terça-feira, 25 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXIV– Crepúsculo


CAPITULO XXIV
Crepúsculo

O inesperado desenlace do drama negro da América deixou-me tonto por vários minutos. Depois que voltei ao normal miss Jane prosseguiu:

— No dia seguinte a essa noite trágica devia realizar-se a posse do 88.° presidente americano, James Roy Wilde, vulgarmente Jim Roy, negro de raça pura nascido em Sonora aos 23 de abril de 2188, doutor em ciências de governo pela Escola Técnica de Direção Social, despigmentado em 2201 e omegado vinte dias depois da vitoria nas urnas.

Lider inconteste da raça negra, para a qual sonhava um destino altíssimo, merecia ainda dos brancos um respeito semelhante ao que na velha Roma o patriciado conferia aos libertos de excepcional valor. Era Jim um liberto do pigmento.

O choque das raças fôra prevenido, o que valeu por nova vitoria da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. A exasperação branca do primeiro momento breve desapareceu. O bom senso tomou pé e o ariano pôde filosofar com a necessária calma. A opinião corrente admitia não passar a vitoria negra de um curioso incidente na vida americana. Oriunda de cisão sexual do grupo ariano, fôra golpeada de morte no próprio dia das eleições pela adesão das sabinas ao Homo. O proximo pleito restabeleceria o ritmo quebrado e do incidente nada restaria no futuro além de um pouco mais de pitoresco na história da América — qualquer coisa como na serie dos papas, o pontificado da papisa Joana.

A serenidade dos brancos reforçava-se ainda na confiança que todos depositavam em seus lideres reunidos em convenção. Embora se ignorasse o que os chefes natos haviam decidido no concilio secreto, nem por sombras ninguém admitia que a ideia lá vencedora não fosse a mais eficiente e justa do ponto de vista racial.

Do outro lado os negros, passada a crise de entusiasmo do primeiro momento e dada a fé que lhes merecia Jim Roy, entraram mais a gozar as delicias do "omeguismo" do que a deslumbrar-se com uma vitoria política evidentemente precária. E assim a mais inesperada surpresa da vida americana não trouxe nenhuma das calamidades publicas que fatalmente acarretaria no passado — no tempo em que o desprezo da seleção humana deixava a sociedade encher-se de perigosíssimos bubões infecciosos.

Na véspera da posse de Jim, por precaução contra qualquer violência, Kerlog, de combinação com Abbot, fez irradiar a noticia do novo brinquedo inventado por esse encantador das crianças. Tratava-se de uma nova bonequinha que sabia dançar o tango da moda com perfeição de maravilhar a gente grande e mergulhar em êxtases de sonhos a criançada.

A criança tinha na América de 2228 uma importancia capital. Toda a vida do país girava-lhe em torno, Era a criança, além do encanto do presente, o futuro plasmavel como a cera. Os maiores gênios da raça se consagravam a estuda-la, para com tão ductil matéria prima irem esculpindo a obra única que apaixonava o americano — o Amanhã. E a tal grau chegou a afinação da Puericultura Estética, a sublime arte definida por John Leland, que uma imaginativa de hoje, desta época em que o homem, absorvido nos horrores da luta pelo pão, quasi ignora a existência da criança, nem de leve pode apreender o que significava em 2228 a Realeza do Baby. Realeza sim, como foi na velha França a dos últimos Luises divinizados. Em vez, porém, de toda a vida da nação revolutear em roda de um pachá como Luis 14, girava em torno da Aurora Humana. Sua Majestade Baby era o Luis 14 do século.

Em virtude disso é que o governo americano combinou com o senhor Abbot o lançamento da nova boneca nas vésperas da posse de Jim, como o melhor meio de prevenir a explosão de qualquer resíduo anti-social ainda subsistente na alma americana. E foi assim que o dia da posse chegou sem prenúncios da menor tormenta.

Súbito, porém, ás primeiras horas da manhã, o rádio encheu a América de uma nova sensacional: Jim Roy amanhecera morto em seu gabinete de trabalho!

Violentíssimo foi o abalo publico, dada a coincidência de sobrevir essa morte justamente no dia da posse do Presidente eleito. Os negros viram nisso um golpe de força dos brancos, e estes ficaram em suspenso, na duvida se seria um deliberado ato de violência resolvido pelos convencionais ou uma das muitas surpresas de que é fértil o acaso. Chegou a haver por parte dos negros um instintivo movimento de revolta. Implantou-se-lhes nos cérebros a convicção do crime, e a velha selvageria racial rajou de sangue os olhos da pantera. Foi passageiro, entretanto, o assomo. Aquela quebreira vital que Roy havia percebido em si ganhara também toda a massa negra. O fatalismo ancestral sobrepairou á raiva e o imenso corpo sem cabeça, num recuo de instinto, repos-se no lugar humilde donde o tirara a vitoria de Roy.

A rã a que o vivisseccionista extrai o cérebro passa a viver uma vida muscular cujos movimentos são apenas reflexos. Assim a população negra americana a partir do momento em que a morte de Jim Roy lhe arrancou o encéfalo. Agitava-se ainda, viva — mas perdera o órgão coordenador de movimentos para fins definidos.

O segredo quanto á ação esterilizadora dos raios Omega conservava-se absoluto. Além do ministerio, dos tecnicos do estado, de John Dudley e de miss Astor, já esposa do Presidente Kerlog, ninguém mais o conhecia. Dos negros um só tivera a sua revelação, Jim Roy — mas levara-o consigo para o forno crematório.

Procederam-se a novas eleições e foi reeleito Kerlog por 100 milhões de votos. Normalizou-se a vida da América. Sua Majestade Baby reentrou no monopólio de toda a atenção, por um instante desviada pelo choque das raças.

Um fato entretanto fez-se notado. Meses depois do aparecimento dos raios Omega o indice da natalidade negra caiu de chofre. Março, precisamente o nono mês a datar da abertura dos primeiros postos desencarapinhantes, acusa uma queda de 30%. Esta porcentagem subiu ao dobro em abril e chegou a 97% em maio. Em junho as estatísticas só registravam 122 negrinhos novos.

Em agosto fechavam-se os postes e a Dudley Uncurling Company distribuía o seu dividendo.

Tornou-se impossível guardar por mais tempo aquele segredo de estado — e nem havia razões para isso. O fato caiu no domínio publico por meio de uma mensagem irradiada pelo Presidente Kerlog, o documento que até hoje, na vida da humanidade, mais fundo calou na alma do homem. Dizia essa peça, para sempre memorável:

"O governo americano vem dar conta ao povo do golpe de força a que foi arrastado em cumprimento da suprema deliberação dos chefes da raça branca, reunidos em palácio no dia 7 de maio de 2228. Foi aprovada nessa assembléia a moção Leland, resumida nestas palavras:

"A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pigmento negro camuflado... A raça branca autoriza o governo americano a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para a execução desta sentença suprema e inapelável."

Assim autorizado, o governo procurou agir de modo a evitar perturbações na vida nacional: estava em estudos da matéria quando John Dudley apareceu com a revelação da virtude dupla dos raios Omega. Adotado esse maravilhoso processo, operou-se a esterilização dos homens pigmentados pelo único meio talvez em condições de não acarretar para o país um desastre. O problema negro da América está pois resolvido da melhor forma para a raça superior, detentora do cetro supremo da realeza humana".

Nem a noticia da vitoria eleitoral de Roy, nem a revelação dos raios Omega, nem a nova da morte do negro causaram tão profunda impressão como a fria mensagem do presidente reeleito.

Brancos e pretos a receberam com igual assombro — seguido logo de uma sensação de alivio por parte dos primeiros e de uma sensação nova na terra por parte dos segundos.

Pela primeira vez na vida dos povos realizava-se uma operação cirúrgica de tamanha envergadura. O frio bisturi de um grupo humano fizera a ablação do futuro de um outro grupo de cento e oito milhões sem que o paciente nada percebesse. A raça branca, afeita á guerra como a ultima ratio da sua majestade, desviava-se da velha trilha e impunha um manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara a criar a América, mas com o qual não mais podia viver em comum. Tinha-o como obstáculo ao ideal da Super-Civilização ariana que naquele território começava a desabrochar, e pois não iria render-se a fraquezas de sentimento, nocivas á esplendorosa florescência do homem branco.

A raça ferida na fonte vital pendeu sobre o peito a cabeça como a planta a que o podador estrangula a circulação da seiva. Ia passar. Estéril como a pedra, iria extinguir-se num crepúsculo indolor, mas de trágica melancolia.

E passou...

Decênios mais tarde, no maravilhoso jardim americano onde só abrolhavam camélias de pétalas levemente acobreadas pela força misteriosa do geoambiente, erguia-se, ao alto do monumento de gratidão erigido pelo socio branco em homenagem ao socio negro, o busto do velhinho mágico que em 2228 curara a dor de cabeça histórica do 87.° Presidente...
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continua… XXV– O Beijo de Barrymore

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Trova 204 - Ialmar Pio Schneider (RS)

Moral da trova: não te detenhas com pequenas coisas, pois a vida corre inexoravelmente.

Ivan Jubert Guimarães (Alma de Poeta)


A vida de um poeta é sua poesia
É a obra escrita com emoção.
O poeta aniversaria todo santo dia,
E sempre faz tudo com o coração.

A Alma de Poeta não envelhece,
Desde Camões, Vinicius e Coralina
E tantos outros que nem se conhece
A poesia é eterna, pura e cristalina.

Em sua transparência está a beleza,
Os versos são bálsamos de alegria,
Mesmo os versos carregados de tristeza
Aquecem nosso coração na noite fria.

