segunda-feira, 11 de julho de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) VII – Coisas da Lua


— Quem é você, criaturinha? — perguntou São Jorge parando diante dela.

— Eu sou a Emília, antiga Marquesa de Rabicó, sua criada — respondeu a boneca, muito lampeira e lambeta.

O santo ficou na mesma. E ainda estava na mesma, sem compreender coisa nenhuma, quando viu aparecerem Pedrinho e Narizinho com Tia Nastácia atrás, de mãos postas, rezando atropeladamente quantas orações sabia.

— Como conseguiram chegar até aqui? — perguntou ele. Isto me parece a maravilha das maravilhas.

— Foi o pó de pirlimpimpim que nos trouxe — respondeu Pedrinho — e dessa vez São Jorge ficou na mesmíssima.

— Não conheço semelhante droga — disse ele — mas deve ser das mais enérgicas, porque a distância da Terra à Lua é de 64.000 léguas — um bom pedaço!

Pedrinho riu-se e respondeu numa gíria que o santo não podia entender:

— Para o nosso pó essa distância é a canja das canjas. Num pisco devoramos essas 64.000 léguas como se fossem uns biscoitinhos de polvilho dos que derretem na boca.

O santo admirou-se da maravilha e disse:

— Estimo muito, mas saiba que inúmeros homens têm tentado vir à Lua e bem poucos o conseguiram. O último veio dentro duma bala de canhão, num tiro mal calculado. A bala passou por cima da Lua e ficou rodando em redor dela. Não sei quem foi esse maluco.

— Eu sei! — gritou Pedrinho. — Foi um personagem de Júlio Verne, no romance Da Terra à Lua. Vovó já nos leu isso.

São Jorge estava ali desde o reinado do Imperador Diocleciano sem outra companhia a não ser o dragão, de modo que ficava muito alegre quando alguém aparecia por lá. Mas como era raro! Um dos “lueiros” mais interessantes foi um tal Cyrano de Bergerac, que por lá andou e escreveu a respeito uma obra célebre. E agora apareciam aquelas criaturas — duas crianças, uma negra velha, uma bonequinha... Foi com imenso prazer que o santo começou a indagar de tudo — quem eram, como se chamavam, onde moravam, e que negra tão esquisita era aquela.

— E o senhor? — quis saber Emília depois que tudo foi explicado. — Agora que sabe a nossa história, conte-nos a sua.

São Jorge contou que nascera príncipe da Capadócia e tivera no mundo vida muito agitada. A sua luta contra o poderosíssimo mágico Atanásio ficou histórica. Por fim fez-se cristão e em virtude disso padeceu morte cruel numa das matanças de cristãos ordenadas pelo Imperador Diocleciano. Depois da morte veio morar na Lua.

— E sabe que é hoje o patrono da Inglaterra? — lembrou Narizinho. — Vovó diz que o senhor é o santo mais graúdo de todos, porque dá o nome a muitas ordens de cavalaria e tem aparecido até em moedas de ouro.

São Jorge não sabia nada daquilo, nem sequer que era santo, porque só depois de sua morte é que começou a virar tanta coisa. Também não sabia o que era ser “patrono da Inglaterra”, nem o que significava isto de “ordens de cavalaria”. Os meninos tiveram de dar-lhe uma lição de tudo.

— Mas não posso compreender donde vem a minha importância, o meu “graudismo”... — declarou ele com toda a modéstia, pensativamente.

— Eu sei! — berrou Emília. — É por causa do dragão e dessa tremenda e bonita armadura de guerreiro. Santos de camisolão e porretinho podem ser muito milagrosos, mas não impressionam. Diga-me uma coisa: onde é que descobriu esse dragão?

O santo contou que era um monstro que ele havia matado certa vez em que o encontrou prestes a devorar a filha do rei da Líbia.

— Mas se o matou, como é que o dragão está vivinho aqui?

— Mistérios deste mundo de mistérios, gentil bonequinha. Eu também fui morto e no entanto todos lá da Terra (segundo vocês dizem) me vêem aqui nesta Lua, a cavalo, de lança erguida contra o dragão. Mistérios deste mundo de mistérios.

Enquanto as crianças se entretinham com São Jorge, Tia Nastácia o espiava de longe, fazendo volta e meia um trêmulo pelo-sinal. A pobre negra não entendia coisa nenhuma do que estava se passando.

Pedrinho começou a fazer perguntas sobre a Lua, que São Jorge respondia com verdadeira paciência de santo.

— Pois isto aqui, meus meninos, é o satélite da nossa querida Terra. Satélite vocês devem saber o que é...

— Eu sei! — gritou Emília. — É como um cachorro que segue o dono!...

São Jorge riu-se.

— Sim. Satélite é uma coisa que segue outra, e na linguagem astronômica é um planeta que gira em redor de outro.

— Eu também sei o que é planeta -— disse Emília com todo o oferecimento (parecia até que estava namorando São Jorge). — É um astro que gira em redor do Sol, e é também o nome duns arados que Dona Benta tem lá no sítio...

— Muito bem — aprovou o santo. — O planeta gira em redor do Sol e o satélite gira em redor do planeta. A Lua é o satélite da Terra; é uma filha da Terra, hoje mais velha que a mãe.

Os meninos admiraram-se.

— Mais velha como? — indagou Pedrinho. — De que modo uma filha pode ser mais velha que a mãe?

— Há filhas que envelhecem mais depressa que as mães — respondeu o santo — e Emília confirmou essa idéia com a citação do caso duma Nhá Viça que morava perto da casinha do Tio Barnabé. — “A Nhá Viça é filha da Nhá Tuca e está dez vezes mais velha que a mãe por causa dum tal reumatismo.”

São Jorge riu-se e explicou:

— A velhice dos astros não se mede pelos anos que eles têm e sim pelo grau de resfriamento a que chegaram. O Sol, por exemplo, é o pai de todos os planetas e no entanto mostra-se muito mais jovem que esses filhos. Por quê? Porque está custando muito a resfriar.

— Eu sei a razão — declarou Pedrinho. — É por causa do tamanho. Já fiz a experiência lá em casa. Esquentei no fogão uma bola de ferro grande e uma pequenininha. A grande levou muitíssimo mais tempo para esfriar.

— Exatamente — aprovou o santo. — O Sol também há de acabar tão resfriado quanto esta Lua, mas isto só daqui a milhões de séculos. O Sol, que é muitíssimas vezes maior que a Terra, levará muito mais tempo para resfriar. A Lua sendo 49 vezes menor que a Terra tinha de resfriar-se muito mais depressa.

— E não há vida por aqui? — indagou Pedrinho. — A opinião geral entre os homens é que a Lua é um astro totalmente morto, sem vida humana.

— Eu também julguei que assim fosse — disse São Jorge. — mas ao vir para cá verifiquei o contrário. Ainda há alguma vida na Lua. Acontece, porém, que a vida está muito mais adiantada na Terra, de modo que nós nem reconhecemos os animais e as plantas daqui. São diferentíssimos. Também o ar é muito rarefeito, de modo que os animais e as plantas tiveram de adaptar-se a essa situação.

— Então o ar da Lua é rarefeito assim? — perguntou Pedrinho, já com um começo de falta de ar — e quando soube que era várias vezes mais rarefeito que o ar da Terra, ficou numa grande aflição, a respirar precipitadamente — e todos fizeram o mesmo. Emília chegou a dar escândalos com a sua falta de ar...

Depois São Jorge contou que a Lua gasta um mês para dar uma volta em redor da Terra; mas como gira sobre si mesma no mesmo espaço de tempo, está sempre com a mesma face voltada para a Terra.

— Isso eu sei — gritou Emília — porque desde que vim ao mundo sempre vi a Lua com a mesma cara. E é por isso que gosto da Lua. Tenho ódio às criaturas de duas caras...

São Jorge explicou que pelo fato de a Lua gastar um mês para dar uma volta em redor da Terra, os dias ali eram compridíssimos e as noites também.

— Cada dia aqui equivale a quatorze dias lá da Terra; e cada noite equivale a quatorze noites de lá. E por causa disso só há duas estações: verão e inverno. O verão é o dia; o inverno é a noite. O dia é quentíssimo e a noite é geladíssima.

— Nesse caso, quantos dias de 24 horas tem o ano aqui? — perguntou Narizinho.

— Tem doze dias — cada dia correspondendo a um mês lá da Terra.

Todos se admiraram.

— Quer dizer então — lembrou a menina — que se eu fosse nascida na Lua teria apenas 120 dias de idade — quatro meses?

— Exatamente. Se lá na Terra você tem dez anos, aqui teria quatro meses. Seria uma nenezinha...

— Que graça! — exclamou Emília. — E Dona Benta? Que idade teria Dona Benta, se fosse lunática?

— Dois anos e quatro meses — mas “lunático” quer dizer “maluco” e não “habitante da lua”. Os habitantes da Lua chamam-se “selenitas”.

— Por quê?

— Porque em grego o nome da Lua é “Selene”. Selenita e uma palavra derivada do grego.

Pedrinho quis saber das montanhas e mares da Lua, e contou que num livro de Flammarion vira um mapa da Lua cheio de nomes de mares e montanhas. E com grande admiração do santo foi dizendo os nomes daqueles mares e montes. Falou no mar da Serenidade, no mar dos Humores, no mar das Chuvas, no mar das Nuvens, no mar do Néctar...

— Esse eu quero conhecer! — berrou Emília. — Tomar banho no mar do Néctar deve ser batatal!...

São Jorge franziu a testa. “Batatal?” Nem batata ele sabia o que era, quanto mais batatal! Pedrinho teve primeiro de contar a história da batata, que apareceu no mundo depois da descoberta da América, para depois explicar o que Emília queria dizer com o tal “batatal”.

— Quando uma coisa é muito boa, mas boa mesmo de verdade, Emília vem sempre com esse “batatal”...

Em seguida Pedrinho desfiou o nome das montanhas da Lua que havia visto no mapa do Flammarion.

— Há inúmeras montanhas — disse ele — batizadas com o nome de astrônomos e sábios célebres. Há a montanha de Fabrício, a de Clávio, a de Plínio, a de Platão, a de Aristóteles, a de Copérnico... Vovó diz que a Lua é o cemitério dos astrônomos. A ciência os vai enterrando nestas montanhas aqui.

São Jorge admirou-se daquilo e contou que a montanha que dali avistavam era a mais alta da Lua. “Então deve ser o monte Leibniz, com 7.610 metros de altura, o mais alto de todos”, explicou Pedrinho.

São Jorge achou muito interessante a idéia que os homens faziam da Lua, mas declarou que havia erros.

— Os mares, por exemplo, parecem mares vistos lá da Terra; mas não são mares, sim imensas florestas das plantas que existem aqui.

— E que plantas são essas? — quis saber Pedrinho.

