escultura e apresentações de poesia, prosa e música modernistas.. Alguns dos principais participantes da Semana foram Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e outros. Vejamos alguns de seus episódios centrais:

Finalmente, a 29 de janeiro de 1922, o Estado de São Paulo noticiava: “Por iniciativa do festejado escritor, sr. Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, haverá em S. Paulo uma ‘Semana de Arte Moderna’, em que tomarão parte os artistas que, em nosso meio, representam as mais modernas correntes artísticas”. (...)

Realizaram-se três espetáculos durante a Semana, nos dias 13, 15 e 17 (...).

A grande noite da Semana foi a Segunda. A conferência de Graça Aranha, que abriu os festivais, confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo público, que provavelmente não entendeu, e o espetáculo de Vila-Lobos, no dia 17, foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “futurismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era conta a música que os passadistas se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas manifestações da arte plástica.

(...) Mário de Andrade confessa que não sabe como teve coragem para dizer versos diante de uma vaia tão bulhenta que não escutava, no palco e que Paulo Prado lhe gritava da primeira fila das poltronas. (...)

Mas, de qualquer forma, havia sido realizada a Semana de Arte Moderna, que renovava a mentalidade nacional, pugnava pela autonomia artística e literária brasileira e descortinava para nós o século XX, punha o Brasil na atualidade do mundo que já havia produzido T. S. Eliot, Proust, Pound, Freud, Planck, Einstein, a física atômica.

Em meio a muita polêmica a arte modernista conquistava seu espaço.

A ESTÉTICA

A primeira fase modernista foi chama de “fase heróica” ou “fase da revolução estética”. Na realidade, nunca conseguiram delinear claramente sua teoria estética. O que os unificara era uma intensa vontade de expressão livre e a tendência para transmitir a emoção pessoal e a realidade do país de modo não convencional. Quanto ao estilo, os modernistas rejeitaram os padrões portugueses, e deram espaço a uma expressão mais coloquial, próxima do falar brasileiro. Os assuntos também foram renovados, por meio do desejo de serem atuais, de exprimir a vida diária, o cotidiano. Enfim sua maior arma foi a valorização do prosaico e do bom humor.

O PERÍODO

O ano de 1922, marco na busca de liberdade literária, coincide com o Centenário da Independência. O mundo ainda faz descobertas das influências deixadas pela Primeira Guerra Mundial (1914/1918). No Brasil, há um crescimento da indústria. Começa-se a questionar a legitimidade do sistema político, dominado pelas oligarquias rurais. Desde 1890, a chegada de imigrantes como mão-de-obra traz também novos elementos culturais que passam a ter cada vez maior influência, como se vê na cidade de São Paulo.

2. O AUTOR: VIDA E OBRA

Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira nasceu em São Paulo, em 1901, e faleceu no Rio de Janeiro em 1935. Filho de uma família tradicional na qual havia dois professores da faculdade de Direito onde se formou. Ainda estudante, fez jornalismo literário e crônicas teatrais. Sua segunda viagem para a Europa serviu de fonte para seu livro de estréia, Pathé Baby (1926). Em São Paulo esteve sempre vinculado aos responsáveis pela semana de Arte Moderna. Foi redator e colaborador das revistas modernistas Terra Roxa e outras Terras, Revista de Antropofagia e Revista Nova. Destacou-se como cronista e contista, mas também dedicou à pesquisa histórica, da qual resultaram trabalhos sobre Anchieta. Depois de 1932, entregou-se à atividade política, motivo da transferência de sua residência para o Rio de Janeiro.

Segundo a crítica, Alcântara de Machado foi o primeiro escritor do modernismo a se mostrar sensível às mudanças na prosa ficcional, dedicando-se à história curta. Sua atenção voltava-se basicamente para as curiosidade que o encontro entre italianos e paulistas provocava. Seu estilo, perfeitamente de acordo com os ideais modernistas, marca-se pela leveza, bom humor, fundido o registro de ítalos-brasileiras com imagens urbanas e a emoção do cotidiano. É nesse instante que sugere o retrato de uma São Paulo nova, em plena mudança na estrutura social e na economia.

OBRAS DO AUTOR

Pathé Baby, 1926; Brás Bexiga e Barra Funda, 1927; Laranja da China, 1928; Anchieta na Capitania de São Vicente, 1928; Comemoração de Brasílio Machado, 1929; Mana Maria, ed. Póstuma, 1926; Cavaquinho e Saxofone, ed. Póstuma, 1940.

3. ANÁLISE DA OBRA

Brás, Bexiga e Barra Funda é composto por um prefácio e onze histórias curtas, todas focalizando o ítalo-brasileiro nos bairros operários no início do século.

RESUMO DOS ENREDOS

1 · ARTIGO DE FUNDO

Na verdade, é o prefácio do livro. Porém, como, de m modo irreverente, o autor nega que a obra seja livro, o texto deixa de ser prefácio. O livro nasceu jornal, os contos nasceram notícias e o prefácio, portanto, nasceu artigo de fundo.. E como jornal, Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.