Para cada poeta que na Terra nasce,
E descreve o amor em forma de oração,
Deus, em sua sabedoria, deve rejubilar-se
Pois a Alma de Poeta é de sua Criação.

São Paulo/SP

Fonte:
Antonio Manoel Abreu Sardenberg.

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte I


CAMBIANTES

SUPREMO ANSEIO

Esta profunda e intérmina esperança
Na qual eu tenho o espírito seguro,
A tão profunda imensidade avança
Como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
Que o céu preclaro em matinal bonança:
Esse clarão, em que eu melhor fulguro,
Em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada
Desta existência de ilusões cravada
Eu veja sempre refulgir bem perto

Esse clarão esplendoroso e louro
Do amor de mãe -- que é como um fruto de ouro,
Da alma de um filho no eternal deserto.

APÓS O NOIVADO

Em flácido divã ela resvala
Na alcova -- bem feliz, alegremente,
E o fresco penteador alvinitente,
De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente
Parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis -- corre-se então nívea cortina:
E a plácida, a ideal, a branca lua
Derrama nos vergéis a luz divina...

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,
Não rompas esse véu de gaze fina
Que encerra um madrigal -- Vamos... recua!...

DORMINDO...

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava -- a pálpebra cerrada --
Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
-- o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!...

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco...

Enquanto o luar -- pela janela aberta --
-- como uma vaga exclamação -- incerta
Entrava a flux -- cascateado -- branco!!...

NERAH

(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)
A Vítor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. -- E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos --
-- lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso -- aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.

AMOR

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor -- na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...

ESCRAVOCRATAS

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados -- bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar -- formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos a espinha -- enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário --
Da branca consciência -- o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido -- audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro -- ouvindo-vos urrar!

DA SENZALA...

De dentro da senzala escura e lamacenta
Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta
Tornando meretriz

A alma que ele tinha, ovante, imaculada
Alegre e sem rancor,
Porém que foi aos poucos sendo transformada
Aos vivos do estertor...

De dentro da senzala
Aonde o crime é rei, e a dor -- crânios abala
Em ímpeto ferino;

Não pode sair, não,
Um homem de trabalho, um senso, uma razão...
e sim um assassino!

DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos

Vai-se acentuando,
Senhores da justiça -- heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis -- batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
-- solene trilogia --

Quando a escravatura
Surgir da negra treva -- em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

À REVOLTA

A Cassiano César

O século é de revolta -- do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite --
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua -- estético -- mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... -- Trabalhar a luz da idéia nova!...
-- Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à cova,
-- Pois bem! -- Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas -- isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova (Convite)

A Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova- Alepon - tem o prazer de convidar Vossa Senhoria e Ilustríssima Família para a sessão solene de comemoração do 145º Aniversário de Ponte Nova, posse dos neoacadêmicos Ademar Nunes Figueiredo e Ester Alves Magalhães Trindade. Haverá na oportunidade premiação dos vencedores do Concurso Literário “Professor Mário Clímaco” e lançamento do livro “ O Reflexo no Espelho”, de autoria do escritor Luciano Coelho de Souza.

O evento acontecerá no dia 28 de outubro de 2011, às 19h30min no Salão “ Cacau Mayrink”( Esporte Clube Palmeirense ) Rua Aldo Aviani, nº 91-Guarapiranga - Ponte Nova-MG.

Ponte Nova, outubro de 2011.

Wilma Maria Quintiliano de Oliveira
Presidente
Maria Catarina R.Fois
Secretária


Apoio Cultural:
Caixa Econômica Federal

Correção na Trova-Ecológica 33, de Ontem


Na Trova Ecológica de ontem, equivoquei-me e coloquei Hermoclydes S. Franco, sendo de Nova Friburgo.

Por favor, corrijam, o trovador é do Rio de Janeiro/RJ.

Hermoclydes S Franco (A Saga dos Reis Magos)


Ao norte da Tessália, em solidão,
O ateniense GASPAR, sob emoção,
Recebeu a mensagem do Criador!...
Sob um pálio de luz esplendorosa,
De uma estrela de força misteriosa,
Sentiu, na alma, a presença do Senhor!...

Dirigiu-se à Antioquia e, solitário,
Montando o mais vistoso dromedário,
Pôde alcançar os confins do deserto.
MELCHIOR, o indiano, em refúgio afastado,
Junto às nascentes do Ganges sagrado,
Teve a mesma visão do rumo certo!...

Buscando um mesmo sítio no areal,
Partiu, levando em seu rico embornal,
Fartas porções de incenso, mirra e de ouro...
Na imensidão (o Espírito a velar),
Já esperava por eles BALTASAR,
O egípcio, também junto ao seu tesouro!

Esse encontro de reis, predestinados,
Em meio dos desertos calcinados,
Foi traçado por Força Superior...
Eram sábios – vivendo entre os ateus –
Que criam na existência de um só Deus:
Honra a BALTASAR, GASPAR e MELCHIOR!...

Do deserto partiram, sem canseiras,
Em busca do recanto, entre oliveiras,
Onde houvera nascido o Deus-Menino...
Levados pela estrela à manjedoura,
Viram todos a Luz imorredoura
Que ao mundo iria dar novo destino!...

Fonte:
Poesia enviada pelo autor

Júlia Lopes de Almeida (Carta)


"Minha querida.

Escrevo-te à noite, com a minha vaidade de dona de casa completamente satisfeita. Vou dizer-te por quê.

Há tempos, entre as minhas fantasias de menagère figurou a de mandar fazer um chemin de table de arame, que eu cobriria de flores naturais para a minha mesa de jantar. Ideada a história, fez-se o desenho, e no dia seguinte atirei-me para a Casa Flora, a indagar se aquilo seria coisa de fácil execução.

Não era; o dono da loja mesmo louvou a idéia, mas duvidou do êxito. Lá deixei o meu desenho e voltei desconsolada. Passadas algumas semanas, quando eu já nem me lembrava de ter pensado um dia num chemin de table de arame, eis que ele me entrou pela porta a dentro. Era tal e qual um esqueleto, bem descarnado e extravagante. Franziu-me a boca o clássico muxoxo da decepção. Senhor! Como é fácil à gente imaginar coisas bonitas, mas como é difícil executá-las! Não valerá muito mais deixá-las para sempre em sonho? Sim, mais valeria; mas, já agora, seria preciso cobrir aquela nudez fria, cinzenta e desenxabida do arame, todo contorcido em voltas e reviravoltas, e disfarçá-la sob um delicado manto de avencas e de jasmins.

Pois nem jasmins nem avencas. Sé encontrei nessa tarde hastes de hera e de silvina, cujo verde sombrio alegrei a espaços com rosas e margaridas. O efeito não era positivamente encantador; registrei mais uma desilusão na vida, e no dia seguinte mandei atirar com a causa dela para o fundo do quarto das malas e badulaques.

Pendurado rente à parede, mais o desgraçado me fazia lembrar, de novo despido da folhagem, a ossada de um peixe enorme e esquisitíssimo.

C'est de l'art nouveau! Tinha-me dito o dono da Casa Flora, ao observar o desenho que eu lhe levara, com um ar de lisonjeiro agrado. Pois sim! estava fresco o novo estilo! Naquele eriçamento das duras folhas de hera ficara tão bem disfarçado que ninguém o percebera, e um amigo mesmo zombara, com a sua fina graça, do meu amor às novidades e do meu gosto pelas invenções...

Pois, minha adorada, fiquei com pena de que oito dias depois esse senhor não tivesse voltado a jantar comigo, não já só pelo prazer que a sua companhia me proporcionaria, como porque, dessa vez, o meu invento não fez triste figura, antes pelo contrário...

E por ter dado à minha mesa modesta um encanto singular, determinei revelar-te a maneira porque, querendo, te poderás servir com segurança dessa espécie de adorno.

Por ser teimosa, e não desistir, logo à primeira dificuldade, das intenções que tenho, mandei arriar da parede o tal aparelho de arame (que deve ser feito segundo o gosto da dona da casa e o tamanho da mesa) e com paciência (que é de todas as obrigações que me imponho a mais terrível de cumprir) comecei a cobrir o arame do chemin de table com uma flor delicada, cujas pétalas de seda e de arminho parece terem-se reunido por um sopro de brisa. Esta florinha tem o nome harmonioso de — Rodanthe.

Umas são brancas, de uma brancura pálida de edelweiss, e outras de um róseo desmaiado e doce.

Vitória! Vestido por elas, o desengraçadíssimo chemin de table, desenhou sobre a toalha, em finas hastes ondeadas, uma renda de flores delicadíssima.

Para dar-lhe mais vida e quebrar-lhe a uniformidade, coloquei, em uma volta da moldura, à cabeceira, um ramo leve de orquídeas sulferinas e de, à falta de crisântemos, margaridas cor de ouro. Flores sem aroma, como convém para a mesa.

O efeito dessa ornamentação pareceu-me lindo e é por isso que t'o comunico; encantador, e foi por isso que o aproveitei para assunto desta página.... Doméstica.

O egoísmo tem a sua razão de ser em outra ordem de sentimentos; nestas pequeninas vaidades de menagère parece-me, além de mau, soberanamente tolo.

O meu interesse, por exemplo, não é tornar a minha pobre casa melhor que a do meu vizinho, que é rico e que tem bom gosto; mas sim torná-la tão boa quanto está nas minhas posses fazê-lo. Assim, quando nesse esforço consigo alguma coisa que corresponda ou ultrapasse a minha expectativa, apresso-me em comunicá-la às amigas, para seu regalo e seu uso.