— São as plantas que a nossa Terra vai ter quando ficar velhinha como a Lua. Hoje você olha e nem entende essas plantas. Como também não entende os animais daqui, de tão diferentes que são dos da Terra. Isso de quatorze em quatorze dias a Lua passar dum terrível verão para um terrível inverno fez das plantas e dos animais lunares umas coisas que nem entendemos. E também muito influiu a rarefação do ar. Os animais tiveram que tornar-se quase que só pulmões. São verdadeiros “pulmões animalizados”. A Emília há pouco manifestou vontade de ver um gatinho e um cachorrinho da Lua — mas se os visse nem sequer os reconheceria. São mais pulmões-bichanos do que gatos...

— Eu quero ver um pulmão-bichano! — berrou Emília. — Eu quero ver um pulmão-totó!...

— É difícil — informou o santo. — Além de serem raros, esses animais andam muito bem ocultos no fundo dessas crateras, onde ainda há uns restos de água.

— Por falar em cratera, como há disso por aqui! — observou Pedrinho. — Parece que antigamente a Lua não fazia outra coisa senão brincar de vulcão.

— Realmente — concordou o santo. — O número de crateras na Lua é prodigioso, mas estas crateras não são de vulcões. São de bolhas que arrebentaram, quando isto aqui era tudo pedra derretida.

— Como bolhas de sabão de cinza no tacho — exemplificou Emília.
–––––––––––-
Continua … VIII – A Terra vista da Lua
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 10 de julho de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 269)


Uma Trova Nacional

Se a liberdade gozamos,
em nosso amor sem dilemas,
é que os anéis que trocamos
não foram jamais algemas!
-HERMOCLYDES S. FRANCO/RJ-

Uma Trova Potiguar

Ouvi o mar soluçando
antes da tarde morrer,
e a vela branca enxugando
o pranto do entardecer...
–JONAS RAMOS/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - Curitiba/PR
Tema: MADRUGADA - Venc.

Pelas noites desoladas,
minha saudade, sem sono,
vai contando, em madrugadas,
os meus dias de abandono...
–MARINA BRUNA/SP–

Uma Trova de Ademar

O mar, sem ter embaraços,
em noites de lua cheia,
carrega a praia nos braços
para deitá-la na areia...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Hoje, a infância me recorda
esse velho amigo meu:
um palhacinho de corda
tão sem corda quanto eu!...
–ELTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

MOTE:
Os meus sonhos de poeta
Já foram realizados.

GLOSA:
Nunca fui um bom esteta,
Mas fiz da forma uma lei
E na trova não frustrei
Os meus sonhos de poeta;
O que falta, Deus completa
Pra redimir os pecados
Dos versos desengonçados
Que discrepam dos demais,
Por isso meus ideais
Já foram realizados.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Estrofe do Dia

Repentista, poeta e cantador,
teu cantar livremente se levanta;
é teu grito holocausto da garganta
como quem quer matar a própria dor.
Há um toque de sonho e de amor
e um namoro de musa passageira,
teu cantar rasga o peito a vida inteira
na tangente da lira nordestina;
e tua voz tem o som de concertina
musicando a poesia brasileira.
–OLIVEIRA DE PANELAS/PE–

Soneto do Dia

–RAIMUNDO CORREIA/MA–
As Pombas...

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Cantando ao Som das Setilhas (Debate pela Internet) Parte 2


15 – ZÉ LUCAS
Aqui, se instala o verão
quando as nuvens vão embora;
inverno, prá nós, é chuva
que veste de verde a flora.
Quase todo o tempo é quente,
e o frio é como um presente,
mas, quando vem, não demora.

16 – GISLAINE CANALES
Tempo ruim, não vigora,
quando se ama e se é amado,
as chamas do coração
ficam num cofre fechado,
aquecendo o mundo inteiro,
e como um bom timoneiro,
buscam com fé, seu pescado!

17 – PROF. GARCIA
No meu sertão castigado
sem chuva é bem diferente.
O sertanejo sofrido
na terra escaldante e quente,
mete a enxada e cava o chão,
planta o próprio coração
mas perde a própria semente!

18 – DELCY CANALLES
O nordestino é paciente,
não perde, jamais, a crença;
continua, sempre à esperança
de ver, da chuva, a presença,
que lhe renova a esperança,
pois faz crescer-lhe a confiança,
que, na verdade, é imensa!

19 – A. A. DE ASSIS
O que assusta é essa doença,
essa tal gripe ruim;
todo mundo resfriado,
atichim, tichim, tichim…
Que venha logo a vacina
e permita à medicina
dar a esse pânico um fim.

20 – ARLINDO TADEU HAGEN
A gripe – tenho prá mim -
fez um estrago daninho
na pobre vida do porco.
Em protesto, eu encaminho
um protesto à Medicina:
– Retire o nome “suína”
para alívio do porquinho.

21 – THALMA TAVARES
Essa história do porquinho
grande remorso me atiça.
O porco é nosso alimento
e o exemplo da preguiça.
Seu nome virou má fama
e além de fuçar na lama
o pobre vira linguiça.

22 – ZÉ LUCAS
Com a derradeira missa,
partimos pra eternidade,
depois das dores da morte,
eis a dura realidade!
Morrer é nosso destino,
mas, com gripe de suíno,
meu Deus, que infelicidade!

23 – GISLAINE CANALES
Eis nossa realidade:
A vacina vai chegar,
bem antes do que pensamos,
e vamos nos animar,
pois é gostoso viver;
continuemos a escrever
versos, que fazem sonhar!

24 – PROF. GARCIA
O instante é de repensar
em tudo que a gente faz;
esquecer gripe suína,
e em casa viver em paz,
que a ciência em seus denodos,
descobrirá seus engodos,
e o mal por si, se desfaz.

25 – DELCY CANALLES
Vamos sonhar com a paz
e pensar com otimismo,
pois somos todos poetas,
unidos pelo lirismo,
capazes de, coma poesia,
viverem seu dia-a-dia,
sem a cruz do pessimismo!

26 – A. A. DE ASSIS
Que bom que em volibolismo
e em futebol “nós é mil”…
No treininho contra a Estônia
deu vitória do Brasil.
Se assim fosse a gente em tudo,
seria um país sortudo
nossa amada mãe gentil.

27 – ARLINDO TADEU HAGEN
Imaginem o Brasil
com lideranças corretas!
Verdadeiro paraíso
governado por estetas:
na Câmara – os trovadores;
no Senado – os escritores,
num Congresso de poetas!!!

28 – THALMA TAVARES
Os poetas são patetas
prá políticos astutos.
Nosso ideal os assusta
porque somos impolutos…
Queremos os três poderes
cumprindo com seus deveres
e condenando os corruptos.
===========
continua…
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Fonte:
José Lucas e parceiros. Cantando ao som das setilhas. Natal/RN: 2011.

Pedro Ornellas (Setilhas “Na Roça tem…”) Parte I

"A Roça" de Gustavo Salgado.
Ao receber do amigo e grande poeta Thalma Tavares o livro "Cantando ao Som das Setilhas", que traz o resultado de um exercício poético entre trovadores, pela internet, resolvi enviar a vocês uma iniciativa nossa parecida.

Na comunidade do orkut "Sou Trovador", do José Ouverney, propus setilhas com o tema "Na Roça Tem..." que oferece mil possibilidades. O resultado me alegrou e surpreendeu, com as maravilhas criadas na hora por diversos poetas.

As regras: obedecer rigorosamente o tema e a disposição das rimas.

Na roça tem cafeeiro,
tem milharal, galinheiro,
tem terreiro e pé no chão,
mas shopping... isso não tem não!
Tem alambique, aguardente,
tem um cheiro... (e a gente sente)
que alegra o meu coração!
(SELINA KYLE)

Lá tem forno de tijolo,
tem fubá pra fazê bolo,
tem arroz doce, canjica...
lá tem grama tiririca...
na baixada tem neblina,
lá se bebe água da mina
que a gente apara na bica!
(PEDRO ORNELLAS)

Tem ovos frescos nos ninhos
umas dúzias de pintinhos...
Tem o forno de assar pão
perto do caramanchão...
E lá pras bandas do açude
reina a paz e a quietude,
que inspira a minha canção!
(SÔNIA TARASSIUK)

Tem vaqueiro corajoso
que laça o boi trabalhoso,
escondido lá na mata...
Tem plantação de batata,
de milho, cana e algodão,
riacho, lavando o chão
que a enxada tanto maltrata.
(CIDA)

No portal um candeeiro,
dentro do colchão, dinheiro.
Tem gaiola nas janelas
e nas portas tem tramelas.
Carne de porco na banha,
nas paredes tem aranha
e biscoito nas gamelas.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem no pé fruta fresquinha,
tem gabiroba, tem pinha,
tem mixirica, mamão...
tem melancia, pinhão,
laranja-lima, pitanga;
tem caqui, banana, manga,
jabuticaba e melão!
(PEDRO ORNELLAS)

O piso da casa é chão,
tem nos fundos um pilão.
Forno de torrar farinha
e um poleiro de galinha.
“Combinação” no varal,
carro de boi no curral,
canivete na bainha!
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Faz xixi na bananeira,
na parede tem peneira,
colchão de palha de milho,
caminho da roça é trilho,
a comida é na marmita!
leite gordo de cabrita
pra fazer Lei no Gatilho!
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Na roça, tem a porteira
entre o cercado e a ladeira,
e açudes transbordando...
onde o caipira pescando
tem o almoço garantido.
Depois, na rede, estendido
o rádio, fica escutando.
(CIDA)

Tem carinho e muito amor,
tem roupa no quarador ,
lavada em água de anil,
tem flores no peitoril
tem muita ave no campo
tem sapo, tem pirilampo
nas lindas noites de abril.
(MARILU MOREIRA)

Tem casinha de sapé,
bolo de fubá,café,
mandioca frita e pamonha
e,a Mariazinha que sonha,
com um casório bonito
na igrejinha,com Nhô Dito!
Nessa...Coitada da "Tonha!"
(VÂNYA DULCE)

Lá na roça tem porão,
pinguela com guarda-mão,
capanga pra guardar prego,
( muito suja, eu não nego),
café pronto na chaleira,
tem pinga na prateleira
pra deixar matuto "cego."
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Em casa simples da roça
tem coisa com muita bossa
tem peneira de taquara
tem bode que é a minha cara
tem poço d'água, bem fundo
com a melhor água do mundo
que nada se lhe compara.
(ILNEA MIRANDA)

Uma rede na varanda
Uma roda de ciranda
A mesa farta e comprida
Onde senta muita vida
Fartura lá do quintal
Para se encher o bornal
Tem na roça, tão esquecida!
(SÔNIA TARASSIUK)

Na caneca de latinha
café ralo com farinha
tem biju feito pra mim
tem mandioca e aipim
batata assada na brasa
do fogão que aquece a casa
lá na roça é bem assim.
(ILNEA MIRANDA)