Durante muito tempo, o Brasil teria vivido da mistura de três raças tristes: a primeira, os índios que aqui estavam quando chegou a segunda raça, os portugueses. Da mistura destas duas, nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira raça, os negros, veio trazendo “outras moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumbas” e nasceram os segundos mamelucos. Com os dois grupos de mamelucos o Brasil começou a funcionar.

Até que outras raças vieram a Europa, entre elas os alegres italianos. E da mistura da gente imigrante com o ambiente e com a gente indígena nasceram novos mamelucos, os “intalianinhos”.

Houve implicância e preconceito no começo:

Carcamano pé de chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?

Mas o italiano soube com seu jeito fazer-se respeitas e poderia responder: “A brasileira, per Bacco!”

Assim, o italiano conseguiu seu espaço.

Brás, Bexiga e Barra Funda, como jornal que é, não toma partido. Procura apenas noticiar os fatos do cotidiano.

Muitos ítalos-brasileiros serão homenageados neste jornal por terem impulsionado a vida espiritual e material de São Paulo.

2 · GAETANINHO

Gaetaninho quase foi atropelado por um Ford quando banzava no meio da rua. A mãe o manda entrar. Ele vem chegando e dribla a mãe com o chinelo da mão.

O sonho de Gaetaninho é andar de carro. Mas, ali, na rua do oriente, isso só acontece em dia de enterro. Um amigo de Gaetaninho, o Beppino, já atravessara a cidade de carro mas só porque sua tia Peronetta ia ser enterrada no Cemitério do Araçá.

Gaetaninho sonha que sua tia Filomena morre e vai ser levada para o cemitério. Ele vai na boléia do carro, ao lado do cocheiro, com roupa marinheira, palhetinha – chapeuzinho de palha – e ligas pretas segurando as meias. Muita gente na rua, vendo o enterro, admirava o Gaetaninho. Ele só não estava satisfeito porque o cocheiro não queria deixá-lo carregar o chicote.

Gaetaninho acorda com a tia Filomena cantando o Ahi, Mari! Primeiro fica desapontado. Depois quase chora de ódio.

Quando tia Filomena soube do sonho teve um ataque de nervos. E Gaetaninho tratou de substituí-la pelo seu Rubino, o acendedor da Companhia de Gás, que uma vez lhe deu em cocre danado de doído.

Durante um jogo de bola na calçada Gaetaninho pergunta para Beppino se ele irá ao enterro do pai do Afonso. Outro amigo, o Vicente, reclama da desatenção no jogo.

Gaetaninho volta para seu posto de defesa. Beppino chuta a bola de meia que vai parar no meio da rua. Gaetaninho vai buscar mas é atingido pelo bonde que trazia seu pai.

No dia seguinte, sai um enterro da rua do Oriente levando Gaetaninho no carro da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres em cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha. Num dos carros do cortejo via-se Beppino vestido num soberbo terno vermelho.

3 · CARMELA

Carmela e Bianca saem da oficina de costura onde trabalham na rua Barão de Itapetininga. Carmela, bonita, sensual é paquerada na rua. Bianca, feia e estrábica, é a sentinela da companheira. Um rapaz – o caixa d’óculos – num automóvel Buick que já a paquerara em outro dia, reaparece. Carmela encontra o namorado Ângelo Cuoco, entregador da casa Clarck e pede para Bianca dar o fora. Na rua do Arouche o Buick passa várias vezes. Ângelo fica enciumado. Bianca, que segue um pouco atrás, é interpelada pelo caixa d’óculos. Com sua lábia consegue o endereço de Carmela e lhe manda um recado marcando um encontro atrás da Igreja da Santa Cecília. Bianca dá o recado para Carmela, incentivando-a.

Da noite Carmela, antes de deitar-se na cama de ferro ao lado da irmãzinha, lê Joana a desgraçada ou Odisséia de uma virgem, fascículo 2º. Olhando a gravura da capa, começa a confundir a imagem da princesa raptada com a sua própria imagem e a do castelo com a Igreja Santa Cecília. Mas logo o trispeiro Giuseppe Santini manda apagar a luz.

Carmela decide aceitar o convite mas apenas até a Alameda Glette. Bianca continua incentivando.

Na hora do encontro, Carmela exige que Bianca entre junto no Buick.

No encontro do domingo seguinte, Carmela avisa que Bianca não irá mais no carro. Bianca, cheia de despeito, começa a recriminar as atitudes da amiga.

Depois de ver o Buick afastar-se, Bianca vai dar um giro no bairro. Encontra a Ernestinha e lhe conta tudo. Quando Ernestinha pergunta sobre o Ângelo, Bianca responde:

- O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. É pra casar.

· Tiro de Guerra nº 35

No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu malandragens e ideais nacionalistas. Aristodemo era a melhor voz da classe, puxando o coro para cantar o hino nacional e o da bandeira.

Saiu do Grupo e foi trabalhar para o cunhado. Cresceu brincando, jogando bola, amando, brigando...

