quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lígia Leivas (Um Gaúcho de Coração Calado)


Pelas bandas das coxilhas, na vasta estância a perderem-se de vista seus limites, vivia ele de viver os dias como ordenasse o destino ou quisesse o senhor lá de cima... sabe-se lá... Apenas o olhar fazia arabescos a mostrar que o velho gaúcho sentia coisas mais além do que o seu jeito sossegado aparentava. Sem mulher, sem filhos, sem família, servia o patrão estancieiro com lealdade e respeito. Viera parar ali ainda guri, à procura de trabalho. Todos os que o conheciam, tratavam-no com consideração e certa distância. Havia noites em que se ouvia ao longe o som de sua gaitinha de boca, tocada admiravelmente. De pouquíssimas palavras, era mesmo um homem estranho. Mas estimado. E ninguém o queria perder de vista, nem imaginavam que ele um dia pudesse ir embora dali.

E assim ia o tempo. Quando sobravam algumas horas, o gaúcho atendia as redondezas nas estâncias e fazendas e assim ganhava uns trocados que nem tinha em que gastar.

Um dia chegou da cidade grande um casal parente dos patrões. Ele, homem vistoso, de bom gosto, roupas elegantes e ainda um sorriso pronto, franco. Ela, jovem senhora, moça fina, pele morena, muito, muito bonita. Tudo mudou na estância.

O serviço aumentou. Mais almoços, mais arrumações e limpezas. Mais passeios, na tentativa de conhecerem toda a propriedade. Era preciso manter tudo sem qualquer sinal de desleixo.

O gaúcho sempre quieto e fazendo suas lides. Apenas observava o ambiente enquanto completava as tarefas. Tinha prazer em mostrar suas habilidades para assim também agradar os visitantes.

À noite, na roda do chimarrão, enquanto todos conversavam e ele organizava as atividades para o outro dia, ficava a olhar, encantado com a moça e sua beleza, sua simpatia. Até pensara em comprar para ela um colar de continhas que vira lá no armazém da vila. Enfim, sentia que o mundo por ali havia mudado. Um novo colorido e até uma vontade de andar mais garboso, com botas em vez de alpargatas; com bombachas mais alinhadas; com os apetrechos de gaúcho mais cuidados. Até o lenço vermelho voltara a usar no pescoço.

Passados mais de dois meses, cedinho ainda, manhã já com ares de primavera, o gaúcho surpreendeu-se ao ver a moça montar o baio e sair campo afora... Ficou matutando, pensando, enquanto enrolava seu cigarrinho de palha. Não demorou muito, meia hora depois, o marido, troteando um alazão, embretou-se campo adentro, levantando a poeira dos caminhos. Que teria acontecido?...

Passou o meio-dia, a tarde, a noite. Não voltaram naquele dia. Nem no outro, nem no seguinte. Começaram as buscas. Naquelas lonjuras, tudo muito difícil. Sabia-se que por aquelas terras havia lugares que nenhum homem ainda havia pisado.
Todos - ou os poucos - daquelas paragens diziam alguma coisa, davam opinião. Mas ninguém sabia nada mesmo e nem poderiam imaginar.

Quando chegou a próxima lua cheia, uns dez, doze dias depois, o casal finalmente foi encontrado lá pelas barrancas do rio Uruguai... o colar de continhas ainda enfeitava o esguio pescoço da mulher bonita. Nem o moço vistoso perdera seu jeito bonito.

Naquela noite, o gaúcho tocou por muito mais tempo sua gaitinha de boca. E a quietude parecia mais profunda...

No domingo seguinte, já com certo calor nas pradarias, o gaúcho não levantou na hora de costume. O cão, seu leal companheiro, também dormia sossegado no portal do rancho.

Era preciso fazer a ordenha. Por que o gaúcho ainda não se mexeu hoje, perguntou o patrão a um outro peão.

Encaminharam-se para o rancho.

No catre forrado de pelego de ovelha, no canto do quarto, o gaúcho, enrijecido, tinha apertada entre as mãos a fotografia do moço bonito que viera da cidade grande para distribuir sorrisos - coisa pouco comum naquelas plagas distantes.

Fontes:
Revista "Recanto da Prosa e do Verso" ano III Setembro de 2010 . Portal CEN.
Imagem = Pagina Aberta

Folclore Latino-americano (Acoitrapa e Chuquilhanto)


Na cordilheira que fica em cima do vale de Yyucay, em Cusco, pode-se ouvir todos os sons. O vento sopra com sua bocarra; a manhã, obrigada a se levantar sempre antes dos outros, boceja morta de sono; os pássaros, seus eternos namorados, acordam cantando ao ouvi-la se espreguiçar.

De repente, silêncio. Acaba de chegar Acoitrapa, o pastor de lhamas. Ele é jovem e belo. Toca a quena tão docemente, que até as flores mais tímidas se abrem e despontam entre os galhos das árvores para escutá-lo.

Certa vez, as duas filhas do sol passaram perto de seu rebanho. Encantadas com a música, se aproximaram para ver quem tocava tão bem assim aquele instrumento. O pastor ficou deslumbrado ao vê-las. Os três conversaram e riram, sem se preocupar com o correr das horas.

Quando o sol se escondeu, as jovens, com muita pena, precisaram se despedir. O pai permitia que passeassem pelo vale, porém ai delas se não chegassem em casa antes do anoitecer!

Chuquilhanto, a mais velha, se sentiu mais triste que sua irmã. Sem saber como, se apaixonara por Acoitrapa.

Chegando ao palácio, Chuquilhanto não quis comer. Correu para o quarto, a fim de ficar sozinha. Deitou-se, fechou os olhos, ficou se lembrando de seu doce pastor, e então adormeceu. Em sonhos, viu um belo rouxinol que cantava suave e harmoniosamente. Falou-lhe, então, de seu amor e de seu medo: temia que seu pai considerasse um guardador de lhamas muito pouco para uma filha do sol.

O rouxinol, comovido pela aflição da jovem, lembrou-lhe que no palácio havia quatro fontes de água cristalina: se ela se sentasse no meio delas cantando o que o seu coração sentia, e as fontes lhe respondessem com a mesma melodia, significava que poderia fazer sua vontade e que seus desejos seriam atendidos.

Chuquilhanto acordou. Lembrava-se perfeitamente do sonho. Vestiu-se depressa e foi aos jardins do palácio. Ali estavam as fontes, dando de beber à manhã. Seguindo as instruções do passarinho, Chuquilhanto sentou e começou a cantar uma triste melodia. As fontes entenderam a sua angústia e manifestaram isso cantando em uníssono, consentindo, portanto, em ajudá-la. Chamaram a chuva e ordenaram-lhe que transmitisse ao pastor o carinho que Chuquilhanto sentia por ele.

A chuva saiu a cântaros do palácio, em direção à choupana de Acoitrapa. Ao encontrá-lo, banhou-lhe o coração com a imagem da jovem.

O pastor, com o peito traspassado pela saudade da princesa, se pôs a tocar sua quena, com tanta tristeza, que até as frias pedras se comoveram. Desolado, compreendeu que o sol jamais permitiria que a filha se casasse com um pobre guardador de lhamas. Mas, que cansada estava sua alma de tanto sonhar com Chuquilhanto! Assim, adormeceu com a quena apertada entre os dedos.

Ao anoitecer, chegou sua mãe. Vendo os olhos do filho cobertos de lágrimas, pressentiu o que estava acontecendo. Como boa velhinha, sabia que um homem só chora dormindo quando está longe de sua amada. A velhinha não suportava ver o filho sofrer. Pensando num modo de aliviá-lo, lembrou-se de um velho bastão mágico que herdara de seus antepassados e que serviria perfeitamente a esse propósito. Então, arquitetou um plano; ordenou ao filho que fosse para a montanha, que se ocupasse do rebanho.

Enquanto isso, Chuquilhanto despertara com os primeiros raios de sol. Agora sentia o coração otimista, os pés leves e um só desejo: encontrar seu amado. Apostando corrida com o vento, chegou à choupana de Acoitrapa. Ao ver que ele não estava, seus olhos se encheram de lágrimas. Tratou de disfarçar sua tristeza e se dirigiu à velhinha, que a olhava com atenção:

— Boa velhinha, tudo na senhora é belo! Jamais vi um bastão semelhante a esse que está em suas mãos. Suas pedras preciosas nada têm a invejar dos campos de flores e brilham como a lua cheia.