Tem janela pro luar,
serenata pra beijar,
tem poltrona de madeira,
muita uva na videira.
De carinho tem fartura,
dos avós tem a moldura
para amar a vida inteira!
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem vaquinha no curral
roupa limpa no varal
leite fresco a qualquer hora
e a viola que consola
o caboclo seresteiro
no banquinho do terreiro
quando o sol está indo embora!
(SÔNIA TARASSIUK)

Tem cachorro perdigueiro,
tem um galo no poleiro,
tem galinha garnisé,
tem até um pangaré...
Tem noite de lua cheia
tem viola que ponteia
pra animar o arrasta-pé.
(MARILU MOREIRA)

Lá tem contador de história
que cisma em contar vitória;
tem gado preso em cercado
bem tangido e bem cuidado.
Tem tocador de sanfona
que deixa a lua chorona
e o caboclo apaixonado.
(CIDA)

Monjolo pilando milhos,
comadre com treze filhos,
compadre cortando palha
raspando fumo em navalha.
“Neguinha” picando lenha
de novo a patroa “prenha”
se ocupa em coser a malha.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem muito bicho mansinho,
tem gato, tem cachorrinho,
tem chaleira no fogão...
... pamonha, curau, quentão.
Tem cortina na janela
e à noite a luz de uma vela
me ilumina o coração.
(SELINA KYLE)

Tem torradô de café,
tem tomém bicho de pé,
jogo de truco e de maia...
botina, chapéu de paia...
tem monjolo, tem pilão,
tem festa, tem mutirão
e amigo bom que não faia!
(PEDRO ORNELLAS)

Sanfona marcando o som,
a viola no mesmo tom,
e o cantador a cantar
que a saudade quer matar...
Vim da roça pra cidade,
mas não aguento a saudade,
e acho que hoje vou voltar!
(SELINA KYLE)

Tem trator e tratorista
e cana a perder de vista,
tem vaca com bezerrinho,
marreco pequenininho.
Tem rio cheio no inverno
(que pena, não é eterno)
empatando o meu caminho.
(CIDA)

Tem comadre faladeira
que não fica de bobeira
Fala mal do que não sabe
mas nem a culpa lhe cabe
pois se não for repetido
tudo será esquecido...
talvez... a fofoca acabe.
(ILNEA MIRANDA)

Na roça tem passarada
em sublime revoada,
tem árvores, plantação,
fertilidade no chão,
tem água pura na fonte
bem ali no pé do monte...
tem vida, amor e paixão.
(JOÃO COSTA)

Tem também a dura lida
que é trabalhosa e sofrida...
Pois nem sempre o semeado
traz resultado esperado...
Mas a fé do sertanejo
reaviva o seu desejo,
e toca pra frente o arado...
(SÔNIA TARASSIUK)
----------
continua...

Fontes:
Setilhas enviadas por Pedro Ornellas
Imagem = http://cachulhoa.blogspot.com/

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poetas de Ontem e de Hoje II)


Felicidade
Vicente de Carvalho
1866 - 1924


Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Biografia
Vicente de Carvalho (V. Augusto de C.), advogado, jornalista, político, magistrado, poeta e contista, nasceu em Santos, SP, em 5 de abril de 1866, e faleceu em São Paulo, SP, em 22 de abril de 1924. Eleito em 1o de maio de 1909 para a Cadeira n. 29, na sucessão de Artur Azevedo, foi recebido na sessão de 7 de maio de 1910, por carta.

Era filho do major Higino José Botelho de Carvalho e de Augusta Bueno Botelho de Carvalho. Fez o primário na cidade natal e, aos 12 anos, seguiu para São Paulo, matriculando-se no Colégio Mamede e, depois, no Seminário Episcopal e no Colégio Norton, onde fez os preparatórios. Aos 16 anos matriculou-se na Faculdade de Direito. Em 1886, com 20 anos, era bacharel em Direito. Republicano combativo, cursava ainda o 4o ano quando foi eleito membro do Diretório Republicano de Santos. Em 1887, era delegado a Congresso Republicano, reunido em São Paulo. Em 1891, era deputado ao Congresso Constituinte do Estado. Em 1892, na organização do primeiro governo constitucional do Estado, foi escolhido para a Secretaria do Interior. Por ocasião do golpe de estado de Deodoro, abandonou o cargo que vinha exercendo. Mudou-se, então, para Franca, município do interior paulista, e tornou-se fazendeiro. Em 1901, regressou a Santos, dedicando-se à advocacia. Em 1907, mudou-se para São Paulo, onde foi nomeado juiz de direito. Em 1914, passou a ministro do Tribunal da Justiça do Estado.

Vicente de Carvalho foi, durante toda a sua vida, um jornalista combativo. Até 1915, sua atuação na imprensa foi quase ininterrupta. Em 1889, era redator do Diário de Santos, fundando, no mesmo ano, o Diário da Manhã, de Santos. Ali manteve ainda colaboração em A Tribuna e fundou, em 1905, O Jornal. Até 1913 colaborou no Estado de S. Paulo. No fim da vida, cansou-se do jornalismo, mas continuou em contato com seus leitores através dos versos que publicava nas páginas de A Cigarra.

Poeta lírico, ligou-se desde o início ao grupo de jovens poetas de tendência parnasiana. Foi grande artista do verso, da fase criadora do Parnasianismo. Da sua produção poética ele próprio destacou poemas que são de extrema beleza, como: "Palavras ao mar", "Cantigas praianas", "A ternura do mar", "Fugindo ao cativeiro", "Rosa, rosa de amor", "Velho tema", "O pequenino morto".

Obras: Ardentias (1885); Relicário (1888); Rosa, rosa de amor (1902); Poemas e canções (1908); Versos da mocidade (1909); Verso e prosa, incluindo o conto "Selvagem" (1909); Páginas soltas (1911); A voz dos sinos (1916); Luizinha, contos (1924); discursos e obras políticas e jurídicas.

Solenemente
Hermes Fontes
1888 - 1948


Juro por tudo quanto é jura...Juro,
Por mim, por ti, por nós...por Jesus Cristo,
Que hei de esquecer-te! Vê-me ...Estou seguro
Contra teu sólio cuja dor assisto.

E visto que dúvidas tanto...visto
Que ris do que é solene, te asseguro,
Juro mais: pelo ser em que consisto!
Por meu passado! Pelo teu futuro!

Juro pela Mãe Virgem Concebida!
Pelas venturas de que vou ao encalço!
Por minha vida...Pela tua vida!

Juro por tudo que mais amo e exalço:
E depois de uma jura tão comprida
Juro...Juro qu'estou jurando falso!...

Biografia
Hermes fontes, compositor e poeta, nasceu em Buquim SE, em 28/8/1888 e faleceu no Rio de Janeiro RJ, em 25/12/1930. Filho de lavradores, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais no Rio de Janeiro, para onde se mudou com a ajuda do governador da Província de Sergipe. Foi oficial de gabinete do Ministério da Viação durante o governo de Washington Luiz. Suicidou-se no Rio de Janeiro.

Em 1908, publicou Apoteoses, sua primeira obra poética. Em 1913 publicou Gênese, seu segundo livro de poesias. No mesmo ano, teve gravada pelo cantor Roberto Roldan, na Odeon, a modinha Constelações, parceria com Cupertino de Menezes. Colaborou com o jornal "O Fluminense", de Niterói (RJ), e mais tarde fundou o jornal "A Estréia", trabalhando ao mesmo tempo nos Correios e Telégrafos.

Em 1922, o cantor Baiano lançou na Odeon, o fado-tango Luar de Paquetá, composta dois anos antes, em parceria com Freire Júnior e que alcançou enorme sucesso, tornando-se no ano seguinte, título de uma revista que logrou mais de uma centena de apresentações. Regravada várias vezes, entre outros por Francisco Alves, logrou repetir o sucesso em 1944, quando foi regravada em dueto por Dircinha Batista e Déo, com acompanhamento de orquestra e coro.
Publicou ainda os livros de poesias Ciclo da perfeição, Mundo em chamas, Miragem do deserto, Epopéia da vida, Microcosmo, Despertar, A lâmpada velada e A fonte da mata.

Tu...
Humberto de Campos
1886 - 1934


Quando alguém me pergunta, por ventura,
Quem me faz de outros tempos diferente,
Pensas tu que teu nome se murmura,
Que o exponho à ânsia voraz de toda gente?

Não; digo apenas o seguinte: é pura,
Casta, simples e meiga: é uma dolente
Cauta rola de tímida candura,
Flor que menos se vê do que se sente.

Mimo de graça e de singeleza;
Clara estrela arrancada a um céu profundo:
Doce apoteose da Delicadeza...

Nesse ponto, de súbito, me calo;
E, sem dizer teu nome, todo mundo
Fica logo sabendo de quem falo!

Biografia

Nasceu Humberto de Campos em Miritiba, Maranhão, em 25.10.1886, filho de Joaquim Veras e Anna de Campos. Em 1910, publica seu primeiro livro de poesias, "Poeira", ao qual se seguiram mais dois, que, em 1933, são agrupados num só volume sob o nome de "Poesias Completas".

Em 1918, publica seu primeiro livro de prosa "Seara de Booz", constituído de pequenos artigos escritos entre 1915 e 1916, sob o pseudônimo de Micromegas.

A este se seguiram, entre outros, Mealheiro de Agripa, Crítica ( em 4 volumes), Carvalho e Roseiras, Sombras que sofrem, Os Párias, Destinos, Memórias, Memórias Inacabadas, O Monstro e outros contos, Sepultando os meus mortos, Lagartas e Libélulas, À sombra das tamareiras e Notas de um diarista..

Humberto de Campos, sob o pseudônimo de "Conselheiro X.X.", exerceu a chamada literatura fescenina.

Em 1919, entra para a Academia Brasileira de Letras. Trabalhou em vários jornais, tais como "O correio da manhã", "O Diário Carioca", "A Noite" e "O Jornal" Em 1926 foi eleito deputado federal pelo Estado do Maranhão, sendo reeleito em 1926. Com a revolução de 1930, perde o mandato. Ë nomeado pelo Governo Provisório, instalado no país, Inspetor de ensino federal e é feito Diretor interino da Casa de Rui Barbosa.

Sempre teve uma saúde frágil e em 1928, é diagnosticado o seu mal, Hipertrofia da hipófise, doença progressiva que o acompanhará até seu falecimento.

"Dele, seu biógrafo Macário de Lemos Picanço diz o seguinte: "Poeta, anedotista, contista, ensaísta, cronista, autobiografista, a obra literária de Humberto de Campos apresenta altos e baixos, mas o que é alto tem a claridade da luz e a simplicidade das almas sãs. Possuidor de estilo fácil, corrente, sem as frases empoladas, qualquer pessoa podia compreendê-lo.
Não tinha artifícios, não tinha preocupação de retumbância. Ao contrário, escrevia com a maior naturalidade e as fantasias, as imagens, as expressões poéticas lhe vinham sem esforço. Faleceu em 5.12.1934, aos 48 anos de idade
.