Quando brigou com o cunhado foi ser cobrador da linha Praça do Patriarca – Lapa na Companhia Auto-Viação Gabrielle d’Annunzio. Na rua das Palmeiras arrumou uma “pequena”.

Logo sumiu a “pequena”, sob o pseudônimo de Mlle. Miosotis, publica uma notinha n’A Cigarra indagando do seu paradeiro.

Aristodemo agora era soldado do Tiro de Guerra nº 35. Influenciado pelo sargento Aristótoles Camarão de Medeiros, Aristodemo ficou extremamente patriótico. Tornou-se ajudante de ordens do sargento e recebeu ordem de levar cópias do hino nacional para o ensaio de sete de setembro.

Durante o ensaio, Aristodemo acaba perdendo a paciência e dá um tabefe num soldado “alemãozinho” que estava “escachando” o hino nacional.

Após ouvir as testemunhas, o sargento Aristóteles escreve a “ordem do dia” expulsando o alemãozinho e citando Aristodemo como exemplo de patriotismo.

Ainda sob a influência do patriótico sargento, Aristodemo pede sua demissão da Companhia Auto-Viação Gabrielle d’Annunzio e vai trabalhar na Sociedade de Transportes Rui Barbosa Ltda., na mesma linha.

4 · AMOR E SANGUE

Nicolino Fior d’Amore estava triste, com a alma negra. Brigou com o verdureiro, não conseguiu encontrar a Grazia, não deu atenção ao amigo, não cumprimentou seu Salvador, dono da barbearia onde trabalhava. Também fingiu não ouvir quando o Temístocles da Prefeitura comentou um crime passional.

Ao encontrar Grazia na saída da fábrica, ameaçou se matar caso ela não falasse com ele. A única resposta que ela lhe dá é: “Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca?” E vai embora.

Quando Grazia saía da fábrica conversando e rindo com Rosa, Nicolino aparece e lhe dá uma punhalada.

Na delegacia, ele se defende dizendo que estava louco e todos os jornais registram que essa frase foi dita chorando. E dela surge o estribilho de Assassino por Amor (Canção da atualidade para ser cantada com a música do “fubá”, letra de Spartaco Novais Panini)” que causou furor na zona:

Eu estava louco, Seu delegado! Matei por isso, Sou um desgraçado!

5 · A SOCIEDADE

A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda não tolera sequer imaginar que a filha Teresa Rita venha a se casar com um “filho carcamano”

Mesmo assim, o rapaz, Adriano Melli, ronda a sua janela, passa buzinando no seu Lancia e cumprimentando com seu chapéu Borsalino. A mãe, atenta, manda-a entrar.

Os pais não puderam ir ao baile graças a um furúnculo no pescoço do conselheiro e com isso Teresa e Adriano conseguem se ver. Neste encontro, o jovem anuncia seu pai quer fazer negócio com o pai da moça.

A mãe, precavida, já deixa avisado: “Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você aponde o olho da rua para ele, compreendeu?”

Mas o negócio era outro. O senhor Salvatore Melli vinha propor sociedade em um negócio no qual o conselheiro entrava com uns terrenos e ele com o capital. No meio da conversa, Salvatore avisa que seu filho será o gerente da sociedade.

Consultando a mulher, o conselheiro obteve a seguinte resposta: “Faça como quiser, Bonifácio...”. E ele resolveu aceitar.

Seis meses depois vem a outra proposta: o casamento dos filhos.

No chá de noivado, o senhor Melli recordou na frente de todos o tempo que vendia cebolas, batatas, Olio di Lucca e bacalhau para a mãe de Teresa quase sempre fiado e até sem caderneta.

6 · LISETTA

Assim que entrou no bonde com sua mãe, Lisetta viu logo o urso de pelúcia no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda. Quando a menina rica percebeu o encanto de Lisetta passou a exibir-se com o urso, deixando Lisetta ainda mais deslumbrada. Dora Mariana, a mãe, pedia à menina que ficasse quieta, mas Lisetta agora queria pegar o urso um pouquinho. A mãe da menina rica olhou, com ar de superioridade, fez um carinho no bichinho e se olhou no espelho. E o escândalo continuava.

Quando a família rica desceu, a mãe, já em frente ao seu palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou o bichinho no ar, provocando a menina.

Já em casa, Lisetta levou uma surra histórica. A mãe só parou quando Hugo, irmão da menina, chegou da oficina e a defendeu.

Mais tarde, Hugo deu à Lisetta um urso “pequerruncho e de lata”. Pasqualino, outro irmão, logo quis pegá-lo. Mas Lisetta correu para o quarto e “fechou-se por dentro”.

7 · CORÍNTIANS (2) VS. PALESTRA (1)

A partida estava vibrante no estádio do Parque Antártica. Miquelina, ao lado de sua amiga Iolanda não consegue se conformar quando o Coríntians faz o gol.

Sua esperança para garantir o Palestra agora era o Rocco. Gostava dele. Antes namorava o Biagio, jogador do Coríntians. Quando terminou o namoro, ela parou de freqüentar os bailes dominicais da Sociedade Beneficiente e Recreativa do Bexiga, onde todo mundo sabia da história deles. “E passou a torcer para o Palestra. E começou a namorar o Rocco.”

