terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Adolfo Caminha (Análise da Obra “Bom-Crioulo”)


O romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, faz parte do Realismo e do Naturalismo. A história de paixão e tragédia não é produto de fantasia romântica, mas baseada num fato real que escandalizou o Rio de Janeiro no século XIX.

Caminha constrói a partir de um fato verídico, uma ficção forte, ousada, muito atual até os dias de hoje. Fez isso para chocar e se vingar da sociedade hipócrita que o rodeava.

Bom-Crioulo, publicado em 1895, é dividido em 12 capítulos, onde a ação se passa na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro. Destacam-se o espaço aberto, normalmente dias claros e quentes, o mar aberto, e o espaço fechado do quartinho de Amaro.

Boa parte da força e da eficácia de Bom-Crioulo está no manejo lúcido que o autor faz desses conflitos, escolhendo o quê, quando e como contar deste verdadeiro enredo de notícia de jornal sensacionalista. A narrativa é simples e direta, mas tem as suas manhas: não entrega o jogo facilmente, cria suspenses, vai e volta no tempo, de modo a dar a cada momento, a cada situação, a sua atualidade e a sua história, o seu desenvolvimento próprio. Assim, o enredo central se desdobra em alusões a muitas outras histórias; e o dia-a-dia do século XIX brasileiro se insinua a cada passo, fazendo ecoar as falas e as ações das personagens centrais.

A intenção do romance resume-se em acompanhar as personagens em seu movimento, como se fosse o expectador que registra a evolução do drama alheio sem interferir. Nele tudo caminha numa ordem inalterável até o epílogo, com uma supervalorização do instinto sobre os sentimentos, do animal sobre o racional.

FOCO NARRATIVO

Narrado em 3ª pessoa, por narrador onisciente, percebe-se que as inúmeras descrições que aparecem no romance, condizentes com a estética naturalista que privilegia a observação meticulosa dos fatos, buscam não se confundir com a história, nem com as personagens.

Preso aos ideais do escritor naturalista — exatidão na descrição, apelo à minúcia e culto ao fato — o narrador conta a história de modo linear, gradativo, utilizando-se de uma linguagem clara, direta, objetiva, com poucos objetivos. O que será importante são os fatos narrados e não a opinião que se pode ter sobre eles. Não há, portanto, da parte desse narrador, qualquer julgamento moral das personagens.

A história quase se narra por si, pela exposição direta dos fatos, que vão montando a estrutura narrativa, ou seja, a história das três personagens envolvidas num caso de amor: Amaro, Carolina e Aleixo.

TEMÁTICA

O tema principal é a dificuldade do amor homossexual, centrado na relação entre o negro Amaro e o jovem e bonito Aleixo. Faz presente também o tema da mulher madura que deseja um amante jovem. A originalidade de Bom-Crioulo se manifesta no triângulo amoroso sobre o qual se sustenta. Tradicionalmente, um triângulo amoroso é composto por dois homens em luta por uma mulher, ou duas mulheres que disputam o mesmo homem. Em Bom-Crioulo, Amaro e Aleixo são marinheiros e, acima de tudo, como tal se comportam, favorecendo a anulação das diferenças étnicas, que se dá não pela ascensão do negro fugido, mas pelo rebaixamento de ambos à condição de prisioneiros do mesmo sistema e do “vício”. Por fim, o terceiro do triângulo é uma mulher que atua como homem, pois conquista Aleixo em vez de ser conquistada. Adolfo Caminha colhe ao vivo, de sua experiência como oficial da marinha, o material do romance.

Este tema do romance, o homossexualismo, manifesto na construção do triângulo amoroso, é tratado com crueza e sem nenhum indício de preconceito pelo escritor naturalista, que vê no vício um objeto de estudo que deve ser esclarecido e compreendido.

O homossexualismo, encarado no romance como vício ou perversão, é tratado, portanto, através de um olhar naturalista e, conseqüentemente, limitado: não há o enfoque mais subjetivo dos sentimentos despertados; não há autonomia do caráter: as personagens estão acorrentadas às leis deterministas (não há drama de consciência ou mesmo drama moral). Há uma resposta mecânica, instintiva aos fatos e, nesse sentido, o livro perde um lado da questão, o que não esmaece sua força e valor literário.

Outro tema é a problemática da vida dos marinheiros, que ficam a maior parte do tempo longe da terra e de mulheres, o sofrimento dos castigos corporais impiedosos e rigorosos. Este é a temática que se entrelaça com o tema central.

TEMPO E ESPAÇO

O romance se passa em dois espaços: no mar, a bordo de uma corveta, e na Rua da Misericórdia, localizada nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos fins do século XIX. Os dois lugares são descritos em seus aspectos mais degradantes e negativos, ressaltando a miséria daqueles que aí vivem.

A abertura do romance se faz com uma detalhada descrição da corveta, local inicial da ação.

Por meio de uma descrição minuciosa e da riqueza de detalhes que ajudam a compor o ambiente externo, percebe-se como o autor naturalista se debruça sobre o meio que terá um papel decisivo no comportamento das personagens.

O ambiente de bordo é marcado pelo trabalho duro e por uma vida sem privacidade, o que possibilita a eclosão das mais diversas perversões. O ajuntamento de homens favorecia a promiscuidade entre seres que vivenciam a solidão da reclusão da vida no mar e que, sobretudo, sentiam a falta de liberdade, vítimas de um sistema duro e cruel - a vida na Marinha:

Mas, havia ordem para não desembarcar, e Bom-Crioulo, como toda a guarnição, passou a tarde numa sensaboria, cabeceando de fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de asseio e manobras rudimentares. - Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros... Ah! Vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda parte... E chamava-se a isso servir á Pátria!

Por esse trecho, pode-se notar uma crítica implícita a Abolição dos Escravos que parece não passar de uma ilusão, já que os homens provenientes das camadas mais baixas da população continuam a ser explorados.

Num segundo momento, a história se desloca para a terra, mais precisamente para um quarto na Rua da Misericórdia, onde Amaro e Aleixo, após terem se conhecido no navio, vivem o ápice e o declínio de seu relacionamento.

Ao retratar o espaço urbano, Adolfo Caminha fala a respeito de um tipo de moradia muito comum no Rio de Janeiro, durante o final do século XIX: as habitações coletivas. Os habitantes dessas moradias eram brancos, mulatos e mestiços, sempre pessoas exploradas. Ao redor dessas habitações, há a presença de negociantes portugueses em ascensão, como o açougueiro que sustenta D. Carolina, e que se aproveitam, de algum modo, da miséria dessas pessoas.

Desse modo, o comportamento das personagens está condicionado pela pobreza do ambiente que as circunda e que, por sua vez, é decorrente do momento histórico por que passava o Brasil, durante o Segundo Reinado.

PERSONAGENS

Em Bom-Crioulo, Caminha constrói com segurança e coerência o personagem Amaro, mulato dominado pela paixão homossexual, que o leva para caminhos sadomasoquistas à perversão e finalmente ao crime. O autor soube manejar as cenas e personagens com naturalidade.

As personagens de um romance naturalista raramente são dotadas de alguma profundidade psicológica. Muito próximas dos tipos, também chamados de personagens planas, não evoluem no decorrer da narrativa, de forma que suas ações apenas confirmam as poucas características que as definem.

Amaro: protagonista, ex-escravo convocado para a marinha.Trata-se de um homem muito forte, com trinta anos de idade e que não conseguiu realizar-se sexualmente com as mulheres. Duas tentativas deram-lhe grande decepção e o deixaram frustrado. Só conseguiu consumar o ato com o jovem Aleixo. Apresenta certa profundidade psicológica, mas que é totalmente envolvido por sentimentos e instintos que o dominam, impedindo-o de perceber com clareza a situação conflituosa que vive. Algumas vezes, surgem percepções esparsas, mas nada suficientemente forte para modificar o destino do negro, movido pela paixão. Por um lado, Amaro é extremamente forte fisicamente. Sua força provém do trabalho escravo e depois do trabalho na Armada, em que se engajara após ter fugido da fazenda. Os castigos físicos que lhe foram impingidos, tanto pelo feitor quanto a bordo, tornaram-lhe resistente e lhe deram a energia de um animal brioso. A força do negro é realçada pelo narrador, numa das cenas iniciais do romance, por meio da descrição de uma cena em que Amaro está sendo punido com a chibata: — Uma! cantou a mesma voz. — Duas!.., três!...

Aleixo: grumete, belo rapaz de olhos azuis, que embarca no sul. Tem quinze anos e mexe sexualmente com Amaro. Cede às investidas e caprichos do crioulo, mas quando aparece ocasião troca-o por uma mulher. Isso o leva ser assassinado por Amaro, por causa do ciúme. Aleixo surge desde o princípio como o oposto de Amaro: branco, fisicamente fraco e pueril, subjugado pelas circunstâncias e por quem lhe é mais forte — será assim com Amaro e com Carolina. O ar de submissão de Aleixo vai transfigurando-se, ao longo da narrativa, numa espécie de esperteza camaleônica. Nada sabemos sobre seu passado, a não ser que era filho de uma pobre família de pescadores que o tinham feito entrar para a Marinha em Santa Catarina. A ligação com Amaro oferece-lhe um novo mundo, bastante diferente daquele de sua origem, e que lhe propicia, acima de tudo, favores e proteção.

D. Carolina: amiga e rival de Amaro. É amiga de Amaro por tê-lo salvo em um assalto e inimiga por depois conquistar o namorado do crioulo. D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito, Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima cousa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros. D. Carolina revela-se, desde o inicio, uma mulher de negócios, cuja mercadoria era seu próprio corpo. Teve seus revezes e conseguiu se reerguer, observando como poderia lucrar com os outros, já que também lucravam com ela. No entanto, vive só.

Herculano: marinheiro dotado de certa melancolia. Relaxado, tinha as unhas sujas. Evitava a companhia dos outros. Foi preso e castigado por ter sido apanhado se masturbando.

Agostinho: o guardião. Homem de grande estatura, reforçado, especialista em dar chibatadas. Ama sua profissão, por isso permanecia a maior parte do tempo a bordo.

Santana: marinheiro que sofreu castigo por ter brigado com Herculano. Era gago, chorava com facilidade e era manhoso.

ENREDO

A obra Bom-Crioulo não padece das inverosimilhanças de A Normalista, do mesmo autor. Mais denso e enxuto, apresenta um ótimo retrata da vida de marinheiros durante a 2ª metade do século XIX, no Rio de Janeiro. A personagem principal, o mulato Amaro, é bastante coerente em sua passionalidade. Vários episódios do romance também refletem a própria vivência do autor a bordo de navios, registrando a aspereza da vida no mar, da brutalidade dos castigos corporais, já denunciados por Caminha em seu tempo de estudante.