— Minha filha — respondeu-lhe a velha —, os seus olhos sabem apreciar o que é belo. De agora em diante, este bastão é seu, sei que o deixo em boas mãos.

Chuquilhanto agradeceu e, acariciando as alvas tranças da senhora, recebeu o bastão.

— Obrigada, boa senhora!
— Adeus, Chuquilhanto — despediu-se a velhinha. — Que o amor a acompanhe!

Chuquilhanto fez o caminho de volta ao palácio. Quando cruzou a porta, os guardas, notando a tristeza em seus olhos, se perguntaram em voz baixa:

— O que estará acontecendo com a princesa que, mesmo possuindo tantas riquezas, tem tanta melancolia?

Quando, por fim, ficou sozinha em seu quarto, pôs o bastão de lado, se atirou na cama e caiu num pranto desconsolado, pensando em seu pastor.

De súbito, que susto! Que surpresa! Alguém a chamava pelo nome! Acendeu a lamparina, com cuidado para não fazer o menor ruído, e viu que o bastão mudava de cor: do rosa ao prateado, do verde ao vermelho, laranja, azul e mil tons diferentes. A voz que a chamava provinha do bastão, não havia dúvida.

— Não se assuste — disse-lhe. — Sou o bastão mágico do amor. Minha missão é unir e proteger os que se amam e sofrem por estar separados.

Chuquilhanto já não sentia medo. Ao contrário, estava maravilhada. Então, o bastão mágico se abriu como uma flor, no centro da qual apareceu Acoitrapa. Ela se aproximou, abraçaram-se, beijaram-se e, cobrindo-se com finas mantas, dormiram juntos.

Ao alvorecer, temendo o castigo do sol, os jovens amantes fugiram do palácio. Mas um guarda os viu sair e imediatamente avisou o pai de Chuquilhanto. Furioso, o sol se pôs à testa de um grande exército e partiu atrás dos fugitivos. Estes, de longe, escutavam sua voz irada apressando os soldados.

Depois de se distanciarem do sol e de suas tropas, esgotados pela longa corrida, os jovens pararam para descansar. Sentados sob a folhagem de um altíssimo eucalipto, se olharam: havia amor em seus olhos. Sabendo-se perdidos, porque cedo ou tarde o sol os alcançaria, fizeram um último pedido ao bastão mágico:

— Transforme-nos em pedra. Assim, nada nem ninguém poderá nos separar.

O bastão, cuja única missão era unir os que se amam, realizou o último desejo do casal. E ainda hoje, perto do povoado de Calca, existem duas estátuas de pedra, que os habitantes da região chamam Pitu Sirai. São Chuquilhanto e Acoitrapa, amando-se para sempre.

Fontes:
Ana Rosa Abreu et al. Alfabetização : livro do aluno / Brasília : FUNDESCOLA/SEFMEC, 2000.
Imagem = http://elmundodegladiola.blogspot.com/

Amélia Pinto Pais (Da Criação Poética)


"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux". Henri Matisse
(Eu trabalho como posso e da melhor forma possível, todos os dias. Eu dou todo o meu potencial, todos os meus meios. E então, se o que eu fiz não é bom, eu sou mais responsável, porque eu realmente não posso fazer melhor)
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A Flor
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas, umas numa direcção, outras noutra; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essa linhas às pessoas: uma flor!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
José de Almada Negreiros
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Vou partir deste belíssimo texto poético de Almada Negreiros para abordar um pouco a questão do que é a criação poética e do fazer poético na óptica do criador e na óptica do destinatário, o leitor de poesia.

Assim: — segundo Almada, criar é fazer o percurso que a criança faz, ao desenhar, a pedido, uma flor. Segundo ele, a palavra "flor" entrou na cabeça da criança, foi da cabeça para o coração e deste outra vez para a cabeça, em busca das linhas com que se desenha uma flor. Terminado o processo (que é, afinal, de criação), a criança apresenta o seu produto — em que eventualmente o adulto não reconhece a flor — mas em que Deus se reconhece, pois são essas as linhas com que ele mesmo a fez.

Ora bem: — parece-me a mim que outra coisa não é que aquilo que os poetas sempre fizeram e Fernando Pessoa teorizou na sua célebre "Autopsicografia"1, ao afirmar, como base da criação poética, a noção de "fingimento" — segundo ele, o poeta "finge" a dor "que deveras sente". Que pretende ele dizer? Que o poeta mente? Não creio, nem ele diz tal. O que ele afirma aqui é o primado da dor eventualmente sentida (com o coração ou com a imaginação). Mas sentir é sentir, imaginar uma dor é imaginar a dor que poderia eventualmente existir. Criar um poema é algo de diferente.

Num outro poema que deve ler-se como complemento a "Autopsicografia", o poema "Isto"2, ele afirma mesmo: "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. /Não uso o coração".

Um poema é um objecto, ao lado de outros objectos (como o desenho da flor é um objecto, neste caso gráfico, e não a flor em si mesma...). Resulta, diz o poeta "fingidor", (alguém preferiu chamar-lhe finge –dor) de um processo mental que designa de "fingimento" — isto é, neste caso do poema, a dor real ou imaginada vai do coração para a cabeça, torna-se objecto verbal — transfiguração do sentir em palavras (e não esqueçamos, as palavras, a linguagem, são produto, construção mental e objecto de aprendizagem — e não algo de inato,) em busca da sua expressão, igualmente verbal, em texto poético ou poema.

Ora, o leitor de poesia, como o adulto que olha os traços feitos pela criança e que ela diz ser uma flor, tem acesso apenas ao produto final — o poema ou o desenho da flor — que é a "dor" verbalizada através do tal processo mental de busca das linhas, neste caso, das palavras (que constituirão imagens, metáforas e outros processos como os que conseguem a música de que também é feito o poema). E a dor sentida então pelo leitor pode ou não ser idêntica à dor expressa verbalmente pelo poeta — como o adulto reconhece e se reconhece ou não nos traços / linhas do desenho da flor feito pela criança .

Ou seja: adulto ou leitor fazem exactamente o percurso inverso ao do criador: — têm acesso ao produto criado (desenho ou poema) e cumpre-lhes a caminhada até ao sentir originário ("na dor lida sentem bem/ não as duas que ele teve/ mas só a que eles não têm").

Criança e poeta buscam então, no processo de criação, a tal palavra ou linhas originais com que Deus fez a flor... No caso do poeta, e como afirma Pessoa em "Isto" a palavra seria então a plataforma, o terraço, para "outra coisa ainda". E "essa coisa (o poema, que mais não é que emoção transfigurada pela linguagem) é que é linda".

Levando às últimas consequências esta sua visão do processo de criação poética, Pessoa desdobrou-se em heterónimos — em que dissocia o Eu que escreve (ele, autor de todos) do Eu que "sente" ou "finge", transfigurando em palavras dores diversa ou semelhantemente sentidas e que não o são (sentidas) por ele, autor, mas por Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e tantos outros.

E preveniu-nos: — atenção, isso que têm aí, senhores leitores, não são dores, mas palavras que fingem dores eventualmente sentidas (ou imaginadas — "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação./ Não uso o coração". — poema "Isto"). Se querem sentir, sintam — mas sintam os vossos próprios sentires — "Sentir, sinta quem lê".

Mas, a verdade é que só sentimos com os poemas que estavam já como que em botão dentro de nós e que "partilhamos" com o poeta que os "fingiu" nessa luta incessante em busca da palavra justa...

Por isso, dizia-me uma amiga poetisa, a Soledade Santos (que integra o volume Quatro Poetas da Net): "Será por isso que às vezes, reconhecendo a grande qualidade de um poema (ou de um poeta), somos incapazes de nos comover? Há um reconhecimento da sua qualidade estética, mas o gozo estético não tem lugar".

Talvez seja por isso mesmo que, dizia eu em tempos, — Viver, ler e sentir a poesia é também sentir, tocar com a nossa alma e coração o coração e a alma que habitam o poema — ou que o poema sugere. Vem-me daí esse sentimento de uma certa espécie de "plágio" que eu sinto em relação a tantos poemas e poetas — os que dizem o indizível que só a palavra transfigurada permite. Como se eu fosse, também, uma espécie de coautora.

Sentir, sinta quem lê — é certo. Será, então, o leitor de poesia que se reconhece no sentir encontrado no poema uma espécie de coautor? Em todo o caso, será o leitor uma espécie de co-sentidor ???