Matias, jogado do Palestra, empata o jogo. Miquelina delira.

No intervalo, Miquelina manda pelo irmão um recado ao Rocco, dizendo para que ele “quebrasse” o Biagio.

Quando Biagio estava parar marcar um gol, Rocco o derruba dentro da área: o juiz marca pênalti.

O próprio Biagio bate e faz mais um gol para o Coríntians. O jogo acaba.

Na saída, Miquelina “murchou dentro de sua tristeza”, “nem sentia os empurrões”, “não sentia nada”, “não vivia”.

No bonde, de volta para casa, corintianos faziam a festa. Um torcedor do Palestra reclama que a culpa foi “daquela besta do Rocco”.

Mais tarde Iolanda se surpreende quando Miquelina resolve acompanhá-la ao baile da Sociedade.
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continua...
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Fonte:
Estudo copiado do material do Curso Universitário, disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/barrafunda

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Therezinha Dieguez Brisolla (Livro de Trovas)


Nosso encontro tem magia
e a nenhum outro se iguala.
A lua, indiscreta, espia...
Que importa? ... A lua não fala !

Suas vindas são surpresas!...
Faz juras... se contradiz!...
E é esse amor, sem certezas,
que há muito me faz feliz!

É noite!... A cama arrumada...
O rádio de pilha mudo...
Sua foto... e, nesse "nada",
a sua presença... em tudo!

Um cumprimento lacônico
e as nossas mãos se entrelaçam.
No amor proibido... platônico...
somente as almas se abraçam.

Ah! coração, tem cautela
e deixa de brincadeira!
Tens sonhos de Cinderela
e eu sou Gata Borralheira!

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las ?
Então, Deus ... cria o poeta!

Que o Brasil sirva de exemplo
e possa ao mundo, mostrar
que a Amazônia é como um templo...
Não se pode profanar!

Sente, a justiça, o desgosto
do injustiçado a chorar
e tira a venda do rosto,
para o pranto enxugar.

Chega tarde, o companheiro
e ao ver tanta grana, exclama:
- Como ganhaste o dinheiro ?!
Passas o dia na cama!!!

Foi o bebum "muito esperto",
como eremita... e está crente
que, no calor do deserto,
o oásis é de água... ardente!!!
–––––––––––-


Therezinha Dieguez Brisolla natural de São Carlos, SP, nascida em 12 de julho de 1932.
Professora aposentada.
Ingressou no universo trovadoresco em 1984, tendo como mestre o Magnífico Trovador Helvécio Barros.
Membro Fundadora da Academia Bauruense de Letras, Membro correspondente da Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto, SP.
Magnífica Trovadora em Humorismo em Nova Friburgo (única mulher).
Notável Trovadora em Pouso Alegre e Prêmio "Lilinha Fernandes", em Porto Alegre.
Poetisa, contista, cronista e trovadora, com trabalhos em Antologias e em livros com resultados de concursos, inclusive em Portugal.
Possui mais de 600 prêmios. Pertence à UBT - SP, sendo Vice-Presidente de Cultura

Fonte:
União Brasileira dos Trovadores

Nilto Maciel (O Campeão)


Terminada a competição, o repórter encontrou o campeão. Queria uma entrevista exclusiva. E pôs-se a fazer os mais levianos elogios ao vencedor. Comparou-o aos deuses da mitologia greco-romana. Chamou-o super-homem.

Para surpresa sua, no entanto, o campeão não só recusou os louvores, como tratou de depreciar o próprio feito. Tudo obra de truques.

O repórter sorriu, certo de estar ouvindo uma brincadeira de mau gosto. Afinal, estava no exercício de sua profissão. Porém o entrevistando fazia questão de estragar a festa, degradar a competição.

O jornalista mal sabia, no entanto, que realizava a mais importante entrevista de sua carreira.

– Minha vida está no fim.

Nada mais podia ser feito. Todos os exames denunciavam a doença mortal. Os mais eficazes remédios só adiariam a morte.

Questão de dias.

– E como você sente tudo isso?

– Eu me sinto como o viajante com hora marcada para partir. Todos nós vamos viajar um dia. A diferença entre uns e outros está em saberem ou não saberem o horário da partida.

Embasbacado, o repórter não fazia mais perguntas, enquanto o outro falava, sem parar.

– Quem compete se arrisca a trair, mentir, fraudar. E quem compete tem consciência disso. Muitas vezes os melhores não participam de competições. Preferem ser os melhores apenas para si mesmos. E para aqueles que não vão às arenas aplaudir os gladiadores. Assim, o melhor poeta não é o ganhador do Prêmio Nobel.

Com certeza o homem delirava ou enlouquecera. Talvez a emoção da vitória tivesse perturbado os mecanismos centrais de seu cérebro. Precisava repousar, dormir.