"Não é o temor do inferno o que me há de levar ao céu" — disse o padre Antônio Vieira em uma das suas cartas, não me lembra agora a quem.

Eu afirmo o mesmo, deixando à tua perspicácia adivinhar em que se funda a minha esperança de gozo eterno.

Outra que bem merecem a bem-aventurança, és tu, pelas receitinhas de bolos que me mandaste...

Um observador maligno disse-me um dia que quem prestar o ouvido ao cochichar de duas brasileiras ouvirá falar de amor ou de receitas culinárias.

O dito não me incomodou, e fiz-lhe mesmo notar que, ainda é por amor que tamanha atenção prestamos à mesa.

Não me lembro quem disse que um homem tudo perdoa, menos um mau jantar!

E repara que os homens são muito mais exigentes do que nós. Fico tonta...

Variar! Variar é bom de dizer. Há cerca de uns três dias apeteceu-me comer perdiz. A minha cozinheira sacudiu a sua moleza por essas ruas e voltou para casa como saíra: com as mãos a abanar. Nenhuma perdizinha para a minha salvação.

Disse-lhe eu então que me enganasse com uma galinhola, o que ela fez assaz regularmente, mas que eu mastiguei com tão pouca convicção, que me não soube ao que pretendia!

Por estar enfronhada nestes embaraços domésticos é que me rejubilo sempre que topo com uma novidade útil, e logo me expando em descrevê-la às outras. Há ainda um motivo para esta tagarelice: é ter um pretexto de te falar em flores.

Estas tais rodantes, pequeninas e sedosas, são tão leves e de tão bom auxílio para qualquer espécie de ornamento, que devemos saudar o seu aparecimento no Rio com algumas palavras de simpatia. Não saudamos também a crysanthème e o muguet? Esta agora, pela sonoridade do nome, parece ressuscitada dos famosos tempos da cavalaria. Deveria ser de rodantes o ramo oferecido por D. Quixote à sua Dulcinéa.

Exatamente no momento em que escrevo, sorri na minha mesa de trabalho um galho vermelho de umas flores do mato, cujo nome ainda ignoro. É tal qual uma
haste de coral, onde uma legião de avezinhas minúsculas, de um vermelho ainda mais intenso, tivessem pousado com as azinhas de veludo suspensas para o vôo.

Que divinas surpresas nos reservam as nossas florestas, tão pouco exploradas na curiosidade da flor. Entretanto, nossas ou estrangeiras (filha, flor não tem pátria!) aclimemo-las aqui com o maior carinho. Olha, um dia destes, um amigo do Pará afirmou-nos ter obtido no seu jardim, em Belém, camélias perfeitas, de uma alvura azulada. Não será mais milagrosa essa maravilha, uma flor do frio desabrochando, impassível, numa atmosfera de fogo?

Adeus, querida!

Tua, Julietta.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 374)


Uma Trova Nacional

No romance cor-de-rosa
que tu lês com muito agrado,
falta-lhe a parte espinhosa,
noutro volume editado…
–CLARISSE BARATA SANCHES/PT–

Uma Trova Potiguar

Das ciências atuais
a uma dou mais valia
por seus cunhos sociais:
o trato da Ecologia!
–SÉRGIO SEVERO/RN–

Uma Trova Premiada


2005 - Taubaté/SP
Tema: FLORESTA - Venc.

Ante o terror das queimadas
na floresta, com carinho,
tristes aves abraçadas
tentam proteger seu ninho.
–RUTH FARAH/RJ–

Uma Trova de Ademar

Tem homens aqui na terra
com um “ser” tão negativo...
Por nada, promovem guerra
sem razões e sem motivo!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Eu, sentado na beirada,
ela, junto da janela.
- Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela!
–COLBERT RANGEL COELHO/MG–

Simplesmente Poesia

Desejo Contido
–LÊDA MIRANDA/RJ–

Que rainha sou eu?
Sou cercada de mistérios,
nem eu me conheço bem.
Quero amor, mas não declaro.
Pareço forte, segura
e preciso de amparo.
Me fecho a qualquer afeto,
fico só no abstrato,
me afastando do concreto.
De real mesmo possuo
uma única certeza
e você nem advinha:
desse seu mundo encantado,
eu queria ser rainha.

Estrofe do Dia


É o vale do Pajeú
este bonito local,
terra de grandes poetas
com a mente genial;
é berço de repentista
terra de Dimas Batista,
Otacílio e Lourival.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia


Silêncio
–JOÃO BATISTA X. OLIVEIRA/SP–

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXII– Amor! Amor!


CAPITULO XXIII
A Derrocada de um Titã

Mas sarei, e o que me curou foi um filme que an¬dava a empolgar as multidões — A Fera do Mar, por John Barrymore. Havia nele um beijo como nunca no mundo se dera outro igual. Um beijo shakespeariano, um beijo força-da-natureza.

Eu como de habito assistia á fita pensando em miss Jane e ligando todas as cenas ao meu amor. No mo¬mento do beijo vi-me a beijá-la e tal foi o meu ímpeto que cravei as unhas numa coisa gorda que pousara no braço da minha poltrona.

— Seu bruto! berrou uma voz.

Olhei. Uma velha matrona de bigodes e verruga no nariz fulminava-me com os olhos.

Ergui-me numa tontura e saí. O ar frio da noite serenou-me. Errei longo tempo pelas ruas desertas, até que em certo ponto me pilhei a monologar em voz alta:

— Mas não me escapa! Agarro-a e dou-lhe o beijo de John Barrymore! Quero ver onde vai parar aquela impassibilidade de puro espírito. "Interfiro-a" e quero ver...

Quarta, quinta, sexta, sábado... Uf! como custou a chegar o domingo!

Miss Jane recebeu-me com a serenidade antiga, curada já da sua momentânea fraqueza.

— Um pouco pálido, senhor Ayrton! Esteve doente?

– Um fiozinho de nervoso, miss Jane, mas já passou.

– Aborrecimentos lá na firma com certeza...

– Talvez, miss Jane. Está-me envenenando este negocio de viver os domingos no ano 2228. Não supor¬to mais a burrice, a cegueira, a suficiência destes "sapa¬tões" que atravancam o mundo com os seus horríveis fraques internos e externos.

Miss Jane consolou-me.

– Paciência, senhor Ayrton. A vida é cheia de maus pedaços — mas ha bons pedaços para os que sabem esperar...

Passei a língua pelos beiços, já agitado.

– Jim Roy, por exemplo... continuou ela.

– Ah, sim, o negro... gemi com displicência, como quem se recorda de uma coisa muito distante. Naque¬le momento eu estava muito longe de Jim Roy.

Miss Jane, porém, conseguiu recolocar-me no ano 2228.

— Jim Roy, por exemplo, ia ter o seu bom pedaço. Embora não compreendesse a calma dos brancos e ain¬da tivesse a tinir na cabeça as cruéis palavras de Kerlog ditas naquele encontro, passou a aceitar como fato consumado o seu triunfo. O perigo passara. O perigo era o choque das duas raças, uma embriagada com a vitoria, outra ofendida no seu orgulho. Para isso con¬tribuiu não só o vigor de Kerlog como também o opor¬tunismo da 73.ª invenção de John Dudley. Que mara¬vilhoso derivativo! A fúria desencarapinhante dos negros fe-los se esquecerem completamente da política. Datava de três meses a entrada em cena dos abençoados raios Omega, e pelas estatísticas oficiais 97% da popula¬ção negra estava já omegada. Mais uma semana, e os últimos postos se fechariam por falta de carapinha a ali¬sar. Que magnífico dividendo iria distribuir a Dudley Uncurling Company!

Até Jim se omegara e o seu aspecto impressionava agora mais do que nunca. Tornara-se um admirável tipo de branco artificial, diverso dos brancos nativos, apenas pela grossura dos lábios, saliência zigoma tica e chateza do nariz.

Jim entretanto não se sentia o mesmo. Diminui¬rá o seu vigor. Aqueles impulsos ferozes, a violência selvagem que tantas vezes deflagrava em sua alma for¬çando-o a impor-se a mascara do self-control, estavam morrendo nele. Já não era com ardor belicoso que, derramando o olhar da imaginação sobre o rebanho dos cem milhões de negros, sentia em si a possança de um novo Moisés. Cansaço, talvez, No ardor da luta os músculos operam prodígios de resistência. O abatimen¬to só vem depois da vitoria. Jim sentia o abatimento da vitoria depois de haver gozado até á exasperação o delírio do triunfo.

Ia realizar um ideal. O problema negro da Ame¬rica teria com ele no governo a única solução justa.

— "A America ê nossa" monologava. "O branco não quer vida em comum? Dividamo-la. Jim dividirá a America!"

Avaliava muito bem os obstáculos tremendos que haviam de embaraçar a sua ação. Mas com pulso forte saberia quebrar todas as resistências. E que gloria para a raça negra caber a ela o gesto decisivo na eter¬na questão! E que vitoria o ve-la atestar ao mundo uma capacidade evolutiva e de realizações igual á do branco! Moço ainda que fosse, havia de dar-se inteiro á nova republica negra e encaminhá-la aos mais glorio¬sos destinos.

E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou no continente.

Na véspera do dia da posse estava ele á noite em sua residência particular, solitário como sempre e imer¬so como sempre no seu grande sonho, quando alguém bateu.

O líder negro despertou e franziu a testa. Não esperava ninguém, não marcara encontro com pessoa alguma...

– "Está ai um homem branco natural", veio dizer-lhe um criado.

– "Que entre", respondeu Jim, ainda com as rugas do "quem será?" na testa.

Breve pausa. Súbito, a porta do gabinete abre-se e...