O romance realça pela originalidade da situação dramática: dois marinheiros - Amaro, apelidado o Bom-Crioulo, um “latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre... com um formidável Sistema de músculos” e Aleixo “um belo marinheiro de olhos azuis” - brutalizados e solitários pela vida a bordo de um navio, afeiçoam-se e entretêm relações homossexuais. Ao desembarcarem na cidade do Rio de Janeiro, vão viver em um cômodo alugado por uma portuguesa, ex-prostituta, D. Carolina. Mas o idílio amoroso entre Amaro e Aleixo é interrompido pelo dever de voltar ao mar:

Decorreu quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada no alto da Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois marinheiros viviam um para o Outro: completavam-se /.../ Mas Bom-Crioulo um dia foi surpreendido com a notícia de que estava nomeado para servir noutro navio.
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Biografia de Adolfo Caminha em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/11/adolfo-caminha-1867-1897.html
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Fonte:
Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular). Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas

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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Anfrísio Lima (1887 – 1973)


Anfrísio Lima é um nome, uma legenda histórica, símbolo cultural do Município de Manga/MG.

Político, foi antes de tudo um cultor das letras. É patrono da Cadeira nº 09, da Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco, ocupada pelo acadêmico Ronaldo José de Almeida.

Ele nasceu no tempo do Império, na cidade de Cabrobó - Estado de Pernambuco, sendo seu pai o farmacêutico Domiciano Pastor Ferreira Lima, e sua mãe dona Almerinda Omenídia Gonzaga Lima, de famílias cearenses e pernambucanas.

Fez o curso primário e o secundário na cidade de Petrolina - Estado de Pernambuco. Transferiu-se para Simplício Mendes, no Piauí, e de lá para São João do Piauí, no mesmo Estado, onde exerceu o magistério público, trabalhou na Justiça Criminal e militou na imprensa local, colaborando com o semanário “A Voz do Sertão”, onde publicou suas primeiras produções poéticas.

Em 1914, transferiu-se com seus pais para a localidade de Manga no Estado de Minas Gerais, na época, um pequeno burgo.

Já como pessoa influente, Anfrísio trabalhou pela emancipação político-administrativa do distrito, então pertencente ao município de Januária, marcando sua presença na história do novo Município.

Foi eleito, por unanimidade de votos, o primeiro Presidente da Câmara e Agente Executivo Municipal (cargo que equivale ao de Prefeito atualmente). Exerceu na ditadura “Getúlio Vargas”, o cargo de Prefeito Municipal de Manga por diversas vezes. Foi Diretor-Gerente da Cia. Manga Industrial e Exportadora S/A e trabalhou, até o seu último dia de vida, no escritório de advocacia do Dr. Luís Carneiro Vianna.

Suas produções literárias constam de várias antologias e coletâneas, como “A Sombra do Arco-Iris” de Malba Tahan e “Trovadores do Brasil” de Aparício Fernandes.

Foi delegado da União Brasileira de Trovadores, em Manga.

O mestre, poeta e imortal Anfrísio Lima deixou o convívio dos mortais no dia 02 de agosto de 1973, aos 86 anos, em Manga, cidade que ele adotou, de coração, como a sua verdadeira terra.

O curso de sua proveitosa existência publicou:
“Sombras” (poesias),
“Flagrantes da Vida” (poesias).
“Últimas sombras” (poesias e poemas),
“Espinhos de Mandacaru” (romance regional),
“Vozes d’alma” (trovas),
“Trovando a Vida” (trovas),
“Pauta com o Diabo e outros contos” (contos regionais) e
“O Rio São Francisco” (poemas).

Por ocasião de seu falecimento, entre tantas homenagens merecidas, o ilustre advogado Adalberto Pereira da Silva fez importante pronunciamento:

Manga e sua gente não poderiam jamais se ausentar nesta hora de extrema dor. E coube-me, por todos, o triste e doloroso dever de prestar as últimas homenagens àquele que tanto fez por merecê-las. Não posso, entretanto, encarregar-me de contar agora a história de sua vida, isto porque seria o mesmo que contar a história da vida manguense, tanto foi sua influência nos destinos desta “Terra querida de fértil chão”.

O seu nome ilustre, a sua figura inconfundível encontra-se tomando lugar proeminente nas fases mais brilhantes da nossa história, porquanto aqui ocupou os mais variados cargos e funções políticas. E, em todos eles (os cargos) e em todas elas (as funções), soube se conduzir com energia, sabedoria e inteligência incomuns. Todos os que aqui se encontram - tanto os seus correligionários, como os seus adversários políticos, sentem esta partida inesperada, esta perda inexorável, porque acima das paixões e lides políticas está o homem amigo, o cidadão íntegro, o bate-papo agradável e confortante do Mestre e Poeta Anfrísio Lima.

Também eu, talvez mais do que qualquer um de vocês, sinto profundamente a morte deste homem, porque era meu sonho maior, de há muito acalentado, fazer meu DEBU no campo das Ciências Jurídicas, introduzido pelas mãos e orientado pela inteligência deste homem a quem me orgulho de chamar de Mestre. Na verdade, Mestre quer no campo jurídico, quer no campo literário, porque disso nos deu provas soberbas e porque disso somos testemunhas – tantas foram as obras de sua lavra. O Mestre e Poeta Anfrísio Lima foi homem que conheceu a riqueza e dividiu-a com todos. Foi também homem que conheceu infortúnios e humilhações e guardou-as consigo, e, no entanto, soube perdoar a todos, indistintamente
”.

Fonte:
O Norte de Minas
Caleidoscópio, por Petrônio Braz. 29 abr 2009.

J. G. De Araujo Jorge (Livro de Sonetos I)


A DOR MAIOR

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, ( e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de Ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!...

A ESPERA

Ela tarda... E eu me sinto inquieto, quando
julgo vê-la surgir, num vulto, adiante,
- os lábios frios, trêmula e ofegante,
os seus olhos nos meus, linda, fitando...

O céu desfaz-se em luar... Um vento brando
nas folhagens cicia, acariciante,
enquanto com o olhar terno de amante
fico à sombra da noite perscrutando...

E ela não vem...Aumenta-me a ansiedade:
- o segundo que passa e me tortura,
é o segundo sem fim da eternidade...

Mas eis que ela aparece de repente!...
- E eu feliz, chego a crer que igual ventura
bem valia esperar-se eternamente!...

A LUZ

Ela veio...( E a minha alma tinha a porta
aberta, e ela entrou...Casa vazia
e estranha, esta que em plena luz do dia
lembrava a tumba de uma noite morta...)

Que ela havia chegado, eu nem sabia...
Mas, pouco a pouco, e a data não importa,
minha alma, por encanto, se conforta,
e há risos pela casa...E há alegria...

Quem abrira as janelas? Quem levara
o fantasma da dor sempre ao meu lado?
Os antigos retratos, quem rasgara?

E acabei por fazer a descoberta:
- ela espantara as sombras do passado
e a luz entrara pela porta aberta!

A VIDA

I
"...Mudarás, todos mudam, e os espinhos
com surpresa verás por todo lado,
- são assim nesta vida os seus caminhos
desde que o homem no mundo tem andado...

Não hás de ser o eterno namorado
com as mãos e os lábios cheios de carinho,
- hoje, juntos os dois... tudo encantado!
- amanhã, tudo triste... os dois sozinhos!...

E sentindo o teu braço então vazio,
abatido verás que não resistes
à inclemência do tempo úmido e frio!

Rolarás por escarpas e barrancos:
sobre o epitáfio dos teus olhos tristes
trazendo a campa dos cabelos brancos!"

I I

" . . Tem sido assim e assim será... Mais tarde
o que hoje pensas chamarás: - quimera!
E esse esplendor que nos teus olhos arde,
será a visão de extinta primavera...

Escondido à .traição, como uma fera,
bem em silêncio, e sem fazer alarde,
o Destino que é mau e que é covarde,
naquela sombra adiante já te espera!

E num requinte de perversidade
faz de cada ilusão, de cada sonho,
a ruína de uma dor... e uma saudade...

E se voltares, notarás então
desesperado, ao teu olhar tristonho
que em vão sonhaste... e que viveste em vão!..."

I I I
"... A vida é assim, segue e verás, - a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida...

Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida...
- amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida...

A vida é assim, é um dia de esperança
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança...

E enquanto as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes e encontramos
a saudade infinita das estrelas!..."

IV
"...A vida é assim, uma ânsia... feito a vaga
que se ergue e rola a espumejar na areia,
- apor esse bem que a tua mão semeia
espera o mal que ainda terás por paga!

A essa hora boa que te agrada e enleia
sucede uma outra torturante e aziaga,
- a vida é assim... um canto de sereia
que à morte nos convida, e nos afaga...

O teu sonho melhor bem pouco dura,
e há sempre "um amanhã" cheio de dor
para "um hoje" nem sempre de ventura...

Toma entre as mãos o búzio da alegria
e surpreso verás que no interior
canta profunda e imensa nostalgia!..."

V
Isso tudo nos dizem, - entretanto
nós dois seguimos braços dados,
creio que se tu sabes que te adore tanto
do que ouviste talvez não tens receio...

A vida, - é o nosso amor, o nosso encanto!
Nem a podemos mais parar no meio...
Chorar? - bem sei que choras, mas teu pranto
é a alegria que canta no teu seio...

O mundo é bom e nós o cremos, basta!
E se um amor tão grande nos enleva
e pela vida unidos nos arrasta,

- que eu te abrace e te apoies sempre em mim,
e desafiando o mundo envolto em treva
sigamos juntos para um mesmo fim !

ALVORADA ETERNA

Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos...

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos...

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca...

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!

AMARGURA

Só podes me ofertar o silêncio e a amargura,
- meu pobre amor de ti só espera a indiferença...
Perdoa o meu amor... perdoa-me a loucura
que quem tem, como eu tenho, um coração, não pensa...

Há muito pela vida eu seguia à procura
de alguém que viesse encher de luz minha descrença...
Foi então que te vi... e julguei que a ventura
pudesse ainda encontrar nesta jornada imensa...

E foi assim que um dia eu fui sentimental...
Acreditei no amor... E, talvez por castigo
fizeste-me sofrer - mas não te quero mal...