Difícil sermos definitivos, na resposta. Como em quase tudo na vida, afinal...

É que, diz ainda Pessoa:

"E assim nas calhas de roda / gira a entreter a razão /Esse comboio de corda /Que se chama coração".

Coração — palavra chave de Almada Negreiros e também de Pessoa e palavra-chave do entendimento ("só se vê bem com o coração", dizia a raposa ao Principezinho) e que, sabemo-lo, "tem razões a razão desconhece".

Notas

1 AUTOPSICOGRAFIA (1930)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda,
Gira, a entreter a razão,
Essse combóio de corda
Que se chama coração.

2 ISTO (1930)

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé.
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fonte:
Revista Gemina. dezembro, 2010

Amélia Pinto Pais (1943)



Amélia Pinto Pais. Nascida em 1943, vive em Leiria, Portugal.

Licenciou-se em Filologia Românica, pela Universidade de Coimbra

É atualmente professora aposentada de Português no Ensino Secundário.

Escreveu obras de caráter ensaístico e de incidência didática, sobre Camões, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Padre Antônio Vieira e, também, uma História da Literatura em Portugal (3 volumes).

Foi autora dos manuais escolares Ler por Gosto (Antologias para os 10.º, 11.º e 12.º anos e respectivo livro auxiliar), Ser em Português (0.º, 11.º e 12.º anos) e Saber Português.

No Brasil foram publicados os seus livros Fernando Pessoa — o menino da sua mãe e Padre Antônio Vieira — o imperador da língua portuguesa, estando em curso, ainda, a publicação de Para compreender Fernando Pessoa(todos pela Companhia das Letras).

Participou ativamente - muitas vezes com comunicações – em diversos encontros e congressos sobre literatura e seu ensino, nomeadamente camoniano e pessoanos, organizados pelas universidades e outras associações ou escolas.

Escreve os blogues Ao Longe os Barcos de Flores (http://barcosflores.blogspot.com/); e Cristalina. Integra listas de poesia no Yahoo.

Fontes:
Revista Gemina
www.orelhas.pt

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.128)


Uma Trova Nacional

Uma lágrima dorida,
nos olhos turvos, tristonhos.
No encontro da despedia,
a renúncia dos meus sonhos.
(SÔNIA SOBREIRA/RJ)

Uma Trova Potiguar

Ai que saudades que tenho
das brincadeiras de rua,
hoje só vejo, em desenho,
o que o brinquedo insinua.
(MARCOS MEDEIROS/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > AUDÁCIA > Menção Especial

Tanta falsidade existe
por gosto ou necessidade,
que a audácia maior consiste
em dizer sempre a verdade!
RENATA PACCOLA/SP

Simplesmente Poesia

UM DIÁLOGO POÉTICO.

Meu amigo Jucá Santos ,
bom irmão que Deus me deu,
tudo que escrevi na vida
não vale um verso seu.
Você sim é um poeta
de rima sempre correta,
muito melhor do que eu.
(ZÉ REINALDO/AL)

Meu amigo Zé Reinaldo,
eu não sei se é modéstia
ou se apenas uma réstia
de luz que em você se vê ...
Porque se existe um poeta
de rima rica e correta,
esse poeta é você...
(JUCÁ SANTOS/AL)

Uma Trova de Ademar

Seu carinho me enternece,
contém meiguice e calor.
Seu desvelo mais parece
uma flechada de amor!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Somos dois gritos calados
dois momentos desiguais,
dois seres desencontrados
mas que se buscam demais.
(MARISOL/RJ)

Estrofe do Dia

Só há no peito dos vates
espaço para a ternura,
fraternidade nos atos,
riso fácil e alma pura;
cada poro derramando
pingos de literatura.
(WELLINGTON VICENTE/RO)

Soneto do Dia

– Fahed Daher/PR –
SONETO - CIDINHA.
(Para Mª Aparecida Frigeri)

Ah! Ser bonita é dom da natureza.
Ser primorosa é dom da inteligência.
Ser esmerada faz a sutileza
que dá o fulgor e cria a excelência.

É nobre cultivar esta vivência
de se doar ao bem e a esta beleza
de promover a idéia, pra existência
da comunhão social em sua grandeza.

Bem sabe conduzir e executar
na modéstia que exalta o seu valor
e na bondade de quem sabe amar.

Não só na Academia ela se aninha,
mas toda a sociedade quer o seu fulgor,
pois muito vale o gênio da Cidinha.

Fonte:
Ademar Macedo

Cascavel irá Realizar a Primeira Virada Cultural


Artistas e produtores culturais da cidade de Cascavel e da região já podem se inscrever para participar da 1ª Virada Cultural, que será realizada neste município do Oeste do Paraná, entre os dias 19 e 20 de março.

Os interessados em mostrar os seus trabalhos deverão formalizar a inscrição até o dia 25 de fevereiro, na sede da Secretaria de Cultura da cidade ou por email.

A virada cascavelense será realizada no Centro Centro Cultural Gilberto Mayer, sendo que o espaço será utilizado interna e externamente. A mostra também contará com atividades no Círculo Militar.

A produção da mostra artística está sendo coordenada pela Comissão Organizadora da 1ª Virada Cultural, que reúne artistas e representantes do Poder Público. Baseada na experiência pioneira da cidade de São Paulo, a Virada Cultural de Cascavel irá durar 24 horas. A meta é abrir espaço para todas as manifestações artísticas e culturais tanto da cidade como da região.

As inscrições para a 1ª Virada Cultural podem ser efetuadas por meio do e-mail cultura_cvel@hotmail.com , ou pessoalmente na Secretaria de Cultura, localizada na Rua Paraná, 2.786.

Fonte:
Boletim Guata – fevereiro de 2011

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

José Tavares de Lima (Caderno de Trovas)


Confesso que, fascinado
por tua graça invulgar,
se te amar foi um pecado,
não sei viver sem pecar!

Porque te dei muito amor
fiquei só... Pois não sabia
que vai perdendo o valor,
o que é dado em demasia!...

Se o amor que te dou te espanta
de tão grande, eis o motivo:
és a seiva; sou a planta;
se me faltares... não vivo!

Amar-te em segredo aceito,
mas tens que entender meu ais,
porque te amar deste jeito
é doloroso demais!...

Foi o amor que nos unia
tido como insensatez...
Mesmo assim, como eu queria
ser insensato outra vez!

Por culpa de alguns receios
e de tolos preconceitos,
somos, hoje, dois anseios
que não foram satisfeitos...

Vence o receio e confia
nos teus sonhos; pois, em suma,
sem um pouco de ousadia
não se alcança coisa alguma!

Esquecer-te? De que jeito?!...
Teu receio é sem motivo,
porque, dentro do meu peito,
tens lugar definitivo!

O receio evidencia,
às vezes, sábia conduta;
mas disfarça a covardia
de alguns que fogem da luta!

Muito te amo. Podes crer.
Mas tenho um receio louco
de que, para te prender,
todo este amor seja pouco!

O sujeito caloteiro
diz ao cobrador que insiste:
- hoje eu não tenho dinheiro,
mas volte... Milagre existe!...

Nunca dizia: “não pago”.
Mas em calote doutor,
simulava que era gago
até cansar o credor!

Lamenta-se o caloteiro:
- O meu ganho anda precário...
- Está faltando dinheiro?
- Não! Está faltando otário!

Mas o que faz esse “artista”?
- Pensa em calo o dia inteiro.
- Quer dizer que ele é calista?
- Negativo... é caloteiro!

Que eu devo partir, urgente,
ela entende, e não replica...
mas, em súplica silente,
seus olhos me dizem: fica!

Fazer prece a todo instante
tão importante não é;
para Deus, mais importante
é o suplicante ter fé...

Partes, alheia aos meus ais,
mas te suplico, sincero:
mesmo que não venhas mais,
fala que vens... que eu te espero!

A quem, lutando, persegue
um sonho que não alcança,
suplico a Deus que não negue
o consolo da esperança!

Que não me queres, sei bem...
Suplico a Deus, mesmo assim,
que transforme o teu desdém
num pouco de amor por mim...

Diz, louquinha pra casar,
a viúva, num gemido:
só eu sei como é ficar
dez anos sem ter marido!...

No sufoco que o atormenta
geme o velhinho, intranqüilo:
a mulher com mais de oitenta
voltou a pensar naquilo!...