— "O Presidente Kerlog!..." exclamou Jim, surpreso da inesperada visita.

O líder branco, pálido como no dia da Convenção, entrou. Aproximou-se vagarosamente do líder negro e pos-lhe a mão sobre o ombro num gesto de piedade comovida.

— "Sim, o Presidente Kerlog, o branco que vem assassinar-te, Jim..."

Aquelas estranhas palavras desnortearam o líder negro, cujos sobrolhos se franziram interrogativamente. Por mais esforço que fizesse não penetrava o sentido da estranha saudação. Mas sorriu e disse:

— "A raça branca não poderia prestar maior home¬nagem á raça negra do que elegendo para carrasco de Jim Roy tão nobre chefe. Que arma escolhe para a missão que traz, Presidente Kerlog? Veneno dos Borgias ou lamina de aço?"

O tom faceto de Jim Roy não desanuviou o ar si¬nistro do líder branco, antes o fez ainda mais doloroso.

— "Minha linguagem não é figurada, Jim. Venho de fato assassinar-te, repito".

Jim continuou a sorrir.

— "E eu repito: com o punhal de Brutus ou com o veneno dos Borgias?"

Kerlog encarou-o com infinita piedade e disse:

— "Arma pior, Jim. Trago na boca a palavra que mata..."

O sorriso que pairava nos lábios do negro começou a desaparecer.

— "Ninguém admira mais", prosseguiu Kerlog, "ninguém respeita mais o líder negro do que eu. Ouso até afirmar que dentro da America branca só eu o justifico e compreendo de maneira absoluta. Vejo nele um avatar de Lincoln, o sonhador de um sonho imenso de jus¬tiça. O homem que ha em Kerlog rende ao homem que ha em Jim todas as homenagens. Mas o branco que ha em Kerlog vem friamente assassinar com a palavra que mata o negro que ha em Jim Roy..."

Tonto pelo imprevisto rumo que ia tomando o due¬lo, o líder negro nada replicou. Limitou-se a verrumar com os olhos o seu antagonista como para extorquir--lhe o pensamento oculto. A pausa que se fez foi lúgubre. Mas Jim logo readquiriu a sua habitual firmeza e disse com ironia dolorosa:

– "Não creio que o Presidente Kerlog possua a pa¬lavra que mata. O peito de Jim tem couraças por den¬tro. Quatro séculos de martírio nas torturas físicas da escravidão e nas torturas morais do pária enfibram a alma de quem resume cem milhões de irmãos. O peito de Jim traz couraças de rinoceronte por dentro. Cou¬raças á prova das palavras que matam..."

– "Trazia..." emendou mansamente o líder louro. O Jim de hoje não é mais o titã que o Presidente Ker¬log recebeu na Casa Branca. Quando o corisco fulmi¬na a sequóia, a arvore solitária continua de pé, porém outra.

O negro pressentiu a verdade daquilo. Recordou-se de que já não era o mesmo. Mas como Kerlog o adi¬vinhava? Como penetrava assim no seu imo? Ele não confessara a ninguém a súbita queda da sua força vital, e nada a definia melhor do que a imagem do líder branco: arvore siderada onde a seiva já não circula...

Jim, entretanto, reagiu; retesou-se de todas as suas energias em declínio e disse com glacial firmeza:

— "Não importa, Presidente Kerlog. A Casa Bran¬ca restituirá amanhã a Jim Roy a força que o cansaço da vitoria lhe roubou."

Kerlog pousou a mão sobre o ombro do líder negro e disse com profunda piedade:

— "Não subirás os degraus da Casa Branca, Jim..."

O negro deu um salto de pantera acuada e ex¬plodiu:

— "Por que? Acaso conspiram os brancos contra a Constituição? Querem o crime?"

Seu peito arfava.

— "Nada disso", retrucou suavemente Kerlog. "Não penetrarás na Casa Branca porque lá não cabe Sansão de cabelos cortados. Tua presidência seria inútil. Tudo é inútil quando o futuro já não existe.

O tom misterioso de Kerlog impacientava o negro, que sentia algo de terrível prestes a revelar-se.

— "Diga tudo, Presidente Kerlog, diga essa palavra que mata!" gritou ele irritado.

O líder branco deixou cair novas palavras de mistério e tortura, cortantes como o fio das navalhas.

— "Tua raça foi vítima do que chamarás a traição do branco e do que chamarei as razões do branco."

O negro esboçou um rictus de ódio.

– "Traição!... E é o Presidente Kerlog quem jus¬tifica a traição!..."

– "Não justifico, Jim, consigno-a. Não ha traição quando a senha é Vencer."

Jim sorriu com desprezo.

– "A moral branca..."

– "Não ha moral entre raças, como não ha moral entre povos. Ha vitoria ou derrota. Tua raça morreu, Jim..."

O negro imobilizou-se. Suas narinas entraram a afiar. Suas feições se decompunham horrorosamente.

— "Tua raça morreu, Jim". — repetiu Kerlog. "Com a frieza implacável do Sangue que nada vê acima de si, o branco pôs um ponto final no negro da America."

Jim quedou-se um instante imóvel, como que adi¬vinhando.

– "Os raios Omega!" exclamou afinal num clarão, agarrando os braços de Kerlog com os dedos crispados.

– "Sim", confirmou Kerlog. "Os raios de John Dudley possuem virtude dupla... Ao mesmo tempo em que alisam os cabelos..."

Os olhos de Jim saltaram das orbitas. Seu trans¬torno de feições era tamanho que o líder branco vaci¬lou de piedade. A raça cruel, porém, reagiu nele. E, surda, quase imperceptível, aflorou em seus lábios a palavra fatal:

— "... esterilizam o homem."

Nem Shakespeare descreveria o aspecto do líder negro no momento em que a palavra assassina lhe des¬pedaçou o coração. Um terremoto d'alma aluiu por terra o titã. Fe-lo tombar sobre a poltrona, com esga¬res de idiota, encolhido como a criança inerme que vê serpente. Breves crispações de músculos passearam-lhes pelas faces. Dobrou o corpo sobre a secretária. Imobilizou-se.

O líder branco aproximou-se daquela massa de titã extinto, afagou-lhe a pobre cabeça omegada e disse com voz rompida de soluços:

— "Perdoa-me, Jim..."
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continua… XXIV– Crepúsculo

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

domingo, 23 de outubro de 2011

Hermoclydes S. Franco (Trova Ecológica 33)

Henriques do Cerro Azul (Livro de Sonetos)


ÉDEN

Hoje enfim novamente (há quantos dias
Que eu ansiava por esta ocasião!),
Hoje enfim, entre estranhas alegrias,
De novo aperto essa pequena mão

De novo, entre divinas harmonias,
Ouço-te a voz - pulsa-me o coração:
Tuas tranças revoltas e sombrias
São sacudidas pela viração...

Hoje enfim novamente me enterneço,
Pois novamente o teu amor mereço,
Éden que loucamente abandonei...

Atrás de ti eu loucamente andava,
Paraíso perdido que eu buscava ...
Paraíso perdido que eu achei !

CONTRASTE

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante...
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos...
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !

SONHO SEM VIDA

O doce afeto que meu ser sonhara
Cheio de enlevos, terno, comovido,
Nascia cheio de uma ardência clara...
Mas antes de nascer, tinha morrido!

Ele foi um capítulo perdido
De uma comédia deslumbrante e rara;
Foi ele um livro inédito, esquecido,
Que u’a mão escrevera e abandonara...

Morreu à mingua de um sorriso terno,
De um olhar, de uma frase comovida,
De um gesto meigo, de um carinho enfim...

E assim o idílio que seria eterno,
O doce sonho que não teve vida
Sem nunca ter começo teve fim.

O QUE NÃO DISSE

- "Olha, eu sei que pequei (eu te dizia,
Quando deste este amor por terminado),
Mas perdoa, querida, este pecado...”
Porém me fulminaste de ironia.

- "Eu te amo, repliquei com voz sombria,
Não me abandones, quero-te ao meu lado!''
Mas rasgando-me o peito lacerado,
A tua boca virginal sorria...

Quis dizer, com a verdade por escudo,
Antes que a minha força me fugisse,
Que eras meu sonho, meu amor, meu tudo

Mas não achei as frases!... Com meiguice,
Olhei-te então enternecido e mudo:
Mas nem sequer ouviste o que eu não disse !

FECUNDOS ARREPENDIMENTOS

Nos meus fecundos arrependimentos,
Por não te haver amado, de covarde,
Estes versos te escrevo, embora tarde,
Revelando-te assim os meus tormentos...

Amo-te assim: sem arrebatamentos,
Sem gritos, sem excessos, sem alarde,
Enquanto a chama dos meus sonhos arde,
Votiva chama dos meus sentimentos.

Hoje, por minha culpa anda sozinha
Minha alma, a procurar-te pelo espaço
E a culpa é minha de não seres minha!

Mas extravaso em versos os tormentos...
Vem, e aceito estes versos que te faço
Nos meus fecundos arrependimentos !

PERTO DE TI

Em ti a luz das lâmpadas nas naves
Cintila; em ti a luz dos astros sentes:
Que brilho há nos teus olhos inocentes!
Que formosura há nos teus gestos graves!

Perto de ti, escuto as mais ardentes
Canções, as mais românticas e suaves;
Sinto clarões de estrelas, cantos de aves,
E perfumes de flores redolentes...

Mas minhas mãos, das tuas sempre ao lado,
Na triste solidão que perpetuas,
Permanecem nostálgicas sozinhas...

Quem comete mais áspero pecado:
As minhas mãos em procurar as tuas,
Ou tuas mãos em recusar as minhas?