Quem amou, fui eu só... Eu nunca fui amado!...
Mereço a minha dor, e este sofrer bendigo
na amargura cruel de me julgar culpado!

Fonte:
JORGE, J. G. De Araújo. "Meus Sonetos de Amor. RJ. 1a edição, 1961.

Imagem = montagem por José Feldman com imagens obtidas na internet

Ana Miranda (Análise da obra “Boca do Inferno”)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Romance histórico, Boca do Inferno é o primeiro romance de Ana Miranda e foi publicado em 1989. Foi traduzido nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países.

Na Bahia, em plena efervescência mercantilista do século XVII, Ana Miranda restaura os cacos de um país popularmente tido como pacífico, substituindo essa mentira calcificada por uma de caráter ficcional, mais em sintonia com a verdade histórica. O assassinato do alcaide-mor é mero pretexto fabular para dividir em dua a sociedade baiana de então: perseguidores e perseguidos.

FOCO NARRATIVO

Romance escrito em 3ª pessoa.

ESTRUTURA

O romance é dividido em 6 capítulos: A Cidade, O Crime, A Vingança, A Devassa, A Queda e O Destino.

TEMPO E ESPAÇO

Boca do Inferno se passa no século XVII (1863), na Bahia colonial, durante o governo tirânico do militar Antônio de Souza de Menezes, apelidado de Braço de Prata, por usar uma peça deste metal no lugar do braço (perdido numa batalha naval contra os invasores holandeses).

A ação se passa em Salvador. Nessa cidade de desmandos e devassidão, desenrola-se a trama de Boca do Inferno, recriação de uma época turbulenta centrada na feroz luta pelo poder entre o governador Antônio de Souza de Menezes, o temível Braço de Prata, e a facção liderada por Bernardo Vieira Ravasco, da qual faziam parte o padre Antônio Vieira e o poeta Gregório de Matos.

LINGUAGEM

Linguagem histórica, com expressões chulas (vulgares), uma referência à sátira mordaz do poeta Gregório de Matos Guerra.

PERSONAGENS

Gregório de Matos Guerra: poeta do Barroco. O boca do inferno - genial canalha - fazia críticas mordazes aos políticos da Bahia do século XVI.

Padre Antônio Vieira: em seus sermões e cartas, atacava o clero brasileiro e políticos, revelando a seus fiéis as contradições sociais.

Antônio de Sousa Menezes: governador da Bahia - O Braço de Prata.

Gonçalo Ravasco: inimigo de Antonio de Sousa Menezes.

Bernardo Ravasco: irmão de Gonçalo Ravasco.

Bernardina Ravasco: filha de Bernardo Ravasco.

Maria Berco: empregada dos Ravasco e amante de Gregório de Matos.

Tele de Menezes: secretário do governador.

Donato Serotino: mestre de esgrima.

Antonio de Brito: assassino de Francisco Teles de Menezes.

Anica de Mel: cafetina.

ENREDO

A narrativa assim se inicia: “Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoarem o Inferno” (Miranda, 1998: 12).

O assassinato do alcaide-mor emerge como desencadeador de uma perseguição que será empreendida pelos ocupantes do poder estabelecido aos supostos culpados, tendo como contraponto os atos, os ditos e os escritos do padre Antônio Vieira e de Gregório de Matos, o Boca do Inferno. Pouco a pouco, o pulsar da vida nessa cidade colonial brasileira nos será revelado. Como nos confidencia no início da narrativa Gregório de Matos, nessa cidade, “antigamente, havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista” (Miranda, 1998: 13).

Lentamente, a vida social, política e econômica irá surgir de forma viva e densa, revelando, junto à tensa disputa, novas vozes presentes em um cotidiano de trabalho, prazeres, sofrimento, felicidade, religiosidade, sensualidade, prostituição, conchavos e falcatruas.

A Cidade - Descrição da Bahia do século XVII - imagem de um paraíso natural, mas onde os demônios aliciavam almas para proverem o inferno - há também a apresentação do poeta sátiro Gregório, o Boca do Inferno, de estilo barroco.

O Crime - Francisco Teles de Menezes é emborrado por 8 homens encapuzados, tem sua mão arrancada do braço e é morto por Antônio de Brito. O motivo se deu por perseguição política - estarão envolvidos no crime: Ravasco, irmão do Padre Vieira e Moura Rolim, primo de Gregório. Os homens fogem para o Colégio dos Jesuítas, mas o governador da Bahia - Antônio de Sousa Menezes, O Braço de Prata, será avisado e começará uma terrível perseguição contra todos envolvidos.

A Vingança - Antônio de Brito será torturado e delatará os envolvidos - Viera será perseguido - mas por representar a igreja e o poder papal, o governador releva, mas quer o irmão Bernardo Ravasco preso e destituído do cargo de Secretário do Estado. Ao tentar proteger a filha Bernardina Ravasco, Gregório conhece Maria Berco, que será presa ao saber que ela possuía a mão e o anel do Alcaide (o anel será penhorado). São confiscados de Bernardo documentos escritos e os poemas de Gregório. Bernardina é presa para pressionar Ravasco a se entregar.

A Devassa - Rocha Pita é nomeado desembargador para investigar a morte do Alcaide. Palma, também desembargador, nega a vingança planejada pelo governador e por falta de provas, exige a soltura dos envolvidos mas, para soltar Maria Berco, Gregório teria que pagar uma fiança de 600 mil réis.

A Queda - Bernardino é libertado e expatriado. O governador é destituído do cardo e o Marquês de Minas é nomeado para substituí-lo, restituir o cargo de secretário a Bernardo Ravasco e se apresentar imediatamente ao Rei de Portugal. Mesmo assim sai do Brasil com muitas riquezas. O próximo governador, Antônio Luís da Câmara Coutinho, também será satirizado pelo poeta Gregório que terá sua morte encomendada, mas só o próximo governador, João de Lancastre, é que conseguirá prendê-lo e expatriá-lo para a Angola, volta mais tarde para Pernambuco, mas será proibido de escrever suas sátiras. Volta a advogar e morre em 1695, aos 59 anos.

O Destino - Padre Vieira lutará por justiça social através de seus sermões, morre cego e surdo em 1697. Bernardo Ravasco recebe sentença favorável ao crime contra o Alcaide e é substituído pelo filho, Gonçalo Ravasco. Maria Berco ficará rica mas deformada, rejeita pedidos de casamento à espera do poeta Gregório, que se casa com uma negra viúva, Maria de Povos, mas não se afasta da vida de devassidão pelos bordéis da cidade. "...se eu tiver que morrer, seja por aqui mesmo. E valha-me Deus, que não seja pela boca de uma garrucha, mas pela cona de uma mulher." A cidade da Bahia cresceu, modificou-se o cenário de prazer e pecado da cidade onde viveu o poeta Boca do Inferno.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/b/boca_do_inferno

Ana Miranda (1951)


Nasceu em 19/08/1951, em Fortaleza (CE) .

Mudou-se para o Rio de Janeiro aos quatro anos de idade. Em 1959 foi para Brasília, ao encontro de seu pai, engenheiro, que trabalhava na construção da cidade. Em 1969 voltou para o Rio de Janeiro, a fim de prosseguir com seus estudos de artes.

Romancista, poeta, ex-atriz (do filme Como era gostoso o meu francês), desenhista, cronista e roteirista.

Ana Miranda colaboradora da revista Caros Amigos, mas começou na literatura por meio de poemas e poesias, surgindo seus dois primeiros livros: Anjos e Demônios (Editora José Olympio/INL, Rio de Janeiro, 1979) e Celebrações do Outro (Editora Antares, Rio, 1983). 0 sucesso literário foi obtido com Boca do inferno (1989), uma biografia romanceada do poeta Gregório de Matos, que se tornou clássico, foi traduzido para mais de 20 idiomas e lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990.

O retrato do rei (1991) é outro mergulho na história do Brasil colonial. São obras que resultam de copiosas pesquisas históricas e que alimentam sua criação literária.

O livro seguinte é uma trama contemporânea: Sem pecado (1995). Mas logo retoma a história e faz um mergulho na vida e obra do poeta Augusto dos Anjos com A última quimera (1995), outro sucesso de crítica e público.

Seu interesse é mais pela pesquisa da linguagem do que pela história propriamente dita. "Sempre tive muito encanto pela palavra, com a formação e o poder das palavras... quando eu faço um livro sobre o Gregório de Matos, na verdade o que me interessa é a linguagem dele". No entanto, seu apreço pela história é declarado: "Eu gosto do passado. Quando escrevo é como se estivesse lá. Estudo, faço os levantamentos de época, mas no texto nada disso deve aparecer, porque eu me impregno daquilo tudo, tenho que ser aquilo. Trabalho com a s lacunas da história".

Em 1996, Ana Miranda publicou mais um romance de ficção histórica, Desmundo, que conta com a história de mulheres de órfãs portuguesas que vieram para o Brasil a fim de se casarem com os colonos, inspirado em episódio histórico mencionado numa carta do padre Manoel da Nóbrega, em 1554. Desmundo é uma estonteante recriação do Brasil no século XVI, visto sob inédito olhar de uma mulher, pois é narrado na primeira pessoa. Neste romance Ana Miranda explode em sua maior vocação, que é o tratamento da palavra a partir da intertextualidade e da poesia. Em Desmundo ela explora um trabalho experimental com a língua portuguesa arcaica, tornando-se uma autora ainda mais original e imprevista. Ainda em 1996, Ana Miranda publicou a novela Clarice, que reconta, criativa e ousadamente, a vida de Clarice Lispector, a grande escritora ucraniana-brasileira, que revolucionou, no Brasil, o modo psicológico de abordagem dos personagens.

O romance Amrik, 1997, cujo tempo histórico é o fim do século XIX, fala sobre os imigrantes libaneses em São Paulo. É a bela história ficcional de um senhor cego, no Líbano em lutas contra os drusos, que se vê na iminência de uma fuga por questões políticas, e pede ao irmão que lhe dê um dos seis filhos para lhe servir de guia. O pai dá a única filha mulher, a inesquecível personagem Amina, que é a narradora do livro. O tio cego, Naim, ensina a menina a ler, para que ela leia em voz alta para ele os livros de sua biblioteca. Os dois libaneses acabam no Brasil, na América, ou Amrik, e Amina é envolvida num episódio que também se refere ao erro transformador. Aí Ana Miranda encontra uma chave experimentalista para junção de música, pois a narradora é dançarina libanesa, poesia, com a fala solta de um fluxo de consciência de alguém que mal sabe falar o português. Um resultado imprevisível, e uma leitura eletrizante, para quem aprecia as ousadias literárias. Criado em cima de textos clássicos da literatura árabe.