Você Nunca Está Só
Olegário Mariano
1889 - 1958


Você nunca está só. Sempre a seu lado
Há um pouquinho de mim pairando no ar.
Você bem sabe: o pensamento é alado...
Voa como uma abelha sem parar.

Veja: caiu a tarde transparente.
A luz do dia se esvaiu... Morreu.
Uma sombra alongou-se a seus pés mansamente...
Esta sombra sou eu.

O vento ao pôr do sol, num balanço de rede,
Agita o ramo e o ramo um traço descreu.
Este gesto do ramo na parede
Não é do ramo: é meu.

Se uma fonte a correr, chora de mágoa
No silêncio da mata, esquecida de nós,
Preste bem atenção nesta cantiga da água:
A voz da fonte é a minha voz.

Se no momento em que a saudade se insinua
Você nos olhos uma gota pressentiu,
Esta lágrima, juro, não é sua...
Foi dos meus olhos que caiu...

Biografia

Olegário Mariano (O. M. Carneiro da Cunha), poeta, político e diplomata, nasceu em Recife, PE, em 24 de março de 1889, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de novembro de 1958.

Era filho de José Mariano Carneiro da Cunha, herói pernambucano da Abolição e da República, e de Olegária Carneiro da Cunha. Fez o primário e o secundário no Colégio Pestalozzi, na cidade natal, e cedo se transferiu para o Rio de Janeiro. Freqüentou a roda literária de Olavo Bilac, Guimarães Passos, Emílio de Meneses, Coelho Neto, Martins Fontes e outros. Estreou na vida literária aos 22 anos com o volume Angelus, em 1911. Sua poesia falava de neblinas, de cismas e de sofrimentos, perfeitamente identificada com os preceitos do Simbolismo, já em declínio.

Foi inspetor do ensino secundário e censor de teatro. Representou o Brasil, em 1918, como secretário de embaixada à Bolívia, na Missão Melo Franco. Foi deputado à Assembléia Constituinte que elaborou a Carta de 1934. Em 1937, ocupou uma cadeira na Câmara dos Deputados. Foi ministro plenipotenciário nos Centenários de Portugal, em 1940; delegado da Academia Brasileira na Conferência Interacadêmica de Lisboa para o Acordo Ortográfico de 1945; embaixador do Brasil em Portugal em 1953-54. Exerceu o cargo de oficial do 4o Ofício de Registro de Imóveis, no Rio de Janeiro, tendo sido antes tabelião de Notas.

Em concurso promovido pela revista Fon-Fon, em 1938, Olegário Mariano foi eleito, pelos intelectuais de todo o Brasil, Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição a Alberto de Oliveira, detentor do título depois da morte de Olavo Bilac o primeiro a obtê-lo.

Além da obra poética iniciada em livro em 1911, e enfeixada nos dois volumes de Toda uma vida de poesia (1957), publicados pela José Olympio, Olegário Mariano publicou durante anos, nas revistas Careta e Para Todos, sob o pseudônimo de João da Avenida, uma seção de crônicas mundanas em versos humorísticos, mais tarde reunidas em dois livros: Bataclan e Vida Caixa de brinquedos.

Sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por causa de um de seus temas prediletos.

Só Tu
Paulo Setúbal
1893 - 1937


Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!

Mas tu - que rude contraste!
Tu, que jamais me beijaste,
Tu que jamais abracei,
Só tu, nest'alma, ficaste,
De todas as que eu amei.

Biografia

Paulo Setúbal (P. S. de Oliveira), advogado, jornalista, ensaísta, poeta e romancista, nasceu em Tatuí, SP, em 10 de janeiro de 1893, e faleceu em São Paulo, SP, e, 4 de maio de 1937. Eleito em 6 de dezembro de 1934, sucedendo a João Ribeiro, foi recebido em 27 de julho de 1935, pelo acadêmico Alcântara Machado. Órfão de pai aos quatro anos, sua mãe cuidou sozinha de nove filhos pequenos. Ela colocou o pequeno Paulo como interno no colégio do seu Chico Pereira e começou a trabalhar para viver e sustentar os filhos. Transferindo-se com a família para São Paulo, o adolescente Paulo entrou para o Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos irmãos maristas, onde estudou durante seis anos. Aí começou o interesse pela literatura e pela filosofia. Leu Kant, Spinoza, Rousseau, Schopenhauer, Voltaire e Nietzsche. Na literatura, influenciou-o sobretudo a leitura de Guerra Junqueiro e Antero de Quental. Muitas passagens do seu primeiro livro de poesias, Alma cabocla, lembram a Musa em férias de Guerra Junqueiro.
Esse período de sua vida é de franco e desenfreado ateísmo. Fez o curso de Direito em São Paulo. Ainda freqüentava o 2o ano quando decidiu fazer-se jornalista. Era a época da campanha civilista quando foi procurar emprego no diário A Tarde. Lá ingressou como revisor; logo a seguir, a publicação de uma de suas poesias naquele jornal deu-lhe notoriedade imediata, e ele ganhou sua primeira coluna como redator. Já nessa época começava a sentir os sinais da tuberculose que iria obrigá-lo a freqüentes interrupções no trabalho, para repouso.

Concluído o curso de Direito em 1915, iniciou carreira na advocacia em São Paulo. Em 1918, devido à gripe espanhola, Paulo Setúbal partiu para Lages, em Santa Catarina, onde morava o irmão mais velho, e lá tornou-se um advogado bem-sucedido. Levava, porém, uma vida dissoluta, às voltas com mulheres e com o jogo. Cansado de tudo, voltou para São Paulo, e também lá se estabeleceu como advogado.

Iniciou-se, então, a principal fase de sua produção literária, que o levaria a ser o escritor mais lido do país. Destaca-se, especialmente, pelo gênero do romance histórico, com A marquesa de Santos (1925) e O príncipe de Nassau (1926). Sabia como romancear os fatos do passado, tornando-os vivos e agradáveis à leitura. Os sucessivos livros que escreveu sobre o ciclo das bandeiras, a começar com O ouro de Cuiabá (1933) até O sonho das esmeraldas (1935), tinham o sentido social de levantar o orgulho do povo bandeirante na fase pós-Revolução constitucionalista (1932) em São Paulo, trazendo o passado em socorro do presente.

Em 1935, Paulo Setúbal chegou ao apogeu, sendo consagrado pela Academia Brasileira de Letras. Mas, nesse mesmo 1935 ele ingressa em nova fase da crise espiritual que vinha de longe e que terá repercussão em sua literatura. O temperamento sociável, expansivo e alegre; o freqüentador de festas e reuniões dava lugar ao homem introspectivo, vivendo apenas cercado da família e dos amigos mais próximos. Aos problemas crônicos de saúde acrescentava-se a minagem psicológica ocasionada pela desilusão com os rumos da política e consigo mesmo. Entrou a freqüentar fervorosamente a igreja da Imaculada Conceição, perto de sua residência em São Paulo, e a ler a Bíblia e livros como a Psicologia da fé e A imitação de Cristo. É quando escreve o Confíteor, livro de memórias, a narrativa de sua conversão, que ficou inacabado.

Obras: Alma cabocla, poesia (1920); A marquesa de Santos, romance-histórico (1925); O príncipe de Nassau, romance histórico (1926); As maluquices do Imperador, contos-históricos (1927); Nos bastidores da história, contos (1928); O ouro de Cuiabá, história (1933); Os irmãos Leme, romance (1933); El-dorado, história (1934); O romance da prata, história (1935); A fé na formação da nacionalidade, ensaio (1936); Confíteor, memórias (1937).


Alma
Antonio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis "Cidade Poema"


Quando a vida vem sussurrar baixinho
Dizendo coisas que se quer ouvir,
Deixe o recado chegar de mansinho,
Que toda a alma também quer sentir.

Prepare o peito para uma festa,
Faça um convite para ela entrar,
Reparta o resto todo que inda resta,
Pois dividir é muito mais que dar.

E deixe o amor enaltecer a vida
Dando guarida ao pobre coração.
Quando chegar a hora da partida,
Que nos sussurre a voz da emoção.

E que o acalanto de linda cantiga
Deixe que venha a paz que tanto acalma
Trazendo junto a esperança antiga
Que ainda vive dentro dessa alma.

Nunca Mais
Maria Nascimento Santos Carvalho
Rio de Janeiro


Não sei de onde é que vem tanta ansiedade
e essa angústia que me comprime o peito,
torturando, porque, na realidade,
nem de pensar em ti, tenho o direito.

E, como todo o ser mais que imperfeito,
que não doma os caprichos da vontade,
eu luto, mas sequer encontro um jeito
de me livrar das garras da saudade...

Bem sei que não entrei na tua vida,
e, mesmo tendo sido preterida,
meu amor floresceu, criou raiz...

Mas fui punida com severidade,
porque deixaste em mim tanta saudade
que nunca mais eu pude ser feliz!

Ao Mais Antigo Cidadão de São Fidélis
Luiz Poeta - Luiz Gilberto de Barros
Rio de Janeiro

Sem que o relevo desta terra te proíba,
Com sedutora imponência…e mansidão…
Tu atravessas nossa história, Paraíba,
Abençoando muito mais que um coração.

Tua corrente é poesia em movimento
E por cruzares nossa Cidade Poema,
Quem te navega com o olhar, vê num momento,
Que és o verso…São Fidélis é o tema.

Numa das ruas que te abraçam, da matriz
Duzentos anos te miram…o campanário
Geme estridências solidárias e te diz
Que o teu matiz é sempre um novo itinerário.

Se retornasses há alguns tempos passados,
As tuas margens…de tão líricos caminhos,
Enlaçariam teus Puris e Coroados
E reveriam teus sublimes capuchinhos.

Quando anoitece, a cidade se emoldura…
E na ternura dos olhares solidários,
A luz da Lua se mistura…com brandura,
À escultura dos seus prédios centenários.

Das luminárias do presente fidelense…
Às lamparinas dos casebres ribeirinhos,
A poesia se dilui…sublimemente
Na agitação dos teus eternos torvelinhos.

E quando o sol, pela manhã, te ilumina,
Cada retina comovida que te chora
Reflete em tua solidão mais…mais cristalina…
A repentina emoção de quem te adora.

Os flamboiants fazem a corte quando passas,
Porque eles sabem que sempre reverencias
Cada poeta que passeia pelas praças
De São Fidélis, respirando fantasia.

Na solidão das tuas águas mais douradas,
Quando teu ímpeto…perene…nos completa,
Teu coração, em pulsações cadenciadas
Fala de amor com a ternura de um poeta.

Nós te louvamos, porque és o nosso irmão,
E quem visita nossa lírica cidade,
Sempre te vê, atravessando um coração
E desaguando em nossa sensibilidade.

Expiação
Diamantino Ferreira
Campos dos Goytacazes

- Choras?...Pois é melhor que não lastimes
um passado feliz que desprezaste;
cumpre em silêncio a pena de teus crimes,
a mesma dor de quem jamais amaste...