Gemendo, diz: meu marido
só me chama de canhão!...
E ao vê-la, alguém, distraído:
seu marido tem razão!

Passa linda... do alto, a lua
surpresa ao ver tanta graça,
ilumina mais a rua
no momento em que ela passa !

Dói-me tanto a ausência tua
que, imerso na angústia imensa,
se a noite é linda ou sem lua,
nem percebo a diferença!...

Numa imagem que revela
contrastes da vida ingrata,
a lua cobre a favela
com lindo lençol de prata!

No momento em que partiste,
a lua, no céu, sozinha,
me pareceu muito triste...
mas a tristeza era minha!

Se em meu rumo há névoa e abrolhos,
nem assim me intranqüilizo:
tenho as luas dos teus olhos;
tenho o sol do teu sorriso!

Topa um "programa" vovô?
E o velhinho, triste, fala:
- agora, borocoxô,
só topo o pé na bengala!

Uma topada incomum
a minha vizinha deu.
Não feriu dedo nenhum
mas a barriga... cresceu!

A "feia" caça um marido.
Porém ao vê-Ia, há quem diga
que só um doido varrido
pode topar essa briga!...

Veja o golpe do Clemente:
- diz que foi uma topada
que o fez cair, justamente,
lá na cama da empregada!

Não tem marido, contudo,
vai, de topada em topada,
a Maria topa-tudo,
aumentando a filharada!

O nosso amor sem recatos
é uma loucura, porém,
nós somos dois insensatos
felizes como ninguém!...

Para voltar, não me peças...
seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas,
e arrepender-me outra vez.

Não sei bem por que partiste;
mas para o gesto insensato
eu sei que o remédio existe:
teu regresso imediato!...

Mente quem diz que não fez
durante a vida, algum dia,
a gostosa insensatez
de amar a quem não devia...

Por amor eu sou capaz
de fazer insensatez,
daquelas que a gente faz
sem lamentar por que fez...
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A biografia de José Tavres de Lima se encontra em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/02/jose-tavares-de-lima.html

Simões Lopes Neto (O Papagaio)



Uma anedota - a história do papagaio que falava latim, por exemplo - circula entre as pessoas e às vezes chega aos ouvidos de um escritor que a transforma em conto.

Foi assim com Le Perroquet Missionaire, de Alphonse Allais, em Ne nous frappons pas. Humberto de Campos recontou-a numa coluna de jornal. E o gaúcho João Simões Lopes Neto, o grande nome do nosso regionalismo, retomou-a e deu-lhe a dimensão de uma história. Publicou-a no jornal Correio Mercantil de Pelotas, no começo do século. O Papagaio só tomou forma de livro (Contos de Romualdo), postumamente, em 1952.
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O reverendo Padre Bento de S. Bento - que o senhor talvez conhecesse, não? - era um Santo homem paciente - paciente! paciente! - como naquela época outro não houve.

Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos dançarinos e burros que a dente pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas; mas a paciência para esse ensino não pode comparar-se, não se pode, com a do reverendíssimo.

O Padre Bento, farto de aturar sacristãos e não querendo estragar a sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.

Preparava as galhetas, o missal etc.; depois pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de oficiar; chegada, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.

Mas o filé, o bem-bom, era quando entrava a ladainha: ele cantava o nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém muito clara, respondia logo:

- O-o-a por nob-s!

E os fiéis, em seguida, pela pequena nave afora, acudiam ao estribilho:

- Ora pro nobis!

Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era próxima a nossa casa, na Vila de...

Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento?

Era o Lorota, um papagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante... com ele diverti-me muitas vezes:

- Lorota, da cá o pé!

E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável!
Coitado!... O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu. Passaram-se os anos.

Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti - confesso, não medo, mas um arrepio de... frio - quando ouvi, nas profundezas do mato virgem, uma ladainha religiosa!...

E pausada, afinada, bem puxada em suma!

Seria um sonho?... Estaria eu errado na tocada das onças, e, em vez de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança de algum convento, de alguma capela, de alguma romaria?...

E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando:

- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo Atanásio!
- Ora pro nobis!
- S. Romualdo!
- Ora pro nobis!

Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada!

Nisto, a ladainha pousou nas arvores, por cima de mim. Pousou, sim, e o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!

A paciência do bicho!... Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria toda!... Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real, e perguntei para
cima:

- Lorota? Dá cá o pé!...

Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com a antiga resposta que ele sempre dava:

- Romualdo é bonito! Bonito!...

E como para obsequiar-me fez um - crr! - como aviso de comando e recomeçou a ladainha:

- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo...

Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... o Lorota e seu bando bateu asas... e eu olhei em frente: a sete passos de distância estava agachada, de boca aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça ruiva; uma onça de braça e meia de comprido!...

E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante.

- Or... a pro no... bis!
- S... Ro... mual... do!
- Ora... pro... nobis!...

Fonte:
Os 100 melhores contos de humor da literatura universal / Flávio Moreira do Costa (org.). Rio de Janeiro: Ediouro, 2001
.

Florbela Espanca (Livro de Poemas)


FOLHAS DE ROSA

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

NAVIOS-FANTASMAS

O arabesco fantástico do fumo
Do meu cigarro traça o que disseste,
A azul, no ar, e o que me escreveste,
E tudo o que sonhastes e eu presumo.

Para a minha alma estática e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como o navio que perdestes,
No arabesco fantástico do fumo...

Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,
Têm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se a distância!

Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,
Noiva-menina, a doidas caravelas,
Ao ignoto País da minha infância...

SUAVIDADE

Pousa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.

Hás-de contar-me nessa voz tão qu’rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a Vida.

E hás-de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão-de fazer-se leves e suaves...

Hão-de pousar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente,
Sobre o teu rosto, como penas de aves...

TOLEDO

Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é nosso!
O sol a rir... Vivalma... Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer...

As tuas mãos tacteiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!

Cerro um pouco o olhar, onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo
- Um grande amor é sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...

NIHIL NOVUM

Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado...

Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,

Triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida ? o mesmo estranho mal,
E o coração ? a mesma chaga aberta!

SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

LOUCURA

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada! ...

Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada! ...

Pesadelos de insónia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!

À MORTE

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos! ...

A TUA VOZ NA PRIMAVERA

Manto de seda azul, o céu reflecte
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios húmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

Fonte:
ESPANCA, Florbela. Poemas Selecionados. Disponível no Portal Domínio Público.

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 16. O Cônego ou Metafísica do Estilo)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Conto metalingüístico que em alguns aspectos antecipa as sondagens introspectivas e intimistas da prosa modernista.

É a história de um cônego que se dedicava à escritura de um sermão. Tem sua tarefa interrompida porque não conseguia achar um adjetivo que se ligasse adequadamente ao substantivo que havia colocado em seu texto. Esforçava-se, mas a palavra não vem.

Enquanto o protagonista espairece, para descansar a mente e buscar inspiração, o narrador mergulha no cérebro da personagem, defendendo a idéia de que as palavras têm sexo. Assim, o substantivo, masculino, que é nomeado como Sílvio, está procurando um adjetivo, feminino, designado Sílvia. É interessante nesse ponto como todo o universo de elementos que povoam nossa mente – sonhos, impressões, sensações, lembranças – é bem metaforizado ao ser apresentado como os obstáculos que o casal tem de suplantar até que finalmente consiga efetuar o seu encontro. Concretizada a união, o estalo mental surge para o cônego. Finalmente conseguia dar prosseguimento a redação de seu sermão, terminando-o.
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Machado de Assis (O Cônego ou Metafísica do Estilo)

Brasão de cônego
— "VEM DO LÍBANO, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..."

— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..."

Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.

Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.

Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou.

— Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros.

Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão.

Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.

Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...

— Sexual?

Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.

— Mas, então, amam-se umas às outras?

Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.

— Confesso que não.

Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro.

Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.

Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de cousas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir.

De quando em quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ao eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado.

Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.

Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também.

Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.

— Vem do Líbano, esposa minha...
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...

Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo.

Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.

Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se.

Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte".

Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = Dominus Vobiscum

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.127)


Uma Trova Nacional

Revivendo o meu passado,
me torturo de tal jeito,
que chego a crer que é pecado
guardar saudades no peito !
(MARIA NASCIMENTO/RJ)

Uma Trova Potiguar

Só para mim mesmo minto,
disfarçando uma verdade.
Toda saudade que sinto,
eu finjo não ser saudade...
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > N.Friburgo/RJ
Tema > SAUDADE > 4ºLugar.