Em 2000 partiu para outra experiência literária e publicou Cadernos de sonhos, um livro "de arte", primorosamente editado pela Dantes Editora. Trata do registo de seus sonhos ocorridos em 1973.
"A minha literatura sempre foi muito onírica. Eu crio os meus livros quando estou sonhando. Acordo no meio da noite com cenas, palavras, frases que vou anotando".

Em 2002, Ana Miranda publicou o romance Dias & Dias, como todos os seus outros romances, pela Companhia das Letras. Com uma narrativa que mais parece um diário, pela aparente informalidade da linguagem e pelas informações sobre o Brasil do século XIX, Ana Miranda recria a vida de um dos nossos maiores poetas românticos: Gonçalves Dias. Há um esgarçamento da linguagem, que adquire uma singeleza romântica, pois o livro recria sentimentos e significados do Romantismo Brasileiro. Esse livro recebeu o Jabuti na categoria Romance, em 2003, assim como o prêmio da Academia Brasileira de Letras, no mesmo ano e categoria.

Deus-dará (2003) é uma reunião de crônicas escritas por Ana Miranda para a revista ''Caros Amigos''. Em 2004, foi publicado o primeiro livro infanto-juvenil da autora, Flor do cerrado, que também inaugura a literatura autobiográfica em sua obra. Nesse mesmo ano, Ana Miranda publicou Prece a uma aldeia perdida, poesia longa que corporifica todo o sentimento de exílio e perda de origens e raízes da autora, em cima da última frase de Iracema, do José de Alencar, "Tudo passa, e nada passará, sobre a terra". A autora publicou mais cinco livros infantis: Lig e o gato de rabo complicado, e Lig e a casa que ri, pela Companhia das Letrinhas; Mig o descobridor, e Mig, o sentimental, pela editora Record; e Carta do tesouro, pela editora Armazém da Cultura, num texto inspirado pela Declaração dos Direitos da Criança.

Em 2009, veio a público mais um romance dessa autora, intitulado Yuxin, alma, ambientado nas florestas do Acre, em 1919, baseado em pesquisa linguística realizada pelo historiador Capistrano de Abreu. Segundo o poeta Marco Lucchesi, autor do texto de apresentação do inovador romance, Yuxin é "uma câmara de ecos por onde ressoam harmonias e dissonâncias na interlíngua da índia Yuxin". O livro, que tem uma excelente capa com desenho da escritora, vem acompanhado de um cd de Marlui Miranda, com o mesmo título. Marlui Miranda é cantora e compositora de música indígena brasileira, e irmã da escritora, que lhe dedica o romance.

Carta do tesouro, infantil e adulto, Armazém da Cultura, Fortaleza, 2010;
Mig, o sentimental, infantil, Editora Record, Rio, 2010;

Apesar de Ana Miranda escrever sobre temas relativos a nossa história literária, e demonstrar preocupação na conservação e preservação do tesouro literário brasileiro, sua obra mergulha em um tema que se refere a sua experiência, enquanto mulher, e autora, e de tantas pessoas, nos dias atuais, que é o sentimento de exílio, belamente expresso em seu romance, Dias & Dias, sobre o poeta do exílio, Gonçalves Dias, autor da "Canção do exílio", a mais famosa de todas as poesias brasileiras: "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá…" Os romances de Ana Miranda são fartamente estudados, e adotados para estudos literários, como criação de um contexto das escolas literárias do Barroco e do Romantismo brasileiros. A autora trabalha também sobre um tema bastante contemporâneo: a alteridade; ela jamais parece aceitar ser algo próximo de si, busca recriar-se em personagens diferentes de sua experiência e sua memória.

Além da produção literária, Ana Miranda escreve artigos, resenhas e ensaios para jornais e revistas, roteiros de cinema e trabalha na edição de originais, organizando obras de nomes como Vinícius de Morais e Otto Lara Resende.

Foi escritora visitante na Universidade de Stanford em 1996, e faz palestras e leituras em universidades e instituições culturais de diversos países. Desde 1999 Ana Miranda faz parte do grupo de escritores que concede anualmente, em Roma, o Prêmio União Latina de Romance.

Fontes:
http://www.tirodeletra.com.br/biografia/AnaMiranda.htm
http://www.resenhando.com/rg/rg0104.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Miranda

Machado de Assis (A Senhora do Galvão)


Começaram a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro, quando eles não tinham ainda passado dos primeiros obséquios. Assim vai o mundo. Assim se fazem algumas reputações más, e, o que parece absurdo, algumas boas. Com efeito, há vidas que só têm prólogo; mas toda a gente fala do grande livro que se lhe segue, e o autor morre com as folhas em branco. No presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas um grosso volume de trezentas páginas compactas, sem contar as notas. Estas foram postas no fim, não para esclarecer, mas para recordar os capítulos passados; tal é o método nesses livros de colaboração. Mas a verdade é que eles apenas combinavam no plano, quando a mulher do advogado recebeu este bilhete anônimo:

"Não é possível que a senhora se deixe embair mais tempo, tão escandalosamente, por uma de suas amigas, que se consola da viuvez, seduzindo os maridos alheios, quando bastava conservar os cachos..."

Que cachos? Maria Olímpia não perguntou que cachos eram; eram da viúva do brigadeiro, que os trazia por gosto, e não por moda. Creio que isto se passou em 1853. Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu de mulher e disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha das suas amigas, a ver se descobria a autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e fitou o tapete do chão, caindo-lhe os olhos justamente no ponto do desenho em que dois pombinhos ensinavam um ao outro a maneira de fazer de dois bicos um bico. Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o universo. Afinal meteu o bilhete no bolso do vestido, e encarou a mucama, que esperava por ela, e que lhe perguntou:

— Nhanhã não quer mais ver o xale?

Maria Olímpia pegou no xale que a mucama lhe dava e foi pô-lo aos ombros, defronte do espelho. Achou que lhe ficava bem, muito melhor que à viúva. Cotejou as suas graças com as da outra. Nem os olhos nem a boca eram comparáveis; a viúva tinha os ombros estreitinhos, a cabeça grande, e o andar feio. Era alta; mas que tinha ser alta? E os trinta e cinco anos de idade, mais nove que ela? Enquanto fazia essas reflexões, ia compondo, pregando e despregando o xale.

— Este parece melhor que o outro, aventurou a mucama.

— Não sei... disse a senhora, chegando-se mais para a janela, com os dois nas mãos.

— Bota o outro, nhanhã.

A nhanhã obedeceu. Experimentou cinco xales dos dez que ali estavam, em caixas, vindos de uma loja da rua da Ajuda. Concluiu que os dois primeiros eram os melhores; mas aqui surgiu uma complicação — mínima, realmente — mas tão sutil e profunda na solução, que não vacilo em recomendá-la aos nossos pensadores de 1906. A questão era saber qual dos dois xales escolheria, uma vez que o marido, recente advogado, pedia-lhe que fosse econômica. Contemplava-os alternadamente, e ora preferia um, ora outro. De repente, lembrou -lhe a aleivosia do marido, a necessidade de mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe que não era peteca de ninguém, nem maltrapilha; e, de raiva, comprou ambos os xales.

Ao bater das quatros horas (era a hora do marido) nada de marido. Nem às quatro, nem às quatro e meia. Maria Olímpia imaginava uma porção de coisas aborrecidas, ia à janela, tornava a entrar, temia um desastre ou doença repentina; pensou também que fosse uma sessão do júri. Cinco horas, e nada. Os cachos da viúva também negrejavam diante dela, entre a doença e o júri, com uns tons de azul-ferrete, que era provavelmente a cor do diabo. Realmente era para exaurir a paciência de uma moça de vinte e seis anos. Vinte e seis anos; não tinha mais. Era filha de um deputado do tempo da Regência, que a deixou menina; e foi uma tia que a educou com muita distinção. A tia não a levou muito cedo a bailes e espetáculos. Era religiosa, conduziu-a primeiro à igreja. Maria Olímpia tinha a vocação da vida exterior, e, nas procissões e missas cantadas, gostava principalmente do rumor, da pompa; a devoção era sincera, tíbia e distraída. A primeira coisa que ela via na tribuna das igrejas, era a si mesma. Tinha um gosto particular em olhar de cima para baixo, fitar a multidão das mulheres ajoelhadas ou sentadas, e os rapazes, que, por baixo do coro ou nas portas laterais, temperavam com atitudes namoradas as cerimônias latinas. Não entendia os sermões; o resto, porém, orquestra, canto, flores, luzes, sanefas, ouros, gentes, tudo exercia nela um singular feitiço. Magra devoção, que escasseou ainda mais com o primeiro espetáculo e o primeiro baile. Não alcançou a Candiani, mas ouviu a Ida Edelvira, dançou à larga, e ganhou fama de elegante.

Eram cinco horas e meia, quando o Galvão chegou. Maria Olímpia, que então passeava na sala, tão depressa lhe ouviu os pés, fez o que faria qualquer outra senhora na mesma situação: pegou de um jornal de modas, e sentou-se, lendo, com um grande ar de pouco caso. Galvão entrou ofegante, risonho, cheio de carinhos, perguntando-lhe se estava zangada, e jurando que tinha um motivo para a demora, um motivo que ela havia de agradecer, se soubesse...

— Não é preciso, interrompeu ela friamente.

Levantou-se; foram jantar. Falaram pouco; ela menos que ele, mas em todo o caso, sem parecer magoada. Pode ser que entrasse a duvidar da carta anônima; pode ser também que os dois xales lhe pesassem na consciência. No fim do jantar, Galvão explicou a demora; tinha ido, a pé, ao teatro Provisório, comprar um camarote para essa noite: davam os Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar um carro...

— Os Lombardos? interrompeu Maria Olímpia.

— Sim; canta o Laboceta, canta a Jacobson; há bailado. Você nunca ouviu os Lombardos?

— Nunca.

— E aí está por que me demorei. Que é que você merecia agora? Merecia que eu lhe cortasse a ponta desse narizinho arrebitado...

Como ele acompanhasse o dito com um gesto, ela recuou a cabeça; depois acabou de tomar o café. Tenhamos pena da alma desta moça. Os primeiros acordes dos Lombardos ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre, espécie de Requiem. E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar. Era isto mesmo. Entretanto, uma vez que estava avisada, não os perderia de vista. Aqui acudiu-lhe uma idéia: consultou o marido se mandaria convidar a viúva.