– Não quero falar da Igualdade, porque ela se confunde com a Utopia. No entanto posso continuar falando da mentira, da traição, da fraude. Posso dizer, por exemplo, que nas competições todos se igualam: competidores, julgadores e espectadores.

– Vá dormir, campeão.

– Há ainda a competição primordial, entre o ser e o não-ser. E esta é sem significado, completamente inútil.

Fonte:
Jornal de Poesia

José Feldman (Sofrimento)

Sou um pirata moderno, navegando a esmo num mar de solidão. Minúsculo grão de pó soprado pela tempestade de incertezas. Há um vazio dentro de mim, um buraco em minha alma. Persegue-me e me assusta, mas não sei seu nome. Ás vezes se vai, mas depois volta como algo horrível para acontecer e eu, só me sinto só. Eu estou só e o que fizer será só.

Às vezes gostaria de não ter um monte de sensações.

Percorri o arco-íris em busca do pote de ouro...o pote estava vazio. Olhei em volta e...não vi mais o arco-íris, só a noite - minha eterna companheira. Nela está o meu refúgio, pois é a noite que me abraça e me acolhe com amor.

Vivo um grande espetáculo neste imenso cirso e, a atração principal sou eu, o palhaço. Visto a fantasia para fazer os outros rirem e para eu próprio rir, dando a mim uma falsa alegria para esconder o terrível sofrimento e o vazio de minha vida. Essa areia que me engole pouco a pouco.

Perco-me novamente no desespero dos sonhos que vibram de fantasias incontidas, mergulhado em uma nuvem de ilusões que se formam cada vez mais e mais. Triste destino de um ser que erra o limbo, sem esperança. Esperança esta, perdida em algum ponto do deserto - areia e areia, este é o meu destino.

Sou o príncipe da noite, o conde das trevas.

Sigo sonhando, cavalgando meu corcel negro cravejado de diamantes, cortando com minha espada as procelas, capa tremulando ao vento, saltando riachos, sempre em frente, atrás de um futuro incerto.

Cavalgo de um passado negro para um futuro fantasma, por sobre a miragem do presente.

Fonte:
Imagem = http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A. A. de Assis (Título de Cidadão Benemérito de Maringá)



Foi aprovado hoje (23/09), por unanimidade, o Projeto de Lei de autoria do vereador Ton Schiavone, que concede o Título de Cidadão Benemérito de Maringá ao escritor Antonio Augusto de Assis (foto), membro fundador e presidente de honra da Academia de Letras de Maringá. Será marcada, em breve, a data da Sessão Solene da Câmara Municipal para a entrega do título.

A. A. de Assis nasceu em São Fidélis – Estado do Rio de Janeiro, no dia 07 de abril de 1933.

Chegou a Maringá, para iniciar vida nova, no dia 17 de janeiro de 1955.

Hoje aposentado, foi jornalista e professor do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá – Paraná.

Membro do Rotary, da Academia de Letras de Maringá, da União Brasileira de Trovadores – Seção de Maringá, da Academia de Letras do Brasil / Paraná e de outras instituições, Assis, além de ser um escritor com centenas de premiações literárias, também é editor, há mais de 11 anos, do boletim mensal Trovia.

Obras:
- Robson (poemas);
- Itinerário (poemas);
- Coleção Cadernos de A. A. de Assis – 10 volumes (crônicas, ensaios e poemas): Bate-papo, Trovas de paz e amor, Os quebra-molas do casamento, Lufa-lufa, Chiquinho, Felicidade sem camisa, Da arte de ser pai, Desafio do amor, Carta aos moços, Xangrilá;
- O português nosso de cada dia (didático);
- Poêmica (poemas);
- Caderno de Trovas,
- A missa em trovas;
- Tábua de Trovas;
- Trovas Brincantes;
- Trovas Brincantes II;
- Triversos travessos (haicais);
- Notas de viagens;
- Memorinhas;
- A língua da gente (e-book);
- Novos Triversos (haicais).

No prelo: Vida, Prosa e Verso.
---
Fonte:
Academia de Letras de Maringá

Cleto de Assis (O Poder do X)


Ando tão preocupado com as palavras que notei algo interessante: as letras que as formam têm personalidades distintas. A começar pelos dois grupos de vogais e consoantes. As cinco primeiras — A, E, I, O, U — são as cortesãs. A letra A, primeira e única, no eterno papel de candidata ao trono. Em verdade, parece que a letra E disputa a liderança com a A. Pelo menos em quantidade, a E participa mais que todas as suas demais irmãs vogais na formação das palavras. No tempo da composição tipográfica, as caixas de madeira que continham os tipos de metal eram divididas em escaninhos de diversos tamanhos e a casa da letra E minúscula era a maior, bem próxima à vista e à mão do tipógrafo, por ser a mais usada. Reparem no teclado do computador e verão que a primeira vogal a aparecer é a E, já na segunda fila superior, abaixo dos números. E essa disposição foi herdada dos teclados das aposentadas máquinas de escrever. Tudo uma questão de prioridade de utilização.