Se antes calcavas aos teus pés, sublimes
palavras que malévolas julgaste,
à sentença do tempo não te eximes
tão facilmente como me enganaste!

E se a virtude, que perdeste um dia,
hoje te aponta a mácula sombria,
às ilusões mantém fechada a porta;

Esquece tudo... Menos a verdade:
evita a todo custo uma saudade
- não se desperta uma saudade morta!...

Extraído do livro IX Antologia Internacional palavras no 3º Milênio

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Renato Benvindo Frata (As Botinas de Couro Cru)


Quarta das cinco cronicas vencedoras do V Concurso Literário “Cidade de Maringá” (Cronicas Vencedoras) Troféu Laurentino Gomes.
Renato Benvindo Frata é de Paranavaí/PR.
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Juvenal correu para a vitrine cobiçar o belo par de botinas de couro cru ali exposto. Fazia tempo que ele as vira e se apaixonara à primeira vista. Encostou-se no vidro, correu o palito entre os dentes e pensou: – vocês vão ser minhas, bichinhas… Ato contínuo, foi fazer seu serviço de entregar couve à freguesia.

Tarefa cumprida, voltou à venda e pediu para vê-las. Alisou-as, cheirou-as, imaginou-se com elas nos pés diante do altar a receber as bençãos do casamento. Sorriu de orgulho pelo amor de Julinha, a noiva, que também fazia seu enxoval. Confirmou o preço, fez as contas e viu que ainda não tinha o suficiente.

Na lerdeza do pangaré que puxava a carroça, foi matutando para encontrar o meio de conseguir o dinheiro das botinas. Não poderia vender as galinhas, já que elas eram poedeiras, e os ovos, o seu sustento; nem a cabrita Lindoca, que lhe fornecia o leite diário e um queijinho de vez em quando. – Êta pobreza! – excomungou -, até que lhe surgiu uma idéia fabulosa: e se vendesse o leitão que o futuro sogro comparara para o casamento? – Não, – refutou – não daria certo. Se descobrisse a velhacagem, o sogro desfaria tudo, até o casamento; e sem Julinha não conseguiria viver. Mas as danadas das botinas não lhe saíam da cabeça. Volta e meia se via calçado com elas a rodopiar no salão improvisado no celeiro que o sítio abrigava.

Pelo sim, pelo não, resolveu: levou o porco do outro lado da cidade e o vendeu. E com ar muito sério contou que o bicho havia sumido. – Que fazer? – perguntou triste o sogro, ao que Juvenal remendou: – o povaréu que se farte com o que for servido, ora essa. – E Saiu, para não encompridar a conversa.

À véspera do casamento, com o dinheiro contado, correu à venda e comprou as botinas. Nem deixou que as embrulhassem: e feliz da vida iria se preparar para a felicidade completa junto de Juliana. Experimentou o terno, arrumou o nó da gravata, enfiou o par de meias e se sentou para calçar as botinas. Puxa daqui e dali, exclamou: – Ô diabo! Estavam apertadas. Mais um puxão e elas entraram machucando os pés, que não suportariam por muito tempo. O casamento estava chegando, e trocá-las por outras não poderia…

Bom matuto. Juvenal encheu-as com milho e despejou em cima um caneco de água. A umidade faria os grãos incharem, e com isso o couro ficaria mais frouxo. Levou-as à um quaradouro à porta do celeiro – já enfeitado para a festa -. para que o sereno ajudasse no inchaço dos grãos de milho, e dormiu sonhando com a vida nova, com Julinha pelada, com as couves, com as botinas e com o sucesso que fariam.

No raiar do sol pulou nas calças, e de chinelos nos pés saiu para pegá-las e calçá-las. Parou estupefato. Lindoca, na escada do celeiro, mastigava com paciência de cabra o último pedaço do segundo pé.

Fonte:
AGULHON, Olga e PALMA, Eliana. V Concurso Literário “Cidade de Maringá”. Maringá: Academia de Letras de Maringá, 2011.
Imagem = Calçados da Serra

Adolfo Coelho (História do Compadre Rico e do Compadre Pobre)


Moravam numa aldeia dois compadres. Um era pobre e o outro rico, mas muito miserável. Naquela terra era uso todos quantos matavam porco dar um lombo ao abade. O compadre rico, que queria matar porco sem ter de dar o lombo, lamentou -se ao pobre, dizendo mal de tal uso. Este deu-lhe de conselho que matasse o porco e o dependurasse no quintal, recolhendo-o de madrugada, para depois dizer que lho tinham roubado.

Ficou muito contente com aquela ideia e seguiu à risca o que o compadre pobre lhe tinha dito. Depois deitou-se com intenção de ir de madrugada ao quintal buscar o porco. Mas o compadre pobre, que era espertalhão, foi lá de noite e roubou-lho.

No dia seguinte, quando o rico deu pela falta do porco, correu a casa do compadre pobre e muito aflito contou -lhe o acontecido. Este, fazendo -se desentendido, dizia-lhe:
«Assim, compadre! Bravo! Muito bem, muito bem! Assim é que há-de dizer para se esquivar de dar o lombo ao abade!»

O rico cada vez teimava mais ser certo terem-lhe roubado o porco; e o pobre cada vez se ria mais, até que aquele saiu desesperado, porque o não entendiam.

O que roubou o porco ficou muito contente e disse à mulher:
«Olha, mulher, desta maneira também havemos de arranjar vinho. Tu hás-de ir a correr e a chorar para casa do compadre, fingindo que eu te quero bater; levas um odre debaixo do fato, e quando sentires a minha voz, foges para a adega do compadre e enquanto eu estou falando com ele, enches o odre de vinho e foges pela outra porta para casa.»

A mulher, fingindo-se muito aflita, correu para casa do compadre, pedindo que lhe acudisse, porque o marido a queria matar. Nisto ouviu a voz do marido e correu para a adega do compadre, e enquanto este diligenciava apaziguar-lhe a ira, enchia ela o odre. Tinha-lhe esquecido, porém, um cordão para o atar, mas tendo uma ideia gritou para o marido:
«Ah! Goela de odre sem nagalho!»

O marido, que entendeu, respondeu-lhe:
«Ah, grande atrevida!... Que se lá vou abaixo, com a fita do cabelo te hei-de afogar!»

Ela, apenas isto ouviu, desatou logo o cabelo, atou com a fita a boca do odre e fugiu com ela para casa. Desta maneira tiveram porco e vinho sem lhes custar nada, e enganaram o avarento do compadre.

Fonte:
Portal Domínio Público

Adolfo Coelho (1847 – 1919)


Francisco Adolfo Coelho (Coimbra, 15 de Janeiro de 1847 — Carcavelos, 9 de Fevereiro de 1919), filólogo, escritor e pedagogo, autodidata, que foi uma das figuras mais importantes da intelectualidade portuguesa dos finais do século XIX.

Teve uma infância repleta de dificuldades. Contava apenas 19 meses quando o seu pai morreu.

Frequentou o liceu em Coimbra, tendo-se matriculado com 15 anos em Matemática na Universidade. Insatisfeito com o ambiente que aí encontrou, dois anos depois abandona os estudos universitários. Impôs então a si próprio um programa de estudos centrado em autores alemães, aprendendo para o efeito a língua alemã.

Ao longo da sua vida realizou notáveis trabalhos em pedagogia, linguística, etnografia e antropologia.

Foi professor no Curso Superior de Letras, onde ensinou Filologia Românica Comparada e Filologia Portuguesa e assistiu à sua transformação em Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Foi diretor da Escola Primária Superior de Rodrigues Sampaio, criada por sua iniciativa.

Exerceu também atividades docentes na Escola Normal Superior de Lisboa.

Participou em várias comissões de ensino médio e superior, como vogal ou presidente, tendo nessa qualidade elaborado importantes relatórios.

Germanista, insurgiu-se contra a ignorância generalizada da língua e da cultura alemãs no opúsculo A ciência alemã e a ignorância portuguesa, de 1870.

Proferiu nas célebres Conferências do Casino, organizadas por Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, a conferência "A Questão do Ensino" (1871), onde propôs uma reforma do ensino baseada na separação do Estado e da Igreja e no princípio da liberdade de consciência; estes pressupostos viriam a fazer escândalo entre os jornais conservadores da época.

Em seu livro homônimo publicado no ano seguinte, Adolfo Coelho fala sobre a necessidade e fins do ensino; examina as formas e tipos; o ensino em Portugal em decadência pela aliança entre Igreja e Estado; defende a separação entre ambos e a promoção da liberdade do pensamento.

As suas concepções pedagógicas assentavam na convicção que através da educação seria possível regenerar o país.

Colaborou igualmente em periódicos como O Cenáculo e O Positivismo.

Combateu a submissão do ensino às ideias religiosas.

Organizou um importante Museu Pedagógico na Antiga Escola do Magistério Primário de Lisboa.

Bibliografia:

Da sua vastíssima obra dispersa por vários tipos de publicações, destacam-se:
A Língua Portuguesa, 1868;
Teoria de conjugação em Latim e em Português, 1871;
Bibliografia Crítica de História e Literatura, 1873-1875 (crítica literária);
Contos Populares Portugueses, 1879;
Contos Nacionais para Crianças, 1882;
Jogos e Rimas Infantis, 1883;
Os Ciganos de Portugal, 1892;
A Pedagogia do Povo Português , in Portugália Vol. 1, 1898;
Alfaia Agrícola Portuguesa , in Portugália Vol. 1, 1901;
Educação e Pedagogia, 1905;
Cultura e Analfabetismo, 1916

Fonte:
Wikipedia
Infopedia

Antonio Brás Constante (Apedeuta (eu, tu, ele, nós, vós ou eles?))


Meia-noite de domingo. Frio pra chuchu aqui na região sul (continuo sem saber o que o chuchu tem de especial para descrever algo tão frio quanto o clima de inverno aqui do sul). Estou soterrado sob camadas de cobertores. A cama parecendo uma lasanha quentinha, onde eu seria parte do recheio (um tipo de azeitona ou coisa parecida).

Seria um momento ótimo para qualquer um dormir, sonhar, talvez roncar. Mas algo me impedia de adormecer, talvez o motivo fosse porque dormi até as dez horas da manhã daquele domingo frio (tendo ido dormir antes das vinte e três horas da noite anterior), ou talvez ainda, as outras três horas de sono tiradas por mim na tarde daquele mesmo domingo, ou talvez ainda mais, tenha sido a xícara super quente de café que bebi antes de deitar (ou teriam sido três xícaras?). Sinceramente não sei dizer, não sou especialista em insônia, sou apenas um usuário ocasional escolhido por ela.

O problema de se estar deitado na cama sem conseguir dormir é que os pensamentos aparecem para nos fazer visitas, bater um papinho e dificultar ainda mais a chegada do sono. E foi assim do nada que a tal palavra apareceu em meus pensamentos: APEDEUTA.