— Não, respondeu ele; o carro só tem dois lugares, e eu não hei de ir na boléia.

Maria Olímpia sorriu de contente, e levantou-se. Há muito tempo que tinha vontade de ouvir os Lombardos. Vamos aos Lombardos! Trá, lá, lá, lá... Meia hora depois foi vestir-se. Galvão, quando a viu pronta daí a pouco, ficou encantado. Minha mulher é linda, pensou ele; e fez um gesto para estreitá-la ao peito; mas a mulher recuou, pedindo-lhe que não a amarrotasse. E, como ele, por umas veleidades de camareiro, pretendeu concertar-lhe a pluma do cabelo, ela disse-lhe enfastiada:

— Deixa, Eduardo! Já veio o carro?

Entraram no carro e seguiram para o teatro. Quem é que estava no camarote contíguo ao deles? Justamente a viúva e a mãe. Esta coincidência, filha do acaso, podia fazer crer algum ajuste prévio. Maria Olímpia chegou a suspeitá-lo; mas a sensação da entrada não lhe deu tempo de examinar a suspeita. Toda a sala voltara-se para vê-la, e ela bebeu, a tragos demorados, o leite da admiração pública. Demais, o marido teve a inspiração, maquiavélica, de lhe dizer ao ouvido: "Antes a mandasses convidar; ficava-nos devendo o favor." Qualquer suspeita cairia diante desta palavra. Contudo, ela cuidou de os não perder de vista — e renovou a resolução de cinco em cinco minutos, durante meia hora, até que, não podendo fixar a atenção, deixou- a andar. Lá vai ela, inquieta, vai direito ao clarão das luzes, ao esplendor dos vestuários, um pouco à ópera, como pedindo a todas as coisas alguma sensação deleitosa em que se espreguice uma alma fria e pessoal. E volta depois à própria dona, ao seu leque, às suas luvas, aos adornos do vestido, realmente magníficos. Nos intervalos, conversando com a viúva, Maria Olímpia tinha a voz e os gestos do costume, sem cálculo, sem esforço, sem ressentimento, esquecida da carta. Justamente nos intervalos é que o marido, com uma discrição rara entre os filhos dos homens, ia para os corredores ou para o saguão pedir notícias do ministério.

Juntas saíram do camarote, no fim, e atravessaram os corredores. A modéstia com que a viúva trajava podia realçar a magnificência da amiga. As feições, porém, não eram o que esta afirmou, quando ensaiava os xales de manhã. Não, senhor; eram engraçadas, e tinham um certo pico original. Os ombros proporcionais e bonitos. Não contava trinta e cinco anos, mas trinta e um; nasceu em 1822, na véspera da independência, tanto que o pai, por brincadeira, entrou a chamá-la Ipiranga, e ficou-lhe esta alcunha entre as amigas. Demais, lá estava em Santa Rita o assentamento de batismo.

Uma semana depois, recebeu Maria Olímpia outra carta anônima. Era mais longa e explícita. Vieram outras, uma por semana, durante três meses. Maria Olímpia leu as primeiras com algum aborrecimento; as seguintes foram calejando a sensibilidade. Não havia dúvida que o marido demorava-se fora, muitas vezes, ao contrário do que fazia dantes, ou saía à noite e regressava tarde; mas, segundo dizia, gastava o tempo no Wallerstein ou no Bernardo, em palestras políticas. E isto era verdade, uma verdade de cinco a dez minutos, o tempo necessário para recolher alguma anedota ou novidade, que pudesse repetir em casa, à laia de documento. Dali seguia para o largo de São Francisco, e metia-se no ônibus.

Tudo era verdade. E, contudo, ela continuava a não crer nas cartas. Ultimamente, não se dava mais ao trabalho de as refutar consigo; lia-as uma só vez, e rasgava-as. Com o tempo foram surgindo alguns indícios menos vagos, pouco a pouco, ao modo do aparecimento da terra aos navegantes; mas este Colombo teimava em não crer na América. Negava o que via; não podendo negá-lo, interpretava-o; depois recordava algum caso de alucinação, uma anedota de aparências ilusórias, e nesse travesseiro cômodo e mole punha a cabeça e dormia. Já então, prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas e jantares, iam a bailes, teatros, corridas de cavalos. Maria Olímpia vivia alegre, radiante; começava a ser um dos nomes da moda. E andava muita vez com a viúva, a despeito das cartas, a tal ponto que uma destas lhe dizia: "Parece que é melhor não escrever mais, uma vez que a senhora se regala numa comborçaria de mau gosto." Que era comborçaria? Maria Olímpia quis perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e não pensou mais nisso.

Entretanto, constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de quem? Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória as pessoas que lhe freqüentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros ou bailes, e achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam adoradores.

— Cartas de quem? repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.

Durante sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e gastando em casa grande parte do tempo. No oitavo dia, veio uma carta.

— Para mim? disse ele vivamente.

— Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia, lendo o sobrescrito; parece letra de Mariana ou de Lulu Fontoura...

Não queria lê-la; mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave. Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a, sorrindo; ia guardá-la, quando o marido desejou ver o que era.

— Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.

— Qual! é um negócio de moldes.

— Mas deixa ver.

— Para quê, Eduardo?

— Que tem? Você, que não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá.

Já não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três vezes. Teve mesmo idéia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo até o fim. Realmente, era uma situação original. Quando ela viu que não tinha remédio, determinou ceder. Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A carta era das mais explícitas; falava da viúva em termos crus. Maria Olímpia entregou-lha.

— Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que tenho recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para... Leia, leia a carta.

Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da inocência, e falou de outra coisa.

Redobraram as cautelas do marido; parece também que ele não pôde esquivar-se a um tal ou qual sentimento de admiração para com a mulher. Pela sua parte, a viúva, tendo notícia das cartas, sentiu-se envergonhada; mas reagiu depressa, e requintou de maneiras afetuosas com a amiga.

Na segunda ou terceira semana de agosto, Galvão fez-se sócio do Cassino Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis de setembro fazia anos a viúva, como sabemos. Na véspera, foi Maria Olímpia (com a tia que chegara de fora) comprar-lhe um mimo: era uso entre elas. Comprou-lhe um anel. Viu na mesma casa uma jóia engraçada, uma meia lua de diamantes para o cabelo, emblema de Diana, que lhe iria muito bem sobre a testa. De Maomé que fosse; todo o emblema de diamantes é cristão. Maria Olímpia pensou naturalmente na primeira noite do Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo, quis comprar a jóia, mas era tarde, estava vendida.

Veio a noite do baile. Maria Olímpia subiu comovida as escadas do Cassino. Pessoas que a conheceram naquele tempo, dizem que o que ela achava na vida exterior, era a sensação de uma grande carícia pública, a distância; era a sua maneira de ser amada. Entrando no Cassino, ia recolher nova cópia de admirações, e não se enganou, porque elas vieram, e de fina casta.

Foi pelas dez horas e meia que a viúva ali apareceu. Estava realmente bela, trajada a primor, tendo na cabeça a meia lua de diamantes. Ficava-lhe bem o diabo da jóia, com as duas pontas para cima, emergindo do cabelo negro. Toda a gente admirou sempre a viúva naquele salão. Tinha muitas amigas, mais ou menos íntimas, não poucos adoradores, e possuía um gênero de espírito que espertava com as grandes luzes. Certo secretário de legação não cessava de a recomendar aos diplomatas novos: "Causez avec Mme. Tavares; c'est adorable!" Assim era nas outras noites; assim foi nesta.

— Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olímpia, perto de meia-noite.

— Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: — Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido?

A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia acrescentou, com os olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama no triunfo. Já no resto da noite falaram pouco; três dias depois romperam para nunca mais.

Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.132)


Uma Trova Nacional

Colhi rosas no caminho
de belezas multicores,
pra perfumar nosso ninho,
sutil recanto de amores.
(ANTÔNIO PAIVA RODRIGUES/CE)

Uma Trova Potiguar

Queres ter assegurada
a vida que vais viver?
Busca na Bíblia sagrada
qual o prêmio a recolher.
(EVAN MONTEIRO/RN)

Uma Trova Premiada

2006 > Pitangui/MG
Tema > TERÇO > Menção Honrosa

Eu, você e um filho amado
somos, por nossa união,
cada qual terço inspirado
no rosário da afeição!
(MARINA BRUNA/SP)

Uma Trova de Ademar

O céu fazendo um aceno,
de alegria nos reveste;
transforma um simples sereno
em chuva para o nordeste...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Vivo a espera na lembrança,
mas não sei, amor, porque,
já perdi toda esperança
de me esquecer de você.
(MILTON NUNES LOUREIRO/RJ)

Simplesmente Poesia

– Roberto Pinheiro Acruche/RJ –
POEMA PARA O MEU AMOR.

Em você encontro a paz
a ternura que me satisfaz.
Em você encontro o perfume
das flores, o calor da paixão
e o ardor do ciúme.
Os seus lábios rosados,
as vezes pintados de carmim,
tão sedosos e formosos
são como as flores do alecrim.
Você é o meu aconchego,
minha inspiração,
a razão dos meus sonhos,
minha vitória, meu troféu,
a estrela do meu céu.
Você é minha alegria,
meus versos, minha poesia,
a melodia da minha cantiga,
o amor da minha vida.

Estrofe do Dia

A favela prepara os arsenais
num rancor e num ódio tão profundo,
uma arma acionada assusta o mundo
um conflito infernal destrói a paz,
num prostíbulo de cenas imorais
a valente mulher prostituída
se abastece de droga e de bebida,
vende amor ao amante, mas não ama,
o mistério noturno enfeita o drama
no teatro da noite mal dormida.
(CHICO SOBRINHO/PB-RN)

Soneto do Dia

– João Costa/RJ –
SONETO A NOVA FRIBURGO.

Choro contigo, Friburgo querida,
neste momento de tanto amargor;
com o coração ferido e a alma ferida
padeço com teu povo sofredor.

Tantas vidas perdidas no furor
da natureza e quantas sem guarida.
Quanta destruição e quanta dor
a marcar para sempre a tua vida.

Mas sei que tudo isso superarás
e em breve, muito em breve, voltarás
a ser a bela Suíça Brasileira.

Voltarás a sorrir, linda cidade.
Reencontrarás logo a felicidade.
Renascerás altiva, forte, inteira!