É ASSIM QUE EU AMO...

Se amar e ter o pensamento e a vida
Voltados para um ser unicamente;
Se é ter em convulsões a alma acendida
Num doce anseio e num desejo ardente;

Se é dar sem receber; se é ter em mente
Por toda a longa estrada percorrida,
Alguém, talvez, que nem sequer pressente
Nossa amarga afeição desconhecida...

Se é chorar, se é sofrer sem ter tormento;
Se é sorrir, se é gozar sem ter motivo;
Beijar as flores, abraçar o vento,

E as aves escutar de ramo em ramo: -
Amada, eu te direi que é assim que vivo...
Mas, se não for amor, é assim que eu amo!

VIAGEM AO EGO

Tu és ente subjetivo, intrínseco,
Íntimo, radical, ínsito, básico,
por diferir dos mais teu ser anímico
e esse teu pensamento idiossincrático...

O pensamento de teu ser congênito
é teu, somente teu, interno e orgânico,
nasceu contigo e com teu sonho ingênito
e há de seguir-te com terror tirânico.

Tua alma segue de esperanças ávidas,
mas esse teu anseio é característico;
nasceu contigo e de tua alma pávida
e enche de crença e fé teu sonho místico.

Estão na realidade de teu ânimo
As tuas ilusões, num doce acúmulo
Tua grande alegria ou teu desânimo
São teus e serão teus até o túmulo…

RIOS

É esta a glória com que mais me exalço!
Do teu afeto ao jugo prisioneiro,
Vejo enfim que ele é firme e verdadeiro
Em meio a tanto sentimento falso!

Se estou longe de ti, no cativeiro
Da saudade, sorrindo, em sonhos alço
Meu ser em busca de teu ser, no encalço
De ver teu vulto alegre e alvissareiro...

Vês estes rios, no aluvião que espargem,
Como se juntam, trêmulos, sombrios,
Ruindo barrancos e alargando a margem!

E o amor que vem de ti, que vai de mim,
São dois imensos, dois profundos rios
Que assim convergem para o mesmo fim!

AUSÊNCIA

Por que demoras tanto? Cada instante
Se arrasta como uma hora vagarosa;
E há tanto que te espero, esbelta rosa,
Rainha e dona do meu peito amante.

O tempo, nessa marcha preguiçosa,
Faz de um minuto um século hesitante,
Que não quer avançar, ir para diante,
Nem dar-me a tua imagem vaporosa...

Chegas, enfim, e pagas a demora
Com um beijo, quase a me dizer: "Perdoa!"
E abres no riso uma esplendente aurora.

Todo me enlevo em tua imagem boa...
E o tempo que parou, meu Deus, agora
Que estás aqui, como ligeiro voa!

O SONHO

Gozar a vida? Só por intermédio
Do sonho. O gozo, no correr dos dias,
Todas as ilusões e as alegrias
Tornam-se tema para um epicédio...

Só o sonho é que serve de remédio
A tão grandes e tantas nostalgias,
Pois em meio de mágoas tão sombrias
Até o próprio amor nos causa tédio.

O sonho, não! O sonho não nos cansa!
Bendita, pois, a mística esperança
E todo aquele que consegue tê-la...

Pois é o sonho que faz, bendito engano!
A gota d'água se julgar oceano
E o pirilampo se julgar estrela!

LUTA


Eu sei compreender a Dor Humana,
A angústia universal, a ânsia terrível
Que une todos os homens e os irmana
Na busca da Ventura inatingível!

Pois a Arte, a Religião, a Ciência insana,
A procura do Bem incognoscível,
Toda a Filosofia que promana
Do homem, é apenas pela Dor possível!

Tudo isto é a luta universal acesa
Do ser Humano contra a Natureza;
É a luta! E pela luta, em toda a parte,

Desvendam-se os segredos e os mistérios,
Surgem a Ciência, a Religião e a Arte,
E crescem as cidades e os impérios!

Fonte
Jornal de Poesia
Antonio Miranda

Henriques do Cerro Azul


Pseudônimo de João Henrique Serra Azul, aposentado e advogado.

Filho do poeta Serra Azul e Maria do Carmo Serra Azul, publicou seu primeiro soneto em 1950, aos 14 anos de idade, no Jornal “O Nordeste”, do qual passou a ser colaborador semanal.

Casado com Raimunda Ceará Serra Azul, reside em Brasília.

Lecionou Língua e Literatura Portuguesa em diversos estabelecimentos de ensino da capital federal.

Em 1973 assumiu o cargo de Procurador da República, aposentando-se em 1995 como Subprocurador Geral da República, último cargo de Carreira do MPF.

Publicou:
“Sonetos e Poemas” (1967),
“Trânsito Onírico” (1991), livro com rimas proparoxítonas que reunia mais dois livros: “Trânsito Cósmico” e “Périplo ao Pretérito”;
“A Poesia dos Astros ou A Lenda do Céu” (1992).

Participa de antologias e revistas literárias nacionais e internacionais.

Foi eleito em concurso organizado pela Academia de Letras e Ciências de São Lourenço e outras, em 2001, “Príncipe dos Escritores Brasileiros”, com 143.810 votos, e

em 2002, foi eleito “Primeiro Príncipe da Poesia Brasileira”, com 681.300 votos, via internet, correios e telefone.

Faz parte de inúmeras academias e entidades culturais, entre elas
“Casa do Poeta do Brasil – DF”, da qual é o atual Presidente executivo.

Verbete do “Mem of Achiement 1988, Twelfth Edition, Ibc (International Biographical Centre), Cambridge Cb2 3qp, England, P. 635/636, e “International who’s Who Of Intelectuals”, Ninth Edition, 192, Ibc, Cambridge, England, P. 701.

Sua obra retrata por completo o conteúdo obrigatório da disciplina de Literatura, das escolas de Ensino Medio, quando o tema é versifícação, parnasianismo e simbolismo.

Fontes
http://poetasdobrasil.blogspot.com/2008/02/henrique-do-cerro-azul-pseudnimo-de-joo.html
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/henriques_do_cerro_azul.html

Henriques do Cerro Azul (escreve sobre Francisco Leite Serra Azul)


Francisco Henrique Leite, depois Francisco Leite Serra Azul, que nasceu em Aurora, Ceará, no dia 3 de maio do ano de 1909, e faleceu em 1985 . Era filho de José Henrique dos Santos e de Joaquina Leite dos Santos, sendo seus avós paternos Vitoriano Henrique dos Santos e Isabel Benício dos Santos, e avós maternos Manuel Luciano Teixeira Leite e Maria Leite Félix Soares. Vai este registro para aqueles que gostam de pesquisas familiares e se distraem com registros desse teor, nos locais da origem do biografado. Cedo ganhou mundo, como autodidata, mestre escola e cantador, casando-se no Distrito de Serra Azul, em Quixadá, tornando-se, em Fortaleza, conhecido como poeta Serra Azul, nome pelo qual ficou conhecido e que adotou. A notícia vem a propósito de que no dia 3 de novembro deste ano a família do poeta estará lançando a 2ª edição de seu livro Natureza Ritmada, num shopping da Aldeota, em Fortaleza, pela Oboé. Nada mais justo que esta página hoje trate desse livro, que incluiu seu livro anterior, Alfabeto das Musas, editado em 1924. Esse livro começa com o soneto O que diria Virgílio..., que assim expõe o resumo do conteúdo da publicação:

Teu livro, Serra Azul, em que constelas
as letras do ABC com várias cores,
É um pedaço de céu que tu revelas,
Dos teus altos ideais encantadores.

Não sei se é um céu com vinte e sete estrelas,
Ou se é um jardim com vinte e sete flores
O teu solar com as vinte e sete belas
Musas, com seus miríficos fulgores.

As vinte e sete virgens que descreves,
Não são moças humanas, são senhoras
vaporosas, sutis, fluidas e leves...

Vai continuando assim o teu idílio
Só com essas fantásticas pastoras
E aceita os parabéns do teu Virgílio

Esse é o preâmbulo do livro. A seguir vem a descrição das musas, iniciando com a Incógnita e a seguir, na ordem alfabética com Alice, Beatriz, Carmem, Dolores, etc. Incógnita é a homenagem à pessoa real da filha do Poeta, que se chamava Letícia. Vejamos esse soneto:

Procuro-a em vão por toda a parte. Visse-a
Hoje e pudesse conquistá-la em breve!
É uma virgem sem mácula, mais leve
Que o ar e mais sutil que uma carícia.

De uma igual formosura ninguem teve
Jamais lembrança e não terá notícia!...
Pois essa graça que se não descreve,
Só a encontro nos olhos de Letícia.

Mas que fazer? Sei que a outra não existe.
Nesse vale de lágrimas tão triste,
É impossível haver tal maravilha!

Julgando-a a Deusa da felicidade,
Me atribuo, por isto, a dignidade
De compará-la assim com minha filha.

As particularidades que notamos neste soneto são muitas. Como todos os sonetos do Alfabeto das Musas, é feito com versos decassilábicos sáficos (1º, 2º, 6º, 7º) ou heróicos (3º, 4º). Vemos que o 1º verso é uma rima composta. A rima do 5º verso é metafônica. A colocação pronominal clássica do 7º verso (“que se não descreve”) não é fruto do pedantismo gramatical, mas obedece à exigência do ritmo do verso sáfico. Vejamos agora o soneto Alice:

... Enfim não houve céu que eu não subisse,
Campos de flores que eu não percorresse,
Mares e abismos a que eu não descesse,
A ver se achava o que imitava Alice.