E o exército de consoantes? Pois toda armada é formada assim: primeiro os generais e depois os soldados. Acima as vogais, que têm som próprio, e depois as consoantes que, como diz o próprio nome, somente soam com a parceria de uma vogal. Se não tiverem uma das cinco irmãs juntinha a si, são letras mudas, a que falta um pedacinho de som. Nossa língua portuguesa ganhou, com a última reforma ortográfica, três outras que se encontravam exiladas há muito – a K, a W e a Y. E deveria ter sido o contrário: com jeitinho e a bem da escrita fonética, teríamos decapitado a letra Q, bem fácil de ser substituída pela C; e a H que também se cuide, pois dá bem para passarmos sem ela. Bastaria adotarmos o simpático eñe espanhol e facilitar a vida de quem já, pela própria natureza, fala errado, dizendo colier e mulier, em vez da verão com H. Vejam como daria certo: “A mulier pegou a colier e acompañou seu marido na sobremesa”. Assim estaríamos criando, formalmente, o portunhol que dominará, dentro de algumas décadas, a América Latina.

Mas as consoantes também têm fortes personalidades. Eu, por exemplo, gosto da letra C, que por acaso inicia meu nome; uma questão de afinidade. Acho que ela é uma letra aberta, sempre pronta a um harmonioso abraço com a vogal que se lhe avizinhe. Há quem prefira a M, estável sobre duas pernas, ao contrário da P que avança seu tórax e se equilibra em apenas uma perninha. A letra R, ao não aguentar a posição circense, desceu rapidamente um esteio e fez com que o Pato se diferenciasse do Rato.

Tenho pena só de uma letra: a Z. A que fica por último, a zelar pela retaguarda do Alfabeto, com ar de zanga permanente, e que de vez em quando se zarelha na vida da S. Como sempre está no meio do azar, também lembra a zebra, a vitória não esperada. Talvez nem seja das mais inteligentes, pois não fala: zurra, à maneira das mulas. Ou, mesmo silenciosa, zumbe incomodamente. Aparentemente quieta, na maioria das vezes, zomba de todas as anteriores letrinhas. E quando se junta a outras suas iguais, onomatopaica, vira sono profundo. Além de azarar os nomes próprios que começam com ela – alguém já ouviu um Zulmar ser o primeiro na chamada escolar?

Examinei a N, uma M com complexo de inferioridade; a S, que conhecemos como cobrinha na escola primária, início de toda serpente e dos sapos. Quando está sozinha, dentro das palavras, em geral é ela que se zarelha, tomando o lugar da Z. A letra V é um pouco despersonalizada, é verdade. Muitas vezes pode ser cobardemente substituída pela B. No Espanhol, então, nem se fala nela. Pode até aparecer graficamente, com aquele ar de A invertido e sem cintura, mas sempre a pronunciam como uma B, coitada.

E a letra F? Uma P de boca aberta, consonante fricativa, lábiodental, surda. Tadinha… Abre a boca, mas apenas sussurra, faz ventinho entre os lábios. Impossível pronunciá-la com a boca cheia de farinha, sem produzir uma nuvem de pó de carboidratos. Já a G, gordinha como ela só, parece estar sempre no engole, engole, mão para dentro da boca. E a J, um cajado invertido, lembra joelhos dobrados a proferir jaculatórias. Ai, Jesus!

A letra Y, a nova irmã, veio para pouco acrescentar, apesar de seu jeitinho de dois dedos levantados em sinal de vitória. O NVOLP (para quem não está acostumado, este sanduíche de letras quer dizer Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela ABL, ou Academia Brasileira de Letras) regsitra apenas 45 vocábulos do(a) Y, incluído(a) ele(a) próprio(a), até a 5ª edição, que vem com anexos. K e W aparecem mais, mas não chegam a encher uma página de cinco colunas, cada uma delas.

Mas já que estamos a conversar sobre a personalidade das letras, descobri outra coisa interessante. Já repararam que tratamos as letras à vezes como femininas e outras como masculinas? Dizemos o A e a A, o B e a B. Fui ao dicionário e vi que elas todas (ou eles todos?) são designadas por s.m., que não quer dizer sua majestade, mas substantivo masculino: “B. S.m. 1. A segunda letra do alfabeto etc.” Seria um caso de androginia gramatical?

Todas as divagações anteriores, que não têm o menor peso adicional na cultura de quem me lê, foram feitas para registrar a importância de uma letrinha sempre misteriosa, a senhora X. Notaram que essa indicação já nos remete a alguma pessoa desconhecida, que se esconde atrás de óculos escuros, sempre cabisbaixa e a percorrer rotas obscuras? É sempre o X do problema, a atormentar detetives. Cruz dos matemáticos, que sempre a utilizam como variável independente das equações ou a põem lá no fim, como a incógnita a ser descoberta. Ou não. A X – ou o X – é letra quase universal, que corta as demais julgadas desnecessárias, nome de todos os analfabetos que assinam em cruz, embora Descartes a tenha utilizada para designar sua primeira coordenada. Valia 10 para os romanos, mas nós a utilizamos sempre que queremos falar de uma quantidade indeterminada: falta X para completar. Os documentos secretos e importantes ficam sempre no Arquivo X. O dois risquinhos entrecruzados também facilitaram a vida dos desenhistas de anúncios de lanchonete, ao assumir as feições do queijo dos sanduíches (em inglês, é claro, que é para não perder a pose): X-salada, banana X etc.