Fontes:
Ademar Macedo
Imagem = Montagem de José Feldman
(Catedral de Santana do Matos, foto de Alex Gurgel; Asa Branca, o carro do Ademar; Brasão de Santana do Matos; fundo com imagem obtida na internet sem autoria; trova de Ademar; foto do Ademar)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Waldir Neves(Caderno de Trovas)


A espontânea palavrada,
que acompanha um tropeção,
faz bem crer que uma topada
seja a mãe do palavrão.

Ao sair d'água, a banhista
gritou de vergonha: - "Xiii..."
no maiô, na frente e à vista,
veio agarrado... um siri !

Depois que os céus lhe mandaram
As gotas do seu DESEJO,
duas outras marejaram
os olhos do sertanejo...

Doente, a velha cegonha
recusa trabalhos duros,
e pra não passar vergonha
só carrega ... prematuros.

Enquanto eu durmo, querida,
minh’alma, por compulsão,
se aninha e dorme, encolhida,
aí... no teu coração.

Espalhou pedras à estrada
do velho barraco... "Ô xente!
Não dizem que é só topada
que põe o pobre pra frente ?...

Flagrado, na contramão,
no quarto da serviçal,
o vivaldino patrão
fingiu "confusão mental"

Folha em branco... A esmo, um nome
rabisco, na tarde calma.
E a angústia... que me consome...
vai rabiscando minh’alma...

Importuno e impertinente,
o DESEJO insatisfeito
sempre foi, literalmente,
meu "inimigo do peito"...

Maduro ao sol outonal,
pela brisa acariciado,
freme, ondulante, o trigal,
num desvario dourado !...

Motel chique... Olha o marido!!!
E a confusão foi tão feia,
que blusa virou vestido,
e sutiã virou meia.

Na casa do casal velho,
a confusão é total:
-lê-se o jornal no Evangelho;
e o evangelho, no jornal.

Não te esqueças, otimista,
de lembrar, no teu anseio,
que, entre o DESEJO e a conquista,
há sempre pedras no meio...

No abandono, desvairado,
levo noites a fitar
o vestido desbotado
que ela esqueceu de levar...

No apogeu do seu ardor,
tão ternamente se exprime,
que chamamos nosso amor
o "desvario sublime".

Nosso amor é, neste ensejo,
brasa oculta em cinza quente.
-Basta um sopro de DESEJO,
e arde em fogo, novamente...

O desvario arrebata...
E eu fui por falso caminho.
Minha sombra, mais sensata,
deixou-me seguir sozinho...

O ladrão, envergonhado,
diz : - "Doutor, vim me entregar:
o roubo era tão pesado
que eu não pude carregar..."

O mendigo da calçada,
a quem a mágoa não poupa,
talvez tenha esfarrapada
bem mais a alma que a roupa.

Por topadas em excesso
- um tormento em seu caminho –
o dedão abriu processo
contra os olhos do ceguinho.

Pra fugir do casamento,
o noivo, meio "frufru",
alegou, como argumento,
"vergonha de ficar nu"

Provocador e brigão,
o General de Brigada,
sempre que arma confusão,
ela é... generalizada.

Quando a jovem aluada
deu, no amor, um "tropeção",
foi um caso de "topada
com os pés fora do chão".

Severo no condenar,
o Céu abranda o rigor
quando o pecado a julgar
é um desvario de amor...

Tal fascínio lhe desperta
o mistério das estrelas,
que, às vezes, de mim liberta,
minh’alma vai percorrê-las.

Uma das mágoas, apenas,
que à minh’alma são pesadas...
faria leves as penas
até das almas penadas...

"Um prodígio o seu arranco,
a dois metros da chegada!"
E o vencedor, meio manco:
"prodígio foi a topada..."

Velho par, na academia,
é ímpar na confusão:
-foi de sunga à confraria
e à praia foi de fardão!

Vergonha, mesmo, passou
dr. Cornélio, homem sério.
Imaginem... Processou
a mulher por adultério.

Machado de Assis (A Mulher Pálida)


CAPÍTULO PRIMEIRO

Rangeu enfim o último degrau da escada ao peso do vasto corpo do Major Bento. O major deteve-se um minuto, respirou à larga, como se acabasse de subir, não a escada do sobrinho, mas a de Jacó, e enfiou pelo corredor adiante.

A casa era na Rua da Misericórdia, uma casa de sobrado cujo locatário sublocara três aposentos a estudantes. O aposento de Máximo era ao fundo, à esquerda, perto de uma janela que dava para a cozinha de uma casa da Rua D. Manuel. Triste lugar, triste aposento, e tristíssimo habitante, a julgá-lo pelo rosto com que apareceu às pancadinhas do major. Este bateu, com efeito, e bateu duas vezes, sem impaciência nem sofreguidão. Logo que bateu a segunda vez, ouviu estalar dentro uma cama, e logo um ruído de chinelas ao chão, depois um silêncio curto, enfim, moveu-se a chave e abriu-se a porta.

— Quem é? — ia dizendo a pessoa que abrira. E logo: — é o tio Bento.

A pessoa era um rapaz de vinte anos, magro, um pouco amarelo, não alto, nem elegante. Tinha os cabelos despenteados, vestia um chambre velho de ramagens, que foram vistosas no seu tempo, calçava umas chinelas de tapete; tudo asseado e tudo pobre. O aposento condizia com o habitante: era o alinho na miséria. Uma cama, uma pequena mesa, três cadeiras, um lavatório, alguns livros, dois baús, e pouco mais.

— Viva o senhor estudante, disse o major sentando-se na cadeira que o rapaz lhe oferecera.

— Vosmecê por aqui, é novidade, disse Máximo. Vem a passeio ou negócio?

— Nem negócio nem passeio. Venho...

Hesitou; Máximo reparou que ele trazia uma polegada de fumo no chapéu de palha, um grande chapéu da roça de onde era o Major Bento. O major, como o sobrinho, era de Iguaçu. Reparou nisso, e perguntou assustado se morrera alguma pessoa da família.

— Descanse, disse o major, não morreu nenhum parente de sangue. Morreu teu padrinho.

O golpe foi leve. O padrinho de Máximo era um fazendeiro rico e avaro, que nunca jamais dera ao sobrinho um só presente, salvo um cacho de bananas, e ainda assim, porque ele se achava presente na ocasião de chegarem os carros.

Tristemente avaro. Sobre avaro, misantropo; vivia consigo, sem parentes — nem amigos, nem eleições, nem festas, nem coisa nenhuma. Máximo não sentiu muita comoção à notícia do óbito. Chegou a proferir uma palavra de desdém.

— Vá feito, disse ele, no fim de algum tempo de silêncio, a terra lhe seja leve, como a bolsa que me deixou.

— Ingrato! bradou o major. Fez-te seu herdeiro universal.

O major proferiu estas palavras estendendo os braços para amparar o sobrinho, na queda que lhe daria a comoção; mas, a seu pesar, viu o sobrinho alegre, ou pouco menos triste do que antes, mas sem nenhum delírio. Teve um sobressalto, é certo, e não disfarçou a satisfação da notícia. Pudera! Uma herança de seiscentos contos, pelo menos. Mas daí à vertigem, ao estontear que o major previa, a distância era enorme. Máximo puxou de uma cadeira e sentou-se defronte do tio.

— Não me diga isso! Deveras herdeiro?

— Vim de propósito dar-te a notícia. Causou espanto a muita gente; o Morais Bicudo, que fez tudo para empalmar-lhe a herança, ficou com uma cara de palmo e meio. Dizia-se muita coisa; uns que a fortuna ficava para o Morais, outros que para o vigário, etc. Até se disse que uma das escravas seria a herdeira da maior parte. Histórias! Morreu o homem, abre-se o testamento, e lê-se a declaração de que você é o herdeiro universal.

Máximo ouviu contente. No mais recôndito da consciência dele insinuava-se esta reflexão — que a morte do coronel era uma coisa deliciosa, e que nenhuma outra notícia lhe podia ir mais direta e profunda ao coração.

— Vim dizer isto a você, continuou o major, e trazer um recado de tua mãe.

— Que é?

— Simplesmente saber se você quer continuar a estudar ou se prefere tomar conta da fazenda.

— Que lhe parece?

— A mim nada; você é que decide.

Máximo refletiu um instante.

— Em todo o caso, não é sangria desatada, disse ele; tenho tempo de escolher.

— Não, porque se você quiser estudar dá-me procuração, e não precisa sair daqui. Agora, se...

— Vosmecê volta hoje mesmo?

— Não, volto sábado.

— Pois amanhã resolveremos isto.

Levantou-se, atirou a cadeira ao lado, bradando que enfim ia tirar o pé do lodo; confessou que o padrinho era um bom homem, apesar de seco e misantropo, e a prova...

— Vivam os defuntos! concluiu o estudante.

Foi a um pequeno espelho, mirou-se, consertou os cabelos com as mãos; depois deteve-se algum tempo a olhar o soalho. O tom sombrio do rosto dominou logo a alegria da ocasião; e se o major fosse homem sagaz, poderia perceber-lhe nos lábios uma leve expressão de amargura. Mas o major nem era sagaz, nem olhava para ele; olhava para o fumo do chapéu, e consertava-o; depois despediu-se do estudante.

— Não, disse este; vamos jantar juntos.

O major aceitou. Máximo vestiu-se depressa, e, enquanto se vestia, falava das coisas de Iguaçu e da família. Pela conversa sabemos que a família é pobre, sem influência nem esperança. A mãe do estudante, irmã do major, tinha um pequeno sítio, que mal lhe dava para comer. O major exercia um emprego subalterno, e nem sequer tinha o gosto de ser verdadeiramente major. Chamavam-lhe assim, porque dois anos antes, em 1854, disse- se que ele ia ser nomeado Major da Guarda Nacional. Pura invenção, que muita gente acreditou realidade; e visto que lhe deram desde logo o título, repararam com ele o esquecimento do governo.

— Agora, juro-lhe que vosmecê há de ser major de verdade, dizia-lhe Máximo pondo na cabeça o chapéu de pêlo de lebre, depois de o escovar com muita minuciosidade.

— Homem, você quer que lhe diga? Isto de política já me não importa. Afinal, é tudo o mesmo...

— Mas há de ser major.

— Não digo que não, mas...

— Mas?

— Enfim, não digo que não.

Máximo abriu a porta e saíram. Ressoaram os passos de ambos no corredor mal alumiado. De um quarto ouviu-se uma cantarola, de outro um monólogo, de outro um tossir longo e cansado.

— É um asmático, disse o estudante ao tio, que punha o pé no primeiro degrau da escada para descer.

— Diabo de casa tão escura, disse ele.

— Arranjarei outra com luz e jardins, redargüiu o estudante.