Saudade é um velho barquinho
que vence o tempo e a distância
e recolhe, no caminho,
os pedacinhos da infância...
(ERCY MARIA M. DE FARIA/SP)

Simplesmente Poesia

MOTE.
Mandei a saudade embora;
ela se foi mas voltou.

GLOSA:
Tenho que agir agora,
vou resolver a questão,
pra poupar meu coração
mandei a saudade embora;
agi logo sem demora
pois ela a paz me roubou,
quase até que me matou
e criou ódio de mim,
querendo ver o meu fim,
ela se foi mas voltou.
(MAJÓ/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
– E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo!
(ADELMAR TAVARES/PE)

Uma Trova de Ademar

Pela insensatez da idade
e pelo que o amor requer,
choro, às vezes, de saudade
fingindo uma dor qualquer!
(ADEMAR MACEDO/RN)

Estrofe do Dia

Eu no tempo que podia
farreava todo ano,
por vaidade ou engano
fiz tudo quanto queria,
fazer hoje o que eu fazia
não faço nem a metade,
de fazer tenho vontade
porém não posso fazer;
me faço forte sem ser
pra suportar a saudade.
(LUIZ AMORIM/CE)

Soneto do Dia

– Diniz Vitorino/PB –
SAUDADE MORTA.

Um sepulcro em minh’alma ficou feito!
Quando ela lacônica se ausentou.
Exclamei: ninguém tem amor perfeito!
Vou matar a saudade que restou.

Matei sim. Sepultei-a no meu peito,
ela, inerte, jamais ressuscitou.
Hoje a quero de novo, não tem jeito,
implorei que voltasse, não voltou.

O mais triste é que em alta madrugada,
vejo em sonho o perfil da minha amada,
me acusar pelo mal que pratiquei.

Eu desperto num mar de ansiedades,
delirando, morrendo de saudades,
da primeira saudade que matei.

Fonte:
Ademar Macedo

Folclore Brasileiro (O Bicho Manjaléu)


(Versão de Sergipe, coletada por Sílvio Romero)

Uma vez existia um velho casado, que tinha três filhas muito bonitas; o velho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para vender. Quando foi um dia, chegou à sua porta um moço muito formoso, montado num belo cavalo e lhe falou para comprar uma de suas filhas.

O velho ficou muito magoado e disse que, por ser pobre, não havia de vender sua filha. O moço disse-lhe que, se não lha vendesse, o mataria; o velho intimidado vendeu-lhe a moça e recebeu muito dinheiro. Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não quis mais
trabalhar nas gamelas, por julgar que não o precisava mais de então em diante; mas a mulher instou com ele para que não largasse o seu trabalho de costume, e ele obedeceu.

Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se um outro moço, ainda mais bonito, montado num cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho que queria comprar uma de suas filhas. O pai ficou incomodado; contou-lhe o que tinha sucedido no dia antecedente, e recusou-se ao negócio. O moço o ameaçou também de morte, e o velho cedeu.Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu mais e foi-se embora.

O velho de novo não quis continuar a fazer as gamelas e a mulher o aconselhou, até ele continuar. Pela tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda mais bonito, e melhor montado, e, pela mesma forma, carregou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais dinheiro.

A família cá ficou muito rica; depois apareceu a velha pejada e deu à luz a um filho, que foi criado com muito luxo e mimo. Quando chegou o tempo de o menino ir para a escola,
um dia brigou com um companheiro, e este lhe disse:

— Ah! Tu cuidas que teu pai foi sempre rico!… Ele hoje está assim, porque vendeu tuas irmãs!…

O rapazinho ficou muito pensativo e não disse nada em casa; mas quando foi moço, lá num dia se armou de um alfanje e foi ao pai e à mãe e lhes disse que lhe contassem a história de suas três irmãs, senão os matava. O pai lhe teve mão, e contou o que se tinha passado antes de ele nascer. O moço então pediu que queria sair pelo mundo para encontrar suas irmãs, e partiu. Chegando em um caminho, viu numa casa três irmãos brigando por causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele chegou e perguntou o que era aquilo, e para que prestavam aquelas coisas.

Os três irmãos responderam que àquela bota se dizia “Bota, me bota em tal parte!” e a bota botava; à carapuça se dizia: “Esconde-me, carapuça!” e ela escondia a pessoa que
ninguém a via; e a chave abria qualquer porta. O moço ofereceu bastante dinheiro pelos objetos, os irmãos aceitaram, e ele partiu. Quando se encobriu da casa, disse: “Bota, me bota na casa de minha irmã primeira”.

Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era um palácio ornado e rico, e o moço mandou pedir licença para entrar e falar com a irmã que estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de muita instância, deixou o estrangeiro entrar; ele contou toda a sua história, a irmã acreditou e o tratou muito bem.

Perguntou-lhe como poderia ter chegado ali àquelas brenhas, e o irmão disse-lhe ter o poder da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o irmão lhe indagou a razão, ao que ela respondeu que seu marido era o rei dos peixes e, quando vinha jantar, era muito zangado, em termos de acabar com tudo, e não queria que ninguém fosse ter ao seu palácio…

O moço disse-lhe que por isso não se incomodasse, que tinha com que se esconder e não ser visto, e era com a carapuça. Pela tarde veio o rei dos peixes, acompanhado de uma porção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se retiraram. Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” do que a rainha o dissuadia; até que ele tomou banho e se desencantou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:
— Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia?
— Tratava e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça.

Foi a resposta do rei. O moço apareceu e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restavam duas irmãs a visitar.

O rei lhe indagou que préstimo tinha aquela bota, e quando soube do que valia, disse:
— Se eu a apanhasse, ia ver a rainha de Castela.

O moço, não querendo ficar, despediu-se e, no ato da saída, o cunhado lhe deu uma escama, e disse-lhe:
— Quando você estiver em algum perigo, pegue nesta escama, e diga: “Valha-me o rei dos peixes’”.

O moço saiu e quando se encobriu do palácio, disse: “Bota, me bota em casa de minha irmã segunda”; e, quando abriu os olhos, lá estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que o outro. Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou e foi recebido muito bem. Depois de muita conversa, a sua irmã do meio pôs-se a chorar, dizendo que era “por ele estar aí, e, sendo seu marido o rei dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas marradas, em termos de matar tudo”. O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se esconder. Com poucas, chegou uma porção de carneiros com um carneirão muito alvo e belo na frente; este entrou e os outros voltaram.

Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” do que a rainha o dissuadia; até que ele tomou banho e se desencantou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:
— Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia?
— Tratava e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça.

Foi a resposta do rei. O moço apareceu e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restava uma irmã a visitar. Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado uma lãzinha, dizendo:
— Quando estiver em perigo, diga: “Valha-me o rei dos carneiros”.

Também disse, depois de saber a virtude da bota:
— Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha de Castela.

O moço foi reparando nisto e formou-se logo consigo o plano de ir vê-la. Saiu, e pela mesma forma foi à casa de sua irmã mais moça. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que os outros dois. O que lá sucedeu foi o mesmo do que nos palácios das suas irmãs mais velhas. Era o palácio do rei dos pombos, e este, na despedida, deu ao cunhado uma pena, com as palavras:
— Quando se vir nalgum perigo, diga: “Valha-me o rei dos pombos”.

Na despedida, sabendo o rei do préstimo da bota, mostrou também desejos de ir visitar a rainha de Castela. Logo que o moço se viu longe do palácio, disse: “Bota, bota-me agora na terra da rainha de Castela”. Assim foi.

Chegado lá, ele indagou e soube que “era uma princesa que o pai queria casar, e que era tão bonita que ninguém passava pela frente do palácio que não olhasse logo para cima para vê-la na janela; mas a princesa tinha dito ao rei que só casava com o homem que passasse sem levantar a vista.”

O estrangeiro foi passar, atravessou toda a distância sem olhar, e a princesa casou com ele.

Depois de casados, ela indagou pela significação daqueles objetos que seu marido sempre trazia consigo; ele tudo lhe contou, e a princesa prestou muita atenção ao prestígio da chave.

O rei, seu pai, tinha em palácio um quarto que nunca se abria, e neste quarto, onde era proibido a todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado um bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o rei mandava matar e sempre revivia. A moça tinha muita curiosidade de o ver e, aproveitando a saída do pai e do marido para uma caçada, pegou a chave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou de dentro, dizendo: “A ti mesmo é que eu queria!…” e fugiu com ela para as brenhas.