Não é uma letrinha versátil e digna de admiração, talvez dotada de multipersonalidade? Em um exame vestibular, ela substitui quilômetros de textos formados por centenas de milhares de palavras e milhões de letras. Basta que a coloquemos dentro de um determinado quadradinho e pronto: traduz a resposta que queremos dar.

E tem mais uma coisa: ela é multiplicativa. É só colocá-la entre dois números e a magia se realiza. Ou, então, adversativa, a indicar lados opostos. Futebol não se realiza sem um X entre dois clubes.

E lembremo-nos, além de tudo, de sua elegância fonética: quando a Corte portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, os nativos trataram de adotar falares europeus, trocando os S finais das palavras por maviosos X, hábito que até hoje os cariocas conservam.

Por tantas razões, quero propor o X, rei das letras, como principal candidato à presidência da República, nas próximas eleições. Ele poderá multiplicar o PIB brasileiro e substituí-lo pelo PIX (produto interno xuave), além de axelerar o creximento xoxial (noxa, como me condixionei rápido a exa teoria ideolóxica!).

Pelo menos ele é uma incógnita que poderá gerar uma solução positiva.

Curitiba, março de 2010

Fonte:
http://cdeassis.wordpress.com/cronicas/

A. A. de Assis (Novos Triversos)

1
O amor fez a luz,
e as águas e os céus e a terra.
Em obras, o homem.

2
Tão simples, meu santo:
“ame e faça o que quiser”.
O resto é discurso.

3
Poeta no parque.
Enquanto caminha ao sol
vai catando haicais.

4
Com tanto edifício,
é difícil ver estrelas.
Que pena, Bilac...

5
Vaga o vaga-lume.
Vaga luz num vago mundo
procurando vaga.

6
Cigarra dá curso
de canto no formigueiro.
E a fábula acaba.

7
De longe o cheirinho
a que Adão não resistiu.
Festa da maçã.

8
Rodada de mate.
Negrinho do Pastoreio
passa bem no meio.

9
Quero-quero-quero...
que queres tu tanto assim?
– Quero a quera-quera.

10
Mindim, seu-vizim,
pai-de-todos, fura-bolo...
Ao sobrante, o piolho.

11
Tão meninas elas,
as meninas dos teus olhos.
Pedem colo, ainda.

12
Nobre girassol.
Como podem, no mercado,
chamá-lo commodity?

13
Toda prosa a rosa.
Vitória-régia-mirim
numa poça d’água.

14
Mágica é a palavra.
Beija-flor é beija-flor,
colibri nem tanto.

15
Vovó faz a sesta
na cadeira de balanço.
Reprise de sonhos.

16
Repartem-se as nuvens
em finos fios de chuva.
Festança na roça.

17
Era um fino belga.
Fez sucesso ao transformar-se
num canário brega.

18
No ap da canária
pinta o 7 o pintassilgo.
Pinta um pintagol.

19
A abelhinha, não.
Bela e útil, não lhe assenta
ser chamada “inseto”.

20
Na Idade da Pedra
talvez já se comentasse:
– É uma pedra a idade.

21
Cada tique-taque
leva um tiquinho da gente.
Para o céu, espero.

22
Longindo-se vai,
suminte, o barquinho a vela.
Quem será com quem?

23
Ah, espelho meu.
Cada vez que em ti me vejo
vejo menos eu.

24
Receita do sapo:
quem quer um sono tranquilo
antes coma o grilo.

25
Gordo flamboaiã.
Só ele no vasto pasto
dando sombra aos bois.

26
Quantas vezes, ah,
eu vi o pião rodar.
E os anos também.

27
As celebridades?...
Dê-lhes tempo e logo-logo
serão gasparzinhos.

28
Do dente por dente
ao voto por dentadura.
A lei da mordida.

29
Flores na enxurrada.
Vão ter afinal bom háli-
to as bocas de lobo.

30
Santo mesmo é o peixe.
Sequer precisou da arca
para se salvar.

31
Caminhão de flores.
Da roça para a cidade,
perfumando as trilhas.

32
Tanto foi ao brejo,
que a vaca um lírio gerou.
O copo-de-leite.

33
Cubram-se as estrelas.
Tem gente capaz de ao vê-las
lhes roubar as pilhas.

34
O parto da história:
aquele em que Adão, dormindo,
fez-se Adão e Eva.

35
Desce o rio a serra.
Colhe as lágrimas da terra
pra fazer o mar.

36
A prece da tarde.
Em coro cantam as aves
as Ave-Marias.

37
Na praia desfilam
sungas, biquínis. De gala,
um par de pinguins.

38
Trinta e tantos graus.
Passarinho, na torneira,
rouba um pingo d’água.

39
Pazinha... colher...