E dando-lhe o braço, desceram à rua.

CAPÍTULO II

Naturalmente a leitora notou a impressão de tristeza do estudante, no meio da alegria que lhe trouxe o tio Bento. Não é provável que um herdeiro, na ocasião em que se lhe anuncia a herança, tenha outros sentimentos que não sejam de regozijo; daí uma conclusão da leitora — uma suspeita ao menos — suspeita ou conclusão que a leitora terá formulado nestes termos:

— O Máximo padece do fígado.

Engano! O Máximo não padece do fígado; goza até uma saúde de ferro. A causa secreta da tristeza súbita do Máximo, por mais inverossímil que pareça, é esta: —

O rapaz amava uma galante moça de dezoito anos, moradora na Rua dos Arcos, e amava sem ventura.

Desde dois meses fora apresentado em casa do Senhor Alcântara, à Rua dos Arcos. Era o pai de Eulália, que é a moça em questão. O Senhor Alcântara não era rico, exercia um emprego mediano no Tesouro, e vivia com certa economia e discrição; era ainda casado e tinha só duas filhas, a Eulália, e outra, que não passava de sete anos. Era um bom homem, muito inteligente, que se afeiçoou desde logo ao Máximo, e que, se o consultassem, não diria outra coisa senão que o aceitava para genro.

Tal não era a opinião de Eulália. Gostava de conversar com ele — não muito —, ouvia-lhe as graças, porque ele era gracioso, tinha repentes felizes; mas só isso. No dia em que o nosso Máximo se atreveu a interrogar os olhos de Eulália, esta não lhe respondeu coisa nenhuma, antes supôs que fora engano seu. Da segunda vez não havia dúvida; era positivo que o rapaz gostava dela e a interrogava. Eulália não pode ter-se que não comentasse o gesto do rapaz, no dia seguinte, com umas primas.

— Ora vejam!

— Mas que tem? aventurou uma das primas.

— Que tem? Não gosto dele; parece que é razão bastante. Realmente, há pessoas a quem não se pode dar um pouco de confiança. Só porque conversou um pouco comigo já pensa que é motivo para cair de namoro. Ora não vê!

Quando no dia seguinte, Máximo chegou à casa do Senhor Alcântara, foi recebido com frieza; entendeu que não era correspondido, mas nem por isso desanimou. Sua opinião é que as mulheres não eram mais duras do que as pedras, e entretanto a persistência da água vencia as pedras. Além deste ponto de doutrina, havia uma razão mais forte: ele amava deveras. Cada dia vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer inadmissível outra coisa que não fosse o casamento, e próximo; não sabia como seria próximo o casamento de um estudante sem dinheiro com uma dama, que o desdenhava; mas o desejo ocupa-se tão pouco das coisas impossíveis!

Eulália, honra lhe seja, tratou de desenganar as esperanças do estudante, por todos os modos, com o gesto e com a palavra; falava-lhe pouco, e às vezes mal. Não olhava para ele, ou olhava de relance, sem demora nem expressão. Não aplaudia, como outrora, os versos que ele ia ler em casa do pai, menos ainda lhe pedia que recitasse outros, como as primas; estas sempre se lembravam de um

Devaneio, um Suspiro ao luar, Teus olhos, Ela, Minha vida por um olhar, e outros pecados de igual peso, que o leitor pode comprar hoje por seiscentos réis, em brochura, na rua de S. José nº..., ou por trezentos réis, sem o frontispício. Eulália ouvia todas as belas estrofes compostas especialmente para ela, como se fossem uma página de S. Tomás de Aquino.

— Vou arriscar uma carta, disse um dia o rapaz, ao fechar a porta do quarto, da Rua da Misericórdia.

Efetivamente entregou-lhe uma carta alguns dias depois, à saída, quando ela já não podia recusá-la. Saiu precipitadamente; Eulália ficou com o papel na mão, mas devolveu-lho no dia seguinte.

Apesar desta recusa e de todas as outras, Máximo conservava a esperança de triunfar enfim da resistência de Eulália, e não a conservava senão porque a paixão era verdadeira e forte, nutrida de si mesma, e irritada por um sentimento de amor próprio ofendido. O orgulho do rapaz sentia-se humilhado, e, para perdoar, exigia a completa obediência. Imagine-se, portanto, o que seriam as noites dele, no quartinho da Rua da Misericórdia, após os desdéns de cada dia.

Na véspera do dia em que o major Bento veio de Iguaçu comunicar ao sobrinho a morte e a herança do padrinho, Máximo reuniu todas as forças e deu batalha campal. Vestiu nesse dia um paletó à moda, umas calças talhadas por mão de mestre, deu-se ao luxo de um cabeleireiro, retesou o princípio de um bigode mal espesso, coligiu nos olhos toda a soma da eletricidade que tinha no organismo, e foi para a Rua dos Arcos. Um colega de ano, confidente dos primeiros dias do namoro, costumava a fazer do nome da rua uma triste aproximação histórica e militar. — Quando sais tu da ponte d’Arcole? — Esta chufa sem graça nem misericórdia doía ao pobre sobrinho do major Bento, como se fosse uma punhalada, mas não o dizia, para não confessar tudo; apesar das primeiras confidências, Máximo era um solitário.

Foi; declarou-se formalmente, Eulália recusou formalmente, mas sem desdém, apenas fria. Máximo voltou para casa abatido e passou uma noite de todos os diabos. Há fortes razões para crer que não almoçou nesse dia, além de três ou quatro xícaras de café. Café e cigarros. Máximo fumou uma quantidade incrível de cigarros. Os vendedores de tabaco certamente contam com as paixões infelizes, as esperas de entrevistas, e outras hipóteses em que o cigarro é confidente obrigado.

Tal era, em resumo, a vida anterior de Máximo, e tal foi a causa da tristeza com que pôde resistir às alegrias de uma herança inesperada — e duas vezes inesperada, pois não contava com a morte, e menos ainda com o testamento do padrinho.

— Vivam os defuntos! Esta exclamação, com que recebera a notícia do major Bento, não trazia o alvoroço próprio de um herdeiro; a nota era forçada demais.

O major Bento não soube nada daquela paixão secreta. Ao jantar, via-o de quando em quando ficar calado e sombrio, com os olhos fitos na mesa, a fazer bolas de miolo de pão.

— Tu tens alguma coisa, Máximo? perguntava-lhe. Máximo estremecia, e procurava sorrir um pouco.
— Não tenho nada.

— Estás assim... um pouco... pensativo...

— Ah! é a lição de amanhã.

— Homem, isto de estudos não deve ir ao ponto de fazer adoecer a gente. Livro faz a cara amarela. Você precisa de distrair-se, não ficar metido naquele buraco da Rua da Misericórdia, sem ar nem luz, agarrado aos livros...

Máximo aproveitava estes sermões do tio, e voava outra vez à Rua dos Arcos, isto é, às bolas de miolo de pão e aos olhos fitos na mesa. Num desses esquecimentos, e enquanto o tio despia uma costeleta de porco, Máximo disse em voz alta:

— Justo.

— O que é? perguntou o major.

— Nada.

— Você está falando só, rapaz? Hum? aqui há coisa. Hão de ver as italianas do teatro.

Máximo sorriu, e não explicou ao tio por que motivo lhe saíra aquela palavra da boca, uma palavra seca, nua, vaga, susceptível de mil aplicações. Era um juízo? uma resolução?

CAPÍTULO III

Máximo teve uma idéia singular: experimentar se Eulália, rebelde ao estudante pobre, não o seria ao herdeiro rico. Nessa mesma noite foi à Rua dos Arcos. Ao entrar, disse-lhe o Senhor Alcântara:

— Chega a propósito; temos aqui umas moças que ainda não ouviram o Suspiro ao luar.

Máximo não se fez de rogado; era poeta; supunha-se grande poeta; em todo caso recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns olhos cheios de morte e de vida. Abotoou o paletó com uma intenção chateaubriânica, mas o paletó recusou-se a intenções estrangeiras e literárias. Era um prosaico paletó nacional, da Rua do Hospício nº... A mão ao peito corrigiu um pouco a rebeldia do vestuário; e esta circunstância persuadiu a uma das moças de fora que o jovem estudante não era tão desprezível como lhe havia dito Eulália. E foi assim que os versos começaram a brotar-lhe da boca — a adejar-lhe, que é melhor verbo para o nosso caso.

— Bravo! bravo! diziam os ouvintes, a cada estrofe.

Depois do Suspiro ao luar , veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia denominava-se Uma cabana e teu amor — houve um geral murmúrio de admiração. Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em Eulália.

— Forte tolo! disse a moça consigo.

Geralmente, quando uma mulher tem de um homem a idéia que Eulália acabava de formular — está prestes a mandá -lo embora de uma vez ou a adorá-lo em todo o resto da vida. Um moralista dizia que as mulheres são extremas: ou melhores ou piores do que os homens. Extremas são, e daí o meu conceito. A nossa Eulália estava no último fio da tolerância; um pouco mais, e o Máximo ia receber as derradeiras despedidas. Naquela noite mais do que nunca, pareceu- lhe insuportável o estudante. A insistência do olhar — ele, que era tímido, — o ar de soberania, certa consciência de si mesmo, que até então não mostrara, tudo o condenou de uma vez.

— Vamos, vamos, disseram os curiosos ao poeta.

— Uma cabana e teu amor, repetiu Máximo.

E começou a recitar os versos. Essa composição intencional dizia que ele, poeta, era pobre, muito pobre, mais pobre do que as aves do céu; mas que à sombra de uma cabana, ao pé dela, seria o mais feliz e mais opulento homem do mundo. As últimas estrofes — juro que não as cito senão por ser fiel à narração — as estrofes derradeiras eram assim:

Que me importa não tragas brilhantes,

Refulgindo no teu colo nu?
Tens nos olhos as jóias vibrantes,
E a mais nítida pérola és tu.
Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso, a teus pés,
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!

O efeito destes versos foi estrondoso. O Senhor Alcântara, que suava no Tesouro todos os dias para evitar a cabana e o almoço, um tanto parco, celebrado nos versos do estudante, aplaudiu entusiasticamente os desejos deste, notou a melodia do ritmo, a doçura da frase, etc...

— Oh! muito bonito! muito bonito! exclamava ele, e repetia entusiasmado:

Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso a teus pés,
Amoroso a teus pés... Que mais?
Amoroso a teus pés, e... Ah! sim:
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!