Quando voltaram, os caçadores deram por falta da princesa, e ficaram muito aflitos. O rei foi ao quarto do Manjaléu, e achou-o aberto e vazio, e o novo príncipe conheceu a sua chave… Ao depois valeu-se de sua bota e foi ter aonde estava sua mulher. Esta, quando o viu, estando ausente o Manjaléu, ficou muito alegre, e quis ir-se embora com ele. Mas o marido não o consentiu, dizendo que ela ficasse para indagar ao monstro onde estava a sua vida, para assim dar cabo dele.

O príncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou, conheceu que ali tinha estado bicho homem; a moça o dissuadiu, e quando ele se acalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida. O monstro zangou-se muito, e disse:
— Ah! Tu queres saber de minha vida mais o teu marido, para darem cabo de mim!… Não te digo, não…

Passaram-se dias, sempre a moça instando. Afinal, ele foi amolar um alfanje, dizendo:
— Eu te digo onde está minha vida; mas se eu sentir qualquer incômodo, conheço que ela vai em perigo e, antes que me matem, mato a ti primeiro, queres?!

A princesa respondeu que sim. O Manjaléu amolou o alfanje, e disse-lhe:
— Minha vida está no mar; dentro dele há um caixão, dentro do caixão uma pedra, dentro da pedra uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar, eu morro.

O bicho saiu e foi procurar frutas; chegou o príncipe, soube de tudo e foi-se embora. O Manjaléu veio e deitou-se no colo da moça com o alfanje ali perto. O príncipe chegou com sua bota à praia do mar num instante; lá pegou na escama que tinha, e disse: “Valha-me o rei dos peixes!” de repente uma multidão de peixes apareceu, indagando o que ele queria.

O príncipe perguntou por um caixão que havia no fundo do mar; os peixes disseram que nunca o tinham visto, e só se o peixe do rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe do rabo cotó, e este respondeu:
— Neste instante dei uma encontroada nele.

Todos os peixes foram e botaram o caixão para fora. O príncipe o abriu e deu com a pedra; aí pegou na lãzinha e disse: “Valha-me o rei dos carneiros!” De repente apareceram muitos carneiros e entraram a dar marradas na pedra.

O Manjaléu lá começou a sentir-se doente, e dizia:
— Minha vida, princesa, corre perigo!

E pegou no alfanje; a moça o foi dissuadindo e engambelando. Os carneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. O príncipe pegou na pena e disse: “Valha-me o rei dos pombos!” Chegaram muitos pombos e correram atrás da pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a e achou o ovo.

Quando estava nisto, lá o Manjaléu estava muito desfalecido, pegou no alfanje e ia dando um golpe na princesa. Foi quando cá o príncipe quebrou o ovo, e apagou a vela; aí
o bicho caiu sem ferir a moça. O príncipe foi ter com ela, e levou-a para o palácio, onde houve muitas festas.

Fontes:
Ana Rosa Abreu et al. Alfabetização : livro do aluno / Brasília : FUNDESCOLA/SEFMEC, 2000.
Imagem = Blog de Márcia Brito

André Carneiro em Xeque


entrevista realizada por Arthur Dantas

Quase todo mundo já ouviu falar do Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago ou pelo menos da adaptação light de Fernando Meirelles. Dá pra falar a mesma coisa do livro I Am a Legend, de Richard Matheson, adaptado em três ocasiões diferentes por Hollywood, sendo que a última, Eu Sou a Lenda, foi um desses blockbusters de verão estrelado por Will Smith e pela gostosa da Alice Braga. Agora, duvido que a maioria dessas pessoas conheça e/ou estabeleça a relação entre as obras acima e a do escritor André Carneiro, 87 anos, o maior escritor brasileiro de ficção científica e poeta renomado.

O pioneirismo e espírito curioso e vivaz de Carneiro se manifestaram publicamente na criação do jornal literário Tentativa — que ganhou recente edição fac-símile. Feito em sua cidade natal, Atibaia, no interior de São Paulo a partir de 1949, reuniu autores como José Lins do Rego, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Vinícius de Moraes e Hilda Hilst (publicada lá pela primeira vez), para citarmos apenas alguns medalhões.

Apresentou ainda grandes artistas como Goeldi e Aldemir Martins. Seu amigo pessoal, o dândi libertário do modernismo Oswald de Andrade, assinou o editorial do primeiro número e ressaltou o espírito plural da empreitada. Em tudo, Tentativa era inovador e destoava do emaranhado de publicações literárias do período, que se agarravam a posições mais ou menos cristalizadas: luxo de jovens curiosos e empreendedores que podiam manter certa distância das estéreis pelejas intelectuais tão típicas dos meios ilustrados desde sempre.

Incentivado como poeta da terceira geração modernista por figuras notáveis como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, Carneiro também é ensaísta, fotógrafo, pintor, cineasta e escultor—tudo isso antes do termo multimídia virar muleta pra nego abastado e sem talento.

Ângulo e Face, sua estreia como poeta, foi editado por Cassiano Ricardo em 1949 e o colocou no rol dos grandes poetas do momento (o crítico francês Bertrand Lorraine afirmou que “Carneiro é um dos maiores poetas vivos do Brasil”).

Fez roteiros para filmes de Roberto Santos e Walter Hugo Cury. Seu conto O Mudo foi transformado no filme Alguém, de Júlio Xavier da Silveira. Sua fotografia Trilhos, de 1951, é considerada um dos marcos do modernismo fotográfico no Brasil e está presente no recém-lançado Fotografias Achadas, Perdidas e Construídas.

Suas obras de ficção científica foram publicadas nos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Espanha, Argentina, Chile, Suécia, Bulgária, na antiga União Soviética e no Japão. Participou, ao lado de outro grande nome esquecido da sci-fi nacional, Jerônymo Monteiro, em histórico simpósio do gênero, organizado pelo tradutor José Sanz no Rio de Janeiro em 1969, com convidados como Robert Heinlein, J.G. Ballard, Arthur C. Clarke e Phillip José Farmer, entre outros. E, desse contato com mestres estrangeiros, passou a angariar elogios de Arthur C. Clark e do notável A. E. Van Vogt, que afirmou que Carneiro merecia a mesma audiência de um Franz Kafka ou Albert Camus. Apesar de todo peso de seu histórico literário e reconhecimento internacional.

Carneiro nunca pleiteou vaga na Academia Brasileira de Letras, como explicou em um site na net: “Tem-se de visitar todos os acadêmicos e pedir um voto a eles. Eu não seria capaz, acho provinciano.” Mais um motivo para quem não suporta o beija-mão usual para admirá-lo. É simples explicar seu ostracismo como ficcionista. Primeiro que sci-fi sofreu lapsos de continuidade no Brasil e acabou ficando restrita a círculos nerds conhecidos como fandom, e convenhamos, jogadores de RPGs, de jogos on-line e trekkies não despertam muito respeito por aí, e sua imaginação cheia de lirismo fértil e transgressora é muita treta pra Vinícius de Morais, por assim dizer.

Se é possível notar influências de Aldous Huxley e Ray Bradbury em sua obra, é em certo parentesco com Henry Miller, quando decide colocar as relações sociais mediadas sobretudo pelo sexo em evidência, que sua obra ganha vulto e complexidade. “Intimidade não se revela na pele, mora no labirinto”, verso de seu recém-lançado livro de poesia Quânticos da Incerteza, dá a medida exata de como encara o sexo—mantendo a chama de estudiosos pós-freudianos, como Erich Fromm e Willhelm Reich, acesa.

Sua obra Piscina Livre é seu primeiro experimento mais consistente nesse sentido, que ganhou ar de temática definitiva em seu maior romance, Amorquia, de 1991. Neste livro, em futuro distante, o amor exclusivo é visto como doença, a maternidade é um detalhe irrelevante, o sexo é ensinado e praticado nas escolas. Além disso, a noção de tempo foi abolida, já que a morte não existe mais. O molho da trama azeda quando começam a morrer pessoas repentinamente. Paradigmas são postos à prova, um novo sentido de comunidade é necessário e o medo reaparece no vocabulário corrente. Em certo sentido, o enredo complementa e arromba a já terrível visão de Lars Von Trier sobre a guerra de sexos exposta em O Anticristo.

Sua obra inspirada e furiosamente selvagem guarda para si a vanguarda e o verdadeiro sentido de uma literatura de ideias vigorosas e perigosas.