Cheguei ao mar e a pérola me disse:
“Quem sou eu? Ah! Se tal me parecesse!”
Nem houve flor que inveja não tivesse,
Nem estrela que ciúme não sentisse.

E na jornada espiritual que à face
De tudo andei, ninguém achei que fosse
Digno de que com ela eu comparasse.

Não encontrei, nem encontrei quem visse
Formosura no mundo como a doce,
Cheia de graça e angélica Alice.

A particularidade desse soneto é que as rimas são asse, esse, isse e osse, com rimas metafônicas apesar de homográficas. É um exemplo de prosopopeia e de mesodiplose. Vejamos agora o soneto Beatriz:

É mais formosa que a Beatriz do Dante,
Porque, se aquela fosse assim tão bela,
O poeta não teria tido aquela
visão de inferno e glória ao mesmo instante

Porque quem vir Beatriz, estou que cante
Somente a glória que ela vive, em si, revela
E só poderá ver inferno adiante
Ou purgatório, estando ausente dela.

Assim, para a beleza ser completa,
É preciso ter na alma a formosura
Que se ajuste à do corpo em linha reta.

E esta Beleza da alma se apresenta
Em Beatriz, na virtude e na ternura
De que a beleza dela se ornamenta.

Alusão ao poeta Dante, autor da Divina Comédia, o qual foi guiado por Beatriz. Há neste soneto também a figura de linguagem chamada de ironia.

Fonte:
http://www.revistafoco.com.br/p2885.aspx

Serra Azul (1909 – 1985)

(veja nota sobre os anos de nascimento e falecimento)

Francisco Leite SERRA AZUL - vate maior do beletrismo de toda ribeira do Salgado.

Nascido aos 3 de maio de 1909 no sítio Pau Branco no riacho do Tipi de Aurora, CE, o então garoto Francisco Leite órfão de pai e mãe aos quatro anos de idade passa a ser criado por um tio.

Camponês e de origem humilde o futuro literato se mostrou autodidata deste o início quando aprendera a ler valendo-se de pequenos fragmentos de jornais, livros escolares, almanaques e textos de uma velha Bíblia tomada por empréstimo pelo tutor. Seu ambiente escolar não poderia ser mais original: as sombras dos marmeleiros e das oiticicas que compunham o seu dia-a-dia nas bibocas do riacho.

Quando Aurora foi invadida e saqueada pelos "cabras" do coronel José Inácio do Barro nos idos de 1908 a vida se tornou ainda mais difícil Assim, aproveitando o ensejo, deixou a terrinha qual um fugitivo indo parar nas bandas de Quixadá no vilarejo de Serra Azul passando a ganhar a vida como mestre-escola. Anos depois já em 1912 contraiu matrimônio com Maria do Carmo, moça do lugar. Em Quixadá começa a ficar conhecido por conta dos seus belos improvisos poéticos. Como afirmou Mário Linhares "o verso brotava-lhe como fio dágua do seio da terra". Em 1919 a convite do poeta Castro Monte decide ir para Fortaleza onde passa a trabalhar na biblioteca pública onde tem contato com os clássicos da literatura universal.

Dono de uma mente notável e privilegiada logo começa a adquirir uma sólida formação intelectual por conta própria. Como ele dizia "fui sempre um professor de mim mesmo". Admirado por muitos intelectuais da época para a fazer parte do convívio de notáveis figuras das letras cearenses tais como: Juvenal Galeno, Quintino Cunha, Antonio Sales, Leonardo Mota, Osvaldo Barroso, Rubens de Azevedo e tanto outros. Foi inclusive em atendimento a sugestão de Rodolfo Teófilo que Francisco Leite passou a adotar o nome de
Serra Azul em definitivo, acrescendo-o ao próprio nome de batismo e por conseqüência aos seus descendentes. Foi na capital um exímio professor de História Natural, Geografia e Literatura.

Colaborou com vários jornais da sua época não apenas no que tange ao fazer poético, sendo, por conseguinte um dos fundadores da histórica Associação Cearense de Imprensa (ACI). Ousou criar o seu próprio estilo literário que ele denominou de "Escola Poética Objetiva" onde propunha uma poesia que fosse além da estética e do lirismo roto.

Uma poesia que pudesse penetrar todos os mais escuros recônditos do conhecimento de uma forma geral. Serra Azul foi por tudo isso, um homem que esteve muito além do seu tempo. "Sem mestre estudei francês, inglês, castelhano, alemão, e até latim e grego antigo. Não falo, mas traduzo regularmente o francês, o inglês e o castelhano" dizia ele próprio no preâmbulo da obra Versos Bucólicos de 1978. Publicou os seguintes trabalhos: Alfabeto das Musas (poesia) 1924; Natureza Ritmada (poesia) 1938; Impressões de Viagem (prosa) 1935; Versos Bucólicos (poesia) 1978; Cronologia de Homens Ilustres (ensaio) 1979; Antologia Poética (poesia) 1978; Grandes Bacias Hidrográficas do Brasil (prosa) 1980 além de outras produções inéditas.

Em 1930 compôs o maravilhoso poema Aurora (Antiga Venda) dedicado a sua terra natal por ocasião do aniversário dos 43 anos de emancipação política. Até aquele momento ninguém sabia ao certo que nome possuía a tal senhora proprietária da histórica taberna às margens do rio Salgado na origem do povoamento da cidade. Foi então Serra Azul, por sugestão do escritor e amigo Pedro Albano que o fez substituir o termo "D. Flora" no poema por "Dona Aurora" batizando deste modo a dita mulher que passou a figurar na história sob o nome "fúlgido de Aurora".

Veio de trem algumas vezes de maneira discreta visitar seu torrão, ficando hospedado na residência do Sr. Zezinho Saburá. Gostava de afirmar que sua inspiração corria no leito do Salgado.

Serra Azul faleceu aos 90 anos de idade em Fortaleza no ano de 1983.

AURORA (Antiga Venda)

À margem do Salgado instalou venda
De comida e bebida Dona Aurora
Que servia de oásis, rancho e tenda
Ao viajante, aconlhendo-o a qualquer hora.

Era a ribeira que sulcava a senda
Do litoral ao Cariri, outrora
Vem depois uma igreja, uma vivenda,
Outra e mais outra e em povoação se enflora...

Não sei se o mais é tradição ou lenda.
Sei que foi vila e que é cidade agora
E a sua história é trágica e tremenda!

É a terra de meu berço, esta que, embora
Tivesse o nome mercantil de venda,
Tem hoje o nome fúlgido de Aurora!
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Nota por José Feldman:
Considerei os anos citados por Henriques, contudo pelos dados que obtive no Município de Aurora, ele nasceu em 1893 e faleceu em 1983. Considerando que tenha havido um equívoco, considerei como válido os dados do Henriques.

Fonte:
http://www.aurora.ce.gov.br/cultura/texto.asp?id=53

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 373)

Estrofe do Dia
Uma Trova Nacional

As flores não mais assistem
na praça, a eternos amores...
É que amores não resistem
ao ver as praças sem flores!
–EDMAR JAPIASSU MAIA/RJ–

Uma Trova Potiguar

Se todos fossem honestos,
ninguém veria, na praça,
mendigos comendo restos
do pão que a miséria amassa!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Goianá/MG
Tema: SEARA - M/H

Planta o amor à tua volta
numa seara sem nome,
que as sementes da revolta
nascem do fruto da fome!
–CAROLINA RAMOS/SP–

Uma Trova de Ademar

Igualmente aos nossos pais,
nos cabelos brancos, temos
as impressões digitais
dos anos que já vivemos.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Tudo o que tenho reparto,
ó Senhor, sempre em Teu nome!
Tu fizeste o mundo farto,
o homem é que fez a fome!
–ZÁLKIND PIATIGORSKY/RJ–

Simplesmente Poesia

MOTE:
...E A TERRA CAIU NO CHÃO.

GLOSA:
Eu plantei um pé de uva
dentro da minha panela
botei lá numa janela
da casa de uma viúva,
de noite veio uma chuva
com relâmpago e trovão,
deu um forte furacão
que arrebentou a janela;
torou no meio a panela
e a terra caiu no chão.
–BELARMINO DE FRANÇA/PB–

Soneto do Dia

Anjo Enfermo.
–AFONSO CELSO/MG–

Geme no berço, enferma, a criancinha,
que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis, por que as merece
quem mal entrando na existência vinha?!

O melindroso ser, á filha minha!
Se os Céus ouvissem a paterna prece,
e a mim o teu sofrer passar pudesse,
- gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não te extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito!

Sim, é pai, mas - a crença nó-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
nunca teve uma filha pequenina!...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Júlia Lopes de Almeida (Natal Brasileiro)


Neste esfacelar de usos e tradições, poucas pessoas encontram ainda encanto em seguir costumes de avós que se foram há muito tempo, e de quem as caveiras, lá no fundo das covas, já não guardam nem resquícios de pele!

A nossa vida agitada precisa de um esforço para relembrar os divertimentos antigos, e não é senão por condescendência que muita gente faz horas para ir à missa do galo ou que deixa o espetáculo pela ceia caseira, obrigada a certos pratos que o desuso tornou para muitos paladares simplesmente abomináveis.

Noites quentes, maravilhosas noites de verão, banhadas de luar, impregnadas do aroma da magnólia e do jasmim-manga, convidando por certo muito mais aos passeios pelos arredores da cidade, ouvindo cigarras e violas de serenatas, do que a fecharmo-nos em uma sala, em frente a um prato de canja fumegante, entre os globos de gás a toda a luz e uma toalha branca onde a louçaria brilhe com o seu luzimento de esmalte.