Note-se — e este rasgo mostrará a força de caráter de Eulália —, note-se que Eulália achou os versos bonitos, e achá-los-ia deliciosos, se os pudesse ouvir com orelhas simpáticas. Achou-os bonitos, mas não os aplaudiu.

“Armou-se uma brincadeira” para usar a expressão do Senhor Alcântara, querendo dizer que se dançou um pouco. — Armemos uma brincadeira, bradara ele. Uma das moças foi para o piano, as outras e os rapazes dançaram. Máximo alcançou uma quadrilha de Eulália; no fim da terceira figura disse-lhe baixinho:

— Pobre sou, pobre quero ajoelhado...

— Quem é pobre não tem vícios, respondeu a moça rindo, com um pouco de ferocidade nos olhos e no coração.

Máximo enfiou. Não me amará nunca, pensou ele. Ao chá, restabelecido do golpe, e fortemente mordido do despeito, lembrou-se de dar a ação definitiva, que era noticiar a herança. Tudo isso era tão infantil, tão adoidado, que a língua entorpeceu-se -lhe no melhor momento, e a notícia não lhe saiu da boca. Foi só então que ele pensou na singularidade duma notícia daquelas, em plena ceia de estranhos, depois de uma quadrilha e alguns versos. Esse plano, afagado durante a tarde e a noite, que lhe parecia um prodígio de habilidade, e talvez o fosse deveras, esse plano apareceu-lhe agora pela face obscura, e achou-o ridículo. Minto: achou-o ousado apenas. As visitas começaram a despedir-se, e ele foi obrigado a despedir-se também. Na rua, arrependeu-se, chamou-se covarde, tolo, maricas, todos os nomes feios que um caráter fraco dá a si mesmo, quando perde uma ação. No dia seguinte meteu-se a caminho para Iguaçu.

Seis ou sete semanas depois, tornado de Iguaçu, a notícia da herança era pública. A primeira pessoa que o visitou foi o Senhor Alcântara, e força é dizer que a pena com que lhe apareceu era sincera. Ele o aceitara ainda pobre; é que deveras o estimava.

— Agora continua os seus estudos, não é? perguntou ele.

— Não sei, disse o rapaz; pode ser que não.

— Como assim?

— Estou com idéias de ir estudar na Europa, na Alemanha, por exemplo; em todo o caso, não irei este ano. Estou moço, não preciso ganhar a vida, posso esperar.

O Senhor Alcântara deu a notícia à família. Um irmão de Eulália não se teve que não lançasse em rosto à irmã os seus desdéns, e sobretudo a crueldade com que os manifestara.

— Mas se não gosto dele, e agora? dizia a moça.

E dizia isso arrebitando o nariz, e com um jeito de ombros, seco, frio, enfarado, amofinado.

— Ao menos confesse que é um moço de talento, insistiu o irmão.

— Não digo que não.

— De muito talento.

— Creio que sim.

— Se é! Que bonitos versos que ele faz! E depois não é feio. Você dirá que o Máximo é um rapaz feio?

— Não, não digo.

Uma prima, casada, teve para Eulália os mesmos reparos. A essa confessou Eulália que o Máximo nunca se declarara deveras, embora lhe mandasse algumas cartas.

— Podia ser caçoada de estudante, disse ela.

— Não creio.

— Podia.

Eulália — e aqui começa a explicar-se o título deste conto — Eulália era de um moreno pálido. Ou doença, ou melancolia, ou pó-de-arroz, começou a ficar mais pálida depois da herança do Iguaçu. De maneira que, quando o estudante lá voltou um mês depois, admirou-se de a ver, e de certa maneira sentiu-se mais ferido. A palidez de Eulália tinha-lhe dado uns trinta versos; porque ele, romântico acabado, do grupo clorótico, amava as mulheres pela falta de sangue e de carnes. Eulália realizara um sonho; ao voltar de Iguaçu o sonho era simplesmente divino.

Isto acabaria aqui mesmo, se Máximo não fosse, além de romântico, dotado de uma delicadeza e de um amor-próprio extraordinários. Essa era a outra feição principal dele, a que me dá esta novelita; porque se tal não fora... Mas eu não quero usurpar a ação do capítulo seguinte.

CAPÍTULO IV

— Quem é pobre não tem vícios. Esta frase ainda ressoava aos ouvidos de Máximo, quando já a pálida Eulália mostrava-se outra para com ele — outra cara, outras maneiras, e até outro coração. Agora, porém, era ele que desdenhava. Em vão a filha do Senhor Alcântara, para resgatar o tempo perdido e as justas mágoas, requebrava os olhos até onde eles podiam ir sem desdouro nem incômodo, sorria, fazia o diabo; mas, como não fazia a única ação necessária, que era apagar literalmente o passado, não adiantava uma linha; a situação era a mesma.

Máximo deixou de freqüentar a casa algumas semanas depois da volta de Iguaçu, e Eulália voltou as esperanças para outro ponto menos nebuloso. Não nego que as noivas começaram a chover sobre o recente herdeiro, porque negaria a verdade conhecida por tal; não foi chuva, foi tempestade, foi um tufão de noivas, qual mais bela, qual mais prendada, qual mais disposta a fazê-lo o mais feliz dos homens. Um antigo companheiro da Escola de Medicina apresentou-o a uma irmã, realmente galante, D. Felismina. O nome é que era feio; mas que é um nome? What is a name? como diz a flor dos Capuletos.

— D. Felismina tem um defeito, disse Máximo a uma prima dela, um defeito capital; D. Felismina não é pálida, muito pálida.

Esta palavra foi um convite às pálidas. Quem se sentia bastante pálida afiava os olhos contra o peito do ex-estudante, que em certo momento achou-se uma espécie de hospital de convalescentes. A que se seguiu logo foi uma D. Rosinha, criatura linda como os amores.

— Não podes negar que D. Rosinha é pálida, dizia-lhe um amigo.

— É verdade, mas não é ainda bem pálida, quero outra mais pálida.

D. Amélia, com quem se encontrou um dia no Passeio Público, devia realizar o sonho ou o capricho de Máximo; era difícil ser mais pálida. Era filha de um médico, e uma das belezas do tempo. Máximo foi apresentado por um parente, e dentro de poucos dias freqüentava a casa. Amélia apaixonou-se logo por ele, não era difícil — já não digo por ser abastado, — mas por ser realmente belo. Quanto ao rapaz, ninguém podia saber se ele deveras gostava da moça, ninguém lhe ouvia coisa nenhuma. Falava com ela, louvava-lhe os olhos, as mãos, a boca, as maneiras, e chegou a dizer que a achava muito pálida, e nada mais.

— Ande lá, disse-lhe enfim um amigo, desta vez creio que encontraste a palidez mestra.

— Ainda não, tornou Máximo; D. Amélia é pálida, mas eu procuro outra mulher mais pálida.

— Impossível.

— Não é impossível. Quem pode dizer que é impossível uma coisa ou outra? Não é impossível; ando atrás da mulher mais pálida do universo; estou moço, posso esperá-la.

Um médico, das relações do ex-estudante, começou a desconfiar que ele tivesse algum transtorno, perturbação, qualquer coisa que não fosse a integridade mental; mas, comunicando essa suspeita a alguém, achou a maior resistência em crer-lha.

— Qual doido! respondeu a pessoa. Essa história de mulheres pálidas é ainda o despeito que lhe ficou da primeira, e um pouco de fantasia de poeta. Deixe passar mais uns meses, e vê-lo-emos coradinho como uma pitanga.

Passaram-se quatro meses; apareceu uma Justina, viúva, que tratou de apoderar-se logo do coração do rapaz, o que lhe custaria tanto menos, quanto que era talvez a criatura mais pálida do universo. Não só pálida de si mesma, como pálida também pelo contraste das roupas de luto. Máximo não encobriu a forte impressão que a dama lhe deixou. Era uma senhora de vinte e um a vinte e dois anos, alta, fina, de um talhe elegante e esbelto, e umas feições de gravura. Pálida, mas, sobretudo, pálida.

Ao fim de quinze dias o Máximo freqüentava a casa com uma pontualidade de alma ferida, os parentes de Justina trataram de escolher as prendas nupciais, os amigos de Máximo anunciaram o casamento próximo, as outras candidatas retiraram-se. No melhor da festa, quando se imaginava que ele ia pedi-la, Máximo afastou-se da casa. Um amigo lançou-lhe em rosto tão singular procedimento.

— Qual? disse ele.

— Dar esperanças a uma senhora tão distinta...

— Não dei esperanças a ninguém.

— Mas enfim não podes negar que é bonita?

— Não.

— Que te ama?

— Não digo que não, mas...

— Creio que também gostas dela...

— Pode ser que sim.

— Pois então?

— Não é bem pálida; eu quero a mulher mais pálida do universo.

Como estes fatos se reproduzissem, a idéia de que Máximo estava doido foi passando de um em um, e dentro em pouco era opinião. O tempo parecia confirmar a suspeita. A condição da palidez que ele exigia da noiva, tomou-se pública. Sobre a causa da monomania disse-se que era Eulália, uma moça da Rua dos Arcos, mas acrescentou-se que ele ficara assim porque o pai da moça recusara o seu consentimento, quando ele era pobre; e dizia-se mais que Eulália também estava doida. Lendas, lendas. A verdade é que nem por isso deixava de aparecer uma ou outra pretendente ao coração de Máximo; mas ele recusava-as todas, asseverando que a mais pálida ainda não havia aparecido.

Máximo padecia do coração. A moléstia agravou-se rapidamente; e foi então que duas ou três candidatas mais intrépidas resolveram-se a queimar todos os cartuchos para conquistar esse mesmo coração, embora doente, ou parce que...

Mas, em vão! Máximo achou-as muito pálidas, mas ainda menos pálidas do que seria a mulher mais pálida do universo.

Vieram os parentes de Iguaçu; o tio major propôs uma viagem à Europa; ele, porém, recusou. — Para mim, disse ele, é claro que acharei a mulher mais pálida do mundo, mesmo sem sair do Rio de Janeiro.

Nas últimas semanas, uma vizinha dele, em Andaraí, moça tísica, e pálida como as tísicas, propôs-lhe rindo, de um riso triste, que se casassem, porque ele não acharia mulher mais pálida.

— Acho, acho; mas se não achar, caso com a senhora.

A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.

Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes de cair teve tempo de murmurar.

— Pálida... pálida...

Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim desposar, outros, acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros que de Eulália, etc... Alguns crêem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião, posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.

Fontes:
Publicado originalmente em A Estação, de 15/08/1881 a 30/09/1881.