Acabei de ler o fac-símile do Tentativa, e fiquei muito curioso. Vocês estavam na “periferia dos acontecimentos da rota do mundo”, como diria Oswald de Andrade. O texto de abertura é do Oswald, e vocês conseguiram vários colaboradores conhecidos.

O meu jornal foi considerado o melhor do Brasil naquela época.

Sim. Eu sei que vocês movimentaram muito, fizeram a primeira exposição de arte moderna em Atibaia. O que vocês estavam acompa-nhando naquele momento que motivou o grupo que era você, sua irmã, o César...

Olha, na verdade era eu porque o outro rapaz e minha irmã tinham dez anos menos que eu—eu tinha 26. O mais velho, responsável lá, era eu mesmo.

Queria saber da sua história. Sua família é tradicional de Atibaia?

Ah, sim, claro! Meu pai tinha uma loja lá de material de construção que eu herdei e toquei pra frente durante algum tempo. Depois eu vendi e me mudei para São Paulo.

Você teve uma educação clássica, literata?

Eu não tive influência nenhuma. Me apaixonei pela literatura e pela cultura de modo geral sem influência de ninguém. Eu admirava as pessoas que saíam no jornal, as pessoas e artistas, tanto que eu fiz várias formas de artes. Fiz pintura, fotografia... É interessante que fiz fotografia durante 50 anos sem muita difusão. Agora me consideraram um pioneiro do modernismo brasileiro. Acabei de fazer uma exposição de pintura na Galeria Dan em São Paulo.

E qual era a sua relação com a primeira geração dos modernistas?

Eu frequentava mais o Sérgio Milliet, o Aurélio Buarque de Holanda—que vinha às vezes do Rio—e o Oswald de Andrade que era meu amigo. Ele me visitava em Atibaia. Era um grupo pequeno de intelectuais. Aliás, sempre foi pequeno. Mas eram pessoas de alto nível cultural. O Sérgio era um continuador do Mário de Andrade excelente, ele dirigiu a Biblioteca Municipal com grandes eventos culturais que nem existem mais. Eu fiz conferências na Biblioteca Municipal com 300 pessoas, hoje em dia não existe mais isso.

Você estava envolvido nesse caldeirão. O que te levou a escrever ficção científica?

Eu lia literatura contemporânea. Sei lá, Huxley. Talvez seja o próprio desenvolvimento da tecnologia que nos leve a esse ponto, porque, se a gente for pensar no que usamos de tecnologia hoje em dia, estamos mergulhados na ficção científica. Há poucos dias um amigo meu, que também é escritor e faz parte de uma oficina que eu tenho aqui em Curitiba, tira um telefone do bolso e faz uma entrevista comigo. E você vê, o telefone hoje em dia é uma câmera. Ele faz a entrevista com ele e depois transmite as imagens perfeitas e nítidas pro jornalista no Rio, que tinha pedido a entrevista. E olha, isso é uma coisa que até a ficção científica esqueceu de inventar.

Como foi a recepção dos seus contemporâneos como, por exemplo, o Oswald ou o próprio Otto Maria Carpeaux, quando você decidiu fazer ficção científica?

Quando comecei a fazer ficção científica, esse pessoal mais acadêmico nem percebeu. Não sabiam o que era aquilo. Depois, quando eles tomaram conhecimento do preconceito etc., me sabotaram. Isso eu não tenho a menor dúvida. Falavam que eu tinha me prostituído. Faziam isso de maneira muito sutil, porque, quando eu faço poesia, minha poesia não tem nada de ficção científica. Quer dizer, não é que não tem nada, mas tem pouca coisa. Então a minha poesia é absorvida por todos de maneira pacífica. Mas contos e etc., aqueles que são de ficção científica, não são nem lidos pelos acadêmicos.

Você acha que sua obra é melhor compreendida fora do que aqui?

Ah, disso eu não tenho a menor dúvida. Eu sou o escritor brasileiro de ficção científica mais conhecido no exterior. Mas, vamos falar a verdade, não chego aos pés do Paulo Coelho.

Isso te incomoda de alguma maneira?

Não, não me incomoda. Fico muito satisfeito. Não quero deixar de ser erudito, não. Quero ser mais erudito ainda. Não sou mais porque não consigo, mas quero ser cada vez mais profundo. Para mim, cada conto é um trabalho de tremenda paixão literária. Não faço concessão nenhuma. Essa é a grande vantagem. Como a gente não ganha dinheiro nenhum no Brasil com literatura, então pelo menos quero ganhar qualidade, pelo menos ficar marcado.

A que você acha que se deve essa dificuldade, tanto de público quanto dos intelectuais e dos formadores de opinião no Brasil em relação à ficção científica?

Acho que é um tipo de burrice brasileira, um tipo de recurso assim, barato e eficiente, de afastar concorrentes dentro da literatura. Porque se eles percebem que dentro da ficção científica estão aparecendo pessoas boas, dizem: “Não, ficção científica. Nem leia, nem leia”. E então só sobra o espaço pra eles. E como os editores brasileiros, de modo geral, são bastante atrasados, eles não percebem nada disso. Aceitam que não é pra publicar ficção científica, porque é uma coisa maldita.

Você acha que aquela ideia do Nelson Rodrigues de “complexo de vira-lata” do Brasil...

É uma das observações mais inteligentes que já se fez do Brasil.

Você acha que essa história de que o Brasil está se inserindo no mundo, virando uma grande potência, também reflete nessa abertura maior que está acontecendo, inclusive, para a ficção científica? Você acha que vamos abandonar o “complexo de vira-lata” e virar gente grande?

Eu considero um grande aperfeiçoamento. O fato de enxergarem o cachorro vira-lata já é uma grande coisa. Se vai funcionar ou não, eu não sei, mas antes ninguém enxergava nada. Agora estão até defendendo pontos de vista diferentes, de que tem gente fazendo uma literatura mais profunda, mais interessada numa evolução de temática e de qualidade na ficção científica do que no mainstream, do que na literatura geral.

Sim, eu acompanhava algumas listas de discussão de ficção científica no Brasil—que em geral são muito conservadoras, de um jeito muito, eu diria, antiquado e anglo-saxão de pensar a questão da ficção científica—e lembro que causou polêmica. Era meio que um assunto tabu, eu imagino. Mas o que eu acho importante é, seguindo esse raciocínio, que a ficção científica seria hoje o gênero por excelência de divulgação de ideias da literatura.

Eu acho que sim, porque é impossível a gente manobrar uma ideia hoje em dia sem que a gente não coloque um futuro explodindo aí na frente, porque o futuro antigamente era uma coisa bastante distante, mas hoje em dia a gente dança com o futuro todos os dias. A gente tá casado com o futuro.

Eu estava comentando com um amigo meu que o conto A Espingarda tem o mesmo enredo que um filme protagonizado recentemente pelo Will Smith. Tem passagens inteiras que são exatamente iguais. Só que no filme americano, o desfecho, ao contrário do seu que é niilista, tem um final feliz.

O Saramago fez a minha A Escuridão. Muita gente acredita que ele se inspirou no meu conto. Meu conto foi publicado em 12 línguas. Eu escrevi dez anos antes dele [na verdade o livro de Saramago é de 1995 e o conto de Carneiro, incluído no livro Diário da Nave Perdida, é de 1963]. O meu conto saiu na Espanha, saiu em inglês, em francês, saiu em todas as línguas. Ele deve ter lido.

E você teve a oportunidade de ler o livro do Saramago ou de ver o filme?

Eu não assisti, sabe? Pra não ficar com raiva. Parece que a interpretação que ele fez do comportamento dos cegos é negativa. Os cegos ficaram mal. No meu conto não. Os cegos é que salvam aqueles outros. É uma atitude muito mais humana, muito mais razoável.

Como foi sua experiência com cinema?

Eu fiz cinema com o Abílio Pereira de Almeida, que era importante na Vera Cruz, e depois se suicidou não se sabe bem por quê. Ele fez algumas peças de teatro muito boas. Os filmes que ele fez são mais ou menos ruins. Ele fez alguns filmes com o Mazzaropi. Na verdade não trabalhei com ninguém que valesse a pena, que me ajudasse a ir pra frente, sabe? O cinema brasileiro é muito duro, o sujeito primeiro tem que arrumar dinheiro e depois fazer o filme. Eu primeiro faço o filme. Primeiro imagino a história. Não penso em dinheiro, não tenho capacidade de arranjar dinheiro. Sou um pobre, assim, bem situado.