Estas festas são doces às mamães, porque chamam para o seu redil as ovelhas soltas por diversos pontos da cidade. Nestes dias, como que se ouvem badaladas de sinos de ouro que, a cada repique, dizem assim:

— Vinde para casa! Vinde para casa! É aqui que vos amam! E as ovelhas param, escutam, torcem caminho e voltam para o aprisco de onde tinham partido.

A amante que espere, pensam os rapazes; que se estorça de raiva vendo-se preferida. É preciso também contentar a mamãe, que sorri acudindo a tudo e a todos com a mesma paciência de há trinta anos, quando os filhos eram pequenos e não sabiam de nada na vida que igualasse à sua companhia!

"Boa mamãe! dizem-lhe eles agora, perdoai os nossos desvarios de rapazes! Nós cá estamos no teu regaço, olhando para o teu rosto, beijando as nossas irmãs."

E a mamãe vai e vem, com os lábios risonhos e os olhos brilhantes. E o sino de ouro da casa, cujas badaladas se ouvem ao longe, mal ela o sabe! é o seu coração angustiado, pisado de sofrimentos, de dúvidas, de saudades, mas que todo se enflora ainda de esperanças, porque é de mãe!

Festas familiares, sois peregrinamente bondosas e dementes para os velhos!

Sim, é por condescendência que muita gente deixa a noitada ao relento pela ceia caseira, em que se comem coisas suculentas, se ouvem valsas marteladas ao piano, ou se conversam assuntos repisados.

Na roça é que estas festas do Natal e do Ano-Bom têm uma cor mais brasileira. Aqui na cidade fazemo-las seguindo os costumes portugueses. O frio do Natal europeu impele as famílias para o interior das suas casas, para o calor dos fogões e das ceias fumegantes. O nosso Natal é tão diverso! Em vez da neve temos o sol; em vez da ventania áspera, que obriga as pobres criaturas a irem para à igreja envoltas em capotes, salpicadas de lama e de chuva, temos noites estreladas, cheirosas, em que moças e rapazes vão à meia-noite ouvir a missa do galo, com trajes alegres, sem recear bronquites, podendo folgar pelos caminhos à luz das estrelas palpitantes e coloridas. Na roça é assim. A criançada come ao ar livre pinhões cozidos e faz a algazarra que apraz. As moças dançam no terreiro com os namorados, e os velhos, sentados sob o alpendre, contam anedotas, rememoram visitas a presépios antigos, até que o sino os chame e eles partam todos, aos magotes, para a capela tão sua conhecida, tão sua amada!

Se fosse possível deveríamos inventar festas adequadas ao nosso clima, estabelecê-las, fixá-las, torná-las nossas.

Os costumes europeus não podem, em absoluto, ser reproduzidos aqui. Há no Brasil climas mais frios do que em alguns países da Europa; no alto Paraná o gelo quebra os galhos das árvores e o aldeão tirita lavrando terra. Mas de que vale isso, se as estações são trocadas e o nosso Natal desabrocha em pleno verão! O nosso Natal! Bem que ele precisa de outro emblema. O velho de longas barbas brancas, nariz cor de morango maduro, capote espesso lanzudo e gorro de peles, é filho das terras nevadas, cortadas pelos uivos do vento, tão cruel para os pobres. O nosso Natal é moço, é risonho, é caritativo; abriga os sem vintém, e as criancinhas nuas não o temem, porque ele afaga-as o seu bafo cheiroso e veste-as com a sua luz quente e doirada!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Rafael Castellar (Poesias Avulsas)


SIMPLES ASSIM

Ontem vi uma criança e uma flor,
Foi num jardim destes à beira do caminho,
Sombreado por calvas jovens árvores
E forrado por um esverdeado gramado tímido.

Uma levava a outra
Por entre delicados dedinhos avermelhados,
Com incertos passos pueris,
Sob um brilhante olhar curioso.

Uma era levada pela outra,
Com aveludadas pétalas coloridas
A exalar um suave perfume adocicado,
Permitindo a encantadora magia da descoberta.

Uma completava a outra,
Com o vislumbre das formas e cores,
Com uma inocente gargalhada despreocupada,
Aconchegadas nas próprias existências
A comungar da mesma cena.

Ontem vi uma criança e uma flor…

À PRÓXIMA TEMPESTADE

Atentai-vos a mim, homens, o vosso nobre capitão!
Não vede que seguimos à carenagem?
Machados aos estais, machados ao mastro,
Livrai-nos do excesso, aprumemos a nave!

É de frente e não de lado
que se enfrentam as ondas, jovem timoneiro,
Alinha a proa e reze tua prece,
É de madeira de lei a quilha,
Mas a fé a fortalece!

Às tábuas a firmar, homens!
Aguentai-vos firmes,
Fazei-vos valer, esta é a hora,
Buscai vós na batalha a honra!

Rezai vossas preces,
Não perdeis a coragem!
O choro é para mais tarde.
Força!

Escorai-vos onde puderes,
Segurai-vos como puderes,
E, assim, revezai-vos ao descanso.

Já se aproxima a bonança
e é nela que se trabalha!
Nela não se descansa,
mas se repara e se toma o fôlego;
Tão certo quanto ela é a próxima tempestade
que já se precipita.

PELA JANELA

Há tempos que nesta janela,
Nesta mesma janela,
Ponho-me atendo a tudo observar,
A tudo o que se faz por ela passar.

Há tempos que neste observar,
Especulo os movimentos
e me delicio com as expressões.

Há tempos que destas reações,
Faço minhas imitações sem [é lógico]
esquecer as infundadas deduções.

Há tempos que nesta janela,
Fico a tudo observar,
Sem de mais nada me lembrar.

Há tempos que atrás desta janela,
Ponho-me assim: de tudo protegido e escondido,
De tudo que somente além dela se faz passar.

Hoje, um agradável dia ensolarado,
Como há tempos não fazia,
Pus-me despreocupado pelos passeios a caminhar,
Com um semblante difícil de desvendar,
Sentindo os cheiros e os sabores da paisagem
Há tempos nesta mesma janela a se formar,
Agora comigo por ela a se observar.

ENTREGA

Tantas foram as fantasias em mim vestidas,
Tantas foram as formas por mim assumidas,
Tantos foram os modos de mim investidos,
Tantas foram as culpas a mim atribuídas,
Que nem mais sei...

Tanto foi o que perdi,
Tanto foi o que lutei,
Tanto foi o que me iludiu,
Tantos foram os reveses,
Que nem mais dói...

Já não sei o que foi,
nem o que era para ter sido,
ou o que virá a ser.
Sei apenas que assim continuará,
De um lado para o outro, pra cima e pra baixo,
Trocando, mudando, transformando, inventando!
Mas sempre um eu mesmo [torto],
de todos os tempos e com alguma coisa nova.

E por isso, hoje,
envolto pelas minhas conquistas,
Sigo cantando a minha música,
Dançando a minha dança,
Caminhando o meu passo,
Rindo o meu riso,
Sem de mim perder a criança
que nunca deixei de ser.

Fonte:
http//descemaisuma.blogspot.com

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXII– Amor! Amor!


CAPITULO XXII
Amor! Amor!

Miss Jane continuou:

— Depois de sua espaventosa adesão ao Homo, a líder do partido feminino caiu em si. Percebeu que o desvairamento no dia da vitoria negra lhe quebrara a soberba linha das belas atitudes e a transformara numa perfeita louca á moda das velhas sufragistas britânicas. E envergonhou-se. Que pensaria dela o Presidente Kerlog? Como teria o lider branco, lá no intimo, recebido aquele arroubo de sinceridade explosiva?

Miss Astor amava a Kerlog. A nobre figura do Presidente, sua firmeza no governo, sua agilidade de espirito e sua serenidade de força construtiva, seduziam-na de modo incoercível. E talvez até que no fundo toda a atuação política de miss Astor não visasse outro fim além de aproxima-la do lider branco, por emparelhamento num mesmo nivel de prestigio social.

– Por que então contrapos-se a ele nas eleições? perguntei sapatescamente.

– Porque a linha reta da mulher é sempre torta. Elvinismo, senhor Ayrton!... Matemática, ciência elvinista! Dois mais dois igual... ao que convém. Mas miss Astor errava, se acaso se supunha diminuída na opinião de Kerlog. O presidente era Homo e, apesar de todos os progressos da eugenia, um Homo tão sensível ao contacto feminino como... como o senhor Ayrton, por exemplo.

Corei forte. Momentos antes havia eu, sem o querer, está visto, tocado com o meu pé o mimoso pé de miss Jane, e não pude esconder a corrente elétrica que me percorreu o corpo. Seria que miss Jane, sempre tão desentendida, aludia a esse fato? Estava a minha amiga um tanto diferente naquela tarde. Menos impassível que de costume e assim como quem quer e não quer, como quem vai e não vai, como quem diz e não diz. Apesar de toda a minha pouca penetração feminina eu sentia isso, adivinhando nela os primeiros estremecimentos da mulher.

— E já que era assim sensível, continuou a jovem, o amplexo que no momento do perigo pôs miss Astor em contacto com Kerlog calou fundo nas células presidenciais e impregnou-as disso que os homens chamam desejo.

Tive vontade de perguntar a miss Jane como as mulheres chamavam isso que os homens chamam desejo — mas me faltou a coragem.