Não me lembro de onde escutei, o que era, por que veio e, principalmente, o que queria comigo naquele momento, onde meu maior objetivo era dormir, sonhar, blá, blá, blá. E não descobrir o que raios era um apedeuta.

Seria meu subconsciente me Xingando? Acho que sim, a expressão “apedeuta” tinha toda sonoridade de um xingamento. Um tipo de palavrão requintado, que ofendia o caluniado duas vezes, primeiramente pela ignorância de não se saber o que aquilo significava, e segundamente (o texto é meu e escrevo “segundamente” a hora que eu quiser, ok?), quando a pessoa finalmente olhasse o dicionário e descobrisse do que foi ofendida.

Eu poderia, teoricamente, acabar com aquela dúvida facilmente (mas na prática as coisas nunca são tão fáceis assim). Bastava me levantar da cama quentinha e enfrentar um frio glacial indo até o escritório, tropeçando no que encontrasse pela frente (durmo, ou pelo menos tento dormir no breu escuro da mais completa escuridão), pegar o dicionário, acender a luz do escritório, ou vice-versa, o que fosse mais fácil, e procurar a palavra enquanto tremia de frio e batia os dentes de forma descontrolada.

Apesar de naquele momento não saber ainda o significado da palavra (pois neste meu momento atual enquanto escrevo, que não é o seu momento atual de leitor, eu já fui verificar no dicionário o que era um apedeuta), de certo modo eu simpatizava com a tal palavrinha, afinal ela também começava com “a”, de Antonio, “a” de amor, “a” de amizade, “a” de helicóptero (que mesmo não tendo “a” no corpo de sua palavra, tem “a” nos acentos, nas alavancas, e até em sua aerodinâmica de aviãozinho de rosca). Acabei dormindo sem descobrir ou tentar descobrir o que era um apedeuta, já que fiquei com tanta preguiça de levantar no frio que adormeci.

Enfim, pesquisando nos dicionários da web descobri que eu era um apedeuta, não um apedeuta completo, mas um apedeuta em saber o significado de apedeuta. Para quem também não sabe, apedeuta seria uma pessoa ignorante, sem instrução. Ou seja, todos somos apedeutas em maior ou menor grau (e os fabricantes de dicionários agradecem por isso), já que ninguém sabe tudo sobre tudo. FIM (Final, terminou, encerrou, acabou o texto, vai procurar outra coisa para ler ou fazer, ok? Senão vão acabar chamando você de improfícuo. Bye).

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Desenho = Espirito de Escritora

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Augusto Meyer)


– In Memoriam –
Falecimento do poeta em 10.7.1970


Foi poeta gaúcho dos Chorões,
do Negrinho do Pastoreio e a Gaita,
e também cultuando as tradições,
“Guia do Folclore Gaúcho”, retrata...

E no “Prosa dos Pagos” nos ressalta
autores vários cá destes rincões;
“Cancioneiro Gaúcho”, sem bravata,
compila muitas trovas e canções.

Augusto Meyer, foi da Academia
Brasileira de Letras, o escritor
que nos representou com fidalguia.

Suas poesias, sua prosa, estão
a demonstrar acervo de valor,
imortal para nossa geração !

Fonte:
Soneto enviado pelo autor

Augusto Meyer (Do Leitor)


Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: Leitor e autor.

Os rumores do momento não conseguem despertar o sonâmbulo encantado, a caminhar sem vacilações sobre o fio invisível da fantasia. Descobriu, pela mão do autor, outro mundo, sublimado e depurado, e dentro dele alguém gritou: terra! terra! Volveu a si mesmo.1

O leitor ingênuo é simplesmente ator. Quero dizer que, num folhetim ou num romance policial, procura o reflexo dos seus sentimentos imediatos, identificando-se logo com o protagonista ou herói do romance. Isto, aliás, se dá mais ou menos com qualquer leitor, diante de qualquer livro; de modo geral, nós nos lemos através dos livros.

Mas no leitor ingênuo, essa lei dos reflexos toma a forma de um desinteresse pelo livro como obra de arte. Pouco importa a impressão literária, o sabor do estilo, a voz do autor. Quer divertir-se, esquecer as pequenas misérias da vida, vivendo outras vidas desencadeadas pelo bovarismo da leitura. E tem razão. Há dentro dele uma floração de virtualidades recalcadas que, não encontrando desimpedido o caminho estreito da ação, tentam fugir pela estrada larga do sonho. No fundo, o João mais resignado pensa como os seus demônios: ou César, ou nada!

A leitura, nesse caso, será um anestésico dos complexos de humilhação e parece dizer, como o nosso poeta.:

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz.2

No leitor ingênuo, é mais acentuada a dissociação entre realidade e fantasia. O mundo presente, complexo de sensações importunas, mal consegue romper o círculo da sua concentração. A posição incômoda na cadeira, o peso do livro, todos os tropeços que estorvam a abstração da leitura, não sacodem o distraído nem despertam o dorminhoco. Está roncando o seu lindo sonho

O tipo representativo do leitor ingênuo é o devorador de romances que salta capítulos inteiros para chegar ao fim e saber de uma vez qual foi o prêmio do herói, se o moço casou com a moça e o dedo de Deus castigou o mau. De tal modo se identificou com o herói, passando a viver da sua existência sublime, que deseja saber o seu destino como quem quer desvendar o próprio futuro. Ele, simples João, é o conde de Monte-Cristo. Agigantado, corre nas suas veias outro sangue, mais generoso. Enquadra na grande aventura as suas desventuras. Os olhos ávidos, arrastados linha a linha, página a página, pelo galope da fantasia, estão dizendo: esta é a verdadeira vida, a outra não passa de um pesadelo. Inconscientemente, repete o gesto simbólico de Rubião em Quincas Borba - com uma coroa de brisa, ele próprio se coroa rei.

A imaginação, velha dueña experiente que protege os amores da vida e do sonho, não é aquela "folle du logis" proverbial. Bem sabe que tudo depende do contrato entre o cinismo e a esperança. Vende ilusões. Cobra caro, às vezes, mas quem poderá pagar uma ilusão? Quando Alonso Quijano deixou de ler os livros de cavalaria andante, amargou saudades de si mesmo.

E aí está o exemplo clássico da identificação do leitor com a personagem fictícia. Alonso Quijano enganchou-se à garupa dos cavaleiros andantes e tentou viver as suas leituras. Aos quinze anos, quem já não foi mosqueteiro de Dumas, perdendo, porém, o penacho aos primeiros desmentidos da realidade?

Relendo, por volta dos quarenta, os romances devorados na adolescência, quando o mundo é enorme e parece inesgotável a disponibilidade da fantasia, compreendemos a importância da educação sentimental contida nos livros de ficção.

O que predominava no leitor monstruoso que já fomos um dia, era a delícia de criar, acima da realidade, um ambiente de refúgio, onde tudo palpitava de uma vida mais intensa. A larva dos desejos, dos incertos e impuros desejos, vestia as asas do sonho, e abrir o livro era liquidar os cuidados importunos, cortando qualquer nó de um só golpe, ao simples virar das folhas.

Tudo isso repetido vezes sem conta e criado o hábito da fuga, é claro que volvíamos a este mundo estreito com uma vaga saudade do outro, onde não havia sabatinas complicadas nem deveres urgentes para com a família.

É quase sempre no ginásio, aliás, que a sedução dos primeiros romances começa a exercer seu império sobre o adolescente. A monotonia mesmo da rotina escolar serve nesse caso de contraste oportuno; de súbito, no meio da análise lógica, a "Prece" do Guarani, ou qualquer página de grande escritor, destinada a agitar a imaginação entorpecida, cai sobre o incauto como um doce raio de luz, provoca a fermentação dos devaneios, e o livro cartonado e sujo, que parecia a bíblia do tédio, abre-se em perspectivas de mistério e delícia. Começa uma vida nova para o leitor que desabrochou agora mesmo no estudante bisonho.

Gula das leituras intermináveis, noite adentro, acompanhando a sorte dos heróis com verdadeira angústia, enquanto os aborrecimentos rondavam a concentração do visionário, sem licença de entrar. Era uma ebrieza como a outra e deixava, ao passar, um gosto melancólico de cabo de guarda-chuva - a nostalgia de um paraíso perdido.

Ainda hoje as edições Garnier de capa vermelha me perturbam como velhas fraquezas mal recalcadas. Não dizer a ninguém, rumino comigo, quanto sonho está enterrado naquelas relíquias, nem o mal que me fizeram aos quinze anos.

É em vão, por exemplo, que Alencar se reveste de outra roupagem e ressurge sob a cor da folha morta nesta edição Melhoramentos por sinal bastante melhorada, como feitura gráfica e revisão do texto. Quando abro o volume, tenho a impressão de retomar o mesmo volume antigo, e apesar da brochura e da cor, parece que é a mesma capa encarnada que estou sentindo entre as mãos.

Mas o leitor mudou. Apalpa desconfiado o miolo do livro, talvez com medo de não encontrar mais a ilusão de outros tempos, quando passava horas no ópio literário e vivia, estirado na cama, as aventuras de Arnaldo Loredo, o sertanejo, ou do altivo Estácio das Minas de prata. Parafraseando o provérbio alemão, ninguém passa impunentemente à sombra das palmeiras de Alencar.

[...]

Às vezes, tão intenso era o prestígio da ficção, que, entre uma cena comovente apenas imaginada ou lida e o espetáculo real das misérias humanas, a lágrima não hesitava: escolhia os olhos do leitor. Parece que a feiúra da realidade, com seus dramas em carne e osso, a estancava logo, por não sei que absurdo mistério da contradição. No fundo, a piedade hipócrita de um lascivo amador de sensações.

What’s Hecuba to him or he to Hecuba

That he should weep for her?

Eu pergunto e passo: constato apenas o prestígio dos fantasmas e um dos extremos de aberração a que pode chegar o leitor, espécie de ator potencial, sob a influência do espírito romanesco.

Assim éramos nós então, por não sabermos ler nas entrelinhas. E daquela primeira fase de educação sentimental, que parecia inevitável como as espinhas, passava quase sempre o jovem monstro para uma crise de hipercrítica. Devido à necessidade de um restabelecimento de equilíbrio, o excesso engendrava o excesso contrário. A pouco e pouco os românticos perdiam terreno em proveito dos naturalistas. Dava-se uma verdadeira subversão de valores na escala da sensibilidade e a fantasia comprazia-se em derrubar os antigos ídolos. Formava-se muitas vezes, coincidindo com manifestações mórbidas que são do domínio da psicanálise, um pedantismo da clarividência, tão nocivo como a intemperança imaginosa ou sentimental, e talvez mais ingênuo, pois refletia um ressentimento de namorado ainda ferido nas suas primeiras ilusões.