ou vai ser na lambeção?
Sorvete em casquinha.

40
Nuns de vez em quando
sou porventura menino.
Melhores momentos.

41
Um pingo de luz
no topo do arranha-céu.
Brincando de estrela.

42
As rosas no cio.
Sedutoramente abertas
para o beija-flor.

43
Lua cheia míngua,
de repente volta nova.
Imortalidade.

44
Triste bem-te-vi
pareceu-me estar pedindo:
- Não me roube os hífens.

45
Siri pra sereia:
– Quando eu crescer, te prometo,
serei teu sereio.

46
Garrincha e Pelé.
Depois deles nunca mais
houve igual olé.

47
Ao velhinho, o dia.
Nem passado nem futuro
têm-lhe serventia.

48
Estrelas, milhões.
Ou serão anjos brincando
de bola de gude?

49
Entre o céu e a terra,
quanta vã filosofia...
E o pior: bem paga.

50
Pois é, meu poeta:
até as crateras da Lua
de longe são belas.

51
Corrija-se a tempo.
Mais de mater que magistra
necessita o mundo.

52
Tanto pisou nela,
que a calçada deu-lhe o troco.
Dedão destroncado.

53
Antissolidão.
A cada velhinho a tela
de um computador.

54
A pomba e a rolinha.
Uma é grande, outra é pequena,
mas de paz é a cena.

55
Cala-te, canário.
Se cantas além da conta,
contas teus segredos.

56
Pobre couve-flor.
Não sendo nem flor nem couve,
finge ser as duas.

57
Gambazinhos, hummm...
Para o nariz da mãe deles,
que catinga boa.

58
Doce portuñol.
Para los niños los nidos
... y los abuelos.

59
Pousa o passarinho
na imagem de São Francisco.
Os irmãos se entendem.

60
Branquinhas, branquinhas,
voam as garças em V.
Vitória da paz.

Fonte:
O Autor

Regina Célia Melo (Poesia Infantil)


GALINHO PEDRÊS

Meu galinho pedrês
Já aprendeu a lição.
Canta de cor e salteado
O madrigal de
Todas as manhãs!

TECELÃ DE SONHOS

Um sorriso aqui, alegria ali
Um ponto aqui, outro acolá

Tecelã de sonhos
Cativando amores
Cultivando flores
Costurando cores

Todas as flores
Num só jardim
Nona sinfonia
Colcha de harmonia

Flor de Maria,
Flor de José e de quem vier...

VALSINHA

Oh, abelhinha
Minha amiga,
Traz mel pro menininho...

Ele quer ficar barrigudinho,
Quer crescer, entender de tudo
Um tanto!

E um dia, num campo
Cheio de flores,
Ficar tonto de tanto dançar
Sua valsa ao som do bZ

CORUJA

Corujinha dos olhos grandes,
Empresta-me teu olhar...
Pra eu descobrir os segredos
Do céu vazio de lua,
Da noite cheia de noite...

CARACOL

Que caracol enrolado!
Fica horas e horas,
Dias e dias,
Meses e meses,
Anos e muitos anos...
Toda a vida se aprontando
Pra sair de casa...
E quando sai de casa
Não sai da casa!

CONVITE

Mal a lua se pôs na noite,
Piscou-me um olho.
Fez um sorriso de estrelas,
Calçou uma sapatilha de nuvens
E, num pas de deux de luar,
Convidou-me para dançar.

NUDEZ

Ipê amarelo
Vento despindo-o
Chão pintado

POÁ

Nas tardes sonolentas
De agosto, os mosquitinhos
Vão à forra...
Fazem piruetas indiscretas
Nos desavisados narizes.
Zoam uma cantilena
Sem fim...
E por onde passam pintam um
Desencontrado poá.

SINFONIA

Atenção, senhores ouvintes:
A orquestra vai começar!

Fimmm, fuim, fuim...
Interminavelmente...

É assim:
Primeiro a sinfonia,
Pra aliviar, com certeza,
O ataque fatal!
PLAFT!!!

ENTRADA PROIBIDA

Barata chata,
Feiosa e entrona,
Ninguém aqui te convidou!

Chinelo, vassoura e detefon!
EXPRESSAMENTE PROIBIDA
ENTRADA DE BARATAS!

Troncha e tonta,
Vá abusar noutra freguesia!!
ARGH!!!
===============


Nascida em Januária e criada em Montes Claros - cidades mineiras- Regina Célia Melo mudou-se para Brasília em 1976, após concluir o magistério. Ingressou na Secretaria de Estado de Educação, em 1977, como professora de crianças. Graduou-se em Letras, Direito (UniCEUB), Artes Plásticas( UnB), especializou-se em Literatura Brasileira e, também, em Educação Especial, sua principal área de atuação, à qual se dedica há mais de vinte anos. Sua grande alegria é ver crianças apaixonadas por livros.

Livros publicados: Uma Joaninha Diferente, Uma Traça sem Graça, Sapato Trocado Sorriso Dobrado, Poemas e Cores.

Fonte:
Antonio MIranda