– E daí por diante, sempre que a razão do senhor Kerlog se punha a pesar os prós e contras relativos a miss Astor intervinham as células abraçadas, colocando na concha dos prós a tara da saudade — e lá se ia a frieza da razão do senhor Kerlog. Pobre razão humana. Pobre hoje, pobre em 2228!... E tanto era assim, que logo depois da invasão da sala pelas elvinistas arrependidas o senhor Kerlog comentou o fato nestes termos, dirigindo-se ao ministro da Equidade:

– "Miss Astor sempre se apresentou diante de mim envolvida em atitudes, belas, não resta duvida, porque há sempre beleza em todos os seus movimentos — mas atitudes que me chocavam como falsas. Nem uma só vez a vi ao natural. Foi preciso que o desastre sobre
viesse e o terror se apossasse de sua alma para que eu a conhecesse como sempre desejei conhece-la: mulher."

E lá consigo recordava a doçura do seu abraço.

Esse abraço ficou. Os dias se foram passando. Veio a Convenção Branca. Veio a dor de cabeça. Veio o omeguismo. Nada apagava das células cervicais do senhor Kerlog a impressão do doce contacto.

Certa vez, reunido o ministerio, os ministros perceberam que o Presidente olhava muito amiúde para o relógio. O assunto em debate era o progresso do desencarapinhamento dos negros, matéria de especial atenção para o chefe do estado. Especial e demorada — menos naquele dia. Naquele dia o Presidente atropelava os seus auxiliares como que desejoso de encerrar mais cedo a reunião.

As informações estatísticas apresentadas pela Dudley Uncurling Company deviam ser bastante favoráveis, a avaliar-se pelo sorriso com que o lider branco as recebera.

– "Estamos no fim," disse ele. A ciência resolveu de fato o grave problema étnico — e que magistral solução! Em vez de expatriar o negro ou dividir o país...

– "Desencarapinha-lo!" completou, piscando o olho, o ministro da Seleção.

Todos se entreolharam com certo ar de velhacaria. O da Equidade disse:

— "O binômio racial passa a monômio. Só o ariano é grande e Dudley é o seu profeta."

Eu cocei a cabeça num gesto muito lá do escritório.

— Mas, então, miss Jane, a solução é mesmo a que eu adivinhei — a igualificação das raças!...

Miss Jane tossiu uma tossezinha de encomenda e desconversou:

— O neologismo está bom, senhor Ayrton. Por mais rica que seja uma lingua, a expressão humana tem sempre necessidade de palavras novas. "Igualificação" — muito bem!

Encolhi-me no fundo da minha poltrona.

— Mas, continuou ela, o relógio do senhor Kerlog, consultado pela décima vez, marcava três horas. O Presidente ergueu-se e deu por finda a reunião. Os ministros saíram. Na escada disse o da Paz ao da Equidade:

— "Notou a impaciência de Kerlog?"

– "Notei sim. Estava inquieto..."

– "Cherchez..."

– "Não é necessário. Se ninguém resiste á ação catalitica de miss Evelyn, quem lhe resistirá ao contacto?"

Riram-se, e lá se foram cada qual para o seu lado.

Não erraram os dois ministros. Logo depois miss Evelyn Astor parava em frente da Casa Branca e ágil como as deusas — ou as amorosas — subia as escadas.

Foi introduzida incontinenti.

– "Benvinda seja a minha formosa rival", disse com o mais amável dos seus sorrisos o Presidente flecha do.

– "Ex, aliás, Presidente Kerlog!" respondeu a encantadora Circe com um sorriso que era outra flecha.

– "Abandona então a política? Não insiste na sua
candidatura?"

– "Abandono. Perdi a confiança nos meus nervos. Além disso, mudei de ideia a respeito de um homem..."

– "Fazia mau juízo dele?"

– "Mau não. Errôneo, apenas. Vejo hoje que esse homem está no seu lugar."

– "Obrigado, miss Astor", exclamou o Presidente. "Recebo a sua alta homenagem como ao prêmio dos prêmios."

– "Pague-me então com outra. Líder que ainda sou de um partido, creio merecer a confiança do lider branco. Não é justo que eu conheça o pensamento intimo do governo relativo á questão negra?"

O Presidente Kerlog sorriu com afetada diplomacia.

— "Segredos de estado, miss Astor!..."

— "E já houve algum segredo de estado que não fosse conhecido das... mulheres de estado?" retrucou a ex-sabina com vivacidade.

Kerlog, bom esgrimista, tinha fama de pronto nas replicas.

— "As rainhas, as favoritas de outrora, eram de fato cofres, lindos cofres de segredos. Hoje, porém, que não há mais rainhas nem favoritas, só podem conhecer os segredos de estado as..."

Parou. Embebeu os olhos nos de miss Astor. Viu neles o que procurava e concluiu numa gentil mesura:

— "... as Presidentas!"

Miss Astor fez ar de desapontada e armou bico de criança a quem negam doce.

— "Quer dizer que só conhecerei tal segredo quando for eleita Presidenta..."

Os olhos de ambos encontraram-se de novo e meteram-se pelas respectivas almas a dentro. Liam-se os dois amorosos como em livros abertos.

— "Crê então, miss Astor, que só as eleições fazem Presidentas?"

Nova cara de desentendida, novo bico de criança. A coitadinha não percebia coisa nenhuma e foi mister que o lider branco dissesse tudo:

— "Esposa do Presidente, Presidenta é..."

— Novo olhar... ia dizendo eu.

Miss Jane atalhou-me:

— Não. Desta vez os olhos ficaram em paz. As mãos de Kerlog é que se estenderam para miss Astor. As de miss Astor foram-lhes ao encontro. Uniram-se no eterno gesto das mãos amorosas que se unem — e... o silencio que diz tudo se fez entre aqueles dois admiráveis tipos de gorilas evoluídos.

A minha amiga parou, a olhar-me muito firme nas mãos, como Kerlog, mas não tive animo de declarar-me. A sua superioridade amedrontava-me ainda.

Miss Jane fez uma pausa de alguns segundos — essa pausa de quem espera e não vê chegar. Por fim disse, como que inconscientemente desapontada:

— Quer que continue ou prefere aqui uma linha de reticências?

Eu não queria coisa nenhuma. Eu só queria estender as mãos como Kerlog e embeber meus olhos nos de Jane e ficar assim a vida inteira. Mas os músculos me traíram miseravelmente. "Qual!" pensei furioso comigo mesmo. "Quem nasceu para empregado de Sá, Pato & Cia., não chegará nunca a esposo da filha do professor Benson..."

Miss Jane (pareceu-me) deixou escapar um imperceptível suspiro de despeito e rematou a história do duo presidencial com desinteresse evidente.

— O mais o senhor Ayrton imaginará, disse ela. O ano 2228 em matéria de amor não se distinguia dos anteriores. O dialogo de Adão e Eva é talvez a coisa única que não sofre grande influencia da evolução. Ás vezes até involui...

Tocou a campainha.

– Ponha o jantar, disse com certa secura ao criado que apareceu. E traga uma aspirina.

– Sente alguma coisa? indaguei com timidez.

– Um fio de dor de cabeça apenas, foi a sua breve resposta.

Que jantar frio e desenxabido aquele! Quando me vi fora do castelo, desabafei.

— És um animal de rabo, senhor Ayrton, e bem mereces o desprezo com que o senhor Sá te trata!...

E furioso dei vários beliscões nos músculos covardes que me falharam o movimento de mãos talvez mais oportuno da minha vida.

— Asno, asno, asno!... fui-me repetindo pelo caminho todo. Estúpido éter que não age nem quando interferido por uma interferência tão clara...

A semana que se seguiu foi a mais desastrosa da minha vida. Na segunda-feira briguei com vários amigos, atirei com uma xícara de café á cara dum garçom e cheguei a ir parar na policia.

Terça-feira pela manhã bebi três garrafas de cerveja e contra todos os meus hábitos fui assim para o escritório. O senhor Sá olhou-me de esguelha por varias vezes. Por fim, notando a má vontade com que eu fazia o serviço, piou:

— Comeu cobra?

Tive ímpetos de morde-lo. Mas era o patrão e recolhi os dentes. Sá insistiu:

– Comeu cobra, moço?

– Não comi coisa nenhuma. Eu lá como? Quem ama lá come? respondi de mau modo.

– Hum! fez ele. Percebo agora. De há muito venho notando que já não me é o mesmo. Não me dá atenção ao serviço, atropela-me tudo. O Pato me disse ontem...

Estourei a boiada.

— Importa-me lá o Pato! O Pato lá diz ontem! Patão choco é o que ele é! Patíbulo... Patíbulo de fraque!...

O assombro do senhor Sá chegou ao auge. Um empregado tratar assim ao comendador Manoel Pereira Pato, socio da firma, dono de cinco mil apólices, irmão do Santíssimo Sacramento, provedor da Santa Casa... E tamanho foi o seu assombro que o pobre homem engasgou

Continuei no meu estouro:

— Estou farto sabe? Isto por cá não passa de uma burrada. Mas a Lei Owen rompe aí qualquer dia e quero ver! E a lei espartana tambem! E outras leis terríveis, leis de dar cabo do canastro, entende? Seletivas!

O senhor Sá continuava mudo, de boca aberta, num estarrecimento de assustar um homem com menos cerveja no estômago. Olhei para ele firme e senti uma impressão cômica. Disparei na gargalhada.

— Parece o Presidente Kerlog quando soube da vitoria do Jim! Ah! Ah! Ah!... Não sabe quem é Jim? Sabe nada... Era um lider! O lider negro. Negro descascado. Despigmentado, entende? Omegado! Um bicho! Um...

Não pude continuar. Senti revolução no estômago e ignominiosamente destripei um "mico" de marcar época no austero escritório dos senhores Sá, Pato & Cia.

Não me lembro de mais nada, a não ser que fui posto no olho da rua violentamente.

Amor! Amor! Amor!
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continua… XXIII– A Derrocada de um Titã

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.