E como você entrou para a fotografia?

Ah, o cinema e a fotografia para mim estavam misturados. Eu fazia filme com aquelas maquininhas pequenas, com 8, 9.5, 16 mm. Era uma loucura.

Você se define como poeta, escritor, fotógrafo, artista plástico...

Olha, sempre me perguntam isso. Sou aquilo que faço no momento. Faço escultura e também faço pintura. E quando estou fazendo qualquer arte eu sou aquilo que estou fazendo no momento. Depois, quando estou fazendo a outra, eu mudo. É uma questão de paixão total, ampliada em todos os sentidos. Escrevo todo dia. É que eu estou com uma namorada nos EUA que me escreve todos os dias, então todo dia eu respondo pra ela.

Você disse numa entrevista que usa a internet desde sempre.

Ah, sim, uso a internet desde o [computador] 256.

E você faz pesquisa em internet para poder escrever?

Olha, muito pouca. Às vezes vou lá no Google pra esclarecer qualquer coisa, mas pesquisa assim de ficar dançando lá dentro não, porque o salão é muito grande e a gente perde muito tempo. Prefiro eu mesmo criar alguma coisa que os outros pesquisem.

Como você foi se interessar por hipnose?

Ah, isso é uma história muito comprida. Me interessei por hipnose e fiz experiências com duas ou três pessoas. Hipnotizei e aí virei até uma espécie de médico. Cheguei a ter consultório. Fiz psicologia e tratamento de neurose com hipnose. Até cheguei a inventar um método, mas não podia fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Fiz uma experiência científica de hipnose junto com um grande médico brasileiro, porque precisava ter um médico no meio. Sou um grande entendido de hipnose, mas fica só nisso.

Mas ainda pratica hoje em dia?

De vez em quando sim, em casos excepcionais. Mas não estou mais atendendo clientes.

Você mora em Curitiba há quanto tempo?

Faz pouco. Tive um problema de visão, então enxergo pouco. Enxergo 10%. Vou lá no computador, aumento as letras etc. Moro aqui porque tenho dois filhos. Um deles é professor da USP e o outro é músico, toca clarineta e é professor também aqui da Orquestra Sinfônica. Então vim pra cá pela companhia agradável. E é uma cidade interessante, apesar de o povo não ser interessante; o povo é muito frio.

E quais são seus próximos projetos?

Olha, tenho dez contos inéditos que eu tenho vontade de publicar. São contos muito bons. À medida que vou escrevendo, escrevo cada vez melhor. É muita prática, e é uma prática de um sujeito que está interessado em qualidade. E a qualidade puxa todo o resto.

Fonte:
Excerto da entrevista de
http://www.viceland.com/br/v2n1/htdocs/andre-carneiro-257.php?page=2

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Edmar Japiassú Maia (Caderno de Trovas)


Desvio o olhar quando passa,
num receio, que alimento,
de que a volúpia devassa
devasse o meu pensamento.

Arranchei duas esteiras
na varanda, à luz de velas,
mas receio que não queiras
tomar posse de uma delas...

Pelo amor que a mim ressoa,
migro ao topo das venturas...
e um pássaro, quando voa,
já não receia as alturas!

Atento às mentiras rotas
e ao “farto” amor que proclamas,
receio falsas as gotas
das lágrimas que derramas...

Não receio a tempestade,
se é por você que me arrisco:
para alguém que tem saudade,
a tempestade é um chuvisco!

Nem morto!”... grita o coveiro
reconhecendo o finado.
“Só enterro esse caloteiro
se me pagar adiantado!”

Caloteiro conhecido
fez a promessa... E, no entanto,
depois de ser atendido
deu um calote... no santo!

Ao agiota em apuros,
o caloteiro afirmava
que fez o empréstimo a juros...
mas não jurou que pagava!

CORAÇÃO – no árduo destino
de penas de amor que oferto,
és o falcão peregrino
na solidão de um deserto!

O ciúme nos desvenda
um deserto imenso e atroz...
Mas no deserto há uma tenda
que o amor ergueu para nós!

Nosso quarto, onde acoberto
momentos de amor frustrados,
para mim hoje é um deserto
de poucos metros quadrados...

Por um amor clandestino,
preso a mágoas indefesas,
asilei o meu destino
num deserto de incertezas!

Aos sentimentos alheia,
recusas tudo o que oferto:
teu amor é um grão de areia...
mas faz falta em meu deserto!

Na aldeia, as índias se arriscam
pescando no igarapé...
Se os peixes pouco beliscam,
quem mais belisca é o pajé!

O ex-pescador tem idéias
de guiar carretas cheias,
para ganhar nas boléias
o que perdeu nas baleias!

Porque neles pode expor
sua emoção mais secreta,
são sempre em versos de amor
as súplicas de um poeta...

Ergui à estrela mais bela
minha súplica veemente...
Foi em vão... pois justo aquela
era uma estrela cadente!

Ante uma dor mais acesa,
quando o amor não se dispersa,
suplico trégua à tristeza
que insiste em puxar conversa...

Um réu na luta constante
por carinhos que cobiça,
sou aquele suplicante
que espera amor... por justiça!

AMOR – que loucura estranha!
- Chicoteia com rigor,
e a gente suplica... apanha...
mas não desiste da dor.

Faminta e, pelo seu porte,
mal cabendo no maiô,
pediu: “me indique um esporte...”
E o terapeuta: - SUMÔ!

Obeso e não tendo escolhas,
vive no SPA um calvário:
faminto, ele come folhas
e o SPA... seu saldo bancário!

Faminto o velho é de fato;
porém, no amor, a mulher
pra ele é sopa no prato:
- Como faz falta a colher!

Comeu cuscuz, pão dormido,
torresmo, farofa e angu...
Só não comeu o cozido
porque ainda estava cru!

Faminto, gritou na festa:
- Eu quero comer bobó!
E o surdo vovô protesta:
- rapaz... respeite a vovó!

Meus avós são um casal
que, à noite, o amor sempre uniu...
Quando um só geme, é sinal
de que o outro... já dormiu!

Porque é demais concorrido
e a gemeção é geral,
o forró tem o apelido
de “Emergência de Hospital”!

Vive a “coroa” adoentada,
com o esposo desnutrido:
de dia... tome gemada;
de noite... tome gemido!

Em casa ela não tem paz,
se as filhas vêm namorar.
E a um gemido dos sofás,
ela “só faz” reclamar!

Porque a um gemido que dê
a babá corre e vai lá,
à noite é o pai do bebê
quem geme pela babá!

Entre os múltiplos pecados
que a noite me vem propor,
os sonhos mais desvairados
são sempre os sonhos de amor!

O ciúme incontrolado
que me toma, pouco a pouco,
vai tornando desvairado
nosso amor... já meio louco!

Ao perceber que ela finge
meus desejos reprimir,
o desvario me atinge...
e eu não consigo fingir!

Meu amor que é mais intenso
quando assume os desafios,
abre mão do teu bom senso,
em favor dos desvarios...

Nas asas do desvario,
tentando um sonho alcançar,
eu despenquei no vazio,
mas... aprendi a voar!

Pergunta a mestra ao menino,
aluno meio confuso:
- a porca... tem masculino?
- tem, fessora... o parafuso!

- Comadre!... a velha gemia,
confusa e passando mal.
Veio a outra!... Ela queria
a "comadre"do hospital !

Na baiana refeição
da festa do padroeiro,
o excesso de confusão
foi por falta de banheiro!

Ao ver o exame agendado,
fez confusão no hospital...
Seu "pré-natal" foi marcado
para depois do Natal !

Desnorteado e confuso,
diz o luso, na excursão:
- O meu horário é sem fuso;
com fuso... é mais confusão !

Da paixão em nós presente
fulge um desejo tão farto,
que a lua, em quarto crescente
parece cheia em meu quarto...

Noite fria... e, em minha rua,
tantos sonhos idealizo,
que vou pisando na lua
em cada poça que piso!

O bom senso preceitua
não se entregar... mas, cativo,
vivo no mundo da lua,
e por amor é que eu vivo!

Brigas de amor são um risco
que não se pode evitar.
São como um breve chuvisco
numa réstia de luar!

Talvez porque a noite esconda
sombras de amor... é que a lua
põe mais luz em sua ronda,
quando ronda a minha rua!