Proust escreveu páginas admiráveis sobre o encanto da leitura, ao prefaciar a sua tradução de Sesame and Lilies, V. John Ruskin, Sésame et les Lys, traduction, notes et préface par Marcel Proust, quatrième ed. Paris, Mercure de France, 1906.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

(À sombra da estante, 1947.)

Fontes:
Academia Brasileira de Letras
Imagem = Conversa de Menina

Augusto Meyer (1902 – 1970)


Augusto Meyer, poeta e ensaísta, nasceu em Porto Alegre, RS, em 24 de janeiro de 1902 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 10 de julho de 1970.

Era filho de Augusto Ricardo Meyer e de Rosa Meyer, imigrantes alemães. Fez os estudos na cidade natal, mas deixou os cursos regulares para estudar línguas e literatura, dedicando-se a escrever. Colaborou com poemas e ensaios críticos em diversos jornais do Rio Grande do Sul, especialmente Diário de Notícias e Correio do Povo.

Estreou na literatura em 1920, com o livro de poesias intitulado A ilusão querida, e foi com os livros Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu que conquistou renome nacional. Esses livros e outras obras posteriores foram depois reunidos em Poesias (1957). Pseudônimo: Guido Leal.

Em 1926 fundou com Teodomiro Tostes, Azevedo Cavalcante, João Santana e Miranda Neto a revista Madrugada. Foi diretor da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, de 1930 a 1936.

Transferiu-se para o Rio e com o grupo de intelectuais gaúchos trazido por Getúlio Vargas organizou o Instituto Nacional do Livro, em 1937, tendo sido seu diretor por cerca de trinta anos.

Detentor do Prêmio Filipe de Oliveira (memórias) em 1947 e do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1950, pelo conjunto da obra literária.

Dirigiu a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade de Hamburgo, Alemanha, e foi adido cultural do Brasil na Espanha.

Augusto Meyer é parte do modernismo gaúcho, introduzindo uma feição regionalista na poesia. Há também em seus versos uma linha lírica, quando evoca a infância, num misto de memória e autobiografia. Completa com Raul Bopp e Mário Quintana a trindade modernista do Rio Grande do Sul.

Como ensaísta, deixou estudo sobre Machado de Assis, um dos trabalhos exegéticos mais importantes sobre o escritor maior das letras brasileiras, que tanto admirava. Sua obra de crítico abrange uma vasta gama de interpretações, de autores nacionais e estrangeiros, que divulgou no Brasil.

A literatura e o folclore do Rio Grande do Sul também foram estudados em obras fundamentais. Cultivou uma espécie de memorialismo lírico em Segredos da infância e No tempo da flor. Com recursos de poeta e de pintor, o memorialista impõe, presença de fantasmas familiares, e daí passa aos da sua roda, aos da cidade, aos do mundo.

Sexto ocupante da Cadeira 13, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 12 de maio de 1960.

Bibliografia

Poesia: A ilusão querida (1923); Coração verde (1926); Giraluz (1928); Duas orações (1928); Poemas de Bilu (1929); Sorriso interior (1930); Literatura & poesia, poema em prosa (1931); Poesias 1922-1955 (1957); Antologia poética (1966).

Crítica e Ensaio: Machado de Assis (1935); Prosa dos pagos (1943); À sombra da estante (1947); Le Bateau ivre. Análise e interpretação (1955); Preto & Branco (1956); Gaúcho, história de uma palavra (1957); Camões, o bruxo e outros estudos (1958); A chave e a máscara (1964); A forma secreta (1965).

Memórias: Segredos da infância (1949); No tempo da flor (1966).

Folclore: Guia do folclore gaúcho (1951); Cancioneiro gaúcho (1952). Seleta em prosa e verso (1973).

A Academia Brasileira de Letras publicou em 2002 uma antologia de Augusto Meyer - Os Pêssegos verdes - com introdução e organização de Tânia Franco Carvalhal.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) VI – Viagem ao céu


Daquela brincadeira do telescópio nasceu uma idéia — a maior idéia que jamais houve no mundo: uma viagem ao céu! A coisa parecia impossível, mas era simplicíssima, porque ainda restava no bolso de Pedrinho um pouco daquele pó de pirlimpimpim que o Peninha lhe dera na viagem ao País das Fábulas. A quantidade existente bastava para levar seis pessoas.

— O bom seria irmos todos — propôs a menina. — Todos menos vovó, coitada. Sofreu tanto lá com o Pássaro Roca, que bem merece um bom descanso-de-lagarto.

— Mas Tia Nastácia não há de querer ir — lembrou Pedrinho. — É a maior das medrosas.

— Pois levemo-la à força — sugeriu Emília.

— Como?

— Muito fácil. Ninguém lhe diz nada dos nossos projetos. Na hora de partir, Narizinho faz cara de santa e lhe dá uma pitada do pó dizendo que é rapé. Ela adora o rapé...

— Não está mal pensado — disse Pedrinho. — E o Burro Falante? Vai ou fica?

— Vai — decidiu Narizinho. — Vamos ter muita necessidade dele na Lua. E se lá vive o cavalo de São Jorge, pode muito bem viver um burro.

Tudo bem assentado, puseram-se a cuidar dos preparativos. Dessa vez Emília não pensou em levar a sua canastrinha. Levou outra coisa — uma coisa que ninguém pôde descobrir o que era. Um “bilongue” pequenininho, embrulhado em papel de seda e amarrado com um fio de lã cor-de-rosa. Narizinho insistiu em saber o que era.

— Não digo, não! — respondeu a boneca. — Se eu disser vocês caçoam. É uma idéia muito boa que eu tive...

No dia seguinte, bem cedo, levantaram-se na ponta dos pés e saíram para o terreiro, enquanto Narizinho se dirigia ao quarto de Tia Nastácia. Tinha de enganá-la, mas como? Pensou, pensou e afinal resolveu-se.

— Tia Nastácia! — gritou do lado de fora da janela. — Venha ver que manhã linda está fazendo.

A negra estranhou a novidade. Levantarem-se cedo assim não era comum, e ainda menos Narizinho convidá-la para “ver a manhã”, uma coisa tão à toa para uma negra que se levanta sempre às cinco horas. Mas foi ao terreiro ver o que era, com aqueles resmungos de sempre. Lá encontrou todos reunidos em redor do Burro Falante e a cochicharem baixinho:

— Hum! Temos novidade — murmurou a preta consigo, já na desconfiança. — Qual é a “peça” de hoje, Pedrinho?

— Nada, boba! Que peça havia de ser? É que nos deu na cabeça levantarmos muito cedo para assistirmos ao nascer do sol e agora estamos brincando de espirrar com este rapé que arranjei na cidade.

— Rapé? Rapé? — repetiu a preta, que era doidinha por uma pitada de rapé. — Será daquele que o Coronel Teodorico, compadre de Dona Benta, usa?

O Coronel Teodorico, fazendeiro vizinho de Dona Benta, aparecia por lá de vez em quando a visitá-la. Era compadre de Dona Benta, homem dos bem antigos, dos que até rapé ainda tomam. O tal rapé não passa de fumo torrado e moído; quem o aspira pelo nariz espirra — e parece que o gosto é esse: espirrar... Napoleão foi um grande tomador de rapé. Hoje pouca gente usa tal coisa, só os homens muito carrancas e conservadores, como aquele compadre de Dona Benta.

— Pois quero experimentar, sim — disse a negra. — O coronel chupa esse rapé com tanto gosto que sempre tive desejo de ver se a marca é boa — e assim falando tomou o pó que o menino lhe apresentava e sem desconfiança nenhuma aspirou-o. Assim que a negra fez isso, os outros fizeram o mesmo, inclusive o burro e... mais nada! Veio aquele fiunnn no ouvido, e depois a tonteira própria do pó de pirlimpimpim, e todos perderam a consciência. Estavam voando pelo espaço com a velocidade quase da luz.

Súbito, perceberam que haviam chegado. Começaram a abrir os olhos. No começo nada viram. Tudo muito embaralhado. Por fim as coisas se foram aclarando e puderam olhar em torno. Estavam numa terra esquisitíssima, sem gente, sem vida, toda cheia de picos de montanhas em forma de crateras de vulcões extintos. Todos haviam voltado a si, menos Nastácia. A pobre negra, que pela primeira vez naquele dia aspirava o pó de pirlimpimpim, estava escarrapachada no chão, com os olhos arregaladíssimos — mas sem ver nem sentir coisa nenhuma.

— Temos de esperar que ela acorde — disse Pedrinho. — Parece que a boba tomou dose dupla...

Esperaram alguns minutos, até que a negra começou a dar mostras de estar voltando a si. Passou a mão pela cara, esfregou os olhos e, correndo-os em torno, disse com voz sumida:

— Que será que me aconteceu? Amode que caí num poço...

— Não caiu nada, bobona. Você está conosco num astro qualquer no céu.

— No céu?!... — repetiu a preta, arregalando ainda mais os olhos. — Deixem de pulha. Para que enganar uma pobre velha como eu?

— Não estamos enganando ninguém, Nastácia — disse Pedrinho. — Estamos, sim, no céu, num astro que ainda não sabemos qual é.

O assombro da negra foi tamanho que não achou palavra para dizer. Nem o seu célebre “Credo!” ela murmurou. Quedou-se imóvel onde estava, a olhar ora para um, ora para outro, de boca entreaberta.

— Eu acho que isto aqui é o Sol — declarou Emília. — Apenas estou estranhando não ver nenhuma floresta de raios.

— O disparate está de bom tamanho! — caçoou Pedrinho. — Não sabe que o Sol é mais quente que todos os fogos e que se estivéssemos no Sol já estávamos torrados até o fundo da alma? Pelo que vovó nos explicou, isto está com cara de ser a Lua — mas não tenho certeza. De longe é muito fácil conhecer a Lua — aquele queijo que passeia no céu. Mas de perto é dificílimo. O melhor é mandarmos o Doutor Livingstone a um astro próximo para de lá nos dizer se isto é mesmo a Lua ou o que é.

Uma pequena dose do pó de pirlimpimpim foi enfiada no nariz do antigo Visconde, o qual imediatamente se sumiu no espaço. Emília deixou passar uns segundos e gritou para o ar:

— É a Lua ou não, Doutor Livingstone?

Mas nada de resposta. A distância devia ser muito grande, de modo que a vozinha rouca do Doutor Livingstone não podia chegar até eles.

— Que asneira fizemos! — exclamou Pedrinho. — Devíamos ter pensado nisso — que era impossível que a vozinha do Visconde pudesse varar a imensidão do espaço. Além disso, para onde será que ele se dirigiu? Em que astro foi parar? Há milhões e milhões de astros por essa imensidade afora...

— Milhões e milhões, Pedrinho? Não acha meio muito? — duvidou a menina.

— Pois é o que dizem os astrônomos. O espaço é infinito. Sabe o que é ser infinito? É não ter fim, nunca, nunca, nunca. Quem sair voando em linha reta por essa imensidade não volta jamais ao mesmo ponto. Fica a voar eternamente.

Emília interrompeu-o:

— Achei um jeito de resolver o caso de saber que astro é este. Basta fazermos uma votação. Se a maioria votar que isto é a Lua, fica sendo a Lua. É assim que os homens lá na Terra decidem a escolha dos presidentes: pela contagem dos narizes.

Não havendo outro meio de saírem daquela incerteza, fizeram a votação. Pedrinho foi tomando os votos.

— Você, Narizinho?

— Lua!

— E você, Emília?

— Luíssima!

— Eu, Pedrinho, também Lua. E você, Tia Nastácia?

A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu:

— Para mim, nós estamos na Terra mesmo; e tudo que está acontecendo não passa de um sonho de fadas.

— Três narizes a favor da Lua e um a favor da Terra! — gritou Pedrinho. — A Lua ganhou. Estamos na Lua. Viva a Lua!...

A negra sentiu um calafrio. Se a maioria tinha decidido que estavam na Lua, então estavam mesmo na Lua. E isso de estar na Lua parecia-lhe um enorme perigo. A única coisa que Tia Nastácia sabia da Lua era que lá morava São Jorge a cavalo, sempre ocupado em espetar na sua lança o dragão. Com São Jorge, que era um santo, ela poderia arranjar-se. Mas que fazer com o dragão? E a pobre negra pôs-se a tremer.

— Meu Deus! — suspirou ela. — Tudo é possível neste mundo...

— Como sabe? — perguntou Emília espevitadamente.

— Se você nunca esteve neste mundo, como sabe que nele tudo é possível?

— Quando eu digo este mundo, falo do meu mundo, do mundo onde nasci e sempre morei — explicou a preta.

— Bom. Se você se refere ao mundo em que nasceu e sempre morou, deve dizer naquele mundo, porque este mundo é a Lua, e neste mundo da Lua não sabemos se tudo é possível.

Enquanto Emília argumentava com a preta, Pedrinho afastou-se para examinar a paisagem. Sim, tudo exatamente como Dona Benta dissera. Aparentemente, nada de água e, portanto, nada de vegetação e vida animal como na Terra. Sem água não há vida. Todas as vidas são filhas da água. E o número de crateras não tinha fim.

Pedrinho ia levando o burro pelo cabresto e com ele trocava impressões.

— Se não há água neste astro, então também não há capim — dizia o pobre animal. — Não haver capim!... Que absurdo! O capim é o maior encanto da natureza. É uma coisa que me comove mais que um poema.

— E qual é a sua opinião, burro, sobre a formação da Lua? Há várias hipóteses.

— Sim. Uns sábios acham que a Lua foi um pedaço da Terra que se desprendeu no tempo em que a Terra ainda estava incandescente. Outros acham que o planeta Saturno foi vítima duma tremenda explosão causada pelo choque dum astro errante. Fragmentos de Saturno ficaram soltos no céu, atraídos por este ou aquele astro. Um dos fragmentos foi atraído pela Terra e ficou a girar em seu redor.

— E sabe que tamanho tem a Lua?

— O volume da Lua é 49 vezes menor que o da Terra. A superfície é treze vezes menor. A superfície da Lua é de 38 milhões de quilômetros quadrados — mais que as superfícies da Rússia, dos Estados Unidos e do Brasil somadas.

Pedrinho admirou-se da ciência do burro. Não havia lido astronomia nenhuma e estava mais afiado que ele, que era um Flammarionzinho... Mas não querendo ficar atrás, disse:

— Pois eu também sei uma coisa da Lua que quero ver se é certa. O peso de tudo aqui é mais de seis vezes menor que lá na Terra. Um quilo lá da Terra pesa aqui 154 gramas. Eu, por exemplo, que lá em casa peso 46 quilos, aqui devo pesar 7 quilos!... É pena não termos uma balança para verificar isso.

— Há um jeito — lembrou o burro. — Dê um pulo e veja se pula seis vezes mais longe que lá no sítio.

Pedrinho achou excelente a idéia. Os melhores pulos que ele havia dado no sítio foram: pulo de altura, 1 metro e 20; e de distância, 5 metros. Se ali na Lua ele pulasse seis vezes e pouco mais longe que no sítio, então estavam certos os cálculos dos astrônomos.

Pedrinho amarrou o burro numa ponta de pedra, marcou um lugar no chão, deu uma carreira e pulou — e foi parar exatamente a 33 metros de distância, mais de seis vezes o seu pulo recorde lá no sítio! E no pulo de altura alcançou mais de 8 metros. Um assombro!...

Depois de feitas as medições, Pedrinho ficou radiante.

— É verdade, sim! — gritou ele. — Aqui na Lua eu pulo melhor que qualquer gafanhoto da Terra — e começou a brincar de pular. Deu vinte pulos de altura; e depois em cinco pulos chegou ao ponto onde estavam os outros — uma distância total de 165 metros.

— Que é isso, Pedrinho? — exclamou a menina. — Virou pulga?

— Aqui toda gente vira pulga — respondeu ele. — Experimente pular. Veja que gostosura.

Narizinho pulou e viu que estava levíssima. Emília também pulou como um grilo. E ainda estavam entretidos naquele pula-puía, quando Tia Nastácia apareceu, muito aflita, com a pacuera batendo.

— Um bufo! — exclamou a pobre preta, toda sem fôlego. — Ouvi um bufo! Há de ser do dragão...

Pedrinho riu-se.

— Dragão nada, boba. Isso de dragão é lenda. Como poderia um dragão vir da Terra até aqui, se na Terra não há dragões? Tudo é fábula. E se acaso pudesse um dragão vir da Terra até aqui, como viver num astro que não tem água nem vegetação? Isso de dragão na Lua não passa de caraminhola de negra velha...

Apesar dessas palavras, novo bufo soou. Todos voltaram-se na direção do som e com o maior dos assombros viram sair de dentro duma das crateras a monstruosa cabeça do dragão de São Jorge.

— Lá está o malvado! — berrou Emília. — Enxergou o burro e vem comê-lo.

Tia Nastácia ia dando um berro de pavor, que Narizinho teve tempo de evitar tapando-lhe a boca. “Louca! Se você grita, ele ouve e vem devorar-nos. Por enquanto só viu o burro. Temos de esconder-nos numa das crateras.”

O dragão ia lentamente saindo de sua toca. Breve puderam vê-lo todo de fora — um comprido corpo de lagarto recoberto de escamas verdes e com uma enorme cauda de serra com ponta de flecha no fim. Tal qual Emília o descrevera ao telescópio. A língua também, muito vermelha, terminava em ponta de flecha.

Todos se encolheram dentro dum buraco próximo e ficaram a espiar por uma rachadura da pedra. Falavam aos cochichos.

— Ele está na Lua há séculos — sussurrou Pedrinho — e há séculos que não come coisa nenhuma. Agora viu o burro. Sua fome despertou. Olhem como está lambendo os beiços com aquela língua de flecha...

— Mas não podemos deixar que coma o nosso burro — murmurou Narizinho. — Vovó ficaria danada. Temos de salvá-lo...

— Como?

— Indo procurar São Jorge. Se existe o dragão, há de existir também São Jorge.

— Sim, mas onde morará ele? Nalguma cratera também? O dragão aproximava-se cada vez mais, embora muito lentamente. Parece que com os séculos de imobilidade passados ali seus músculos tinham enferrujado.

— E o burro está amarrado pelo cabresto a uma ponta de pedra. Não pode fugir! Que estupidez a minha, amarrar um burro daqueles...

— Pois é desamarrá-lo — sussurrou Emília. — Não vejo outro jeito.

— E quem vai fazer isso?

— Eu, que sou de pano — e sem mais discussão Emília saiu do buraco e correu na direção do burro, o qual já estava dando visíveis sinais de terror.

O que valeu foi o emperramento dos músculos do dragão. Vinha vindo como fita em câmera lenta. Emília num instante alcançou a ponta de pedra, desfez o nó do cabresto e gritou para o burro: “Fuja, senão está perdido para sempre! Esse dragão há séculos que não come coisa nenhuma”.

Com grande surpresa, porém, Emília viu que o pobre burro, paralisado pelo terror, não se mexia do lugar.

— Vamos! — gritava ela. — Mova-se! Raciocine e fuja...

E o burro imóvel, paralisado de movimentos, não conseguia nem raciocinar, quanto mais fugir!

O dragão vinha vindo, vinha vindo, balançando a língua de ponta de flecha para a direita e para a esquerda. Mais uns segundos e chegava — e adeus, Burro Falante!...

Na sua aflição Emília teve uma grande idéia. Correu a buscar com Pedrinho uma pitada de pó — e de volta assoprou-o nas ventas do pobre burro paralisado. Isso exatinho no momento em que a ponta da língua do dragão já se armava para fisgar. Ouviu-se um fiunnn e o burro lá se foi pelos espaços, que nem um cometa.

Vendo-se logrado, o dragão desferiu um urro medonho, ao mesmo tempo que jatos de fogo espirraram de seus olhos.

Nem de propósito. São Jorge, que estava cochilando longe dali, ouviu o estranho urro, pulou no cavalo e veio de galope.

Assim que o viu chegar, o dragão baixou a cabeça com grande humildade e foi tratando de recolher-se à sua cratera.

— Já, já para a toca, seu malandro! — gritou São Jorge sacudindo no ar a lança.

Depois, vendo por ali aquela boneca, abriu a boca, espantadíssimo.
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Continua … VII – Coisas da Lua
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Agradecimento pelos Livros Recebidos



Agradeço aos escritores por me enviarem ou entregarem pessoalmente seus livros

A. A. de AssisCantando ao som das setilhas
Trovas Brincantes II
Vida, verso e prosa

Academia de Letras de MaringáVI Coletânea da ALM - 2011
V Concurso Literário "Cidade de Maringá"

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Revista Bumerangue 2, 3 e 4

Alex GiostriAfeto, amor e fantasia

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André CarneiroQuânticos da Incerteza

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Resistência e Intervenção nas literaturas pós-coloniais

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XVI Jogos Florais Troféu Gledis Tissot - 2010
XV Jogos Florais de Curitiba 2008

UBT Santos
XV Jogos Florais de Santos 2011

Valter M. de ToledoAntologia dos Acadêmicos da Academia de Letras José de Alencar - 60 anos
Revista do Centro de Letras do Paraná - n. 53 - agosto 2009
Jurisprudência e Doutrina Maçonica
Direito, cultura & Civismo: textos seletos

Vânia Maria Souza Ennes
Paraná em Trovas
União Brasileira de Trovadores (Estatuto - História)

Vicência Jaguaribe
Ancoragem em porto aberto

Além de revistas, boletins, cds, dvds e jornais enviados por Kleber Leite Ribeiro, Terezinha Dieguez Brisolla, Vânia Maria Souza Ennes, Nilto Maciel, Secretaria de Cultura de Minas Gerais, Dinair Leite.

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